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O Kant de John Rawls - Apropriações da Moral Kantiana na Justiça Como Equidade

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295
O KANT DE JOHN RAWLS: APROPRIAÇÕES DA MORAL KANTIANA NA 
JUSTIÇA COMO EQUIDADE 
 
Danilo de Oliveira Caretta 
Orientador: Prof. Dr. Aguinaldo Pavão 
 
 
 
RESUMO 
 
Neste trabalho, pretendo expor algumas das apropriações que John Rawls faz da 
filosofia moral de Kant em sua obra Uma Teoria da Justiça, bem como discutir a 
necessidade e a legitimidade dessas apropriações. Para tal proposta, farei, a 
princípio, uma explanação dos conceitos de posição original, véu de ignorância e 
princípios de justiça, para então aproximá-los dos conceitos kantianos de autonomia, 
imperativo categórico e outros elementos presentes na moral de Kant. Minha tese é 
a de que Rawls compromete em partes a interpretação de sua teoria da justiça como 
equidade, sobretudo no que se refere à deliberação das partes na posição original, 
ao pretender que a escolha dos princípios de justiça, sob as restrições do véu de 
ignorância, possa ser considerada autônoma em termos kantianos, tal como propõe 
no §40. No entanto, o autor parece lograr êxito ao defender o princípio da diferença 
e a cooperação social quando faz uso da segunda formulação do imperativo 
categórico e do dever de auxílio mútuo, respectivamente. 
 
Palavras chave: posição original, autonomia, imperativo categórico. 
 
 
 
 
 
 
 296
Introdução 
 
Neste trabalho, pretendo expor algumas das apropriações que John 
Rawls faz da teoria moral de Kant em sua obra Uma Teoria da Justiça, bem como 
discutir se essas apropriações são legítimas, ou seja, se não se afastam muito da 
proposta do filósofo de Königsberg, e se não acabam até mesmo por prejudicar em 
alguns pontos a interpretação da teoria da justiça como equidade. Sabe-se que John 
Rawls é leitor de Kant, pois há várias referências a ele não só na obra acima citada, 
mas também em seu Liberalismo Político e em diversos artigos, como “O 
construtivismo kantiano na teoria moral”. Em sua História da Filosofia Moral, Rawls 
nos apresenta uma visão panorâmica da moral kantiana, discutindo pontos 
importantes da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Metafísica dos 
Costumes e Crítica da Razão Prática. Em Uma Teoria da Justiça, há referências a 
Kant em todos os capítulos, sobretudo na seção 40 do Capítulo IV, quando Rawls 
tenta oferecer uma interpretação na qual as partes da posição original 
caracterizariam pessoas autônomas, que intentam dar expressão a sua natureza 
enquanto seres racionais livres e iguais, e os princípios de justiça que se 
assemelhariam aos imperativos categóricos, por serem frutos de tal deliberação e 
por sua necessidade de aceitação universal. 
 
Também analisarei outras passagens das seções 29 e 51, onde 
Rawls defende, com base no imperativo categórico, a cooperação social, o princípio 
da diferença e o dever natural de auxílio mútuo. 
 
Antes, porém, de expor tais aproximações, faz-se necessária uma 
elucidação dos conceitos básicos da teoria da justiça rawlsiana, que são: posição 
original, véu de ignorância, equilíbrio reflexivo e princípios de justiça. Esses 
conceitos serão discutidos à luz do contratualismo, tal como o próprio Rawls sugere. 
Na medida em que o texto segue, algumas discussões pormenores serão 
inevitavelmente deixadas de lado. A análise das apropriações que Rawls faz de Kant 
não exige mais do que uma exposição geral das ideias contidas em Uma Teoria da 
Justiça. 
 
 
 
 
 297
1. A justiça rawlsiana e o contratualismo 
 
Quando se fala em contratualismo, imediatamente os nomes de 
Hobbes, Locke, Rousseau e Kant nos vêm à mente. É certo que John Rawls pode 
ser considerado um herdeiro direto destes autores, em especial dos três últimos, 
mas sua proposta se afasta da dos modernos em muitos aspectos. 
 
