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Transferência e interpretação em um caso de perversão

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Transferência e interpretação em um caso de perversão
Eu gostaria de trazer, hoje, alguma reflexões a respeito de uma análise que conduzi há alguns anos e na qual tudo se passou em torno de uma interpretação precisa. “Da amgústia à perversão”, assim poderia se intitular esse trajeto analítico no qual a interpretação, levantando de maneira espetacular o sintoma do sujeito, fez precipitar, de alguma forma, sua estrutura perversa. Essa virada se traduziu, como vou mostrar, em uma mudança radical do estilo e da lógica da transferência, a tal ponto que o prosseguimento da análise se mostrou cada vez mais difícil, até a interrupção final – prematura, a meu ver, ainda que o analisante tenha me abandonado feliz e curado. Esse desencadeamento da perversão na análise e o seu fim mutilado, me levam a me interrogar sobre a justeza e a oportunidade da interpretação, segundo a qual eu operei nesse caso. E, além dessa interrogalção pontual, essa análise me reenvia às questões fundamentais sobre o efeito terapêutico da análise, sobre o bom ou mal desenvolvimento do que aó pode se revelar ao sujeito.
O rapaz em questão estava verdadeiramente “no limite” quando veio me procurar. No limite, no sentido de que, para colocar um fim a um sofrimento pouco comum, ele só enxergava duas soluções: ou colocar um fim aos seus dias, ou se submeter à psicanálise, na qual, de início, ele quase não confiava. No limite, igualmente, no sentido em que ele chegou ao fim de uma corrida que, há vários anos, levo-o a consultar, em vão, os melhores especialistas europeus em neurologia. Com efeito, ele estava afetado, há mais de cinco anos, exatamente, desde seu casamento, de uma nevralgia facial extremamente dolorosa, localizada no lado esquero da face. Os exames não puderam objetivar nem situar precisamente uma afecção no nervo, a medicina só pôde lhe propor remediar os efeitos de sua dor: haviam, então, lhe prescrito analgésicos, cada vez mais portentes com o correr dos anos. Assim, ele chegou, pouco a pouco,a doses cotidianas de Palfium e começava a se inquietar para saber se tinha se tornado toxicômano e se as dores que ele sentia, quando esquecia ou deixava de tomar essa estupefaciente, não eram o sinal de um fenômeno de abstinência.
Inicialmente, eu me mantive prudente na apreciação desse sintoma, e não me apressei demais para tomar essas dores como manifestações de ordem histérica ou psicossomática. As nevralgias faciais constituem, efetivamente, um ponto obscuro do campo médico: as afecções desse nervo podem provir de origens diversas e não são facilmente localizáveis nem tratáveis. Eu, apenas, insinuei a esse rapaz que era possível que a psicanálise o conduzisse a elucidar um tal sintoma, se esse se revelasse como uma manifestação do inconsciente. E como, além disso, ele apresentava certas singularidades (por exemplo, ele passava a noite acordado e dormia durante o dia), e mencionava uma angústia arrebatadora, eu me decidí a tomá-lo em análise.
Somente após um longo ano de análise é que a natureza de seu sintoma me pareceu clara, assim como sua estrutura subjetiva de perverso fetichista. Nesse período, a análise foi marcada – e isso, desde a primeira sessão propriamente dita – por uma transferência maciça se manifestando por verdadeiros acessos de pânico durante a sessão. Minha presença na poltrona e meu silêncio inspiravam nessa analisante um verdadeiro terror, contra o qual ele não cessava de lutar, encarquilhado sobre o divã em um mutismo doloroso, de onde emergia, periodicamente, um “você me daz medo” ou um “eu quero ir embora imediatamente”. Após algumas sessões, ele começou uma espécie de diário do qual, gradativamente, ele me trazia páginas; na maioria das vezes, essas eram redigidas em forma de cartas que me eram endereçadas e que lhe eram ditadas pelo horror que eu situaria(...). Seu conteúdo detalhava o menor de meus gestos, cada pose de meu corpo, cada dobra da minha roupa, e relatava o que ele chamava “a experiência atroz”, isto é, sua relação comigo! Ele a descrevia, eu cito, como “a aspiração em um cômodo onde se é a poeira”, e me designava por diversos sobrenomes tais como: “a aranha Nilfisk” (Nilfisk é uma marca de aspirador), “a aspiro-batedeira”, “o polvo multi-tentaculado”, “a borbolta de ouro de tromba sugadora”, ou o “buraco sem fundo”; em contrapartida, ele próprio se apresentava como “uma manifestação do ridículo”, “uma pilha de carne para salsicha explodida”, “um tipo especial de fodido”, “um puro produto de polução”, “uma alimpadura etc... Por diversas vezes, ele termina suas missivas com um desenho, traçado com os caracteres da máquina de escrever: o desenho de uma bacia de WC, na qual ele inscreveu, um dia, a seguinte legenda: “Mas, enfim, bem lá no fundo, encontrarse-á os restos bem escondidos dos traços de nossos pais.”
