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UNIDADE 3 EPISTEMOLOGIA GENÉTICA: uma concepção interacionista e suas implicações educacionais ........................................... 77 Piaget e sua epistemologia genética ....................... 79 A construção do conhecimento .............................. 89 O desenvolvimento afetivo, social e moral ............... 97 UNIDADE 4 CONCEPÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DE VYGOTSKY E SUAS IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS ........................................................ 107 A formação social da mente: conceitos Vygotskyanos .... 109 A linguagem e seu papel na aprendizagem e desenvolvimento ............................................ 113 A formação de conceitos ..................................... 121 SUMÁRIO 3 UNIDADE OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Identificar os conceitos fundamentais da epistemologia genética piagetiana; Compreender o processo de construção do conhecimento, segundo Piaget; Reconhecer a contribuição de Piaget para o entendimento do desenvolvimento afetivo, moral e social da criança. ROTEIRO DE ESTUDOS • Piaget e sua epistemologia genética. • A construção do conhecimento. • O desenvolvimento afetivo, social e moral. EPISTEMOLOGIA GENéTICA: uma concepção interacionista e suas implicações educacionais FILOSOFIA78 PARA INíCIO DE CONVERSA Lembramos que você, futuro professor, estudou nas unidades anteriores algumas concepções psicológicas que procuram explicar como ocorre o Desenvolvimento e a Aprendizagem – ora priorizando o sujeito, ora o objeto de conhecimento. Pôde constatar que algumas atribuem aos aspectos biológicos o papel central no desenvolvimento, outras acreditam que são as experiências com o meio que proporcionam esse desenvolvimento, e outras - de caráter mais filosófico, idealista – são fundamentadas no Humanismo e na Fenomenologia, considerando o homem como fonte de todos os atos, uma vez que a liberdade está na sua consciência. A partir de agora, nesta unidade e nas próximas, você verá abordagens que partem do pressuposto de que o conhecimento resulta da interação do sujeito com o seu ambiente, unindo em suas ideias os pressupostos básicos dessas correntes, pois entendem que o conhecimento não se encontra em nenhuma delas isolado, mas que surge de sua união. A pessoa, ao interagir com as outras pessoas e com o meio, incorpora suas ideias depois de analisar, organizar e construir seu conhecimento. A perspectiva teórica interacionista que apresentamos a você nesta unidade é a abordagem de Jean Piaget, conhecida como Epistemologia Genética, que estuda a origem e os processos de formação do conhecimento pelo ser humano. Na Seção 1, apresentamos o autor, suas principais ideias e conceitos, e os fatores que interferem no desenvolvimento cognitivo do ser humano. Na Seção 2, abordamos o processo de desenvolvimento considerando o que ocorre em cada estágio, e a sua relação com a aprendizagem. Na Seção 3, procuramos mostrar as contribuições de Piaget para a compreensão do desenvolvimento afetivo, social e moral da criança. Temos certeza de que você encontrará nesta unidade valiosos conhecimentos para conhecer melhor os alunos, seus processos internos, e refletir sobre a dinâmica de sua prática educativa. Esperamos que a leitura do texto e das referências indicadas lhe seja de grande proveito e que você tenha sucesso nas atividades propostas. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 79 PIAGET E SUA EPISTEMOLOGIA GENéTICA Piaget significa para a inteligência o que Freud representa para a afetividade (DOLLE, 1981, p. 09). aro educando, nesta unidade você vai conhecer a teoria de Jean Piaget, que se considerava um biólogo por formação, um psicólogo por necessidade e um epistemólogo por opção. O autor e algumas ideias Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, na Suíça, em 1896. Quando menino realizou algumas investigações científicas, observando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica, trabalhando como assistente de diretor do Museu de História Natural de sua C FILOSOFIA80 cidade. Formou-se em Ciências Naturais em 1915, doutorando-se nesta mesma área em 1918 (FLAVEL, 1988). Ainda adolescente, interessou-se em estudar filosofia, em especial pela obra de Bergson, “a evolução criadora”, que suscitou sua curiosidade sobre a maneira pela qual o homem adquire conhecimento lógico-abstrato e se distingue qualitativamente das outras espécies animais (DOLLE, 1981). Piaget passou a sua vida inteira, até os 84 anos, pesquisando para responder as seguintes questões: Como o ser humano elabora seus conhecimentos? Como passamos de um estado de conhecimento de menor validade para um estado de conhecimento de maior validade científica? Como aumentam e se ampliam os nossos conhecimentos? Qual a origem do pensamento lógico-matemático? Como e em função de que as estruturas cognitivas iniciais modificam-se, dando lugar a outras mais complexas e elaboradas? Estas questões o levaram a indagar sobre como nascem os conhecimentos, quais são os seus instrumentos e como estes se constituem. Tais questões configuram um estudo epistemológico, um estudo do conhecimento. Por isso, denominamos a teoria de Piaget de Epistemologia Genética. Observe que epistemologia significa o estudo do conhecimento, e genética, termo que ele próprio aplicou, refere-se à busca das origens e dos processos de formação do pensamento e do conhecimento pelo ser humano (FONTANA; CRUZ, 1997). Mas, para responder estas questões, Piaget necessitava de base empírica, que a Filosofia não lhe proporcionava. Vislumbrou, então, na Psicologia, mais particularmente na Psicologia da Criança, a possibilidade de conhecer como as noções evoluem, razão pela qual criou o método psicogenético, que lhe permitiu a identificação dos estágios da construção das estruturas cognitivas. Voltou-se, então, para o desenvolvimento da espécie humana - do nascimento até a vida adulta. Assim se explica o fato de que para conhecer o sujeito epistêmico, aquele que constrói o conhecimento, tenha recorrido à psicologia, enquanto campo de PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 81 pesquisa. O sujeito é, então, na perspectiva de Piaget, o sujeito epistêmico: o sujeito cognoscente (KESSELRING, 1997). Para Piaget, o processo de conhecer é um processo construtivo, nem está pronto no sujeito nem é dado, exclusivamente, pela ação do meio sobre ele. Larocca (2002, p.206) assim se posiciona: Piaget apresenta uma concepção construtivista da inteligência humana que refuta teses do empirismo (que supõe o conhecimento como mera cópia do real) e do pré-formismo (que concebe programações genéticas). Para ele, o único apriori possível é o funcionamento constante dos organismos vivos. Sendo assim, no domínio da inteligência, jamais admitiu a existência de ideias inatas. Todos os conteúdos do conhecimento requerem uma construção. Vemos, então, que o processo construtivo exige a interação entre o organismo e o meio, o que nos leva a classificar Piaget, na Psicologia da Educação, como um teórico interacionista. Para Piaget, o conhecimento é o resultado de uma elaboração (construção) pessoal, de um processo interno de pensamento, que permite ao sujeito coordenar diferentes noções entre si, dando- lhes um significado, organizando-as, relacionando-as com outras já existentes. O conhecimento se desenvolve desde as rudimentares estruturas mentais do recém-nascido até o pensamento formal do adolescente. Piaget procurou mostrar como e em função de que estas estruturas se transformam e se tornam cada vez mais complexas (PIAGET, 1973). O desenvolvimento cognitivo: conceitos Piaget (1975) fundamenta-se na perspectiva biológica, em que o desenvolvimentoé entendido como um processo de adaptação, em que o organismo está em constante interação com o seu meio, tendo em vista sua organização. Os processos funcionais de adaptação e organização do sujeito constituem-se como a base FILOSOFIA82 desta teoria, são processos que se complementam, inseparáveis e que são explicados a partir de um modelo biológico. Logo, a inteligência é uma das formas de o ser humano se adaptar ao meio, ao longo de sua história de vida. Piaget assim se posiciona: “O organismo é um ciclo de processos físico-químicos e cinéticos que, em relação constante com o meio, engendram-se mutuamente” (PIAGET, 1975, p.16-17). Continua explicando que sendo a inteligência organizadora, ela prolonga o funcionamento da organização biológica e a supera pela elaboração de novas estruturas. Afirma que: [...] o corpo vivo apresenta uma estrutura organizada, isto é, constitui um sistema de relações interdependentes; que ele trabalha para conservar a sua estrutura definida e, para fazê-lo, incorpora- lhe os alimentos químicos e energéticos necessários, retirados do meio ambiente; por consequência, reage sempre às ações do meio em função dessa estrutura particular e tende, afinal de contas, a impor ao universo inteiro uma forma de equilíbrio dependente dessa organização (PIAGET, 1975, p.379-380). A posição interacionista do desenvolvimento humano, assumida na teoria piagetiana, considera que todos os fenômenos vitais, biológicos, sociológicos e psicológicos se originam da contínua interação entre o organismo e o meio, os quais exercem influências equivalentes entre si. A função de adaptação é uma maneira de equilíbrio entre