Em primeiro lugar, John Rawls não está preocupado em legitimar 
alguma forma de governo ou explicar como a sociedade teve sua origem. Sua 
preocupação é apenas com a justiça; mais especificamente, com a justiça no âmbito 
social, ou “o modo como as principais instituições sociais distribuem os direitos e os 
deveres fundamentais e determinam a divisão das vantagens decorrentes da 
cooperação social” (RAWLS, 2008, p. 8). Seu alvo é a justiça em regimes de 
democracia constitucional, o que não quer dizer que sua filosofia não seja aplicável 
a outras formas de governo, nem que estas não possam ser justas. 
 
Em segundo lugar, precisamos substituir o já conhecido termo 
“estado de natureza” pelo novo “posição original”. Esta posição é puramente 
hipotética e procedimental, onde pessoas encontram-se numa situação de igualdade 
para apresentar e defender quais princípios de justiça elas acreditam ser mais 
razoáveis para nortear seu convívio na sociedade. 
 
A deliberação acerca desses princípios está sujeita a todo tipo de 
interferências: desde o desejo das partes em garantir maiores vantagens para si 
próprias como interferências de concepções de bem que elas compartilham e 
perspectivas de vida que possuem, entre outras. Sendo assim, para assegurar que 
os princípios escolhidos sejam imparciais e aceitos por todos, Rawls faz uso de um 
artifício denominado véu de ignorância. Sob este véu, no momento em que 
deliberam, as partes desconhecem a real situação que ocupam na sociedade. Vale 
também lembrar que as pessoas são mutuamente desinteressadas, ou seja, suas 
preocupações se restringem apenas a que posição elas próprias, e não as outras 
partes da posição original, ocupam na sociedade civil. 
 
 
 
 298
Assim, parece razoável e de modo geral aceitável 
que ninguém seja favorecido ou desfavorecido pelo 
acaso ou pelas circunstâncias sociais na escolha 
dos princípios. Também parece haver consenso 
geral de que deve ser impossível adaptar os 
princípios às circunstâncias de casos pessoais. 
Também devemos garantir que determinadas 
inclinações e aspirações e concepções individuais 
do bem não tenham influência sobre os princípios 
adotados. [...] Por exemplo, se determinado homem 
soubesse que era rico, poderia achar razoável 
defender o princípio de que os diversos impostos em 
favor do bem-estar social fossem considerados 
injustos; se ele soubesse que era pobre, seria bem 
provável que propusesse o princípio oposto. (Ibid., p. 
22) 
 
Todavia, essas restrições impostas pelo véu de ignorância não são 
fixas. Na medida em que avançamos na escolha dos princípios, pode-se um verificar 
desequilíbrio destes com nossas crenças morais sobre o que é justo. É certo que, a 
princípio, devemos nos apoiar sobre tais concepções, pois são de ampla aceitação. 
Por exemplo, um princípio que engloba uma intuição moral que rejeita a escravidão 
pode parecer justo e ao mesmo tempo útil para tal proposta, se sua abrangência for 
tal que ofereça uma luz quanto à distribuição dos bens sociais decorrentes da 
cooperação social. No entanto, se ele entrar em discordância com alguma outra 
crença moral, temos duas escolhas: podemos abandonar ou reformular tais crenças 
ou modificar as restrições da posição original. 
 
Com esses avanços e recuos, às vezes alterando as 
condições das circunstâncias contratuais, outras 
vezes modificando os nossos juízos para que se 
adaptem aos princípios, suponho que acabemos por 
encontrar uma descrição da situação inicial que 
tanto expresse condições razoáveis como gere 
princípios que combinem com nossos juízos 
ponderados devidamente apurados e ajustados. 
Denomino esse estado de coisas equilíbrio reflexivo 
(Ibid., p.25). 
 
Ao atingirmos tal estado, cremos que as partes serão capazes de 
escolher princípios de justiça razoáveis e reconhecidamente aceitos por todos. 
Sobre este ponto, cabem aqui três observações: em primeiro lugar, o equilíbrio 
 
 
 299
reflexivo é o que caracteriza o coerentismo interno da filosofia de Rawls. Não há 
nenhuma lei ou preceito tomado como verdade axiomáticaem que se apoie para 
deduzir outras verdades. Isto já caracteriza um afastamento grande da moral 
kantiana, que se funda num fato da razão e aceita as leis morais como verdades a 
priori. 
 
Em segundo lugar, esse procedimento contratualista tem por objetivo 
a construção de princípios de justiça para todo um ordenamento social. Uma 
concepção de justiça, portanto, não é dada: o que temos são intuições morais 
acerca do certo e do errado, do justo e do injusto, do bem e do mal, etc. O 
conhecimento dessa concepção só se dá através dessa construção hipotética, que 
tem também, entre outros objetivos, uma aceitação geral dos princípios alcançados. 
 
