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9 PSICODIAGNÓSTICO: UMAPRÁTICA EM CRISE OU UMA PRATICA NA CRISE? Mary Dolores Ewerton Santiago*1 Vários são os modelos adotados para obter uma compreensão ou conclusão diagnóstica sobre o paciente e, entre eles, aquele proposto por O campo e Garcia Arzeno parece norte ar o trabalho de grande parte dos profissionais da área. O fato de as referidas autoras terem sistematizado com propriedade os conceitos concernentes ao psicodiagnóstico sob uma ótica psicanalítica e oferecerem dele uma concepção ampla e enriquecedora - principalmente no que diz respeito à relação transferêncial / contratransferencial e à devolução diagnóstica ao paciente no final do processo - contribuiu para divulgar seu trabalho em nosso meio. Ocampo e Garcia Arzeno caracterizam o psicodiagnóstico como uma prática bem delimitada, cujo objetivo é "obter uma descrição e compreensão o mais profunda e completa possível da personalidade total do paciente ou do grupo familiar. (u.) Abarca os aspectos pretéritos, presentes (diagnóstico) e futuros (prognóstico) dessa personalidade. (...) Uma vez obtido um panorama preciso e completo do caso, incluindo os aspectos patológicos e os adaptativos, trataremos de formular recomendações terapêuticas adequadas (terapia breve e prolongada, individual, de casal, de grupo familiar ou grupal; com qual freqüência; se é recomendável um terapeuta homem ou mulher, se a terapia pode ser analítica ou de orientação analítica ou então outro tipo de terapia; se é necessário um tratamento medicamentos o paralelo etc.) Abarcar esta proposta, procurando realizá-Ia tal como foi formulada, facilmente mobiliza no profissional muita ansiedade, pois ele acha-se convocado a revelar um amplo e profundo conhecimento das teorias e técnicas psicológicas que dão suporte ao seu trabalho; as fantasias que permeiam e influenciam suas atitudes tendem a oscilar entre a onipotência e a impotência, principalmente se ele tem pouca experiência clínica. De fato, dar conta de compreender tantos aspectos implicados no atendimento psicodiagnóstico, em um curto período de tempo, evidencia facilmente a magnitude da tarefa e pode levar o profissional, inconscientemente, a se comprometer mais com ela do que com o seu paciente. Neste sentido, realiza entrevistas que coletem o máximo possível de informações, e o paciente, solicitado a buscar nos arquivos de sua memória fatos signi- ficativos que ajudem o psicólogo a construir uma compreensão clara sobre seus problemas, assume fundamentalmente o papel de informante. Mas o paciente busca auxílio psicológico em um momento muito particular de sua vida. Algo rompeu seu status quo psíquico, de tal modo que ele, sozinho, não consegue dar conta da situação. Sua busca denuncia a falência das medidas anteriormente tomadas para a resolução dos problemas que o afligem, assim como uma insuficiência dos sistemas explicativos que construiu sobre suas causas. É esta condição singular que exige uma atenção mais demorada de ambos os 1 * Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Professora do Instituto de Psicologia da USP e da Universidade Paulista - UNIP. I. CAMPO, M. L.; GARCIA ARZENO, M. E. et aI. Las técnicas proyectivas y el proce.w psicodiagnÔstico. 3. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 1975, p.IS. 2. MOFFATT, A. Terapia de crise. São Paulo: Cortez, 1982, p. 13. 3. Id., ibid. 4. SIMON, R. Psicologia clínica preventiva. São Paulo: EPU, 1989, p, 58. participantes, em a precipitação de logo iniciar uma pesquisa sobre toda a história do paciente. Como, muitas vezes é a primeira modalidade de atendimento psicológico buscada pelo indivíduo, o psicodiagnóstico em uma importância significativa, não só quanto à conclusão diagnóstica, mas principalmente quanto ao modo de o psicólogo colher o paciente, relacionar-se com ele, dimensionar com certeza suas dificuldades sem torná-las o objeto único de suas Investigações. Supomos também que a busca de auxílio psicológico poderia estar revelando um momento de crise do paciente. Vejamos alguns pontos de vista sobre a crise. Moffatt, Cuja concepção psicopatológica está mais centrada nos transtornos de identidade, considera que "a crise se manifesta pela vasão de uma experiência de paralisação da continuidade do ) processo da vida"2. O que provoca a crise é o inesperado de Ima situação; se a perturbação se intensifica "há uma desconinuidade na percepção de nossa vida como uma história ;coerente, organizada como uma sucessão na qual cada uma Ias etapas é conseqüência da anterior"3. Neste contexto, o indivíduo não consegue perceber a si mesmo como aquele de mentes e nem tampouco manter uma atitude prospectiva. Simon aponta que "o essencial na geração da crise é o 'ato de o indivíduo se ver frente a uma situação nova e principalmente transformadora"4. Apoiando-se em conceitos kleilianos, considera que "os sentimentos de intensa angústia, às rezes de pânico, que assaltam o sujeito em crise, não seriam levidos apenas à falta de solução para o novo, mas à projeção : identificação do novo com fantásticas ameaças provocadas )elas figuras aterrorizantes das camadas do inconsciente que : mergem nesses estados de extrema tensão emocional". 11 Estas concepções distintas, que relacionam a crise à perda da construção imaginária do tempos, ou à irrupção de ansiedades arcaicas anteriormente sob controle6 e que privilegiam diferentes tipos de crises ("crises evolutivas e traumáticas"7, "crises por perda e por aquisição"8), têm, no entanto, um denominador comum: a crise é provocada por um fato novo, inesperado, desconhecido. O fato novo que ocorre com o paciente é que ele não está conseguindo lidar sozinho com os problemas que o afetam, que suas tentativas neste sentido foram infrutíferas. É este fato novo que provoca uma mudança no equilíbrio psíquico anterior, mantido com certas crenças acerca de si mesmo ou do mundo. "Algo" está em desacordo com elas e esse desacordo freqüentemente é acompanhado de sentimentos de dor e ansiedade, que podem despertar temores antigos e tornar ainda mais difícil a sua condição interna atual. Assim, podemos considerar que ao buscar um profissional, o paciente está em uma situação de crise. A nosso ver, faz-se necessária, uma atitude continente e empática com o paciente, uma disposição para escutá-Io e estabelecer com ele um verdadeiro diálogo. E isso implica necessariamente incluir o paciente no processo diagnóstico de um modo diferente do que comumente ocorre, ou seja, estimulando-o a compartilhar do trabalho compreensivo em curso. Ele poderá assim vincular-se à tarefa de modo mais ativo, encontrando um outro lugar na relação que não somente o de mediador dos dados sobre sua história, e gradativamente poderá tomar contato com alguns aspectos mais manifestos de sua conduta. Estamos familiarizados com a idéia de que o psicólogo deve incluir-se no trabalho clínico, que é sempre e fundamento. de uma relação humana, fazendo uso de seus recursos intelectuais, suas emoções, suas percepções para melhor compreender o paciente. Mas ainda não atentamos suficientemente para a rotina diagnóstica, que em geral configura uma relação e uma expectativa de que o saber, o conhecimento, a atitude mental ativa durante o processo são privilégio ou dever somente do psicólogo. Pode ocorrer que o paciente procure delegar ao profissional toda a responsabilidade de chegar a uma compreensão e explicação plausível sobre o que está lhe acontecendo, baseando-se na crença de que somente ele tem o saber e o poder de fornecer sugestões úteis. Mas esta situação é equívoca, dado que pode estar respondendo a uma necessidade defensiva .O paciente no momento. E a tendência, se o psicólogo assim permitir, é de que se estruture uma relação muito assimétrica,em que o paciente é marginalizado do processo compreensivo que vai se delineando no diagnóstico. Dois aspectos podem ser observados aqui: primeiro, a fantasia de incompetência, de "não saber" do paciente é : compartilhada pelo psicólogo e talvez aceita por ele como Ima realidade; segundo, a expectativa ansiosa de ambos para chegar a uma compreensão dos problemas e encontrar medidas remediadoras. . Contudo, uma relação deste gênero, baseada nas fantasias .e impotência de um e de onipotência de outro, dificulta : sobremaneira um trabalho clínico proveitoso porque fundamenta- se na negação. Negação das capacidades ou potencialidades 10 paciente, negação dos limites do psicólogo, negação da dificuldade de realizar um trabalho profícuo com tantas distorções perceptivas e sem a participação compreensiva do paciente. Poder-se-ia argumentar que essa modalidade de relação é comum no diagnóstico, devido principalmente às fantasias do paciente e à dificuldade ou mesmo à impossibilidade de lidar com elas no breve período de tempo disponível para esse trabalho. Embora tal argumento seja verdadeiro, parece-nos apenas um ângulo da questão, que é mais