	Então, nossas sessões não erma fáceis de conduzir; ele, esperando angustiado que eu reagisse a suas oferendas, e eu, convidando-o a me falar sem a distância do escrito, quer dizer, a se dirigir à minha presença e não à minha ausência. Os finais de sessão eram particularmente delicados, meu analisando se encontrava dividido entre o terror e o pânico de que eu me aproximasse dele, e a exigência, também exarcerbada, que eu mostrasse gentil para com ele. Mais de uma vez, quando, literalmente, ele foge do meu consultório, pára na escada, e uma boa distância de mim, para me gritar: “Afinal, você gosta de mim?”
	Apesar de tudo, ele me falava um pouco, e, assim, eu descobri que sua infância fora marcada pela ausência do pai e pela grande diferenã de idade que o separava de seus irmãos e irmãs. Com efeito, ele nasceu tardiamente, criança não esperada de um casal que havia passado os quarenta anos e que já tinha vários adolescentes crescidos. Aliás, ele não tinha, rigorosamente, nenhuma lembrança de seu pai, a não ser a visão de uma cabeleira negra gomalinada; ele se explicava pelo fato de que seu pai morrera quando ele acabava de completar cinco anos. A esse respeito, o trabalho de análise lhe impôs fazer uma descoberta que clareou a obscuridade que caiu sobre esse pai: assim, ele conseguiu levantar o véu de que, até então, tinham-lhe, cuidadosamente, escondido, a saber, que a morte de seu pai foi, na verdade, um suicídio. Contudo, ele não pôde elucidar suas razões, sua família recusava responder suas perguntas. Ele tinha vivenciado com sua mãe, desde sempre ou quase, uma verdadeira vida de casal, já que, muito rapidamente após a morte do pai, os irmãos e irmãs mais velhos tinham abandonado a casa. Esse casal foi mais consolidade pelo desaparecimento do pai, na medida em que esse foi seguido por um revés da sorte: o padrão de vida da casa, até então muito alto, teve que ser, de um dia para outro, reduzido a uma quase-sobrevivência alimentar.
Mas, a respeito de tudo isso, ele falava pouco, obnubilado que estava pela transferência, e por suas nevralgias cotidianas. Ora, na análise começara há cerca de um ano, quando ele se pôs a se queixar de que suas dores – até então localizadas no lado esquerdo da face, da fronte ao osso maxilar – começaram a se estender e a descer pelo pescoço, em seguida, passando pelo ombro, a invadir o lado do braço e do antebraço. Essa notícia me fez decidir a tomar essa “nevralgia facial” como um fenômeno de conversão – não há, com efeito, nenhum trajeto nervoso que corresponda à linha que descrevia sua dor. Eu comecei, então, a interrogá-lo, sistematicamente, sobre essas dores e sobre o contexto no qual elas apareciam. Ele admitiu, muito rapidamente, que elas deviam estar ligadas a fantasmas masturbatórios. Em seguida, ele percebe que seus fantasmas eram anteriores à dor nevrálgica, e que havia, certamente, uma ligação de causa e efeito entre eles.