Por outro lado, o próprio Rawls descarta a possibilidade de elaborar 
todo esse processo de construção dos princípios e de adequação de nossas crenças 
morais às restrições da posição original e do véu de ignorância. Dado que as 
restrições impostas ao véu de ignorância são contingentes e que há grande 
desacordo entre as pessoas no que se refere às suas crenças morais, é difícil 
acreditar que tal processo de construção implique necessariamente nos mesmos 
princípios de justiça. Assim, se por um lado há uma generalização “forçada” de 
preceitos morais, por outro, é possível que toda a situação contratual sirva apenas 
como uma justificativa para uma intuição de justiça pré-concebida por Rawls. 
 
2. As cláusulas do contrato: os dois princípios de justiça 
 
Os princípios da justiça propostos por Rawls são dois: o primeiro é 
chamado de princípio da liberdade igual; o segundo pode ser dividido em princípio 
da diferença e princípio da igualdade equitativa de oportunidades. Sua exposição 
definitiva ocorre na seção 46 e é a que segue: 
Primeiro princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente 
sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema 
similar de liberdade para todos. 
 
 
 
 300
Segundo princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser dispostas de 
modo a que tanto: (a) se estabeleçam para o máximo benefício possível dos menos 
favorecidos [...] como (b) estejam vinculadas a cargos e posições abertas a todos 
em condições de igualdade equitativa de oportunidades. (RAWLS, 2008, p. 376) 
 
Há, obviamente, uma maneira desses princípios se relacionar. Para 
esclarecer tal questão, Rawls elabora um sistema de prioridade entre eles: o 
primeiro princípio antecede o segundo, e a igualdade de oportunidades precede o 
princípio da diferença. A razão disto é que Rawls não aceita uma restrição das 
liberdades básicas em troca de um maior favorecimento socioeconômico ou mais 
facilidade de acesso a cargos públicos. Estas liberdades compreendem: 
 
[...] a liberdade política (o direito ao voto e a exercer 
cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; 
a liberdade de consciência e de pensamento; a 
liberdade individual, que compreende a proteção 
psicológica, a agressão e a mutilação (integridade 
da pessoa); o direito à propriedade pessoal e a 
proteção contra a prisão e detenção arbitrárias, 
segundo o conceito do Estado de Direito (Ibid., p. 
74). 
 
Dizer que há uma ordenação léxica, ou seja, de prioridade entre os 
princípios significa que o primeiro tem um peso absoluto com relação ao segundo e 
assim por diante. As questões concernentes ao segundo princípio só são discutidas 
se o primeiro já for totalmente satisfeito ou se não se a aplicar à questão em cheque. 
Por dar preferência à liberdade e à igualdade de oportunidades, Rawls é visto como 
um liberal. No entanto, ele possui preocupações igualitárias, visto que o princípio da 
diferença busca atenuar desigualdades socioeconômicas, ou ao menos dispô-las de 
forma que os menos favorecidos tenham alguma vantagem com isso. 
 
Conforme disse anteriormente, discussões pormenorizadas como o 
princípio de poupança justa, princípio da eficiência e da maximização da soma de 
vantagens não serão tratadas aqui. Por razões óbvias, também deixei de lado as 
discussões acerca do princípio da utilidade e do intuicionismo. Todos esses pontos 
merecem uma explanação mais cuidadosa; tratar destes assuntos iria muito além da 
proposta a que o texto se submete. 
 
 
 301
Dadas as explicações anteriores, passemos à análise da apropriação 
dos termos que John Rawls faz da filosofia moral de Kant. 
 
3. Autonomia e posição original 
 
“Não há novidade alguma na afirmação de que os princípios morais 
são gerais e universais; e, como já vimos, essas condições, de qualquer modo, não 
nos levam muito longe. É impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão 
exígua” (Ibid., p.311-12). Este comentário aparece no início da seção 40 - A 
interpretação katiana da justiça como equidade - e já nos traz um esboço da leitura 
rawlsiana da ética de Kant. John Rawls parte do pressuposto que as pessoas são 
seres de natureza racional, ou seja, acredita que princípios de justiça podem ser 
objetos de escolha racional. Também acredita que sendo a razão o móbil de nossas 
escolhas, damos expressão a nossa liberdade. Como essas características estão 
presentes em todos os seres humanos, somos todos iguais, ao menos nesses 
aspectos. Esse esboço, todavia, não é tão claro em Uma Teoria da Justiça. 
 