ampla e tem outras implicações. Referendar a negação do paciente quanto às suas próprias capacidades e aceitar a idealização que ele faz da pessoa do psicólogo exacerba a relação assimétrica e favorece o estabelecimento de um vínculo com os aspectos mais emergentes e debilitados do paciente. E, nessas condições, é provável que ocorra um "esvaziamento" das possibilidades inerentes ao pro- cesso psicodiagnóstico: a construção de um espaço intersubjetivo, compartilhado por ambos, psicólogo e paciente, com lugar para o saber de um e o saber de outro, o reconhecimento dos limites de um e de outro. É comum na entrevista inicial que o paciente chegue ansioso, não somente por suas dificuldades, por sua situação de crise, como supomos, mas também por estar com uma pessoa desconhecida, em um encontro que envolve a questão da avaliação. Em suas considerações sobre a teoria e a técnica da entrevista, diz Eleger: "A entrevista é sempre uma experiência vital muito importante para o entrevistado; significa com muita freqüência a única possibilidade que tem de falar o mais sinceramente possível de si mesmo com alguém que não o julga, senão que o compreende. Desta maneira, a entrevista atua sempre como um fator normativo ou de aprendizagem, ainda que não se recorra a nenhuma medida especial para consegui-lo. Em outros termos, a entrevista diagnóstica é sempre e ao mesmo tempo, em alguma medida, terapêutica" 9. Esta concepção de Bleger parece dimensionar adequadamente a importância do trabalho clínico. No encontro com o paciente, a qualidade da relação com ele estabeleci da é fundamental. A nosso ver, também o psicólogo que realiza o psicodiagnóstico deveria atentar mais para este aspecto e visar uma maior exploração, dos efeitos terapêuticos do processo. Mas, para isso, torna- se necessário reexaminar alguns de seus procedimentos, especialmente aqueles relativos aos assinalamentos e à devolução diagnóstica. O campo e Garcia Arzeno consideram que "é necessária uma devolução de informação diagnóstica e prognóstica discriminada e classificada, em relação com as capacidades egóicas does) destinatários(s)" 1°. Acrescentam que ela deverá ser feita após o término das entrevistas e testes, pelo psicólogo que realizou o processo psicodiagnóstico, em uma ou várias entrevistas. "Tanto o psicólogo, como o paciente ou os pais, podem colocar a necessidade de outras entrevistas devolutivas. De qualquer modo, é necessário dar oportunidade aos interessados para metabolizar o que foi recebido na primeira entrevista e esclarecer, ampliar ou retificar o que foi compreendido nela" lI. Vale notar alguns aspectos desta proposta: 1. separação nítida entre uma primei~a etapa do diagnóstico (quando o psicólogo trata de fazer uma investigação por meio de entrevistas e testes) e a etapa final (quando ele devolve um conhecimento e compreensão); 2. provável intensificação da ansiedade do paciente devido ao período de espera entre a entrevista inicial e a final; 3. dificuldade de retomar atitudes anteriores do paciente que possam contribuir para uma melhor integração do material devolvido e que dependem, portanto, da memória do psicólogo e do paciente; 4. As possibilidades de esclarecimento, reflexão ou "metaboização" do paciente, que dependam da ajuda do psicólogo, Jarecem estar concentradas nas entrevistas finais; pg15 5. prolongamento do processo psicodiagnóstico, que poderia então incluir várias entrevistas devolutivas. Ainda que possamos reconhecer muitos aspectos valiosos nas contribuições de O campo e Garcia Arzeno para a prática do psicodiagnóstico, temos um ponto de vista distinto no que diz respeito às devoluções ao paciente. Como já dissemos anteriormente, "(...) um profissional experiente e competente pode fazer devoluções no decorrer das entrevistas, assinalando aqueles elementos sobre os quais tem uma compreensão significativa" 12.2 Tal conduta permite que o paciente tome contato com algumas de suas atitudes e favorece sua auto-observação. Uma das situações que, a nosso ver, não pode passar despercebida é aquela em que o paciente manifesta, no seu contato com o psicólogo, a suposição de não ser capaz de expressar seu modo de pensar satisfatoriamente ou de não ser bem dotado do ponto de vista intelectual. Essa suposição se traduz em um discurso permeado de expressões do gênero "não sei, não", "eu não entendo", mesmo que em seguida ele formule alguma explicação para aquilo que diz não saber ou não entender. No atendimento