indivíduo e meio, ou seja, a forma de sobrevivência do ser humano ao meio. Por sua vez, a organização decorre de um equilíbrio interno, diz respeito às estruturas mentais, que se desenvolvem. Estas duas funções, a de adaptação e a de organização, se cumprem a partir da ação dos mecanismos invariantes de assimilação e acomodação. Explica Piaget que [...] a acomodação é determinada pelo objeto, enquanto a assimilação é determinada pelo indivíduo. Então, assim como não há acomodação sem assimilação, já que é sempre a acomodação de alguma coisa que é assimilada [...], de igual modo não pode haver assimilação sem acomodação (PIAGET. In: BRINGUIER, 1978, p. 63). Adaptação é o equilíbrio entre a assimilação e a acomodação. Porque na adaptação você tem sempre dois polos: você tem o polo indivíduo – assimilação e o polo objeto – acomodação [...]” (PIAGET. In: BRINGUIER, 1978, p. 61) PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 83 Tanto sua visão de desenvolvimento como de aprendizagem apoiam-se na ideia da interação. O conhecimento surge da interação contínua entre sujeito e objeto, interação que se dá entre esquemas de assimilação e propriedades ou qualidades do objeto de conhecimento (LAROCCA, 2002). Explicando de outro modo, a assimilação é a incorporação dos elementos do meio às estruturas, ou de um objeto de conhecimento ou de uma nova ideia utilizando esquemas já existentes. E a acomodação é a modificação, a transformação das estruturas em função das modificações do meio; significa dizer que os esquemas de ação serão modificados para compreender e adaptar-se à nova situação (FLAVELL, 1988). Mas, então, você deve estar curioso para descobrir o que é um esquema de ação. Trazemos o que Piaget coloca sobre isso em seu livro Biologia e Conhecimento: [...] Chamaremos de esquemas de ações o que, numa ação, é transponível, generalizável ou diferenciável de uma situação à seguinte, ou seja, o que há de comum nas diversas repetições ou aplicações da mesma ação. Por exemplo, falaremos de um “esquema de reunião” para comportamentos como o de um bebê que amontoa blocos, de uma criança de mais idade que reúne objetos procurando classificá-los (PIAGET, 1973a, p.16). Vemos, então, que o esquema de ação é uma maneira própria de abordar a realidade e de organizá-la. Ele é o conjunto de ações de todos os gêneros, é a unidade observável, é o comportamento. Nas palavras do próprio Piaget (In: Carmichael, 1975, p.72): Desde as ações sensorial-motoras mais simples (tais como empurrar e puxar) até as operações intelectuais mais sofisticadas, as quais são ações interiorizadas executadas mentalmente (por exemplo, associar, ordenar, seriar), o conhecimento está constantemente ligado a ações ou operações, isto é, a transformações. A partir das atividades reflexas, o sujeito irá formar estruturas mentais para organizar suas sensações e experiências. Fará FILOSOFIA84 isso ao longo do processo de desenvolvimento, organizando e reconstruindo seus esquemas. Como os esquemas e estruturas mentais são organizados? A noção de esquema implica, segundo Delval (1997, p.101): “[...] uma sucessão de ações, materiais ou interiorizadas, que têm uma organização e que são suscetíveis de repetição em situações semelhantes”. Isso significa que, ao longo de sua vida, o sujeito exercita ações através das experiências e, nessa medida, constrói estruturas que consistem em coordenações ou combinações de esquemas. Dessa forma, podemos entender os esquemas como unidades básicas da conduta, que têm um caráter de totalidade e dinamismo, pois se relacionam entre si formando estruturas – ou seja, formas cognitivas mais estáveis. Fatores do desenvolvimento Para Piaget são quatro os fatores responsáveis pelo desenvolvimento humano, cada fator é uma condição necessária, mas não condição suficiente (quando isolado), para que o desenvolvimento aconteça. Nenhum dos quatro fatores exerce influência maior que o outro neste processo. São eles: a) A maturação refere-se à dimensão orgânica, neurológica, que abre novas possibilidades para o desenvolvimento ao acessar novas estruturas que são desenvolvidas com estas possibilidades. Significa que a maturação é uma condição necessária ao surgimento de certas condutas, porém precisa contar com o reforço do exercício e do funcionamento. A maturação do sistema nervoso limita-se a abrir possibilidades, excluídas até certos níveis de idade, mas é preciso atualizá- las, o que supõe outras condições, das quais a mais imediata é o exercício uncional ligado às ações (PIAGET, 1970, p.37-38) PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 85 Para Piaget [...] a maturação, no que diz respeito às funções cognitivas – conhecimento – simplesmente determina a extensão das possibilidades em um estágio específico. Não causa a atualização das estruturas. A maturação simplesmente indica se o desenvolvimento das estruturas específicas é ou não possível em um estágio determinado. Não contém em si uma estrutura pré-formada, mas abre possibilidades – a nova realidade ainda tem que ser construída (PIAGET, 1971a, p.183, apud WADSWORTH, 1989, p. 27-28). Isso significa que as operações intelectuais são claramente a expressão de coordenações nervosas que, por sua vez, são elaboradas em função da maturação orgânica. Conforme o autor, a maturação do sistema nervoso só está concluída na fase da adolescência. b) Experiência com o objeto de conhecimento: este fator diz respeito ao exercício e à experiência que o sujeito adquire na ação sobre os objetos. Para Piaget (1975, p.342) essa: [...] experiência não pode ser, portanto, nem mesmo no começo, um simples contato entre o sujeito e uma realidade independente dele, pois, que a acomodação é inseparável de um ato de assimilação que atribui ao próprio objeto uma significação pertinente à atividade do próprio sujeito. Entendemos que este fator do desenvolvimento cognitivo diz respeito à experiência queo sujeito adquire na ação sobre os objetos do conhecimento e não simples contato. Há dois tipos de experiência com o objeto do conhecimento: a experiência física que supõe a ação do sujeito sobre o objeto, abstraindo suas propriedades; e a experiência lógico-matemática, que supõe que o conhecimento não é deduzido dos objetos, mas das ações realizadas sobre os objetos. Propõe, por isso, abstrações A experiência não é recepção, mas ação e construção progressivas (PIAGET, 1975, p.342). FILOSOFIA86 sobre abstrações. Por exemplo, se dissermos que Maria é maior que João, a propriedade de ser maior não está em Maria, não é um atributo seu. Apenas o será quando existe uma relação de comparação, que no caso se dá em relação a João. Piaget (1975) explica que a experiência progride na medida em que é organizada e animada pela inteligência, se revelando dessa forma um dos fatores necessários ao desenvolvimento. c) Transmissão e interações sociais: este é um fator que pode ser percebido através das variações nas idades médias em que as estruturas correspondentes a determinados estágios de desenvolvimento seriam esperadas. Configura-se como um fator educativo, no sentido amplo. Segundo o autor, o meio social provoca acomodações ativas dos esquemas de ação por meio da linguagem, dos conteúdos expressos por essa linguagem e pelas regras de pensamento que evoluem no decorrer das trocas com o outro. Piaget (1973b, p.30) explica que: [...] para que uma transmissão seja possível entre o adulto e a criança ou entre o meio social e a criança educada, é necessário haver assimilação pela criança do que lhe procuram inculcar do exterior. Ora, essa assimilação é sempre condicionada pelas leis desse desenvolvimento [...]. d) A equilibração progressiva é um fator que influencia o processo de desenvolvimento. Esta noção é o cerne da teoria piagetiana, pois é o principal motor da formação das estruturas operatórias do sujeito. Para Piaget, todos os organismos vivos procuram se manter equilibrados, adaptados em suas relações com o meio. Com o rompimento de uma condição de equilíbrio, em face de perturbações do meio ambiente, gera-se um desequilíbrio e a necessidade de buscar novas formas de pensamento e ação – formas adaptativas dos esquemas e estruturas do sujeito. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 87 Piaget explica que a equilibração constitui-se como um processo muito geral de oposição e reação às perturbações exteriores, mais precisamente pela estabilização de sistemas de compensação. Assim explicita: [...] o progresso dos conhecimentos não é devido a um amontoado de experiências empíricas, mas é o resultado de uma autorregulação, que podemos designar como uma equilibração. Ora, esta equilibração não conduz ao estado anterior [...] mas conduz, em geral, a um estado melhor em relação àquele de que se partiu, que o mecanismo autorregulador permitiu melhorar (PIAGET, apud INHELDER et al., sd, p. 31). Este fator de processo biológico faz com que o sujeito regule suas trocas com o meio e garanta sua sobrevivência. Existindo os outros três fatores, é necessário que se equilibrem entre si. Para Piaget a palavra ‘equilíbrio’ não está empregada num sentido estático, [...] mas no sentido de uma equilibração progressiva, a equilibração sendo a compensação por reação do sujeito às perturbações exteriores, compensação que atinge a reversibilidade operatória, no fim desse desenvolvimento (PIAGET, 1973b, p. 31). Esse é um processo de construção permanente através de equilíbrios e desequilíbrios constantes, em que contam, além das perturbações do meio, a capacidade do organismo de ser perturbado e de responder às perturbações. Nesse sentido, o que chamamos de inteligência é uma das formas de o ser humano adaptar-se ao meio, ao longo de sua história de vida. A equilibração é, pois, um processo adaptativo e é formada por dois mecanismos invariantes: a assimilação e a acomodação. A assimilação é a incorporação dos elementos do meio às estruturas cognitivas do sujeito. A acomodação é a modificação, a transformação dessas estruturas em função das trocas que realiza com o meio. Enquanto a assimilação corresponde ao polo aberto do sistema cognitivo, pelo qual o indivíduo incorpora elementos do mundo exterior, tal como o organismo vivo tem necessidade de assimilar nutrientes para sobreviver, a acomodação corresponde ao polo fechado deste sistema, quando este se auto-organiza em função das peculiaridades dos objetos assimilados pela experiência. Com a acomodação os esquemas e estruturas do sujeito são modificados, propiciando uma forma de equilibração mais avançada e adaptada. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 89 A CONSTRUÇÃO DO CONhECIMENTO teoria de Piaget é também conhecida como construtivismo. Segundo Becker (1993, p.89), construtivismo significa: [...] a ideia de que nada, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interação do indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais [...]. Isso quer dizer que o sujeito, ao interagir com o meio e com outras pessoas, para se apropriar das trocas que faz, precisa reorganizar essas ideias transformando-as em algo seu, fazendo sua própria construção. Conforme Larocca (2002, p.208): Esquemas e estruturas são instrumentos da atividade intelectual. Enquanto os esquemas permitem assimilar e compreender a realidade, as estruturas permitem organizar os esquemas numa totalidade. O nível de competência cognitiva de um sujeito qualquer relaciona-se a um momento do desenvolvimento, que depende tanto dos tipos e quantidade de esquemas que construiu até ali, como também do modo de articulação destes esquemas entre si. Assim, o desenvolvimento cognitivo caracteriza-se por estágios sucessivos, e o que chamamos de inteligência assume o sentido de uma forma de equilíbrio a que tendem todas as estruturas, uma vez que a ação é tanto mais inteligente quanto mais evoluídas forem as estruturas a ela subjacentes. A FILOSOFIA90 Os estágios do desenvolvimento e a construção das estruturas intelectuais Para Piaget, o processo de desenvolvimento se dá através de estágios: [...] um estágio comporta ao mesmo tempo um nível de preparação, por um lado, e de acabamento, por outro[...] é necessário distinguir, em toda a sucessão de estágios, os processos de formação ou de gênese e as formas de equilíbrio finais [...] (PIAGET, 1973c, p. 52). Os estágios constituem-se em formas particulares de equilíbrio, caracterizam-se por uma sucessão constante de aquisições, sendo sua ordem cronológica bastante variável, pois depende da experiência anterior do sujeito, do meio social, que pode acelerar ou retardar o aparecimento de um estágio, e não somente da sua maturação biológica. Quais são os estágios ou períodos do processo de desenvolvimento cognitivo? São quatro os estágios ou períodos, que resumiremos a seguir: 1) Sensório-motor - Podemos dizer que o desenvolvimento se inicia sob as bases do alicerce biológico com o qual a criança conta, ao vir para o mundo: os reflexos, os órgãos dos sen- tidos e a capacidade motora. O período senso-motor segue do zero a aproximadamente 24 meses de vida da criança, representando “a conquista, através da percepção e dos mo- vimentos, de todo o universo prático que cerca a criança” (RAPPAPORT, 1981, p.66). Os primeiros esquemas sensório-motores irão permitir à criança organizar os estímulos ambientais de modo que os esquemas de ação constituintes desta fase servem de subestruturas às estruturas posteriores (PIAGET,1970). Piaget (1973c, p.50) disse: Só considero as idades relativas às populações sobre as quais trabalhamos; elas são, pois, extremamente relativas. Em compensação, em se tratando de estágios, a ordem de sucessão das condutas deve ser considerada como constante [...]. O estágio sensório- motor se caracteriza como o período da inteligência prática, ou seja, o bebê para conhecer o mundo utiliza-se da percepção, da ação e do movimento. Os esquemas de ação constituintes desta fase servem de subestruturas às estruturas posteriores (PIAGET, 1970). PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 91 No início, a criança não diferencia o próprio eu do mundo exterior. Com a interação com o meio, irá ocorrer, aos poucos, um processo de diferenciação que a levará a perceber-se como um ser entre outros seres e objetos que existem ao seu redor. Por volta de um ano, por exemplo, a criança já será capaz de perceber que um objeto continua a existir para além do seu campo visual. Essa noção é a permanência do objeto. Outras noções básicas também são construídas neste período: a construção do espaço, pois passa a perceber que existem outros espaços, além do imediato; a construção da noção de tempo, percebendo que existem séries temporais, que alguns acontecimentos se sucedem com regularidade; a construção da noção de causalidade, através da qual percebe relações entre eventos causa e eventos-efeito. Neste curto espaço de tempo, a criança evolui de uma condição passiva em relação ao meio ambiente a uma condição ativa e participante. Embora permaneça egocêntrica, autocentrada, já percorreu um bom trajeto de adaptação à realidade. Porém, ela ainda integra-se ao ambiente através da imitação. A conquista da função simbólica (capacidade de representar mentalmente objetos ausentes) e da linguagem oral vai alterar suas relações com o meio, anunciando um novo estágio de desenvolvimento: o estágio pré-operatório. 2) Pré-operatório - O período pré-operatório corresponde aproximadamente à faixa etária dos 2 aos 7 anos. Inicia-se com a conquista da linguagem oral e da capacidade representativa, através da qual a criança forma os primeiros esquemas simbólicos que lhe permitirão representar uma coisa por outra. Ela usa, por exemplo, uma pequena caixa “como se fosse” um caminhãozinho. Tudo isso, junto com a construção da inteligência prática na fase anterior, possibilitará o desenvolvimento lento e gradual do pensamento (PIAGET, 1973c). Todavia, durante esta fase, seu pensamento é ainda caracterizado por uma tendência lúdica e uma certa confusão entre realidade e fantasia. FILOSOFIA92 Isso acontece porque a criança ainda não desenvolveu esquemas conceituais lógicos e continua bastante egocêntrica em suas ações. Rappaport (1981, p.68-69) define o egocentrismo como: [...] uma visão da realidade que parte do próprio eu, isto é, a criança não concebe um mundo, uma situação da qual não faça parte, confunde-se com objetos e pessoas, no sentido de atribuir a eles seus próprios pensamentos, sentimentos etc. O egocentrismo é a principal qualidade do pensamento da criança nesta fase e podemos verificá-lo através das explicações que ela dá para fenômenos ou situações. O animismo é uma manifestação egocêntrica pela qual a criança atribui características humanas a seres inanimados. Assim, ela se queixa ao pai que “a porta é má”, pois lhe prendeu o dedinho. Atribuiu, então, à porta a intenção de machucá-la. Em todas as áreas da vivência da criança, o egocentrismo se manifestará: social, intelectual, moral, afetiva e na linguagem. Os esquemas intelectuais da criança no período pré-operatório são denominados de pré-conceitos. Como a criança ainda não desenvolveu esquemas conceituais verdadeiros, seu julgamento sobre as coisas existentes no mundo ainda está preso às suas percepções imediatas e, com isso, sujeito a vários erros. Em suma, esses pré-conceitos e pré-relações ficam a meio caminho entre o esquema de ação e o conceito, por não se dominar com bastante distanciamento a situação imediata e presente, como deveria ser o caso da representação em contraste com a ação. Esse apego duradouro à ação, com o que envolve de conexões em parte indiferenciadas entre o sujeito e os objetos, reencontra-se então na causalidade desse nível, o qual permanece essencialmente psicomórfico: os objetos são espécie de seres vivos dotados de não importa que poderes calcados sobre os da própria ação, como os de empurrar, puxar, atrair, lançar etc., e tanto à distância quanto em contato, sem se preocupar com a direção das forças ou com uma direção exclusiva que é a do agente independente dos pontos de impacto sobre os objetos passivos (PIAGET, 2002, p. 24). PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 93 Crianças pré-operatórias ainda não construíram as noções de conservação e invariância, por isso julgam pelo que veem. Se colocarmos em frente a elas um copo baixo e largo com uma certa quantidade de água e a despejarmos toda em um copo fino e alto, a criança julga que o copo fino e alto contém mais água, pois não consegue perceber que a quantidade de água não foi alterada. Assim, também, seu pensamento não é reversível, pois não consegue retornar ao ponto de partida. Ainda no exemplo dos copos de água, mesmo que despejemos a água de volta no copo largo e baixo, a criança não conseguirá entender que se trata da mesma quantidade de água. Será a conquista da reversibilidade do pensamento que permitirá à criança conquistar o próximo estágio de desenvolvimento: o pensamento operatório concreto. 