A primeira divergência entre os autores se refere à existência de 
princípios morais (e de justiça) a priori e independentes da experiência e das 
contingências da vida humana. Para Rawls, somos pessoas capazes de ter desejos 
racionais, como desejar certos bens primários (liberdades, oportunidades, 
rendimentos decorrentes da cooperação social, etc.), ter determinados objetivos de 
vida e compartilhar de alguma concepção de bem, bem como de uma concepção de 
justiça. A deliberação sob o véu de ignorância não priva o conhecimento das 
sujeições e contingências da vida cotidiana, mas o conhecimento de nossa 
ocupação na sociedade e nosso posicionamento com relação a essas contingências. 
Como as partes estão todas sob as mesmas restrições, o desconhecimento dessas 
contingências nos leva a uma deliberação racional, igual e livre. 
 
O Kant de Rawls crê que uma ação autônoma ocorre apenas 
enquanto expressão dessa natureza racional igual e livre. Sabe-se, no entanto, que 
não é essa a proposta do filósofo alemão. Kant não discordaria de que uma ação 
autônoma é a expressão dessa natureza, mas reduzi-la a esses pontos caracteriza 
 
 
 302
um recorte muito grande da moral de Kant, recorte este que obscurece o real sentido 
do termo autonomia. 
 
Na visão do filósofo de Königsberg, existem leis morais a priori, 
independentes de toda experiência e de qualquer contingência da vida humana. A 
existência desses princípios caracteriza um fato da razão pura prática. Da existência 
dessas leis provém a necessidade das ações em seu cumprimento. “O homem, com 
efeito, afetado por tantas inclinações, é na verdade capaz de conceber a ideia de 
uma razão pura prática, mas não é tão facilmente dotado de força necessária para 
tornar eficaz in concreto no seu comportamento” (KANT, 1974, p.199). 
 
O papel de nossa razão, para Kant, é o de formar uma boa vontade. 
Nela está contida o desejo. O arbítrio, na medida em que determina a si mesmo com 
princípios puros, é chamado de livre-arbítrio e implica boa vontade. Em outras 
palavras, o arbítrio que se submete a lei moral por dever, ou seja, pela necessidade 
mesma dessa sujeição em respeito a essa lei, é o arbítrio livre. 
 
A distinção entre vontade e arbítrio só aparece na introdução à 
Metafísica dos Costumes. No entanto, um arbítrio que determina a si mesmo 
caracteriza a independência da vontade de impulsos sensíveis. Em outras palavras, 
uma vontade livre é constituída necessariamente, porém não exclusivamente, de um 
arbítrio autônomo. “[...] que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão 
autonomia,isto é, a propriedade da vontade de ser lei para si mesma? [...] assim, 
pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa” 
(Ibid., p.243). 
 
Para Kant, portanto, só há autonomia numa ação cuja máxima 
respeita a lei moral. Rawls, além de desconsiderar os pontos supracitados, ainda 
precisa de vários acréscimos, como as caracterizações da posição original e do véu 
de ignorância, para sustentar a autonomia das partes. Assim sendo, qual a 
necessidade do paralelo com Kant? Rawls, na medida em que procura se afastar de 
uma fundamentação metafísica dos princípios de justiça, afasta-se também de uma 
concepção mais profunda de pessoa. A interpretação empírica da autonomia 
kantiana não auxilia o entendimento, por permitir que uma série de problemas a 
 
 
 303
esse respeito sejam levantados, tais como os que acima esboço, e talvez a proposta 
de Rawls manteria seu valor e independência sem tal aproximação. 
 
4. O imperativo categórico e a cooperação social 
 
Kant nos dá um exemplo interessantíssimo na segunda seção de sua 
Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Deve um homem próspero auxiliar a 
outros em dificuldade? Segundo Kant, não é possível querer que um princípio de 
não cooperação valha como uma lei de natureza, visto que noutro momento a 
pessoa pode estar numa situação semelhante, ou seja, na esperança de auxílio 
(Ibid., p.225). 
 