clínico institucional, essa situação é bastante observada. Contudo, muitas dificuldades surgem na relação quando este modo de o paciente referir-se a si mesmo não é assinalado pelo psicólogo. Falar das dúvidas, da negação da capacidade de entendimento, dos esforços de compreensão do paciente e das percepções ou pensamentos adequados que ele expressa parece legitimar a capacidade compreensiva e perceptiva do paciente para ele próprio. Temos a impressão de que não basta reconhecer as angústias e emoções do paciente, porque ele precisa recuperar a confiança em sua capacidade intelectual, instrumento importante para a observação, compreensão e resolução de seus problemas. 2 12. SANTIAGO, M. D. E. Entrevistas clínicas. ln: Trinca, W. (org.) DiagnÓ.Hico psicolÓgico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984, p. 75. 16 É claro que um assinalamento do psicólogo não levará paciente a mudar seu ponto de vista sobre si mesmo (sabemos lhe algumas atitudes podem estar cristalizadas e ter seus benefícios secundários), mas uma observação pertinente, no momento oportuno, resulta muitas vezes útil porque possibilita ° paciente tomar contato com determinado aspecto de sua personalidade. Outras vezes ocorre o contrário: o paciente já formulou seu próprio "diagnóstico" e vem para confirmá-lo ou revela muita desconfiança quanto ao profissional ou quanto O trabalho a ser realizado. É importante também que tais atitudes sejam assinaladas para que o processo se desenvolva le modo mais explícito, principalmente no que se refere à relação paciente-psicólogo. A questão de fazer uso de assinalamentos ou interpretações nas entrevistas diagnósticas é controversa. Alguns propõem-se decididamente a essa idéia, considerando que o psicólogo, na tarefa diagnóstica, deve limitar-se a realizar uma investigação. ), outros, como O campo e Garcia Arzeno, deixam claro que os assinalamentos só devem ser feitos em circunstâncias especíricas: o psicólogo intervém na entrevista inicial quando há "situações de bloqueio ou paralisação por incremento da angústia, para assegurar o cumprimentodos objetivos da entre vista"13 e na devolutiva "(...) quando surgem indícios de fracasso na entrevista, como as condutas estereotipadas ou a insistência em negar certos conteúdos (...)"14, focalizando mais o tipo de vínculo que o paciente tem com ele do que propriamente o conteúdo de tais condutas. Não obstante, alguns outros profissionais reconhecem a necessidade de fazer certos apontamentos ao paciente durante o processo psicodiagnóstico por considerarem que o trabalho alcança uma dimensão mais ampla e compreensiva. Também argumentam a favor de devoluções parciais e de realizar um trabalho em conjunto com o paciente. Verthelyi, por exemplo, expressa idéias bastante interessantes sobre esta questão: "em certo sentido a devolução se inicia no momento mesmo da pré-entrevista e se encontra inevitavelmente presente durante toda a avaliação. Entendida assim, a devolutiva se converte em um 'processo' e não somente em um ponto de chegada, ainda que reservemos a ou as últimas entrevistas para a integração final dos resultados e as recomendações" .15 Ampliando o conceito de devolução, Verthelyi esclarece que há aspectos implícitos que vamos "devolvendo" ao paciente durante o processo e que incluem a disposição do consultório, nossa atitude, nosso modo de' pensar, perguntar, planejar o atendimento desde o primeiro contato telefônico ou a primeira entrevista. Por exemplo: um consultório que possua uma poltrona confortável e cadeiras mais incômodas ou então assentos similares para todos, pode transmitir e enfatizar o grau de simetria-assimetria e a distância que tentamos dar à relação; quando solicitamos que os pais compareçam à primeira entrevista e explicamos o "porquê" desta insistência, estamos "devolvendo" nossa valorização do papel paterno. Desta forma, conclui a autora, "não se pode não 'devolver' (informar, redefinir, esclarecer) certos aspectos de nossos critérios de saúde, doença e cura, inseridos em um sistema ideológico e de valores que se expressam com maior ou menor grau de consciência em nossa conduta" .16 Mas Verthelyi fala também das comunicações explícitas e das intervenções do psicólogo durante o processo psicodiagnóstico. Definindo as intervenções como perguntas, sugestões, comentários e assinalamentos que podem se dar basicamente em relação a: 1. condutas observáveis na relação do paciente com o psicólogo e a tarefa; 2. 