3) Operatório concreto - Em nossa cultura, o período das operações concretas (7 a 11/12 anos, aproximadamente) representa, em geral, os primeiros anos escolares, sendo um momento marcado por grandes aquisições intelectuais, quando o pensamento da criança assume a forma de operações intelectuais. Conforme Piaget, as operações são ações mentais direcionadas para a constatação e explicação. São concretas, porque se referem ainda a objetos palpáveis, que a criança precisa manusear fazendo classificações, seriações, correspondências, numerações etc. As operações concretas são dotadas de reversibilidade, pois agora a criança compreende que toda operação pode ser invertida. Seu julgamento, então, já não depende mais da percepção imediata e vai se tornando um pensamento conceitual, que busca o raciocínio e não mais se prende ao mundo imediato. Segundo Davis e Oliveira (1990, p.44): a criança é “capaz de perceber que a quantidade se conserva, independentemente da disposição dos elementos no espaço, a criança operatória tem noção de conservação quanto à massa, peso e volume dos objetos”. Contudo, é bom lembrar que as suas operações mentais ainda dependem de materiais e exemplos que podem ser observados, A tendência lúdica e fantasiosa da fase anterior será substituída pela necessidade lógica, pois a criança já não mais tolera contradições em seu pensamento, que passará a organizar-se em torno de operações concretas, estabelecidas com base lógica. FILOSOFIA94 como sustentação concreta para o seu pensamento. Nesses termos, ela já pode ordenar, seriar, classificar, mas não consegue, ainda, pensar abstratamente. 4) Operatório formal - Se o período anterior já representou um grande salto qualitativo no desenvolvimento do pensamento, a conquista do pensamento operatório formal fará com que as operações mentais se libertem da limitação representada pela necessidade da evidência concreta. Esta nova fase inicia- se mais ou menos aos 12 anos e seguirá adiante, pela vida do sujeito. Agora, o pensamento não mais incide sobre objetos ou realidadesdiretamente representáveis, mas também sobre hipóteses e proposições. Para que você possa compreender melhor, é nesta fase que o sujeito é capaz de refletir sobre situações hipotéticas de maneira lógica. “O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros, sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado” (FONTANA; CRUZ, 1997, p.52). A conquista desta ampla capacidade de pensar o mundo traz para o jovem adolescente aquisições importantes que irão se refletir em todo o seu comportamento. É por isso que, na adolescência: [...] o sujeito será então capaz de formar esquemas conceituais abstratos (conceituar termos como amor, fantasia, justiça, esquema, democracia) e realizar com eles PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 95 operações mentais que seguem os princípios da lógica formal, o que lhe dará, sem dúvida, uma riqueza imensa em termos de conteúdo e de flexibilidade de pensamento. Com isso, adquire capacidade para criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta; discute os valores morais de seus pais e constrói os seus próprios (adquirindo, portanto, autonomia); torna-se capaz de aceitar suposições pelo gosto da discussão; faz sucessão de hipóteses que expressa em proposições para depois testá-las; procura propriedades gerais que permitam dar definições exaustivas, declarar leis gerais e ver significação comum em material verbal; os seus conceitos espaciais podem ir além do tangível finito e conhecido para conceber o infinitamente grande ou infinitamente pequeno; torna- se consciente de seu próprio pensamento, refletindo sobre ele a fim de oferecer justificações lógicas para os julgamentos que faz; lida com relações entre relações etc. (RAPPAPORT,1981, p. 74). A construção do raciocínio hipotético-dedutivo, neste novo estágio, permitirá ao adolescente estender seu pensamento ao infinito, abandonando-se, muitas vezes, à procura de explicações sobre o universo, a vida, o amor, a transformação da sociedade. Caberá, agora, ao seu pensamento reconciliar-se com a realidade concreta ajustando e consolidando suas novas estruturas cognitivas de acordo com ela. Esta procura de explicações pode fazer com que ele se desprenda da realidade, pois trabalha no plano de uma realidade possível. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 97 O DESENVOLVIMENTO AFETIVO, SOCIAL E MORAL O aspecto estrutural e afetivo das construções cognitivas iaget explica que a afetividade e a cognição são dois processos que acontecem interligados, que são mesmo inseparáveis. Assim se posiciona: Vida afetiva e vida cognitiva são, pois, inseparáveis, embora distintas. E são inseparáveis porque todo intercâmbio com o meio pressupõe ao mesmo tempo estruturação e valorização, mas nem por isso ficarão menos distintas, visto que esses dois aspectos da conduta não podem reduzir-se um ao outro. Assim é que não se poderia raciocinar, inclusive em matemática pura, sem vivenciar certos sentimentos, e que, por outro lado, não existem afeições sem um mínimo de compreensão [...] O ato de inteligência pressupõe, pois, uma regulação energética interna (interesse, esforço, facilidade etc.) [...] (PIAGET, 1977, p.16). São inseparáveis porque, segundo ele, a afetividade constitui-se como o motor, a mola propulsora para a cognição. Esclarece que o papel da afetividade não é o de engendrar ou mesmo de modificar ou de transformar as estruturas cognitivas. Significa dizer que P FILOSOFIA98 a existência da afetividade ou sua privação podem ocasionar a aceleração ou atraso no desenvolvimento cognitivo, mas sem modificar suas estruturas (PIAGET, 1973b). Arantes (2005) explica que um autor que podemos citar como tendo questionado as teorias que tratavam a afetividade e a cognição como aspectos funcionais separados é Jean Piaget. Após ter ministrado um curso na Universidade de Sorbonne (Paris) no ano acadêmico de 1953-54, no trabalho publicado como “Les relations entre l’intelligence et l’affectivité dans le développement de l’enfant”, que em português significa: As relações entre a inteligência e a afetividade durante o desenvolvimento da criança, Piaget adverte sobre o fato de que, apesar de diferentes em sua natureza, a afetividade e a cognição são inseparáveis. Explica que toda ação e pensamento possuem um aspecto cognitivo, que são as estruturas mentais, e um aspecto afetivo, que representa uma energia, que é a afetividade. Desenvolvimento social e moral, suas implicações Explicando as contribuições do meio social sobre a pessoa, Piaget (1977, p.157) diz: Desde o seu nascimento, o ser humano está mergulhado num meio social que atua sobre ele do mesmo modo que o meio físico. Mais ainda que o meio físico, em certo sentido a sociedade transforma o indivíduo em sua própria estrutura, porque ela não só o força a reconhecer fatos como também lhe fornece um sistema de signos inteiramente acabado, que modifica seu pensamento [...]. Não há dúvida alguma, portanto, de que a vida social transforma a inteligência pela tripla mediação: da linguagem [...], do conteúdo dos intercâmbios [...], das regras impostas ao pensamento. Com estas ideias, Piaget procura mostrar a importância do grupo social para o desenvolvimento e a aprendizagem do sujeito, ao mesmo tempo que elucida que a pessoa sofre pressões de seu grupo Conforme Arantes (2005, s/p.): Nessa perspectiva, o papel da afetividade para Piaget é funcional na inteligência. Ela é a fonte de energia de que a cognição se utiliza para seu funcionamento. Ele explica esse processo por meio de uma metáfora, afirmando que “a afetividade seria como a gasolina, que ativa o motor de um carro mas não modifica sua estrutura”(PIAGET, 1954, p.5 apud ARANTES, 2005, s/p.). Ou seja, existe uma relação intrínseca entre a gasolina e o motor (ou entre a afetividade e a cognição) porque o funcionamento do motor, comparado com as estruturas mentais, não é possível sem o combustível, que é a afetividade. http://www.hottopos. com/videtur23/valeria. htm PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 99 social tanto em relação às atitudes como também nas normas e regras que deve seguir, atendendo determinados valores. Piaget (1994, p.23) explica que: [...] as regras morais, que a criança aprende a respeitar, lhe são transmitidas pela maioria dos adultos, isto é, ela as recebe já elaboradas e, quase sempre, nunca elaboradas na medida de suas necessidades e de seu interesse, mas de uma vez só e pela sucessão ininterrupta das gerações anteriores. Daí, a extrema dificuldade de uma análise que deveria distinguir o que provém do conteúdo das regras e o que provém da criança pelos seus próprios pais. O autor afirma que as crianças, no que se refere às regras morais e sociais, iniciam com o que ele chama de anomia, ou seja, a impossibilidade de entender e compreender as regras. Em seguida, surge o respeito unilateral, que resulta da coerção exercida pelos adultos sobre elas, o que as faz acreditar na existência de regras e que elas são boas por terem sido propostas pelos adultos, aí aparece a heteronomia (PIAGET, 1994). Depois, surge o respeito mútuo, que aparece quando surge a cooperação, elas se submetem às regras porque decidem que devem obedecer. A autonomia resulta do respeito mútuo, e conforme Piaget (1994, p.91) “[...] O respeito