Então, com as maiores dificuldadesm ele me fêz uma confissão que esclarecia a formação de seu sintoma e abria uma porta para a estrutura de seu desejo. Essa confisão comportava inicialmente uma lembrança infantil, a mais antiga de suas lembranças, dizia ele. Quando ele tinha a idade de sete anos, aproximadamente,ele teve a oportunidade de observar uma menina africana urinando; a menina tinha uns dez anos e ainda não era púbere. Olhando por baixa da porta da privada, ele pôde ver, distintamente, o sexo da menina que ainda não estava oculto pela penugem pubiana, e surpreendeu-se tanto pela linha que desenhava os lábios unidos do sexo, quanto pelo jato brilhante que dalí saía. Desde aquele dia, me diz, ele ficou obsecado por essa visão, por essa linha do sexo feminino glabro, linha que ele reencontrava em todos os lugares: bastava, por exemplo, que ele percebesse um grão de café, ou, então, que ele cruzasse com uma mulher que o olhasse com um ar afetado (lábios cerrados), para que ele entrasse em ereção e se sentisse impelido a se masturbar.
Mais marcante ainda, esse rapaz que gostava de escrever e desenhar, só podia fazê-lo por intermédio de máquinas, pois, a simples visão de certos traços saindo de sua caneta induzia nele fantasias masturbatórias. Ele me declarou, também, que, regularmente, fazia curtas viagens nos países limítrofes, com o único fim de procurar revistas pornográficas onde ele pudesse encontrar figuras do sexo feminino glabro e não excitado, quer dizer, não entreaberto. Da mesma forma, ele não podia se impedir de fazer, pelo menos uma vez por mês, o circuito das prostitutas até descobrir uma cuja forma do sexo lhe conviesse – alias, ele não mantinha com ela nenhum ato sexual, senão o de olhar seu sexo e dormir em seus braços.
Sua relação com a mulher tinha sido, certamente, pertubada pela exigência precisa de seu fetichismo. Sua mulher tinha aceito, rapidamente, raspar o púbis e lhe oferecer para contemplar a linha de seus lábidos unidos; mas, desde que ela entrasse em excitação, era preciso, rapidamente, apagar a luz para que ele não visse a fenda se abrir. E, além de tudo, desde que ela teve um filho, seu sexo não se fechava mais como antes: permanecia uma ligeira irregularidade. Na linha, uma abertura mínima dos lábios, inspirava em meu analisante uma aversão horrível.
Esses elementos me permitiram situar esse rapaz como um perverso fetichista, ou, pelo menos, de assim qualificar seu fantasma. Seu fetiche fora sucitado no instante de ver inicial quando, antes mesmo de perceber a castração feminina na menina africana, ele viu alguma coisa na superfície do buraco, a saber a linha formada pelos lábios. Em seguida, por metonímia, o caráter de fetiche se estendeu a toda uma série de linhas e traços.
	A partir do momento em que ele me fez essas confidências, o estilo de seu discurso mudou. Inicialmente, ele tornou-se falante. Em seguida, a insolência e o desafio tomaram o lugar do pânico e da submissão que tinham, até então, marcado a transferência, e a continuidade de seu diário se interrompeu. Ele começa, por exemplo, a ironizar o meu saber de psicanalista – sobre o qual, aliás, ele tinha adquirido alguns conhecimentos - , fazendo-me observar que, certamente, não fora por acaso e, sim, por causa de seu grafismo que Lacan tinha escolhido a letra “Phi” para designar o símbolo do gozo sexual... Dito de outra forma, ele começou a me demostrar que meu saber não estava organizado de maneira diferente do seu fantasma e que nós estávamos ligados, cada um à sua maneira, a nosso grão de café...
	Mas sobre essa função do desafio perverso, eu voltarei daqui a pouco. 
