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1/61 Políticas de Segurança Pública Índice Apresentação 2 Contextualização 2 Relevância 3 Bibliografia 4 Avaliação 7 Aula 1: Abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo 8 Aula 2: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público 17 Aula 3: Policiamento comunitário 25 Aula 4: Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública 31 Aula 5: Política de Segurança Pública cidadã e política de extermínio do inimigo 38 Aula 6: Formulação e análise de políticas no campo da Segurança Pública 45 Aula 7: A intersetorialidade das Políticas de Segurança Pública 51 Aula 8: A Municipalização das políticas de segurança 56 Trabalho final 60 2/61 Apresentação Depois de termos estudado os papéis dos profissionais de Segurança Pública e suas diferentes relações no processo de gestão integrada, e de termos analisado a relação desses atores com a ética, os Direitos Humanos e a cidadania, hoje, iniciaremos o estudo crítico das Políticas de Segurança Pública. A despeito da polêmica que o tema provoca na mídia, ainda é raro encontrarmos discussões técnicas sobre como construir uma Política de Segurança Pública eficiente e democrática. É sobre isso que pretendemos pensar e discutir com vocês nesta disciplina. A proposta é compreendermos fatores socioculturais relacionados às instituições de Segurança Pública para, a partir disso, analisarmos: quais os passos necessários à formulação de políticas voltadas à repressão da criminalidade com respeito aos Direitos Humanos; qual o papel da polícia nesse processo; e a que estamos nos referindo quando falamos em Municipalização da Segurança Pública. Contextualização A violência urbana representa um dos principais temas de debate da atualidade. Seu controle e sua redução se tornaram um dos maiores desafios dos gestores públicos, que passaram a desenvolver discursos e ações materializadas em políticas que parecem estar distantes de objetivos propalados. O conteúdo desta disciplina pretende esclarecer concepções relacionadas à temática das Políticas de Segurança Pública por meio da abordagem sociocultural das instituições de Segurança Pública e da análise do processo de formulação e manutenção dessas políticas como o conjunto de ações intersetoriais na sociedade. Estudos das Ciências Sociais e da Criminologia, realizados durante as duas últimas décadas, indicam a necessidade de evolução dos modelos de análise e tratamento do crime e da violência. Essa conclusão se deve ao fracasso do modelo repressivo clássico, baseado em uma política penal dissuasória de pretensão punitiva do Estado como única resposta ao problema do aumento do delito e seus efeitos. Esse modelo enfrenta, demasiadamente tarde, o problema do delito bem como privilegia a polarização Estado versus infrator, desconsiderando a questão da cidadania quando não ampara a vítima e não busca reintegrar o criminoso à sociedade. O elevado custo social e a extemporaneidade das ações desse modelo não interferem no ambiente situacional. Estudar as diferentes concepções de políticas desenvolvidas e os problemas relacionados ao fenômeno da violência significa aprofundar os conhecimentos, buscar soluções e preparar os gestores, os operadores de segurança e a própria sociedade para este desafio: controlar e reduzir a violência em nossa sociedade. 3/61 Relevância É indiscutível a presença da temática da criminalidade no cotidiano dos moradores das zonas urbanas e rurais das cidades brasileiras, mas ainda se discute muito sobre quais as formas ideais de abordá-la. Nesse contexto, é indispensável analisar, de forma crítica, os desafios institucionais e socioeconômicos da elaboração de Políticas de Segurança Pública que tenham como objetivo a prevenção da violência e o combate à criminalidade com respeito aos Direitos Humanos. 4/61 Bibliografia ALVITO, Marcos; VELHO, Gilberto (Orgs.). Cidadania e violência. 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Mapa da violência 2006: os jovens do Brasil. Brasília: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2006. 7/61 Avaliação Em todas as disciplinas da pós-graduação online, existem: Avaliação formativa Não vale ponto, mas é importante para o aprofundamento e a fixação do conteúdo. Essa avaliação contém: Atividades de fixação – atividades de passagem, presentes dentro das aulas; são testes contextualizados ao conteúdo explorado; Exercícios de autocorreção – questões para verificação da aprendizagem; são essenciais, pois marcam sua presença em cada aula. Avaliação somativa Forma sua nota final na disciplina. Essa avaliação inclui: Temas para discussão em fórum – que aprofundam e atualizam os temas estudados em aula; trata-se de um espaço para tirar suas dúvidas. Sua participação vale ponto; Prova em data especificada no calendário acadêmico do curso, que será realizada em seu Polo; Trabalho final da disciplina – resenha em 1 lauda (arquivo Word) do capítulo III do livro A síndrome da rainha vermelha: policiamento e Segurança Pública no século XXI, indicado na bibliografia do curso; ou uma resenha em 1 lauda (arquivo Word) do artigo O processo de gestão da segurança municipal, da pesquisadora Miriam Guindani. Orientações sobre a realização do trabalho podem ser obtidas com o professor no ambiente online, no Fórum de Discussão , no tópico Orientações do Trabalho. 8/61 Aula 1: Abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Estabelecer uma abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública; 2. Identificar quais as formas de controle democrático interno e externo das instituições policiais. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à primeira aula da disciplina Políticas de Segurança Pública. Quando falamos em instituições de Segurança Pública1, imediatamente fazemos a associação com as polícias em seus diferentes âmbitos. Isso pode ocorrer em razão da representação coletiva2 que temos tanto do que significa Segurança Pública quanto do que entendemos como o papel da polícia na sociedade. Trataremos mais adiante das concepções de Políticas de Segurança Pública. Por ora, abordaremos alguns pontos-chave da história da polícia no Brasil e de suas formas de controle social3 e institucional. Pronto para começar? 1 Acesse a lista de sites oficiais das principais instituições de Segurança Pública no Brasil, disponível em: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/90. 2 Segundo Durkheim (1978, p. 79), a representação coletiva: “[...] traduz a maneira como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Para compreender como a sociedade representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a natureza da sociedade, e não a dos indivíduos. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com sua natureza [...]. Se ela aceita ou condena certos modos de conduta, é porque entram em choque ou não com alguns de seus sentimentos fundamentais, sentimentos estes que pertencem à sua constituição”. Contemporaneamente, esse conceito tem sido usado por autores da Psicologia Social como representações sociais: “Um sistema de valores, ideias e práticas com uma dupla função: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientarem-se em seu mundo material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código para nomear e classificar, sem ambiguidade, os vários aspectos de seu mundo e de sua história individual”. (MOSCOVICI, 2005, p. 21) 3 Conceito aqui entendido como o controle que a sociedade faz das instituições de Segurança Pública por meio de Organizações Não Governamentais, Conselhos etc. 9/61 A polícia4 surge no século XIX, nos países europeus, como estrutura pública, profissional e permanente, voltada à manutenção da ordem pública5 e à garantia da segurança pública. Sua primeira função foi administrar as revoltas populares que, até então, eram abordadas pelo Exército. No Brasil, as polícias foram estruturadas no período imperial com a criação da Intendência de Polícia da Corte. No Período Colonial6, as polícias desenvolviam atividades judiciárias e investigativas. Após a Proclamação da Independência, foi criada a Guarda Nacional, formada por cidadãos eleitores7, que discriminava a maioria absoluta da população que não votava por não possuir renda. Recuemos, entretanto, um pouco no tempo para salientar a primazia histórica da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro8. Em reconhecimento à singularidade dessa trajetória, vale citar o relato que a própria instituição divulga, em seu site9, sobre sua formação orgulhosa dos 200 anos que, em 2009, foram celebrados: “No início do século XIX, como consequência da campanha Napolêonica de conquista do continente europeu, a Família Real portuguesa, juntamente com sua Corte, decidiram se mudar para o Brasil. Chegando aqui, a Corte instalou-se no Rio de Janeiro, iniciando a reorganização do Estado no dia 11 de março de 1808, com a nomeação de Ministros. Na época, a segurança pública era executada pelos chamados quadrilheiros – grupos formados por bons homens do Reino, armados de lanças e bastões, responsáveis pelo patrulhamento das vilas e cidades da metrópole portuguesa, cujo modelo foi estendido ao Brasil colonial. Eles eram responsáveis pelo policiamento das 75 ruas e alamedas da cidade do Rio. Com a chegada dessa nova população, os quadrilheiros não eram mais suficientes para fazer a proteção da Corte, até então, com cerca de 60.000 pessoas – mais da metadeescravos. Em 13 de maio de 1809, dia do aniversário do Príncipe Regente, D. João VI criou a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia da Corte (DMGRP), formada por 218 guardas com armas e trajes idênticos aos da Guarda Real Portuguesa. A DMGRP era composta por 1 Estado-Maior, 3 regimentos de infantaria, 1 de artilharia e 1 esquadrão de cavalaria. Seu primeiro comandante foi José Maria Rebello de Andrade Vasconcellos e Souza, ex- 4 Etimologicamente, o termo deriva da expressão grega politeia: a arte de governar a cidade ou a arte de tratar da “coisa pública”. 5 M. Rolim (2006, p. 21) discute quais as funções e responsabilidades da polícia, entendendo que a manutenção da ordem pública é uma noção insuficiente, tendo em vista que a “manutenção da ordem” pode estar sustentada em uma injustiça flagrante, como é o caso do apartheid ou outras práticas totalitárias. 6 O Período Colonial começa com a expedição de Martim Afonso de Souza, em 1530, e vai até a Proclamação da Independência por Dom Pedro I, em 7 de setembro de 1822. 7 A Constituição do Império, de 1824, determinava que apenas os cidadãos com renda mínima definida em seus artigos poderiam ser eleitores. A Guarda Nacional não fugia à regra de que a riqueza e a propriedade estabeleciam o grau de direitos políticos. 8 Para uma análise profunda desse complexo processo histórico, recomendamos a leitura do artigo do professor Marcos Luiz Bretas A polícia carioca no Império, publicado na Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 219-234, 1998. 