Assim diz a segunda formulação do imperativo categórico de Kant: 
“age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa 
de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente 
como meio” (Ibid., p.229). Tratando do exemplo acima, Kant afirma que deve haver 
uma identificação dos objetivos de outrem com os meus próprios, visto que o fim 
natural de todos os homens é a felicidade. Não contribuir para a realização desses 
fins significa ignorar a humanidade como fim em si mesma. 
 
Rawls serve-se dessa formulação em sua obra magna na seção 29, 
onde expõe alguns dos seus principais argumentos a favor dos dois princípios da 
justiça. No que se refere a essa apropriação, é também uma interpretação de Kant à 
luz de seu contratualismo, mas não se distancia da doutrina originalmente proposta 
pelo filósofo alemão. Pelo contrário, neste caso, o exemplo de Rawls permanece 
muito próximo à formulação de Kant– ao menos no que tange à sua filosofia moral– 
e não engendra nenhum abandono à doutrina originalmente proposta. Vejamos: 
 
Na interpretação contratualista, tratar os homens 
como fins em si mesmos implica, no mínimo, tratá-
los segundo os princípios com os quais todos 
concordariam numa situação original de igualdade. 
[...] significa aceitar abdicar de ganhos que não 
contribuem para as expectativas de todos. Em 
contraste, considerar as pessoas como meios 
significa se dispor a impor perspectivas de vida 
 
 
 304
ainda mais baixas às pessoas menos favorecidas 
(RAWLS, 2008, p.220-21). 
 
Na medida em que as partes desconhecem a real situação que 
ocupam na sociedade, um sistema de cooperação social se aparenta mais vantajoso 
para todos. Em termos reais, a probabilidade numérica de fazer parte da parcela 
menos favorecida economicamente da sociedade é maior. Assim, embora alguns 
possam querer “arriscar” uma vantagem maior para si, é racional que busquem 
maximizar o bem-estar e as condições de vida dos pertencentes dessa parcela, pois 
podem pertencer a ela. 
 
Nas seções 29 a 31 da segunda parte da Metafísica dos Costumes1, 
Kant deixa clara a obrigatoriedade moral do dever de beneficência, correspondente 
ao dever rawlsiano de auxílio mútuo. E esse dever, além de universal, deve ser 
público. Com tais considerações, é possível afirmar que tanto Rawls quanto Kant 
concordariam que a cooperação social é um dever de todos os cidadãos2. Sobre 
este ponto, resta ainda uma questão a ser levantada quanto às exigências morais e 
legais. 
 
Kant elabora, na introdução à Metafísica dos Costumes, uma 
distinção crucial: “A coincidência de uma ação com a lei do dever é a legalidade 
(legalitas) – a da máxima da ação com a lei é a moralidade (moralitas) da mesma” 
(KANT, 2004, p. 31). Há várias distinções feitas por Kant, em especial no tocante às 
leis (externas, práticas, morais, positivas, etc). Não me atentarei a todos estes os 
pormenores. O importante aqui é ressaltar aqui que, em termos kantianos, as 
exigências do princípio da diferença não se restringem apenas ao âmbito legal (ou 
jurídico), mas adentram no âmbito moral (ou ético). Em outras palavras, ao aceitar 
que o dever de auxílio mútuo deva ser uma exigência não apenas moral, mas 
também jurídica, Rawls está assumindo que os cidadãos devam partilhar de uma 
mesma concepção de bem, ou de uma mesma “doutrina abrangente”. 
 
1
 Nesta referência, faço uso da tradução de Edson Bini. Em todas as outras referências, a menção é apenas à 
primeira parte da Metafísica dos Costumes, intitulada Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito e cuja 
tradução foi realizada por Artur Morão. 
2
 Rawls estava ciente disso. Ver notas 8 da seção 21 de (p.161) e nota 4 da seção 51 (p.422) de Uma Teoria da 
Justiça. 
 