Faltava elucidar seu sintoma de nevralgia facial. A solução apareceu quando lhe pedi para me contar, mais uma vez, a cena durante a qual ele tinha observado a menina urinando. Ele me descreveu, precisamente, a porta do banheiro, esburacada de alto a baixo, o sexo da mocinha e o jato de urina. “Você não estava deitado sobre o lado esquerdo, o lado do rosto apoiado sobre o solo?” pergunto-lhe – “Sim!”, me respondeu ele, completamente capturado pela minha intervenção. E ele acrescenta que, ao se levantar, ele tinha sentido em seu rosto o formigamento causado pelos cascalhos sobre os quais ele tinha apoiado a bochecha. Sua nevralgias cessaram de um dia para o outro, e um pequeno tratamento de desintoxicação lhe permitiu liberta-se do Palfium em quinze dias.
Happy end! Vocês dirão. Pensam, então!... com um perverso, é preciso nunca acreditar que tivemos a última palavra. Aliviado de seu sintoma, meu paciente se sentia muito melhor e entrava em uma fase de enforia. Mas, essa melhora deveria ser aproveitada pela outra vertente de sua estrutura de denegação.
Eu percebi, rapidamente, que a desaparição da dor significava para ele um novo triunfo do fetiche, no sentido de que ele poderia, a partir de então, se dedicar a seus fantasmas masturbatórios sem ter que lhes pagar em sintomas. A mãe fálica, em suma, estava, a partir de agora, mais acessíveis para ele graças à psicanálise. Mas, essa consolidação da negação da castração só poderia ocasionar uma insistência do lado de seu reconhecimento, como em um mecanismo de vasos comunicantes. Assim, na outra vertente da denegação, no lado onde a mãe é reconhecida e castrada, no lado onde a castração ameaça, novas medidas de proteção tornaram-se necessárias. Ele me mostrou isso nas semanas que se seguiram, colocando-me a par de uma série de fantasias que ele nunca tinha evocado atpe então: fantasias de tatuagem. E eu não pude impedi-lo de passar à realização dessas novas fantasias: ele começou efetivamente a ser tatuado, e considerou que isso era o final feliz de nosso trabalho. Essa não era a minha opinião; eu o fiz saber, e assim ele se foi, muito irritado por não recebeu meu aval.
O que ele queria inscrever sobre a pele? Ele não levou a decisão até o ponto de me mostrar sobre seu próprio corpo o signo todo poderoso que deveria conjurar o horror da castração, mas, me falou disso com detalhe, e me enviou o cartão do tatuador onde estava sendo desenhado a figura que ele faria traçar sobre as costas. Tratava-se de uma mulher-dragão, as pernas afastadas, que ele iria trazer nas costas de tal maneira que a fenda do sexo dessa mulher, não desenhada como tal, se confundiria com a linha que separava sua próprias nádegas. Assim, ele realizaria sobre seu corpo, a denegação perversa: rapaz, lado cara e moça, lado coroa – e sabe-se lá se o lado coroa não é um simples prolongamento do lado cara ou vice-versa. Aliás, fazendo de si o próprio carrefador do fetichem ele expunha uma proteção a mais contra o pai imaginário, o pai terrível e castrador que, por lhe ter faltado, realmente, não era menos potente fantasmaticamente: bastava, com efeito, uma vez tatuado que ele lhe voltasse as costas para mostrar-lhe que ele era mulher, logo, já castrado – saboreando em segredo o engodo dessa castração.
A mim também, seu psicanalista, ele volta as costas, de uma certa forma... É o motivo pelo qual pensei ser bom adverti-lo que essa tatuagem era, somente, uma dissimulação. Ele me respondeu que disso eu nada sabia e que, negligenciando a solução que lhe oferecia essa tatuagem, eu não levava em conta a dor que ele deveria suportar durante meses, até mesmo anos, sob a agulha do tatuador. A esse respeito, ele não estava completamente sem razão, pois, assim, ele reenviava à necessidade do sintoma – a tatuagem tomando o lugar da nevralgia da qual eu o tinha livrado.
	A lição desse percurso, pitoresco sem nenhuma dúvida e cheio de ensinamentos, bem que poderia ser essa: aliviando esse sujeito de seu sintoma, a psicanálise talvez o tenha conduzido ao pior, o analista, finalmente, sendo, apenas, um intermediário na direção do tatuador. Sem dúvida – mas, isso não é uma explicação, somente, uma interrogação a mais. O desenlace desse caso é tributário da modalidade de transferência própria do perverso? Modalidade que vou tentar, para concluir, articular a alguns traços de estrutura.