9 Acesse o site da Polícia Militar, disponível em: http://www.policiamilitar.rj.gov.br/historia.asp. 10/61 capitão da Guarda de Portugal. Um brasileiro nato foi escolhido como seu auxiliar: o Major de Milícias Miguel Nunes Vidigal”. O aparelho repressivo estatal foi estruturado para agir frente aos “não eleitores”, ou seja, aos excluídos sociais, principalmente a população de etnia negra que, submetida à escravidão10, não era entendida como parte da raça humana, e sim como uma raça inferior que poderia ser vendida como mercadoria e forçada a trabalhar sem remuneração. O regime escravocrata durou 300 anos no Brasil. Nesse período, os negros foram torturados e assassinados, física e simbolicamente, assim como as populações indígenas11, que também tiveram suas tradições massacradas e suas terras roubadas. Quando conseguiam fugir de seus “donos”, os negros, índios e miseráveis protegiam-se em Quilombos12, no intuito de sobreviver e de resistir aos senhores de terras. Durante o Império, foram criados os Corpos de Guardas Municipais, a Intendência de Polícia e instituições de estrutura militar, como a Força Pública, por exemplo. A estrutura organizacional e de competências desses órgãos encontra-se presente até hoje: cada instituição policial desenvolve ações distintas, e nenhuma das polícias cumpre o ciclo completo da atividade policial, que se caracteriza pela investigação e o policiamento ostensivo. Não há concentração de atividades em uma instituição policial: com a institucionalização do inquérito policial13, a Intendência de Polícia – hoje Polícia Civil – passou a ter a competência legal de investigar e de realizar diligências para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias, seus autores e cúmplices. Por outro lado, o 10 O Estado brasileiro possui uma dívida irreparável em sua plenitude com a população de etnia negra escravizada e massacrada no Brasil. Com seu trabalho, os negros construíram o que hoje chamamos de economia do País. Em troca disso, foram privados do direito à integridade física e psicológica e ao estudo (pois eram proibidos de frequentar escolas e faculdades); de possuir bens materiais; do cultivo de suas religiões africanas etc. Com a Abolição, em 1888, os negros continuaram sem ter direitos civis e sem poder estudar, e foram novamente condenados à miséria no País. 11 Sugestões de leitura: O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil, do antropólogo Darcy Ribeiro; e as obras históricas do professor Marcos Bretas, como Ordem na cidade. O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. 1. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 221 p. 12 Sugestão de leitura: Do Quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro. 13 Instituído pela Reforma Judiciária do Império – Lei n° 2.033, de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto n° 4.824, de 22 de novembro de 1871. Trata-se do Instituto do Código de Processo Penal, no qual são constituídas provas sem o crivo do contraditório – provas que vêm a ganhar caráter definitivo, orientando toda prova judicial. Esse Instituto atribui à polícia poder sem controle, pois sua elaboração não conta com a presença do Ministério Público e do advogado de defesa. Além disso, mesmo sem implicar juízo de culpa definitiva, o indiciamento pode trazer danos irreparáveis aos cidadãos, que terão contra si o preconceito estampado nas “folhas corridas”, ainda que diante de eventual pronunciamento posterior de inocência. Disponível em: http://www.soleis.adv.br/codigoprocessopenal.htm#DO%20INQU%C9RITO%20POLICIAL. Acesso em: 05 ago. 2007. Texto para reflexão: O princípio do contraditório e o inquérito policial. Disponível em: http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista10/Discente/MargaridaMaria.pdf. 11/61 policiamento ostensivo, uniformizado, de patrulhamento nas ruas e de atendimento das demandas urgentes da população, era – como é hoje – de competência das instituições policiais militares, cuja organização se baseava – como ainda hoje se baseia – nas regras do Exército, com treinamento para enfrentamento de inimigos (sustentado na lógica repressiva de combate com o uso de violência). O modelo dualizado – investigação e policiamento ostensivo – teve continuidade no período republicano. A mudança se deu em relação à centralidade da organização policial nos estados federados – antigas províncias do Império. Sendo assim, foi instituída a Polícia Federal, com caráter investigativo e judiciário. No período da Ditadura Militar14, de 1964 a 1985 – caracterizado pela supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contrários ao regime militar –, foram extintas as guardas civis em 15 Estados brasileiros. Em alguns casos, elas se somaram às forças militares estaduais, dando origem a Polícias Militares, comandadas por oficiais superiores do Exército e coordenadas pela Inspetoria- Geral das Polícias Militares (IGPM)15, que “acompanhava” a execução das atividades dessas novas instituições – as PMs –, de forma a não permitir desvios dos propósitos que lhes fossem estabelecidos pela União, na legislação pertinente. A partir do Decreto nº 88.777 de 198316, editado pelo Presidente João Figueiredo – que aprova o regulamento para Polícias Militares e Corpos de Bombeiros –, os governos estaduais (via Secretarias de Segurança Pública ou diretamente) ficaram incumbidos apenas da orientação e do planejamento das PMs, ou seja, do estabelecimento de diretrizes para as respectivas Polícias Militares estaduais. A Constituição Federal17 de 1988 (CF) foi um avanço no que tange aos direitos individuais e coletivos, e aos direitos sociais (Artigo 5º ao Artigo 11). Entretanto, no que se refere à estrutura institucional do setor de segurança, podemos afirmar que não houve mudanças significativas, inclusive, em certo sentido, a Carta Magna foi mais conservadora que a anterior (de 1969) no que tange às Justiças militares estaduais, ao garantir foro privilegiado para julgamento de policiais (Artigo 125, Parágrafos 3º e 4º). No Capítulo III da CF – Da Segurança Pública18 –, foi mantidaa vinculação das Polícias Militares ao Exército, e, em relação à Polícia Civil, permaneceu a mesma orientação do período de arbítrio: preservou-se seu papel de polícia judiciária na elaboração do inquérito policial. A dualidade (constitucional) da atividade policial – cuja determinação indica que uma (Polícia Civil) realiza a investigação e a outra (Polícia Militar), o policiamento ostensivo – representa o maior obstáculo para o trabalho integrado das atividades policiais. Isso se 14 Sugestão de leitura: Brasil nunca mais – um relato para a história. Rio de Janeiro: Vozes. 