mútuo aparece, portanto, como condição necessária da autonomia, sob seu duplo aspecto intelectual e moral”. Quando conseguimos este controle interno, que é um autocontrole que permite obedecer às regras porque queremos e entendemos seu valor, estamos exercendo nossa autonomia, construindo nossas próprias regras, aprendendo a negociar, a fazer contratose acordos com o grupo. E como Piaget explica essa aprendizagem? Desenvolvimento e aprendizagem na abordagem piagetiana Uma questão de grande relevância sobre este tema, na teoria de Piaget, é a de que o conhecimento resulta de interações entre sujeito e objeto e que estas interações são mais ricas do que aquilo que os objetos podem fornecer por eles mesmos (PIAGET, 1977). FILOSOFIA100 Ele enfatiza que a lógica, a moral, a linguagem e a compreensão de regras sociais não são inatas, ou seja, não estão pré-formadas na criança, nem são impostas de fora para dentro, por pressão do meio. Elas são construídas pelo indivíduo ao longo do processo de desenvolvimento, processo este entendido como sucessão de estágios que se diferenciam um dos outros, por mudanças qualitativas. Essas mudanças permitem não só a assimilação de objetos de conhecimento compatíveis com as possibilidades do desenvolvimento, mas, também, servem de ponto de partida para novas construções. Conforme Piaget, o desenvolvimento é um processo direcionado à totalidade das estruturas do conhecimento. Portanto, é um processo de funcionamento interno; já a aprendizagem é provocada por situações externas, como, por exemplo, através dos desafios colocados pelo professor em relação a algum tema pedagógico. Piaget reforça a tese de que o desenvolvimento explica a aprendizagem, refutando a ideia de que o desenvolvimento é a soma de experiências de aprendizagem. Um ponto essencial em sua teoria reside em explicar a riqueza das descobertas e invenções características do processo de construção dos conhecimentos. Para ele, o que a criança constrói em termos de conhecimento transforma e transcende as realidades, quaisquer que sejam. Explicar o desenvolvimento do conhecimento significa explicar como a criança consegue construir e inventar, não o que ela repete ou copia. Ora, as descobertas e invenções dependem da construção de estruturas lógicas que, diferenciando-se em virtude de assimilações novas, abrem possibilidades para conquistas cada vez mais elevadas. O desenvolvimento diz respeito à construção dessas estruturas. A aprendizagem nada mais é que um setor do desenvolvimento cognitivo, porque se refere a tudo o que a criança recebe em situações específicas de transmissões educativas (PIAGET, apud SEBER, 1997, p. 235). Diz Piaget: “o desenvolvimento é o processo essencial e cada elemento da aprendizagem ocorre como em função do desenvolvimento total” (Piaget apud SEBER, 1997, p.232). PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 101 Para Piaget, ter assegurado o direito à educação significa ter oportunidades de se desenvolver, em todos os aspectos, tanto do ponto de vista intelectual como social e moral. Piaget (1973d, p.40) explica que: Afirmar o direito da pessoa humana à educação é, pois, assumir uma responsabilidade muito mais pesada que a de assegurar a cada um a possibilidade da leitura, da escrita e do cálculo: significa, a rigor, garantir para toda criança o pleno desenvolvimento de suas funções mentais e a aquisição dos conhecimentos, bem como dos valores morais que correspondam ao exercício dessas funções, até a adaptação à vida social adulta. É antes de mais nada, por conseguinte, assumir a obrigação – levando em conta a constituição e as aptidões que distinguem cada indivíduo – de nada destruir ou malbaratar das possibilidades que ele encerra [...]. Isto significa que, para ele, educar é mais que transmitir conteúdos, passar informações, consiste em dar possibilidades a cada pessoa de desenvolver ao máximo suas potencialidades, transformando- as em realizações efetivas e produtivas. DICA PARA SALA DE AULA • Dialogue com seus colegas: De que forma Piaget define desen- volvimento e aprendizagem? FILOSOFIA102 suGeriMos que você assista ao docuMentário “os transforMadores” (episódio piaGet), proGraMa apresentado pela tv cultura. BECKER, F. A origem do conhecimento e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2003. BRENELLI, R. P. Piaget e a afetividade. In: SISTO, F. et al. Leituras de psicologia para formação de professores. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2000. p. 105-116. PIAGET, J. As formas elementares da dialética. Trad. Fernanda Mendes Luiz. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. (Coleção Lino de Macedo). PIAGET, J. INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. PIAGET, J. e SZEMINSKA, A. A gênese do número na criança. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília- DF, INL, 1975. PIAGET, et al. Abstração reflexionante: relações lógico-aritméticas e ordem das relações espaciais. Trad. Fernando Becker e Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. WADSWORTH, Barry J. Piaget para o professor da pré-escola e 1º Grau. Trad. Maria Zanella Sanvicente. 3 ed. São Paulo: Pioneira, 1989. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 103 SíNTESE Nesta unidade vimos que Jean Piaget passou a vida toda pesquisando para responder às seguintes questões: Como o ser humano elabora seus conhecimentos? Como aumentam e se ampliam os nossos conhecimentos? Tais questões o levaram a indagar sobre como nascem os conhecimentos, quais são os seus instrumentos e como estes se constituem. Por isso, sua teoria chama-se Epistemologia Genética. Epistemologia significa o estudo do conhecimento e Genética, termo que ele próprio aplicou, refere-se à busca das origens e dos processos de formação do pensamento e do conhecimento pelo ser humano. Para conhecer o sujeito epistêmico, que é aquele que constrói o conhecimento, Piaget recorreu à psicologia, enquanto campo de pesquisa. Para ele, o conhecimento é o resultado de uma construção pessoal, de um processo interno de pensamento que permite ao sujeito coordenar diferentes noções entre si, dando- lhes um significado, organizando-as, relacionando-as com outras já existentes. A partir de atividades reflexas, o sujeito forma estruturas mentais organizando suas sensações e experiências, ao longo do desenvolvimento. Organiza e reconstrói esquemas, os quais permitirão assimilar e compreender a realidade, enquanto as estruturas permitirão organizar os esquemas numa totalidade. Para Piaget, todos os organismos vivos procuram se manter adaptados em suas relações com o meio. Rompendo-se o equilíbrio, em face de perturbações do meio ambiente, gera-se um desequilíbrio e a necessidade de buscar novas formas de pensamento e ação. Os estágios constituem-se em formas particulares de equilíbrio. Além da equilibração, outros fatores são também responsáveis pelo desenvolvimento cognitivo: a maturação, as experiências com o objeto de conhecimento e a transmissão ou interação social. FILOSOFIA104 Piaget explica que a afetividade e a cognição são dois processos que acontecem interligados, que são mesmo inseparáveis. Explica também que a vida social transforma a inteligência por meio da linguagem, pelas trocas realizadas com o grupo social e pelas regras impostas ao pensamento. Conforme Piaget, o desenvolvimento é um processo direcionado à totalidade das estruturas do conhecimento. Portanto, é um processo de funcionamento interno; já a aprendizagem é provocada por situações externas. Você deve ter observado duas questões que são fundamentais nos estudos de Piaget: o sujeito epistêmico e a posição interacionista do desenvolvimento humano. Como você pode defini-las? De que forma Piaget define desenvolvimento e aprendizagem? Na perspectiva de Piaget sobre o processo de desenvolvimento e aprendizagem, qual é a influênciadessas ideias nas práticas educativas da escola? Releia o texto e verifique se acertou. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 3 105 Copie o quadro e complete os dados que faltam, de cada estágio, segundo Piaget. ESTÁGIO FAIXA ETÁRIA CARACTERÍSTICAS Sensório-motor 2 a 7 anos As operações mentais necessitam da sustentação das ações concretas 12 anos Teste seu conhecimento sobre os mecanismos invariantes do processo de desenvolvimento da inteligência na perspectiva de Piaget, numerando a segunda coluna e ligando o conceito ao seu significado: 4 ( ) É a modificação das estruturas em função das trocas que realiza com o meio. ( ) É a incorporação dos elementos do meio às estruturas do sujeito. ( ) É o equilíbro entre a assimilação e a acomodação. ( ) É uma maneira própria de abordar a realidade e de organizá-la. ( ) Decorre de um equilíbrio interno, diz respeito às estruturas que se desenvolvem. (1) ADAPTAÇÃO Sujeito (2) ORGANIZAÇÃO Cognitivas (3) ASSIMILAÇÃO (4) ACOMODAÇÃO (5) ESQUEMAS DE AÇÃO MENTAIS Complete colocando nos espaços o conceito de cada significado: Equilibração, Maturação, Experiência Física, Experiência Lógico-Matemática e Transmissão e Interação Social. 