2. aspectos do material recolhido (testes). A autora considera que: "Todas essas intervenções, ao mesmo tempo que ampliam a informação que o psicólogo recolhe a respeito da flexibilidade ou rigidez do entrevistado (...) funcionam antecipando aspectos da devolução final"17. Esse enfoque permite-nos observar que as intervenções modificam a qualidade do atendimento, levando-nos a estimar com mais clareza as possibilidades e limites do paciente. Essas intervenções são, portanto, absolutamente necessárias para uma melhor compreensão diagnóstica sobre ele. Por outro lado, elas também funcionam como devoluções parciais, dando ao paciente a oportunidade de ter uma imagem diferente de si e de suas circunstâncias. No contexto de um processo de avaliação diagnóstica como uma tarefa conjunta, tal como propõe Verthelyi, a devolução deve ser sempre útil. e enriquecedora para o indivíduo. Não passa despercebido, contudo, o fato de Verthelyi usar o termo genérico "devolução" em vez da específica expressão "devolução diagnóstica". Também não passa despercebido o cuidado com que aponta para a necessidade de diferenciar psiCodiagnóstico de psicoterapia: "convém diferenciar com clareza a ou as entrevistas de devolução das possíveis entrevistas terapêuticas ou de orientação posteriores que podem surgir a partir das recomendações já previstas ou das temáticas que aparecem no fechamento do diagnóstico. Qualquer entrevista posterior à devolução requer o estabelecimento de um novo contrato que explicite o enquadre, as características e os objetivos da tarefa" .18 Esta preocupação de delimitar nitidamente as fronteiras entre psicodiagnóstico e psicoterapia talvez seja compartilhada por grande parte dos profissionais que realizam o psicodiagnóstico. Parece haver um receio muito grande de confundir dos dois processos, teoricamente concebidos como distintos. Mas, na prática, é possível manter essa diferenciação? Priedenthal discute esta questão em um interessante artigo em que ressalta a necessidade, na aplicação das técnicas projetivas, de dialogar com o paciente e de rastrear juntamente com ele a significação do material de testes, à medida que este se apresenta, fazendo uso de perguntas, comentários e assinalamentos. Argumenta ser este procedimento imprescindível para testar as hipóteses que vão sendo formuladas e assim obter maior esclarecimento e compreensão do material, pois o psicólogo, muitas vezes preocupado com o "mundo interno" do paciente, pode ficar com elementos algo abstratos tais como a "imagem" que o paciente tem do casal (sem vinculá-Ia com sua relação concreta de casal) ou seu "nível de aspiração" (sem vinculá-Io com seu trabalho ou com seus estudos). Mas, dialogar com o paciente, fazer-lhe perguntas que, muitas vezes, ao chamar sua atenção sobre um aspecto, funcionam como assinalamentos, é diagnóstico ou terapia? Para Priedenthal, a distinção entre os dois é apenas teórica, impossível de ser mantida na prática clínica. Pois "que significa tudo isso de falar com o paciente sobre seu material e fazer-lhe perguntas, pedir-lhe associações, mostrar-lhe como se inibiu, que lapsos teve, quantas repetições de imagens negativas, ou que formas de reagir ocorreram em sua produção etc? Não é isso tornar consciente o inconsciente (ou como se queria formulá-Io teoricamente)? Não é isso fazer psicoterapia?,,193 Friedenthal vai mais longe e considera que o psicólogo pode fazer um maior uso desse procedimento, "seja porque pretende explorar a capacidade de insight do paciente e sua reação a interpretações, ou porque quer converter o próprio processo de psicodiagnóstico em uma intervenção terapêutica". 3 15. VERTHELYI, R. F. de. Tenw.s en evaluaciÓn psicolÓgica. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1989, pp. 50-51. 16. Id., ibid., p. 51. 19. FRIEDENTHAL, H. Interrogatório, test de límites y seiíalamientos en el test de relaciones objetales. In: Verthelyi, R. F. de (comp.). El test de relaciones objetales de H. Phillipson. Buenos Aires: Nueva Visión, 1976, p. 66. 20. Id., ibid., p. 89. 