15 Criada pelo Decreto n° 61.245, de 28 de agosto de 1967, com o objetivo de o Exército coordenar as ações das forças militares estaduais. 16 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto/D88777.htm. 17 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. 18 Artigo 144, Parágrafo 6º. 12/61 deve ao fato de que as Polícias Militares criam mecanismos de investigação, assim como as polícias civis recorrem à formação de unidades de policiamento ostensivo. O controle democrático interno e externo das instituições de Segurança Pública não ocorre apenas por regulamentos normativos, preceitos jurídicos ou sanções formais, mas como o produto de instituições, relações e processos sociais mais amplos. Esses processos vão desde a criação de ouvidorias e corregedorias até a atuação de Conselhos, a vigilância constante da mídia, o trabalho das ONGs/OSCIPs19 e de outras organizações da sociedade civil organizada – como os movimentos GLBTT, Social Negro, de defesa dos povos indígenas, de defesa dos Direitos Humanos, feministas e do hip hop. Nesse contexto, é preciso distinguir o que é Corregedoria do que é Ouvidoria, em termos de objeto, finalidade, proposta e atribuições. A destinação da Ouvidoria é canalizar, escutar, perceber e detectar problemas (ainda que também possa receber e registrar elogios e sugestões) para encaminhá-los à Corregedoria (ou aos comandos pertinentes, quando se trata de elogios e recomendações), que é quem tem atribuição para tomar medidas investigativas. Em outros países – como a Irlanda, por exemplo –, a Ouvidoria tem mais peso, autonomia e autoridade para investigar e acusar diretamente a Justiça. O ouvidor (ou a ouvidora) é eleito(a), tendo mandato e recursos correspondentes às responsabilidades. No Brasil, as Ouvidorias da polícia foram criadas a partir de meados da década de 1990, com a finalidade de receber reclamações ou elogios relacionados a policiais civis e militares. Mesmo quando os ouvidores têm mandato, não são eleitos e carecem de autonomia, autoridade e recursos para investigar por conta própria. Trata-se de uma atividade técnica, cujas atribuições são: ouvir as reclamações de qualquer cidadão contra os abusos de autoridades e agentes policiais, civis e militares; receber denúncias contra os atos arbitrários, ilegais e de improbidade administrativa – praticados por servidores públicos vinculados à Segurança Pública – ou elogios relativos a atos virtuosos. Já as Corregedorias têm como competência promover as ações necessárias à apuração da veracidade das reclamações e denúncias, e, nesse caso, tomar as medidas necessárias ao saneamento das irregularidades, ilegalidades e arbitrariedades constatadas, para responsabilização civil, administrativa e criminal dos imputados. Se forem realmente autônomas e tiverem poder de auditar e fiscalizar as polícias, as Ouvidorias e Corregedorias de Polícia representarão um instrumento de controle democrático da população sobre as instituições de Segurança Pública, podendo vir a ser um dos principais mecanismos para garantir o controle da atividade policial na ótica dos Direitos Humanos. Para tanto, as Ouvidorias e Corregedorias precisam ser independentes Isso só ocorrerá se houver mandato na execução das atividades e se o ouvidor e o 19 ONG é a sigla de Organização Não Governamental. Sua designação negativa (Não Governamental) revela a ideia inicial de independência e ocupação do espaço público por quem não é do governo. No direito brasileiro, não há qualquer designação de ONG, mas um reconhecimento de cunho cultural, político e sociológico. OSCIP, por sua vez, é a sigla de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, conforme disposto pela Lei nº 9.790/99. Trata-se de grupo e subgrupo, gênero e espécie. A OSCIP é reconhecida como tal por ato do governo federal, emitido pelo Ministério da Justiça, ao analisar o estatuto da instituição. Para tanto, é necessário que o estatuto atenda a certos pré-requisitos que estão descritos nos Artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 9.790/99. 13/61 corregedor não estiverem subordinados ao comando das polícias, à Secretaria de Segurança ou ao Governador do Estado, o que dificultará o andamento de denúncias contra o setor intermediário e superior das instituições policiais. Outro “ator” fundamental para o controle democrático das instituições policiais é o Ministério Público – instituição do Estado cuja finalidade é verificar se a lei está sendo obedecida e, em caso contrário, provocar (geralmente através do Poder Judiciário) os órgãos do Estado, com incumbência de obrigá-los a cumprir a lei. Nesse sentido, o Ministério Público promove a aplicação das leis, a fim de que suas orientações estejam presentes nas relações sociais, e não apenas nos textos legais. A partir da Constituição Federal (Artigo 127)20, o Ministério Público tornou-se uma instituição independente, não se vinculando a nenhum dos poderes do Estado, com garantias de autonomia administrativa e funcional. A autonomia baseia-se no fato de que o recrutamento de seus membros está em suas mãos. Da mesma forma, a independência funcional e as garantias constitucionais manifestam-se sob as formas de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Entretanto, isso tudo é discutível, pelo menos até certo ponto, quando observamos que cabe ao Executivo escolher o Procurador Geral da Justiça, com base em uma lista tríplice encaminhada pela própria instituição. Por