5 6 FILOSOFIA106 a __________________________________ de dimensão orgânica, neurológica, abre novas possibilidades para o desenvolvimento, acessando novas estruturas que são desenvolvidas com estas possibilidades. b ___________________________________ que supõe a ação do sujeito sobre o objeto, abstraindo suas propriedades. c __________________________________ que supõe que o conhecimento não é deduzido dos objetos, mas das ações realizadas sobre os objetos. d _____________________________ é o resultado de uma autorregulação, faz com que o sujeito regule suas trocas com o meio e garanta sua sobrevivência. e _________________________________ configura-se como um fator educativo, no sentido amplo. Na próxima unidade, você irá estudar na concepção interacionista as ideias de Vygotsky acerca do desenvolvimento e da aprendizagem. UNIDADE OBJETIVOS DESTA UNIDADE: Estabelecer as relações entre os conceitos e as implicações pedagógicas na abordagem vygotskyana; Reconhecer a importância da linguagem no processo de desenvolvimento e aprendizagem do aluno; Compreender o processo de formação de conceitos sob a perspectiva de Vygotsky. 4 ROTEIRO DE ESTUDOS • A formação social da mente: conceitos vygotskyanos. • A linguagem e seu papel na aprendizagem e desenvolvimento. • A formação de conceitos. CONCEPÇÃO SóCIO-hISTóRICA DE VyGOTSky E SUAS IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS FILOSOFIA108 PARA INíCIO DE CONVERSA Você já estudou a perspectiva interacionista de Jean Piaget. Agora, na Unidade IV, você vai saber como Vygotsky, um eminente estudioso russo, concebeu o processo de desenvolvimento em íntima relação com o aprendizado humano. Tal como você verificou nas contribuições que a teoria piagetiana oferece à Educação, a teorização vygotskyana traz inestimáveis subsídios para a nossa ação-reflexão como educadores. A compreensão de Vygotsky sobre o indivíduo humano é pautada por sua vinculação com a sociedade e com o contexto histórico. Sua concepção é comumente conhecida como “Sociointeracionista” ou ainda “Histórico-Social”. O assunto em questão está contido nas seções que compõem esta unidade. Na Seção 1 - “A formação social da mente: conceitos vygotskyanos”, você conhecerá os pilares básicos do pensamento de Vygotsky, suas teses centrais e o conceito de internalização das funções psicológicas superiores. Na Seção 2 - “A linguagem e seu papel na aprendizagem e desenvolvimento”, analisamos o papel mediador dos sistemas simbólicos no processo de desenvolvimento humano, bem como buscamos esclarecer a importante noção vygotskyana de Zona de Desenvolvimento Proximal. Na Seção 3 – “A formação de conceitos”, trouxemos a explicação de Vygotsky sobre o tema com vários exemplos para ajudá-lo a entender melhor. Estudando estas seções e realizando as atividades propostas, certamente você encontrará contribuições que venham a favorecer a qualidade de sua prática pedagógica. Boas leituras! 109PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 A FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE: conceitos Vygotskyanos ascido em Orsha, na Bielo-Rússia, em 1896, Lev Semenovich Vygotsky teve um percurso acadêmico marcado por uma diversidade de temas: artes, linguística, literatura, antropologia, filosofia, ciências sociais, psicologia e medicina. Iniciou sua carreira aos 21 anos, em Gomel, logo após a Revolução Russa, em 1917. Lecionou literatura e psicologia. Mais tarde, em Moscou, fundou o Instituto de Defectologia, tendo dirigido o Departamento de Educação para Deficientes Físicos e Retardados Mentais. Junto com seus principais discípulos, Luria e Leontiev, Vygotsky realizou estudos sobre os processos mentais superiores do homem e o papel da mediação no seu desenvolvimento. Teve a publicação de suas obras censurada na União Soviética, de 1936 a 1956. Morreu prematuramente, de tuberculose, aos 38 anos. N FILOSOFIA110 A perspectiva vygotskyana é conhecida como abordagem histórico- cultural, em virtude de estudar as raízes sócio-históricas do psiquismo para compreender como se desenvolvem nos indivíduos as características tipicamente humanas, que nos diferenciam dos animais. Influenciado pelo Materialismo Histórico-Dialético de Marx, Vygotsky concebeu que o organismo ativo interage com um ambiente histórico e essencialmente social. Assim, nas ideias de Vygotsky e de seus colaboradores, você poderá sentir a influência da teoria de Marx, pois eles compreendem o indivíduo vinculado ao seu contexto histórico, construído dialeticamente na interação com o meio social. Segundo OLIVEIRA (1993, p.23), há três pilares básicos que são centrais no pensamento de Vygotsky: • As funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral. • O funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais se desenvolvem num processo histórico. • A relação homem/ mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos. O processo de internalização da cultura pelo sujeito Vygotsky considera que os processos psicológicos superiores são tipicamente humanos, ou seja, diferem de processos elementares que são compartilhados com outras espécies animais. Enquanto os processos psicológicos elementares - reflexos, reações automáticas, associações estímulo-resposta - são regulados por mecanismos biológicos, seguindo uma linha de desenvolvimento natural, os processos psicológicos superiores são produzidos por uma linha de desenvolvimento cultural, a partir da internalização de práticas históricas e sociais, sob a base das operações com signos. 111PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 Os processos psicológicos superiores consistem, assim, em ações conscientes e controladas, atenção voluntária, pensamento abstrato, memória ativa e comportamento deliberado. Para o desenvolvimento dos processos superiores, a existência de processos elementares é condição necessária, mas não suficiente. A compreensão da origem social e histórica das funções superiores passa pela compreensão de que o social é eminentemente constitutivo do desenvolvimento humano e não um mero coadjuvante ou um incidente do processo. Portanto, as funções psicológicas superiores emergem a partir da interação da criança com membros mais experientes da cultura. Nesse sentido, podemos dizerque as forças natural e cultural atuam como co-formantes dos processos psicológicos, operando em dupla e penetrando uma na outra (BAQUERO, 1998). Então, você pode observar que Vygotsky não separa o orgânico do social, mas destaca a apropriação ativa que a criança faz da cultura de seu grupo. O processo pelo qual Vygotsky explica a apropriação ativa da cultura é o processo de internalização. Veja como ele explica o processo de internalização: O processo de internalização envolve transformações. Vygotsky (1989) citou as seguintes: - uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente; - um processo interpessoal (entre pessoas/ interpsicológico/ social) é transformado num processo intrapessoal (no interior da pessoa/ intrapsicológico/ individual); - tais transformações são produzidas mediante uma série de eventos ao longo do desenvolvimento e, mesmo sendo transformado, o processo continua a existir e a mudar por um longo período, antes de se dar a interiorização definitiva. Para Vygotsky, os fatores orgânicos têm preponderância apenas no início da vida da criança; ao longo do desenvolvimento, são as interações socioculturais que interferem mais. FILOSOFIA112 A internalização das funções psicológicas supõe que o processo de desenvolvimento do homem é marcado por sua inserção cultural. Toma, portanto, a direção de “fora para dentro”, ou seja, ocorre a partir das ações externas que o indivíduo realiza, as quais são interpretadas por outras pessoas da cultura que estão ao seu redor e que atribuem a essas ações certos significados culturalmente produzidos. É por isso que a interação entre sujeitos tem um papel fundamental na abordagem de Vygotsky, pois através das relações interpessoais, internalizamos formas culturais de comportamento e de funcionamento psicológico. É importante dizer que a internalização não se constitui um processo passivo, ou seja, não pode ser reduzida a uma cópia do mundo exterior. Na verdade, a internalização é um processo bastante complexo, a ponto de estudiosos da abordagem vygotskyana como Werstch (1988), Baquero (1998) e Pino (2000) advertirem que não podemos interpretar a internalização como uma simples reprodução de conteúdos externos pela consciência. São palavras de Werstch (1988, p.83) a esse respeito: “a internalização não é um processo de cópia da realidade externa em um plano interior já existente; é mais, é um processo em cujo seio se desenvolve um plano interno de consciência”. Veja o que dizem Davis e Oliveira (1990, p.50) sobre o papel da interação no desenvolvimento cognitivo do sujeito: [...] gradativamente, as interações sociais com adultos ou com companheiros mais experientes governam o desenvolvimento e o próprio comportamento da criança. A forma como a fala é utilizada na interação social com adultos e colegas mais velhos desempenha, portanto, um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato, em nível individual. Há uma interiorização progressiva das direções verbais fornecidas à criança pelos membros mais experientes disponíveis no ambiente social. À medida que as crianças crescem, elas internalizam a ajuda externa que vai-se tornando desnecessária. O 113PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 pensamento infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se autorregular. Por exemplo, quando a mãe mostra a uma criança de dois anos um objeto e diz “a faca corta e dói”, o fato de ela apontar para o objeto e de assim descrevê-lo provavelmente provocará uma modificação na percepção e no conhecimento da criança. O gesto e a