	 Sobre a transferência perversa, eu direi que o caso, do qual eu acabo de lhe relatar brevemente o essencial, é absolutamente exemplar. A mudança que afeta a transferência desse analisante, no momento em que seu sintoma se esclarece, nos dá quase que uma materialização da Spaltung própria do perverso: de um lado a angústia – esse é o lado onde a castraçãoé presentificada - . e do outro lado, o triunfo – quando o fetiche reencontra sua potência. A essas duas vertentes da transferência e da denegação correspondente, dois modos de discurso e dois endereçamentos distintos.
	Na primeira vertente, o analisante não se comporta de maneira diferente que um neurótico; ele oscila entre duas posições: aquela na qual se identifica ao suposto objeto do qual o Outro se nutre (a poeira para o aspirador), e aquela que ele só pode afirmar como sujeito, com a condição de se castrar de seu imaginário. A dialética dessas posições é conhecida: é aquela em que o sujeito busca, desesperadamente, embora temendo alcançar, enganar o Outro, e aquela em que o sujeito supõe que o Outro lhe demanda é a sua própria castração. Nessa primeira fase, o sintoma é colocado à frente até ocupar, ao máximo, todo o discurso do sujeito; o fantasma, ao contrário, é mantido secreto, sua aproximação sendo marcada por um desvanecimento subjetivo traduzido pela humilhação – o amor é, então, exigido do analista, como uma condição prévia para que o fantasma seja abordado, porque, somente o fato de ser amado pode restaurar a dimensão subjetiva que se desmorona na humilhação.
	Mas, é na segunda vertente – a do triunfo do fetiche – que a perversão é referida como tal na transferência, onde ela se manifesta por uma desordem da relação ao Outro e por uma subversão da posição do sujeito do suposto saber. Pode-se apreender essa desordem e essa subversão pelo novo lugar que o fantasma ocupa na segunda fase da análise que lhes relato hoje. O fantasma ocupa, agora, toda a cena, todo o discurso do sujeito. Este é o traço caracteristico que não deixou de surpreender todos os analistas que lidaram com um sujeitos perversos sem que tivessem, contudo, percebido o fundamento da estrutura. Ao escutar falar o perverso, não se pode deixar de experimentar uma impressão de indecência; sente-se, sempre, um pouco violentado por seu discurso. Por que isso? Se concordamos com Freud (ver “Espanca-se uma criança”) que não existe fantasma próprio ao perverso – no sentido de que os fantasmas dos neuróticos são cenários perversos – eu também não penso que possamos contentarnos em dizer que o que definiria o perverso seria passar ao ato, realizar seu fantasma na cena do mundo. Nem todos os perversos passam ao ato. Por outro lado, eu penso que é preciso perceber que existe uma maneira perversa de enunciar o fantasma. A perversão é, em suma, uma questão de estilo – quero dizer que é na sua própria fala que o perverso começa a passar ao ato.
Sabe-se que o neurótico se cala sobre seu fantasma, ou que ele só o entrega com uma grande dor, como uma confissão arrancada com humilhação, cercando-se de todas as formas de precauções. É que, para ele, fazer passar o fantasma da cena privada à cena pública, apresentá-lo a um auditor, é, automaticamente, se designar como culpado e se expor às condenações do Outro. Não é este o caso com o perverso, que manifesta, ao contrário, uma tendência a expor seu fantasma, geralmente sob a forma de provocação. De fato, é o Outro, o auditor que o perverso procura culpabilizar, até mesmo, submeter à falta. A razão dessa diferença deve-se a um traço de estrutura do fantasma. O fantasma, com efeito, comporta, por essência, uma redução do Outro objeto causa do desejo. O fantasma anula a subjetividade do Outro, a começar por sua fala, para fazer dele uma marionete inanimada que só ganha vida graças à potência do desejo do sujeito. Dito de outra forma, o enunciado do fantasma se sustenta, sempre, na pulsão de morte que se volta para o Outro. Esse alvo mortífero que não é outra coisa que a realidade escandalosa do desejo, o neurótico o carrega com culpa: confessando seu fantasma, ele nos diz de uma maneira ou de outra, “eu te mato”. O perverso não ignora esta lança mortal, mas ele se ajeita para que a culpa caia sobre o auditor. Pelo enunciado do fantasma, o perverso não nos diz “eu te mato”, e sim, “você me mata”. Por isso, sua maneira de enunciar o fantasma tem sempre em relação ao auditor – especialmente seu analista – uma função de iniciação, de corrupção: ele nos convida ao crime.