outro lado, a capacidade efetiva de cumprir suas atribuições é limitada por fatores como a dependência em relação a outras instituições – particularmente o Judiciário e a Polícia –, já que elas podem facilitar, dificultar ou mesmo impedir o andamento de uma investigação, além da possibilidade de vulnerabilidade a pressões políticas. Sendo assim, 20 Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. § 2º – Ao Ministério Público, é assegurada a autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no Art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998). § 3º – O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias. § 4º – Se o Ministério Público não encaminhar a respectiva proposta orçamentária dentro do prazo estabelecido na Lei de Diretrizes Orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovadosna lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 3º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 5º – Se a proposta orçamentária de que trata este Artigo for encaminhada em desacordo com os limites estipulados na forma do § 3º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 6º – Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). 14/61 para que seja realizado o controle democrático eficiente, é necessário que ele seja interno e externo, como forma de evitar os riscos provocados pelo corporativismo. Quanto mais independente e fortalecida for a instituição que fará o controle, menos riscos haverá para seu funcionamento eficiente. Daremos continuidade ao tema das instituições de Segurança Pública na próxima aula, cujo tema abordado será: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao filme Quase dois irmãos. Sinopse: Miguel, senador da República, visita seu amigo de infância Jorge – que se tornou um poderoso traficante de drogas do Rio de Janeiro – para lhe propor um projeto social nas favelas. Apesar de suas origens diferentes, eles se tornaram amigos quando crianças, nos anos 1950, pois o pai de Miguel tinha paixão pela cultura negra e o pai de Jorge era compositor de sambas. Nos anos 1970, eles se encontraram novamente na prisão de Ilha Grande. Ali, as diferenças raciais eram mais evidentes: enquanto a maior parte dos prisioneiros brancos estava lá por motivos políticos, a maioria dos prisioneiros negros era de criminosos comuns. Este filme é um retrato da relação entre a classe média e a favela carioca, marcado pela música popular e pela história política recente. Assista ao documentário Vlado: 30 anos depois. Sinopse: Este documentário conta a história do jornalista Vladimir Herzog através de depoimentos de pessoas que conviveram com ele. Herzog foi assassinado na prisão, em 1975, durante o Regime Militar brasileiro. Disponível em: http://www.adorocinema.com. Acesso em: 05 ago. 2010. 15/61 ATIVIDADE PROPOSTA Suponha que uma pesquisa tenha sido realizada com os moradores das zonas mais ricas e das localidades mais pobres da cidade do Rio de Janeiro. Nessa pesquisa, cada morador teria sido questionado sobre o que entendia quanto às principais demandas em relação às polícias. Nesse caso, as respostas seriam certamente diferentes. Cada grupo social parte de sua realidade, ou seja, alguns – que possuem segurança privada no prédio em que moram – podem entender que o problema da polícia é a falta de estrutura para investigar os crimes. Outros – que não estão preocupados com a polícia judiciária e que nunca tiveram advogado – querem chegar às suas casas sem que sejam atingidos por balas perdidas. Esses moradores almejam uma polícia próxima, honesta, que proteja a comunidade dos bandidos. Pense nisso e responda: 1. Da maneira como estão constituídas hoje, as polícias atendem a todos do mesmo modo? Justifique sua resposta. 2. O papel das Ouvidorias é importante nesse processo? Justifique sua resposta. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre as seguintes questões: A integração do ciclo completo das atividades policiais – investigação e policiamento ostensivo – poderia ser feita pela mesma instituição? Quais as vantagens e desvantagens dessa integração? Ao desempenharem suas funções, as polícias reproduzem as desigualdades econômicas e sociais? 16/61 Nesta aula, você: Compreendeu o contexto em que as instituições policiais foram criadas; Entendeu qual a função de cada instituição; Conheceu as formas de controle externo e interno das polícias como órgãos imprescindíveis para a sociedade. Após termos estudado as questões relacionadas à abordagem histórico-cultural das instituições de Segurança Pública e seu controle democrático interno e externo, daremos continuidade ao assunto na próxima Aula, cujo tema abordado será: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. 17/61 Aula 2: O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Definir Estado Democrático de Direito, democracia e lei; 2. Avaliar o papel das polícias no espaço público e os limites legais a que estão submetidas; 3. Identificar a importância da discricionariedade da função policial. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula O Estado Democrático de Direito e o papel do policiamento no espaço público. Devido ao sentimento coletivo de insegurança e ao destaque dado pela mídia, nos últimos anos, ao aumento de casos de criminalidade nas cidades, discute-se, especialmente no meio acadêmico e em algumas instituições de Segurança Pública, o que se espera das polícias. Dependendo das diretrizes político-institucionais que determinam suas linhas de atuação junto à sociedade, as polícias podem ter vários papéis que não necessariamente se excluem, como, por exemplo, prender criminosos e, ao mesmo tempo, priorizar estratégias de prevenção da violência. Entretanto, independente dessas ”opções”, tanto as instituições de Segurança Pública quanto a sociedade civil estão submetidas ao Estado Democrático de Direito, ou seja, a lei é soberana. Portanto, o arbítrio do policiamento não é ilimitado. Com o advento da Constituição Federal do Brasil de 198821, foram incorporados ao Ordenamento Jurídico pátrio os princípios universais do Estado Democrático de Direito. O 21 Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 18/61 conceito de Estado Democrático deriva da etimologia do termo democracia e significa que nenhum indivíduo – presidente ou cidadão comum – está acima da lei. Os três grandes movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático foram: a Revolução Inglesa, com influência de John Locke22 e expressão mais significativa em Bill of Rights23 (1689); a Revolução Americana, com seus princípios expressos na Declaração de Independência das 13 colônias (1776); e a Revolução Francesa, com influência de Jean Jacques Rousseau24, que deu universalidade a seus princípios devidamente expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)25. A democracia éum sistema político no qual o povo inteiro tem o direito de tomar as decisões básicas, determinantes, por sua vez – pela mediação da representação –, das decisões políticas do país. Esse direito é garantido por um conjunto de regras fundamentais, tais como a Constituição brasileira e de outros países26. Como o coletivo é heterogêneo, normalmente, leva-se em conta a vontade da maioria, seguindo o entendimento de que o número maior está mais perto de representar o todo. Essa posição gera críticas, pois o todo não é a maioria, mas necessita de consenso e conciliação. Para que isso ocorra, é necessário que os indivíduos estejam em pé de igualdade relativamente às decisões fundamentais. Em outras palavras, há democracia em uma sociedade na qual exista um grau razoável de igualdade social, econômica e cultural. 22 Suas ideias fundamentam-se na noção de governo consentido dos governados, diante da autoridade constituída, e do respeito ao direito natural do ser humano – de vida, liberdade e propriedade. Sem perder de vista o contexto histórico em que viveu, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que Locke defendia a igualdade entre os homens, também era defensor da escravidão – mas não aquela determinada pela raça, como ocorreu no período escravocrata do Brasil. Como sugestão, leia o texto sobre e de Locke, disponível em: http://www.geocities.com/spaprado/textoslocke.html 23 Declaração de Direito de 1689, proclamada na Inglaterra pelo Parlamento que determinou, entre outras coisas, a liberdade, a vida e a propriedade privada, assegurando o poder da burguesia na Inglaterra. Acesse o texto da Declaração, disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/decbill.htm. 24 De acordo com Rousseau, (2001, p.17): “Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, inclusive a seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites.” Acesse, na íntegra, a obra Contrato social: princípios do Direito político, de Jean-Jacques Rousseau, disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf. 25 Acesse a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1793.htm. 26 Leia sobre as Constituições e seus contextos, de José Saramago, disponível em: http://caderno.josesaramago.org/2008/10/20/constituicoes-e-realidades/ 19/61 No Brasil, a democracia foi tolhida por um conjunto de obstáculos como renda, propriedade, gênero, educação, idade e diversidade étnica, que levaram os grupos socialmente discriminados a se organizarem no que hoje chamamos de movimentos sociais – cada um com sua história, mas todos ligados pela exclusão do processo democrático e pela discriminação. A partir da democracia e da luta dos movimentos sociais organizados, foi conquistado o Estado Democrático de Direito – bandeira de luta contra o Regime Militar no Brasil e em outros lugares do mundo, em que governos tiranos27 imperaram sobre a vontade do povo. O Estado de Direito promove os direitos fundamentais, políticos, sociais e econômicos, protegendo o povo da tirania e da ilegalidade, e garantindo que os governos não tenham poder ilimitado, isto é, que também estejam submetidos às normas legais. Nesse sentido, o princípio da legalidade28 – presente no rol dos princípios do Estado Democrático de Direito – atua não só com regras, formas e procedimentos que excluem o arbítrio autoritário do Estado enquanto meio de ordenação racional, mas também como alicerce para a construção da igualdade social29 no país. Além disso, o Estado Democrático é considerado, pelo menos em teoria, como possível transformador da realidade, agindo como fomentador da participação pública para sustentar a democracia, tendo em vista que esta implica necessariamente o combate à desigualdade nas condições materiais de existência dos cidadãos. Para chegarmos à ideia atual de Estado Democrático, foram necessárias inúmeras rupturas e transformações no Estado de Direito. Diferentemente da ideia a que se prendiam os outros modelos de Estado (liberal e social), o Estado Democrático de Direito apresenta a incorporação de conteúdos novos, com o aumento de direitos e mudanças no próprio conteúdo do Direito. Verificamos uma mudança no caráter da regra jurídica, substituindo-se o preceito genérico e abstrato pelo predomínio de um direito interpretado à luz de um conjunto de valores e princípios. A concepção formal é submetida à predominância de concepção material ou substancial. O Estado adquire um caráter mais dinâmico e mais forte do que previa sua concepção formal, ou seja, privilegia-se a visão segundo a qual as normas devem estar submetidas às variações sociopolíticas, analisando-as de acordo com os princípios democráticos de Direito. Nesse contexto, o papel do policiamento no espaço público pode ser analisado por vários ângulos. A maior parte das pessoas espera que a polícia prenda os que cometeram condutas tipificadas como crimes “inaceitáveis”. Isso porque alguns tipos penais30 são 27 Oposto de democracia. Trata-se de uma forma de governo em que há poder ilimitado por parte dos chefes de Estado. 