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A industrialização da vida

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A industrialização da vida: um ponto de vista de uma dona de casa
 Era uma vez um tempo em que a comida era muito barata.
 Tão barata quanto as bananas. Era tudo a preço de banana.
Naquele tempo, yes, nós tínhamos muitas bananas: banana d'água, banana maçã, banana da terra, a São Tomé, a banana ouro e a enorme banana nanica. 
Compradas nas feiras, às pencas, às dúzias, aos cachos. 
E havia pitangas, carambolas, pinhas, jabuticabas, mangas. Manga rosa, manga espada, manga coquinho.
Na França nunca nasceu manga, mas aqui tinha até a manga bourbon.
Um dia vieram os supermercados. Então o caos da feira cheia dos cheiros, de gente se esbarrando, misturando pernas, olhares, sentidos (é gostosa, prova que é gostosa), foi ordenado nas fileiras e catracas do supermercado. 
 	 Grande, moderno, prático: super. Um lugar onde todos estão sós.
Um lugar onde não se cheira, não se apalpa, não se prova. As balanças impõem quilos, gramas exatas. Impossível pechinchar, pedir "um choro".
Tudo já foi organizado para você self chegar de carro, self pegar um carrinho e rolar maciamente pelo mundo encantado da imagem. 
Nas embalagens as fotos e os desenhos mostram muito mais que mercadorias: o leite desnatado emagrece, o chocolate em pó é uma festa, o ovo sem colesterol cura o que o stress que o dia-a-dia-dia super rápido contraiu nas suas artérias. 
Os grãos já foram empacotados, os líquidos aluminizados. 
Tudo já foi escolhido: os amassados, os podres, você mesma joga fora em casa.
Sem reclamação.
Mas nada paga o conforto super. Faça frio ou faça sol, o ar é o mesmo: condicionado. Inverno ou verão, as mesmas frutas: climatizadas. Sem efeitos colaterais. 
Se perderam o gosto e o perfume, ganharam muito em tamanho e beleza; basta ver os morangos, os tomates e as cenouras. 
Certamente são raras as pitangas e as jabuticabas nos supermercados; essas frutas de antigamente, se compram nas ruas, no Nordeste, é claro, que é o lugar do antigamente do país.
O supermercado não é, evidentemente, o único culpado pela abolição da variedade das comidas. Ele é parte integrante da maneira de produzir e comerciar que se tornou dominante.
O supermercado é, sobretudo, nossa grande vitrine.
Matéria prima, marca registrada
Era uma vez um tempo em que a comida vinha da terra. Havia as estações do ano, as fases da lua, as marés. Havia até os ciclos menstruais e as culturas eram feitas em sistemas de rotação. Desse ciclo fazia parte o repouso da terra. 
A fertilidade era personificada em divindades, as colheitas festejadas.
Com namoro, vinhos e danças de roda. Os ciclos e os círculos. Diz-se, hoje, que naquele tempo se estava à mercê do tempo, mas certamente foram as guerras que causaram mais fomes e pestes.
Bem antes que um monge no seu ócio sagrado começasse a plantar ervilhas, alguém havia domesticado os animais e as plantas, escolhido as mais resistentes, mas nem por isso haviam destruído a variedade. Mas isso não era científico, porque como todo mundo sabe, isso era coisa de mulheres.
Como se lembra, um dia chegaram os donos da propriedade privada e se apossaram das terras e das mulheres.
Mais tarde, das sementes. Como sementes se multiplicam, resolveram patenteá-las.
Do lado sem pecado do equador, onde nasceram e nascem quase todas as sementes do que se come e do que se transforma, elas se chamam patrimônio genético da humanidade. Do lado de cima, onde se modifica, industrializa e patenteia essas sementes, elas se chamam germoplasma, têm donos, são engenheiradas em laboratórios. 
As sementes, como outros bens, são estocadas em bancos. Quase 90% do material genético armazenado a longo prazo localiza-se na Europa e na América do Norte. Os países da América Latina e Africa contribuem com 57% desse "material genético". Somando com a “doação” asiática dá 91%. 
Quem se beneficia do estoque desses bancos? A América do Norte fica com 24%. A Europa Ocidental com 16%. 
Voltam para a América Latina 6,3%, para a Africa 4,6% e 4,2% para a Ásia.
Esses são os países pobres e os países ricos. Ou o contrário, segundo se está do lado de cima ou debaixo do Equador. 
Assim como foram abolidas as feiras e o supermercado se impôs, o modo de plantar sofreu o que se chamou de "Revolução Verde", uma invenção Rockefelleriana. Em vez de depender do sol, das chuvas, das aves e dos ventos, a terra passou a ser climatizada pelas estufas, irrigada pelas bombas, fertilizada pelo laboratório. 
Sem efeitos colaterais. Erosão, contaminação de animais, dos alimentos, das águas, isso se arranja. 
Você mesma joga fora em casa. O leite materno que vem com DDT é um preço que se paga sem reclamação. 
Aguarde para breve, bactérias feitas em laboratórios especialmente para limpar o ambiente. 
Encomende as comedoras de DDT e coloque no iogurte.
Bebês Serono, Bradescoesperma
Era uma vez um tempo em que fruta dava no pé, peixe na água e criança no ventre fecundado das mulheres. 
Um dia chegaram os donos da terra, das sementes e dos fertilizantes e viram que o leite dos seios, os espermatozóides, os óvulos, os embriões também podiam lhes pertencer.
E disseram às mulheres que seu leite era fraco, que seus genes tinham defeitos. E chegaram os hormônios, o leite em pó, as mamadeiras e as incubadoras. E fizeram espéculos, fórceps, ultrassons, congeladores de óvulos, de esperma, de embriões, sondas de DNA. 