	Nesse sentido, a fala perversa me parece revelar uma reviravolta da relação ao Outro, tal como Lacan define com seu esquema L. Se este nos mostra que, na fala, o sujeito recebe do Outro sua mensagem de forma invertida, o perverso inverte essa estrutura, na medida em que ele se apresenta como encarregado de nos desvelar nossa própria verdade: dito de outra forma, ele nos oferece sua fala como a inversão de nossa própria mensagem. Quando ele nos entrega seu fantasma, é menos para perceber de que forma ele lhe está assujeitado do que para nos demonstrar de que maneira nós, que o ouvimos, nós próprios, lhe estamos assujeitados, que o queiramos ou não – e mesmo, de preferência, conta nossa vontade. Assim o fazendo, não é mais ao sujeito suposto saber que o perverso se dirige na transferência. E isso, por uma boa razão: é que, a partir de então, ele próprio ocupa essa posição de sujeito do suposto saber. É exatamente o que se produz na segunda fase da análise que eu lhes relatei, quando nela, após a retirada do sintoma, meu analisante se torna arrogante e começa a me mostrar que meu desejo só pode ser estruturado como um desejo fetichista – e, mesmo, que o próprio saber analítico só pode celebrar o fetichismo do falo. Ele se apresenta então como o detentor de um saber do qual ele quer me convencer de que sou somente servidor e, diferente dele, sem o saber.
	Ele se sente encarregado, desde então, a me iniciar na realidade de meu desejo de psicanalista, e não cansa de me lembrar que foi o estudo da perversão que ensinou Freud o que é o desejo. Ele então não mais demanda amá-lo – o que ele me demanda, é reconhecer que eu gozo, e, mais especificamente, que eu gozo com sua presença de analisante, o que me coloca na posição de sujeito suposto gozar.
	Pois, para ele, bem entendido – e é também um traço de estrutura da perversão – só há desejo que conduza ao gozo. Nenhum lugar, então, para um desejo insatisfeito – o que constitui, como nos ensina a histérica, a definição radical do desejo. É exatamente aí que se situa o deseconhecimento próprio à lógica perversa: não que o perverso reduza o desejo somente à consciência de tê-lo, ou acreditar tê-lo, mas ele erige como uma necessidade absoluta o fato de satisfazê-lo – o gozo torna-se um dever decorrente da lei absoluta do desejo - , um dever, do qual ele faz questão de que o parceiro, o Outro, seja persuadido, também. É o que Lacan formula quando define o desejo perverso como “vontade de gozo”. Sendo o gozo obrigatório, “exigido pela Natureza”, como diz SADE, não há mais, evidentemente, lugar para a culpa, exceto a de se esquivar ou de não estar à altura de seus preceitos. Solução prática para a culpabilidade, sem dúvida. De onde uma certa euforia – que não evita, entretanto, ao perverso sentir penosamente a injunção superegóica de sua lei.
	Que ele esteja prestes a gozar, não é uma sinecura; mais do que tudo, é a prisão que tem no horizonte um deus que, por não ser enganador – sabe-se o que ele quer -, é mais exigente, a ponto do sujeito acabar por se oferecer a ele em holocausto para não ser devorado. É então que, no caso evocado, o tatuador vem ocupar um lugar, lugar que o analista só pode deixar para outros: o de instrumento desse deus obscuro.

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