20 Friedenthal parece focalizar sua atenção na exploração de todos os recursos disponíveis (a relação paciente-psicólogo, os testes, os comentários e lembranças do paciente), a fim de ir ampliando, junto com o paciente, a compreensão que ele tem de si mesmo. É com esse objetivo que faz intervenções, perguntas e assinalamentos específicos (estes últimos os mais eficazes, em sua opinião). Estamos de acordo com Priedenthal que esta forma de trabalho é muito mais enriquecedora para ambos os participantes (psicólogo e paciente) e que a introdução de assinalamentos durante o processo psicodiagnóstico (nas entrevistas ou ao final da administração de cada teste) "permite que o processo introjetivo característico da devolução se dê de forma dosificada" 21. Também consideramos que é difícil manter a fronteira entre psicoterapia e psicodiagnóstico, dado que, no atendimento psicodiagnóstico, como diz friedenthal, as intervenções fazem-se quase sempre necessárias: "seja para esclarecer situações trans ferenciais que interferem, seja para aliviar a ansiedade aguda do paciente, ou para pôr à prova como ele responde a interpretações, o psicólogo (de orientação psicanalítica) logo intervém com comentários que por sua vez alteram ou gravitam na conduta posterior do paciente, de modo que se embarca em um processo característicoda psicoterapia". 22 Podemos observar que os modos de proceder no psicodiagnóstico, seguindo O campo e Garcia Arzeno ou Verthelyi e Friedenthal, implicam significativas diferenças. O tipo de trabalho realizado pelas duas últimas evidencia a necessidade de uma conduta mais plástica por parte do psicólogo, a necessidade de que ele desenvolva sua capacidade clínica, sua sensibilidade para captar indícios significativos e decidir quando e como deve atuar com aquele determinado paciente. Em outras palavras, evidencia que ambas as tarefas, diagnóstico e psicoterapia, exigem a mesma capacidade de compreensão e empatia para o trabalho. Essas idéias são importantes porque convidam a refletir sobre o modo tradicional de realizar o psicodiagnóstico, que comumente resulta em um conhecimento que tem utilidade apenas para o futuro, isto é, para o encaminhamento terapêutico do paciente, nem sempre seguido por este, como já fez notar Ancona-Lopez23 em um trabalho de pesquisa sobre o atendimento psicológico nas clínicas-escolas. A par desta constatação, sabemos que o processo psicodiagnóstico, território absoluto do psicólogo, onde estão assentadas as diferenciações que lhe conferem identidade, tornou-se também um domínio para o qual confluem muitas divergências. As diferentes leituras pos- síveis do material do paciente, os distintos referenciais teóricos nos quais elas se baseiam tornam as conclusões diagnósticas um alvo fácil para muitos questionamentos e reduzem a credibilidade a elas outorgada por outros profissionais. Não raro o paciente torna-se objeto de disputa de poder pelo conhecimento ou é novamente submetido a outra situação diagnóstica para que o profissional ao qual foi encaminhado para atendimento psicoterápico possa formular seu próprio parecer sobre o "caso". Este quadro tem suscitado muitas inquietações naqueles que trabalham com o psicodiagnóstico em consultório particular ou em instituições, levando-os a questionar a finalidade do trabalho realizado com o paciente. Afinal, os problemas evidenciados não sugerem a existência de "lacunas" na concepção que o psicólogo tem de seu papel no psicodiagnóstico? Não está afetada a sua própria identidade profissional? Para quem o psicodiagnóstico é útil: para o psicólogo que realizou o processo, para o paciente ou para o terapeuta ao qual ele foi encaminhado? Não se faz necessário redefinir o papel do psicólogo e modificar a prática diagnóstica, de modo que ela se torne, tanto para o psicólogo quanto para o paciente, dotada de sentido ou de especificidade durante a sua realização? Estas interrogações pertinentes obrigam-nos a reconsiderar nossa relação com o paciente, que vem em busca de ajuda para saber e compreender o que está lhe acontecendo e vê suas necessidades frustradas quando o psicólogo se exime de uma interação mais ativa com ele silenciando sobre suas suposições ou percepções acerca do que se passa nas entrevistas. A idéia de que o paciente só poderá realmente tomar contato com suas dificuldades e tratar de seus problemas posteriormente, em uma psicoterapia, é altamente duvidosa. Pode-se supor que a inobservância das recomendações terapêuticas ou a falta de motivação para segui-Ias derivam da experiência psicodiagnóstica, que pode influenciar de modo significativo a atitude do paciente para com outros profissionais ou instituições. Se ele não pode sentir-se compreendido, se não pode conhecer ou reconhecer alguns de seus aspectos, suas expectativas serão de que o mesmo ocorrerá no tratamento proposto. É preciso rever antigas concepções que encaram o