 
 305
Esta discussão pode se estender por diversas vias. Por exemplo, 
pode-se alegar que a exigência da cooperação social pelo princípio da diferença 
justifica-se apenas prudencialmente e que as partes da posição original escolheriam 
a cooperação social apenas como uma forma de maximização do bem-estar, 
aproximando-se uma visão utilitarista. Por outro lado, poder-se-ia analisar se o 
abandono dessa “doutrina abrangente” em O Liberalismo Político resulta também no 
abandono do princípio da diferença, e de que forma Rawls trata a cooperação social 
nos escritos posteriores a Uma Teoria da Justiça. No entanto, alguns pontos são 
claros. Rawls parece não levar em consideração a distinção de Kant entre 
permissões legais e exigências morais, como bem observa Pavão: “Adotando os 
princípios da filosofia jurídica de Kant, pode-se afirmar que, embora eticamente 
obrigatória, a ajuda aos pobres não é juridicamente obrigatória, sendo permitido, 
pois, não ajudar aos pobres” (PAVÃO, 2011, p. 12-13). No entanto, a formulação do 
princípio da diferença é justificável, do ponto de vista moral, através do imperativo 
categórico e de outras premissas da filosofia moral de Kant. Saber se este princípio 
está de acordo com a filosofia jurídica do filósofo de Königsberg, ou se há outras 
formas de justificar a distribuição de bens e vantagens através de um sistema de 
cooperação social resulta em outros problemas que não serão discutidos aqui. 
 
5. Considerações finais 
 
Sabemos que Rawls, como já foi dito no início do texto, foi um exímio 
leitor de Kant. Uso aqui o adjetivo “exímio”, pois além de aprofundar e discutir os 
principais pontos da filosofia moral de Kant em sua História da Filosofia Moral, o 
filósofo norte-americano ainda serve-se de vários aspectos da doutrina kantiana em 
sua obra Uma Teoria da Justiça. 
 
Essas apropriações renderam a Rawls inúmeras críticas e 
qualificações, dentre elas, o adjetivo de “kantiano”. Posteriormente, em seu artigo “O 
construtivismo kantiano na teoria moral”, o filósofo, visando se defender de possíveis 
críticas de índole kantiana, faz questão de posicionar-se sobre este adjetivo: 
 
 
 
 306
A teoria da justiça como equidade, evidentemente, não é uma teoria kantiana no 
sentido estrito. Ela se afasta do texto de Kant em inúmeros pontos. O adjetivo 
kantiano exprime apenas uma analogia, não uma identidade; ele indica que minha 
doutrina se parece, em boa parte, com a de Kant, e isso se dá a respeito de muitos 
pontos fundamentais, pelo que está bem mais próxima dela do que das outras 
doutrinas morais tradicionaisque nos servem como termos de comparação (RAWLS, 
2002, p.48). 
 
As críticas que dirijo a Rawls neste texto não são necessariamente 
de índole kantiana. Meu objetivo não foi verificar a consistência do pensamento de 
Rawls com base na filosofia moral ou jurídica de Kant, mas contrapor as duas 
teorias e verificar sob quais condições a analogia com Kant foi bem sucedida e sob 
quais não foi. 
 
Embora, como já disse, eu creia que a teoria da justiça como 
equidade de Rawls mantenha seu valor independentemente de paralelos com a 
doutrina de Kant (ou de qualquer outro autor), a analogia da segunda formulação do 
imperativo categórico com o princípio da diferença e com o dever de auxílio mútuo 
foi suficiente para justificar, ao leitor leigo de Kant, a moralidade da cooperação 
social. Entretanto, a apropriação do termo “autonomia” tal como proposto na seção 
40 de Uma Teoria da Justiça se apresentou distante demais da doutrina 
originalmente proposta por Kant, além de conter inúmeros acréscimos. Penso, nesse 
caso, que uma definição do termo autonomia com base no conceito de pessoa seria 
suficiente para as pretensões almejadas na justiça como equidade. 
 
 
 
 
 307
 
6. Referências Bibliográficas 
 
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo 
Quintela. In: Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril 
Cultural, 1974. p. 195-256. 
 
______. Metafísica dos Costumes Primeira Parte: Princípios Metafísicos da Doutrina 
do Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004. 
 
PAVÃO, Aguinaldo. “Crítica aos princípios da teoria da justiça como equidade de 
Rawls a partir da filosofia jurídica e política de Kant”. Texto não publicado, 2011. 
 
RAWLS, John. História da Filosofia Moral. Tradução de Luís Carlos Borges. São 
Paulo: Martins Fontes, 2005. 
 
______. O construtivismo kantiano na teoria moral. In: ______. Justiça e 
Democracia. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 43-
140. 
 
______.O Liberalismo Político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins 
Fontes, 2011. 
 
______. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Jussara Simões. 3. ed. São Paulo: 
Martins Fontes, 2008.

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