28 Sobre o princípio da legalidade, o Artigo 5º, Inciso II, da Constituição afirma: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. 29 Por igualdade social, entende-se uma situação em que todos (homens e mulheres de todas as etnias, negros, índios, ciganos etc.) tenham as mesmas condições de acesso à educação, à saúde, ao mercado de trabalho, à Segurança Pública, ao lazer, e, como defende o escritor Eduardo Galeano, ao direito de sonhar. Acesse o texto O Direito de Sonhar, disponível em: http://www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/dsonhar.htm. 30 Modelo pelo qual o Estado, por meio da lei penal, descreve e classifica o comportamento humano transgressor. Veja um exemplo no Código Penal: 20/61 mais aceitos que outros pela opinião pública, como, por exemplo, a sonegação fiscal31 e o estelionato32. Com o princípio nullum crimen sine lege33, a Lei Penal34 impede que o arbítrio de cada um defina o que deve ou não ser considerado como crime, limitando, de forma positiva, a atuação policial, mesmo sabendo que ela não impede mecanismos culturais de seleção do que é ou não condenável. Por outro lado, os policiais não lidam apenas com questões relacionadas à criminalidade, mas desempenham tarefas burocráticas, auxiliam em eventos públicos, buscam desaparecidos, escoltam autoridades, controlam multidões em jogos de futebol, transportam doentes aos hospitais etc. Diante da complexidade de demandas com as quais os policiais se deparam cotidianamente, é equivocado pensar que as polícias desempenham apenas atividades de combate à criminalidade35. Suas funções não podem ser reduzidas à luta contra o crime, pois, normalmente, abrangem uma enorme diversidade de tarefas. As polícias atuam segundo a legislação e seus estatutos, mas esses, como qualquer norma formal, necessitam da interpretação do indivíduo que irá aplicá-los. Essa sistemática chama-se poder discricionário dos profissionais de Segurança Pública. A discricionariedade é inerente ao trabalho; não se trata de descompromisso com a legalidade. A interpretação humana é parte do conjunto de fatores de que é composto o trabalho dos policiais. Para ser aplicada, a lei necessita de um agenteque o faça. Isso implica escolha entre diferentes interpretações possíveis do fato. Por exemplo, alguém foi agredido ou, na verdade, sofreu as consequências da resistência de sua vítima? O pedido da presença policial tinha o intuito de salvar uma vida ou de proteger um cidadão e preservar direitos e liberdades, ou tinha a velada intenção de incriminar alguém, fazendo com que aparências ocultassem o que realmente aconteceu? Seria melhor apoiar a liderança local para obter a paz momentaneamente suprimida ou seria recomendável solicitar reforço e agir, diretamente, para restaurar a ordem pública? Haveria, de fato, riscos envolvidos em determinada situação, objeto de reclamação de alguns moradores e comerciantes, Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. 31 Veja a tipificação da sonegação fiscal, disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/1950- 1969/L4729.htm. 32 Veja a tipificação do estelionato, disponível em: http://www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_cp/cp171a179.htm. Para refletir sobre estelionato e impunidade, acesse : http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6223 33 Expressão latina que significa: não haverá crime sem lei anterior que o defina. Em outras palavras, alguém só pode ser preso se a lei (anterior ao fato) disser que sua ação ou omissão constitui um fato delituoso (Artigo 2º do Código Penal Brasileiro). 34 Acesse, na íntegra, o Código Penal Brasileiro, disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto- Lei/Del2848compilado.htm. 35 Acesse o site da Revista do Fórum de Brasileiro de Segurança Pública, com artigos sobre o tema, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/pdf/revista_3/RBSP_BAIXAres.pdf. 21/61 em uma certa rua, ou se trata de preconceito contra adolescentes pobres, que apenas se divertiam na área, sem cometer qualquer crime ou irregularidade? O atributo da discricionariedade na função policial36 não pode ser entendido como medida arbitrária. Embora tenha caráter subjetivo, trata-se de uma prerrogativa legal conferida à Administração Pública para a prática de atos administrativos quanto à conveniência, à oportunidade e ao conteúdo desses atos. A discricionariedade37 é a liberdade de ação administrativa dentro dos limites estabelecidos pela lei. Portanto, não se confunde com arbitrariedade. Cabe salientar que os profissionais de segurança, tanto no momento de interpretar as normas quanto no atendimento ao público, podem adotar comportamentos desiguais, de acordo com as características de cada indivíduo-alvo da abordagem – por exemplo, se for pobre, negro, profissional do sexo ou estrangeiro (especialmente de países latino- americanos). Essa postura não representa, necessariamente, um desejo consciente do indivíduo profissional de polícia ou uma exigência de seus superiores. Essa postura pode ser a reprodução do sistema sociocultural perverso e excludente no qual está inserido de forma involuntária, o que, por outro lado, não exclui sua responsabilidade enquanto cidadão e profissional. Da mesma forma, nenhum preconceito culturalmente reproduzido deve servir de justificativa para a prática de qualquer crime (como, por exemplo, o crime de racismo). No cotidiano das cidades, é visível que a percepção de segurança