psicodiagnóstico apenas como um referencial para o encaminhamento psicoterápico e consideram que seu valor é apenas compreensivo, uma vez que a relação com o paciente, mesmo quando enfocada sob o ângulo da transferência e contra-transferência, não pode ser usada como instrumento de trabalho. Do mesmo modo, é preciso abandonar a idéia de que o psicodiagnóstico não tem objetivos terapêuticos e empenhar-se em fazer dele uma prática cujos efeitos sejam terapêuticos. Essa necessidade de revisão também se aplica às crenças de que as intervenções do psicólogo durante o psicodiagnóstico poderiam ter conseqüências desastrosas, de que o paciente poderia desorganizar-se, já que não suportaria entrar em contato com alguns de seus aspectos ou não compreenderia o que o psicólogo quisera lhe dizer ou mostrar. Essas ressalvas valem para alguns pacientes, mas não para todos. É oportuno lembrar que nossas fantasias inconscientes a respeito do conhecimento (e mais especificamente do autoconhecimento) influenciam sobremaneira nosso trabalho e podem impedir-nos de discriminar adequadamente se nossas atitudes derivam do cuidado de não tornar as devoluções (parciais ou finais) traumáticas ao paciente ou se respondem às nossas próprias necessidades defensivas. Observamos que, muito freqüentemente, o psicólogo adota a atitude de quem sabe ou compreende tudo, mas não pode comunicar esse saber ao paciente, ou a de quem nada sabe e portanto nada pode falar, esperando que os testes lhe dêem alguma informação ou confirmem algumas de suas suposições. Em outras palavras, o psicólogo oscila entre uma supervalorização e uma desvalorização de suas condições pessoais. Grande parte dos argumentos que apóiam tais idéias e atitudes remete à questão da interpretação, da inadequação de seu uso no psicodiagnóstico e da especificidade do trabalho psicoterápico. Não obstante, embora muitos considerem a interpretação como o elemento que marca a distinção entre psicodiagnóstico e psicoterapia, é pertinente atinar também para um outro elemento que marca a semelhança entre os dois processos: a relação paciente-psicólogo. Os autores aqui citados deixam claro a importância primordial dessa semelhança e concordam que o efeito terapêutico do processo psicodiagnóstico decorre basicamente da qualidade da relação estabelecida com o paciente. Nosso principal foco de atenção e preocupação deveria, então, ser este: nossa relação com o paciente. Se nossa intervenção for necessária em algum momento - e ela sempre o será se nos dispusermos a realizar um trabalho conjunto com o paciente -, procuraremos nos orientar pelos emergentes da situação. Neste contexto, será possível respeitar as resistências do paciente, discriminar os aspectos acessíveis e aceitáveis para ele no momento, fazer devoluções parciais que não signifiquem uma antecipação de algum material que só adquire sentido quando integrado. Este tipo de procedimento, que permite um contato mais profundo com o paciente, pode realmente suscitar muito mais ansiedade no psicólogo, já que exige dele uma abertura maior para suas próprias experiências internas e para as dificuldades e podem surgir com as resistências e ambigüidades do ciente. No entanto, se pensamos que todos esses aspectos tão inextricavelmente ligados à nossa condição de psicólogo 'nico, observamos que não há como iludi-los na situação agnóstica. Como diz Friedenthal; "Talvez não seja somente interpretação que faça com que as entrevistas diagnósticas assemelhem às sessões de terapia, se não o mero fato de le em umas e outras se produzam fenômenos transferenciais ". Poder-se-ia ainda objetar que os procedimentos que su:rem uma atitude mais ativa de ambos os participantes no processo psicodiagnóstico podem ser aplicáveis somente quando há uma procura 25 espontânea do atendimento psicológico, quando ) montamos com a motivação do paciente e com o seu desejo e compreender a si mesmo. Mas, mesmo naqueles casos em ue isso não acontece, pensamos que há necessidade de rastrear s motivos que o levaram ao psicólogo, assinalando o que for 19nificativo para que o trabalho possa ser uma tarefa conjunta as devoluções não pareçam estranhas ao paciente. Algumas 'vezes o paciente já teve experiências anteriores, já iniciou ou realizou o psicodiagnósticocom outros profissionais; então, é pertinente nos perguntarmos: o que ele veio buscar aqui comigo? O que eu posso fazer com ele neste momento?
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