Quem ousa hoje parir em casa sem um aconselhador genético, um pediatra, um perinatologista, um periconceptologista, um esterileuta, um anestesista?
Você é quem faz, mas o parto é "Leboyer", o embrião é pago, a conta é cara. Tudo devidamente patenteado: do vírus da AIDS às sementes vegetais e animais. Brevemente as humanas. 
Tem banco de esperma de Prêmio Nobel, prêmio Nobel de química privatizando genes humanos: Walter Gilbert, de Harvard. Da Myriad também. Que detém a patente dos genes do teste de câncer de mama que fez a Angelina Jolie de vitrine.
Quem vai dizer que prêmio Nobel é merchadising para as Corporations? Quem vai dizer que cientista pode rimar com fascista? Jeshua Lederberg, prêmio Nobel de fisiologia e medicina, acha que a produção de seres humanos em série, através da clonagem é um meio eficaz de produzir seres superiores. W. Shockley, que doou para um banco seu esperma Nobel, acha que os indivíduos de QI baixo devem ser esterilizados. Charles Richet, Nobel de medicina em 1913, escreveu: "eu não compreendo por qual aberração pode-se assimilar um negro a um branco". E propôs que se criasse entre as raças que povoam a terra uma verdadeira aristocracia: a dos brancos, de raça pura, não misturados com os "detestáveis elementos étnicos que a Africa e a Ásia introduziram entre nós". 
Em 1919, quando escreveu isso, não havia amnioscopia, exame do vilo coriônico, pré-determinação do sexo, Norplant, vacina contra a gravidez, campos de esterilização, Banco Mundial, FMI, OMS, FNUAP, UNICEF, etc...
O germoplasma do Terceiro Mundo vem sendo elecionado, engenheirado, estocado em banco, vendido a preço de ouro. 
Armazéns de óvulos e embriões congelados, as clínicas de reprodução "assistida" são chamadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, de "bancos de células e tecidos germinativos". 
O sistema de vigilância desse "germoplasma" estocado nesses "bancos" se chama Sistema Nacional de Produção de Embriões. As mulheres são, portanto, fornecedoras de matéria prima para o sistema de produção do bionegócio. E sabemos bem o que significam "bancos".
Sem reclamação. Os riscos das doses pesadas de hormônios fabricados pelas ratas recombinantes não aparecem nas fantásticas notícias do milagre tecnológico. Nem as mortes e o sofrimento dos gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos de proveta em série.
Tecido embrionário humano patenteado estará à venda às claras muito em breve, e custará caro, assim como já custam caro o ovo caipira, a água mineral, o tomate sem veneno. 
Nas prateleiras super do mercado "cientifico", embriões perfeitos virão com "garantia" contra câncer, doença mental, desadaptaçãosocial. 
As ratas recombinantes fabricadoras de hormônios, as bactérias engenheiradas fixadoras de nitrogênio, as comedoras de óleo, os porcos transgênicos produtores de insulina humana trabalham sem trégua. 
O grande exército de mão-de-obra do século XXI não se organiza em sindicatos. De recombinação em recombinação, vai contaminar o ar, a terra, as águas. 
Mas isso se resolve. Como se resolveu Chernobyl, Goiás e Fukushima: sem reclamação.
Como já nos acostumamos a viver de imagens, o real não nos atinge. O Fantástico e as folhas de São Paulo legitimam os avanços da ciência em seus competentes press- releases.
Os brinquedos e desenhos animados preparam o inconsciente das crianças para o futuro que se fabrica nos laboratórios: seres híbridos muito úteis, replicantes heróis, computadores e robôs que se emocionam, gente virando máquina e, é claro, policiais sagrados e militares heroicos. 
O acaso, a diversidade, os ciclos, são inimigos do processo industrial de massa. O planejamento e a previsibilidade pensam em linha reta. Como a arquitetura totalitária ditadora dos espaços. Precisamos eliminar as ruas, decretou Le Corbusier. E Brasília deu no que deu. Nossa capital de proveta. Longe de cheiros, de olhos, de gente se misturando, de multidões protestando. 
Vitrine da sociedade re-produzida. 
Tem gente que gosta. Como gosta de ketchup, de check-up, de fast-food e diz que a vitamina do laboratório é melhor que fruta chupada no pé.
Eu prefiro ar puro, água sem cloro, janela sem grade. E gostaria muito que as crianças das próximas décadas contassem para as netas delas que os gregos chamavam de hybris a perda da medida, que as quimeras eram pesadelos, que os heróis se imortalizaram simbolicamente na luta contra essas criaturas híbridas. 
E que a medida -metron- nada mais é que o nosso humano corpo.
Tem quem vá morar no espaço, comer comprimido, respirar de canudinho. Querem fazer parecer que é possível, desejável e há quem diga que esse é o destino dos humanos. 
Sem Américas a colonizar, façamos o cosmo rentável. 
A desmesura dessa fome já custou muito sangue dos povos indígenas, muito sangue dos povos africanos. E continua custando as vidas de seus descendentes. 
Devora as florestas, as espécies animais, o ar e as águas. 
Não existe laboratório que vá dar conta de fabricar substituto - em extinção estamos todos - como as baleias e o mico leão.
Mas já tem gente que sabe tudo isso e não tem medo de afirmar que o rei tem medo e que os cientistas têm patrões.
Qualquer uma e qualquer um pode - no sentido de ter poder - afirmar que tudo tem limite: as pessoas, o planeta. 
Esse limite é a nossa humana condição e a aceitação da medida é por onde passa o caminho de sua superação. 
A tal da transcendência.
É o que penso, enquanto dona de casa.
ana reis

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