fala maternos servem como sinais externos que interferem no modo pelo qual o menino ou a menina age sobre o seu ambiente. A LINGUAGEM E SEU PAPEL NA APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO ara se relacionar com o mundo que o cerca, o ser humano conta, a partir do momento em que nasce, com a mediação de outras pessoas. Para Vygotsky (1989), o caminho do objeto até o aprendiz e deste até o objeto passa através de outra pessoa, implicando que, pela mediação do outro, a criança, desde cedo, aproprie-se dos significados socialmente construídos na cultura. Segundo Vygotsky, a ideia de mediação torna mais complexa a relação do indivíduo com o mundo, supondo sistemas que se interpõem entre um e outro, no interior de interações e intercomunicações sociais. Para compreender melhor o papel que os sistemas mediadores desempenham no processo de desenvolvimento humano, Vygotsky partiu do conceito marxista de trabalho, concebendo que o trabalho Os sistemas mediadores possuem uma natureza semiótica, o que quer dizer que são sistemas dotados de significações produzidas pelos grupos sociais dos quais o indivíduo participa. P FILOSOFIA114 implica a ação transformadora do homem sobre a natureza para dominá-la, ou seja, para fazer com que sirva aos seus próprios propósitos (OLIVEIRA, 1993). Foi para ampliar suas possibilidades de interferir na natureza que o homem criou os instrumentos ou ferramentas de trabalho. A partir dessa perspectiva, Vygotsky distinguiu funções diferentes para os instrumentos e os signos. Vejamos suas palavras (1989, p. 62) a esse respeito: A função do instrumento é servir como um condutor da influência humana sobre o objeto da atividade; ele é orientado externamente; deve necessariamente levar a mudanças nos objetos; constitui um meio pelo qual a atividade humana externa é dirigida para o controle e domínio da natureza; o signo, por outro lado, não modifica em nada o objeto da operação psicológica; constitui um meio da atividade interna dirigido para o controle do próprio indivíduo; o signo é orientado internamente. 115PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 Vemos, então, que, para Vygotsky, os signos são análogos aos instrumentos ou ferramentas de trabalho, pois desempenham o mesmo papel de transformação na natureza. Porém, ele os caracteriza como instrumentos psicológicos, uma vez que são criações da cultura humana que se dirigem para o mundo interno do próprio homem, como meio auxiliar na resolução de problemas. Utilizamos os signos para trazer de volta, ou tornar presente alguma coisa, no plano mental. Assim, valemo-nos de símbolos, palavras, gestos, desenhos que nos lembram algo. Por exemplo: anotar aniversários ou compromissos em agendas, fazer lista de compras, executar uma melodia seguindo uma partitura, virar o relógio para lembrar de fazer uma atividade, desenhar o projeto de uma casa etc. Originalmente, os signos surgiram como marcas exteriores utilizadas pelos homens para controlar a memória e a atenção, funcionando como representações da realidade referidas a pessoas, coisas e situações ausentes no espaço e no tempo. Muito antes da existência dos sistemas de numeração, por exemplo, os homens primitivos já representavam quantidades através de pequenos riscos no chão ou nas paredes de grutas, ou nós em cordas, de modo que podiam recuperar, sem se perder, quantos animais ou quantos feixes de trigo possuíam para trocar com outros homens. Essas marcas exteriores exerciam a função de representação das coisas existentes na realidade, de modo a auxiliar a memória, sempre que necessário. FILOSOFIA116 Ao longo da evolução histórica do homem, como também ao longo do desenvolvimento ontogenético de cada um de nós, ocorrem, então, duas mudanças qualitativas quanto ao uso de signos: 1º) através da internalização, as marcas externas vão se transformando em signos internos, isto é, em representaçõesmentais da realidade exterior; 2º) desenvolvem-se sistemas simbólicos (organização dos signos em estruturas complexas e articuladas) (OLIVEIRA, 1993). Entre os sistemas simbólicos, a linguagem figura como forma básica de os grupos humanos se comunicarem e aprimorarem as interações sociais. A mediação da linguagem possibilita, aos novos indivíduos de um dado grupo social, a apropriação, desde cedo, das formas de perceber e organizar o mundo, como um filtro interposto entre o homem e a realidade. Tal fato significa que a linguagem não tem apenas a função de comunicar nossos pensamentos, sentimentos e desejos. Ela também carrega uma outra função que é a de servir para o domínio de si como reguladora da própria conduta. Palangana (2000, p.28-29) explicita o papel da linguagem do ponto de vista vygotskyano. Preste bastante atenção: A linguagem encerra em si o saber, os valores, as normas de conduta, as experiências organizadas pelos antepassados, por isso participa diretamente no processo de formação do psiquismo desde o nascimento. Ao nomear os objetos, explicitar suas funções, estabelecer relações e associações, o adulto cria, na criança, formas de reflexão sobre a realidade. Está-se destacando a intercomunicação como fundamental não apenas na apreensão do conteúdo, mas igualmente na constituição do afetivo, do emocional, da cognição. Sim, pois a palavra, mais especificamente o significado, contém determinadas possibilidades de conduta, em especial de operações mentais cristalizadas. Ela é, nesse sentido, generalização e síntese de representações que os homens fazem do real. Quando a criança, pela intervenção de pessoas, toma para si significados socialmente construídos, junto com eles incorpora e desenvolve uma qualidade de percepção, de memória e atenção, de raciocínio e abstração, dentre outras capacidades presentes no mundo moderno. Daí a razão para se afirmar que a prática conjunta e nela a mediação dos signos e significados (re)criam a atividade psíquica – uma conquista do coletivo – em cada novo membro da espécie. O processo de mediação através de signos possibilitou ao homem controlar e dominar o seu próprio comportamento, tornando a atividade psicológica muito mais sofisticada, pois os sinais exteriores forneceram um suporte concreto para sua relação com o mundo. 117PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 Mediante o exposto, você pode concluir que a mediação dos signos modifica as formas de agir, pensar, sentir e querer. Através dos signos, os sujeitos adquirem controle do próprio comportamento a partir dos significados compartilhados na cultura, tornando seu, ao mesmo tempo em que (re)cria, o mundo à sua volta. Quando a criança passa a utilizar a fala e os signos (amarrar um cordão no dedo para lembrar de algo ou usar um código para trazer ideias), produz-se uma modificação em suas funções psicológicas superiores. Se a fala e os signos são incorporados a qualquer ação, esta ação se transforma e se organiza de forma totalmente nova. A Zona de Desenvolvimento Proximal Em Vygotsky, a interação entre sujeito e objeto de conhecimento passa pela mediação de outras pessoas. O conceito que explica a influência da mediação no desenvolvimento do indivíduo é o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Então, vejamos. Vygotsky (1989, p.97) concebeu a zona de desenvolvimento proximal como: a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento retrospectivamente, referindo-se às funções mentais já amadurecidas. As funções do nível real pertencem, então, ao domínio daquilo que o indivíduo controla e consegue resolver de maneira autônoma, independente. A zona de desenvolvimento proximal define funções que ainda não amadureceram, não se completaram, mas estão em processo, em estado embrionário. A essas funções Vygotsky chamou de “brotos” ou “flores” do desenvolvimento. FILOSOFIA118 As funções que pertencem à zona de desenvolvimento proximal podem ser verificadas pela necessidade de ajuda ou de apoio que o indivíduo tem para resolver problemas a elas afetos. Contando com um suporte mediador adequado e suficiente, as funções que hoje estão na zona de desenvolvimento proximal vão se consolidar, transformando-se em funções reais que, de ora em diante, já não mais exigem a ajuda de outras pessoas para a resolução de problemas. Vemos, portanto, que a zona proximal é um domínio psicológico dinâmico, em constante transformação, em face da mediação de pessoas mais experientes. Esta maneira de conceber o desenvolvimento remete, pois, à importância significativa dos mediadores no desenvolvimento individual. Como diz Oliveira (1993, p. 60): É como se um processo de desenvolvimento progredisse mais lentamente que o processo de aprendizado; o aprendizado desperta processos de desenvolvimento que, aos poucos, vão tornar- se parte das funções psicológicas consolidadas do indivíduo. A concepção vygotskyana coloca, portanto, o aprendizado “na frente” do processo de desenvolvimento, exercendo o papel de puxá-lo, de fazê-lo acontecer. Ora, a implicação pedagógica dessa concepção, como vemos, é imediata, pois remete à importância que a escolarização tem na vida dos indivíduos, supondo que os professores, como mediadores, devem propiciar os suportes concretos e a interferência adequada para que os alunos transformem as funções mentais que hoje estão na zona proximal em funções consolidadas, adquirindo, assim, autonomia. A mediação que propicia um bom aprendizado propicia também a ampliação do desenvolvimento real do sujeito, do domínio das funções mentais, ao mesmo tempo em que lhe abre novas possibilidades ou novas zonas de desenvolvimento proximal. 119PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 Vygotsky disse que o único bom ensino é aquele que se adianta ao desenvolvimento. Com esta afirmação, ele valorizou sobremaneira a intervenção pedagógica: as instruções dadas pelos professores, as demonstrações, a assistência oferecida aos alunos na resolução de problemas, o fornecimentos de pistas e indicativos. Para ele, o que o sujeito consegue fazer com a ajuda de alguém, amanhã ele fará por si só. De acordo com Fontana; Cruz (1998, p. 64), a zona de: [...] desenvolvimento proximal como desenvolvi- mento em elaboração possibilita a participação do adulto no processo de aprendizagem da criança. Para consolidar e dominar autonomamente as ati- vidades e operações culturais, a criança necessita da mediação do outro. Essas autoras consideram que o simples contato que o aluno tem com o objeto de conhecimento não garante a aprendizagem, nem promove o desenvolvimento. Há necessidade da intervenção do professor, de forma questionadora, desafiadora, intencional e planejada. É desse modo que o aluno pode organizar, ressignificar tudo aquilo que está aprendendo e desenvolvendo. Em suma, a participação do professor no processo de ensino e aprendizagem é fundamental, numa conduta de parceria, dando assistência, orientando e instruindo o aluno de maneira sistemática e constante. De tudo o que vimos, cabe destacar que a escola, os professores, os membros mais experientes da cultura, assim como todo tipo de ambiente de aprendizagem, têm um papel fundamental na promoção do desenvolvimento psicológico dos indivíduos. 121PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 A FORMAÇÃO DE CONCEITOS matéria-prima do trabalhodocente é o que chamamos de “conceito”. No dicionário, a expressão conceito corresponde à formulação de uma ideia por meio de palavras, quer dizer, uma definição. Os conceitos não nascem prontos em nossas mentes, nem ficam armazenados nela, no dizer de Vygotsky, “como um saco armazena ervilhas”. Pelo contrário, os novos conceitos são formados como resultado de um processo gradativo de elaboração em que contam a experiência do sujeito no mundo e a inter-relação de um novo conceito com outros conceitos formados anteriormente. Vejamos este processo com mais detalhes. CARACTERIZAÇÃO DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE CONCEITOS • é um processo gradativo que ocorre ao longo das experiências do sujeito no mundo; • é um processo mediado pelos sistemas simbólicos desenvolvidos pelo grupo cultural a que a criança pertence; A FILOSOFIA122 • é um processo diretamente relacionado com a linguagem e a interação social; • é um processo que supõe inter-relações entre conceitos novos e conceitos formados anteriormente; • dá-se através da palavra, no entanto a palavra não se restringe ao conceito. Não há uma relação direta/linear entre palavra e conceito. Por causa das diferentes experiências culturais e pessoais muitas vezes uma mesma palavra pode expressar ideias ou conceitos diferentes. O papel da linguagem na formação dos conceitos Segundo Vygotsky, a linguagem tem para nós duas funções básicas: a de intercâmbio social e a de pensamento generalizante. A função de intercâmbio social serve ao propósito de comunicação entre os indivíduos; a função de pensamento generalizante serve como instrumento do pensamento porque através da linguagem é que nós ordenamos a nossa realidade. Dito de outro jeito, a linguagem na função de pensamento generalizante simplifica e generaliza a experiência, dando uma ordem às instâncias do mundo real através de categorias conceituais cujo significado é compartilhado pelos usuários dessa linguagem. Desse modo, quando utilizamos a linguagem para nomear um objeto, estamos na verdade classificando esse objeto numa categoria, numa classe de objetos que possuem certos atributos em comum. Por exemplo: eu só posso chamar um objeto ou uma figura de “triângulo” se esse objeto ou essa figura tiver três lados formando três ângulos. Esse conceito de “triângulo” independe da cor, do tamanho ou do tipo de material presente no objeto. O valor que Vygotsky atribuiu à linguagem na formação de conceitos pode ser constatado nas seguintes palavras: A formação de conceitos, pelo fato de estar relacionada à linguagem e à interação social, não ocorre de uma maneira linear. Vygotsky observou isso em seus estudos enfatizando que as crianças muitas vezes parecem dominar alguns conceitos quando fazem uso deles 123PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 de modo semelhante ao uso que o adulto faz. Entretanto, muitas vezes as crianças não têm domínio destes conceitos. A formação de conceitos, pelo fato de estar relacionada à linguagem e à interação social, não ocorre de uma maneira linear. Vygotsky observou isso em seus estudos enfatizando que as crianças muitas vezes parecem dominar alguns conceitos quando fazem uso deles de modo semelhante ao uso que o adulto faz. Entretanto, muitas vezes as crianças não têm domínio destes conceitos. Leia o episódio e reflita sobre ele: A professora escreve na lousa “a mamãe afia a faca” e pede para uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à criança: - Quem é a mamãe? - É a minha mamãe, né? - E o que é afia? A criança pensa, hesita e responde: - Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: “- vem cá minha fia”. A professora desconcertada, intervém: - Não, afia é amola a faca! (SMOLKA, Ana L. B. A criança na fase inicial da escrita. Campinas, SP: Cortez, Ed. da Unicamp, 1988.) No referencial vygotskyano diz-se que a mediação é SEMIÓTICA – ou seja, embora se dê pela participação de um outro na relação, ela acontece através da palavra – a qual é carregada de significados culturalmente constituídos. É através das mediações que as pessoas mais experientes do ambiente da criança lhe ensinam os nomes dos objetos, a utilidade das coisas, os significados de certos comportamentos. FILOSOFIA124 Vamos analisar alguns exemplos de situações que aparecem numa pesquisa de Mestrado feita por Mônica Salles Gentil, da FE/UNICAMP, Campinas, 1997. Neles podemos perceber como as palavras vão funcionando numa rede de significações, na qual as noções vão se constituindo a partir de indicadores dados no processo de mediação e na própria vivência das palavras. EXEMPLO 1: Numa classe de pré-escola FELIPE: - Amanhã aconteceu uma coisa estranha... Marina Z: - Amanhã? FELIPE: - Amanhã aconteceu... Guilherme: - Amanhã ainda não aconteceu. Marina Z: - Amanhã, não. Ontem. FELIPE: Ontem aconteceu uma coisa estranha, ficou tudo cheio de poeira. EXEMPLO 2: Na mesma classe Marina M.: - Sabe por que eu cheguei atrasada, hoje? Professora: - Não. Por quê? Marina M: Porque meu pai chegou em cima da hora. Ele esqueceu que ele é que tinha que trazer a gente. André: - Em cima da hora? O que é isso? Ele estava em cima? (e faz um gesto levantando a mão à frente do rosto). Bruno: - Não, André. Chegou em cima da hora. Criança 1: - É que chegou atrasado. Criança 2: - Chegou tarde! Professora: Calma. Quem sabe explicar pro André o que é em cima da hora? Crianças: - Eu sei! 125PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO | UNIDADE 4 Professora: - Fale Marina Z. Marina Z: É que chegou depois. Professora: Não, não é isso. Bruno: Chegou tarde. Professora: - Não. Você sabe Marina M? Marina M: - Sei. É quando chega e o portão está fechando, mas dá pra entrar. Professora: - André, em cima da hora é quando você chega na hora quase certinha que combinou. Quando você vem para a escola, se você chega depois da 1 hora, chega atrasado; se chega ao meio dia, como o Felipe, chega antes, adiantado; e se você chega à 1 hora, chega em cima da hora. (em cima: marco espacial / serve para localização; hora: marco temporal / não existe fisicamente). A criança, em seu processo de elaboração conceitual, passa por momentos diferentes em que a generalização e a abstração vão se confirmando ou consolidando e, consequentemente, modificando as palavras usadas, a partir das interações estabelecidas com o outro. O próprio Vygotsky dizia que, em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalização, mas é preciso considerar que os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova é aprendida pela criança, tem-se um ato de generalização primitivo; mas, na medida em que há o desenvolvimento intelectual, a criança vai se tornando capaz de fazer generalizações cada vez mais elaboradas, mais sofisticadas. Esse processo é de formação de conceitos. O percurso da formação de conceitos Vygotsky reconheceu três grandes momentos no percurso da formação dos conceitos. 1º) A fase dos conjuntos sincréticos – na qual o significado de uma palavra denota o que Vygotsky chamou de “amontoado” ou FILOSOFIA126 “conglomerado” vago. O sujeito utiliza uma palavra para referir- se a objetos desiguais, agrupados sem que haja um fundamento, um nexo, porque está se baseando em suas próprias impressões, conforme as imagens se aglutinam em sua mente. Então, designa- se um objeto, dando a ele um nome, muitas vezes pelo acaso, outras vezes porque existe proximidade espacial (um objeto está perto de outro) e outras vezes mesmo porque está apenas experimentando, num processo de ensaio e erro. 2º) A fase do pensamento por complexos
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