está sendo construída por estratégias particulares, as quais utilizam – muitas vezes, de forma ilegal – a segregação em vias públicas para proteger condomínios por meio de cancelas e guaritas, com seguranças privados que, arbitrariamente, decidem quem pode transitar no local. Essas situações refletem um dos maiores desafios a serem enfrentados na construção do papel do policiamento no espaço público, pois dizem respeito à herança autoritária e elitista na concepção do trabalho policial. Um aspecto a ser considerado – porque pode influir no reforço da tradição autoritária – é a natureza militar de uma das Polícias Estaduais (o que não significa que não haja problemas relativos a essa questão nas Polícias Civis). As instituições policiais podem-se utilizar de características organizacionais do militarismo – como o uniforme e a hierarquia –, sem que isso exerça qualquer impacto negativo sobre o comportamento e a postura adequados à democracia. O que ameaça a atuação democrática e compatível com os Direitos Humanos por parte das polícias é a perniciosa influência do Exército sobre os assuntos de Segurança Pública, que desconsidera as especificidades do trabalho policial. Dessa forma, partindo da ideia de que vivemos em um Estado Democrático de Direito, entendemos que, mesmo a atividade policial sendo regida por estatutos legais, os policiais possuem poder discricionário legítimo para desempenhar suas funções, as quais envolvem fatores complexos. 36 Para refletir sobre o tema, leia um artigo sobre a função policial militar como operador do Direito, disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9539. 37 Para refletir sobre o tema, leia um artigo sobre a discricionariedade da autoridade policial no inquérito policial, disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/artigos/o-sigilo-do-inquerito-policial. 22/61 Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao documentário Notícias de uma guerra particular. Sinopse: Produzido pelo cineasta João Moreira Salles e pela produtora Kátia Lund, em 1999, este documentário tem como principais personagens os policiais, traficantes de drogas e os moradores das favelas. Nele, mostram-se, também, a vida no Morro Dona Marta, em Botafogo, na zona sul da cidade. Assista ao documentário Ônibus 174. Sinopse: Produzido por José Padilha, este documentário apresenta uma investigação cuidadosa, baseada em imagens de arquivo, entrevistas e documentos oficiais, sobre o sequestro de um ônibus em plena zona sul do Rio de Janeiro. O incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000, foi filmado e transmitido ao vivo por quatro horas, paralisando o País. 23/61 ATIVIDADE PROPOSTA Leia a seguinte tirinha: Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online. Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre as seguintes questões: Sabemos que as polícias devem desenvolver suas atividades de acordo com a legislação, mas é isso o que acontece na prática? Se não, por que isso ocorre? Quais são os atores envolvidos nesse processo? Quais os o maiores desafios da democracia em relação à Segurança Pública? Esta tirinha é de autoria do argentino Quino, criador da personagem Mafalda. Por meio de histórias em quadrinho, Quino imortalizou o período pós-ditadura vivenciado na Argentina. Nessa tirinha, vemos Mafalda surpresa com o significado da palavra democracia encontrado no dicionário. Por que será que a personagem achou tão engraçado o que leu? Qual a realidade dos países democráticos em relação à soberania do povo? 24/61 Nesta aula, você: Compreendeu que o Brasil é um Estado Democrático de Direito; Entendeu que todos estamos submetidos ao ordenamento legal, inclusive as instituições policiais e as autoridades políticas. Dando continuidade à reflexão sobre o papel do policiamento no espaço público, na próxima aula, o tema abordado será: O policiamento comunitário. Analisaremos, com especial atenção, a diferença entre policiamento comunitárioe o policiamento entendido como militar, e o conceito de comunidade. 25/61 Aula 3: Policiamento comunitário Ao final desta aula, você será capaz de: 1. Definir policiamento comunitário; 2. Identificar os desafios para implementação de ações voltadas ao policiamento comunitário; 3. Descrever as vantagens desse tipo de policiamento; 4. Avaliar o papel da comunidade nesse processo. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Policiamento comunitário. O papel do policiamento nas cidades brasileiras está contaminado pela falta de credibilidade da polícia perante a população. Se, por um lado, as polícias deixam a desejar, por outro, os policiais não possuem condições materiais e humanas para dar conta das demandas que a sociedade lhes dirige no cotidiano. A população, da qual os policiais fazem parte, não reconhece ou valoriza o trabalho da polícia, principalmente dos policiais honestos, os quais, mesmo sem condições, querem diminuir a criminalidade e a violência. A partir do reconhecimento da importância dessa relação entre cidadão comum e polícia, foi idealizado o chamado policiamento comunitário – um conjunto de ações que visam prevenir a violência por meio da criação de canais de integração e de participação social, sustentados pela confiança mútua e pela colaboração entre polícia e comunidade. Há uma distância cultural que afasta os policiais dos cidadãos e vice-versa. São muitos os obstáculos para essa aproximação, como o descrédito das polícias e a falta de espaços de diálogo. A polícia comunitária surge como resposta a esse conjunto de problemas, visando oferecer, a um só tempo: melhores serviços de segurança, em uma perspectiva, sobretudo, preventiva; novas bases para a restauração da confiança abalada ou perdida (o que, caso se concretize, terá efeito sobre a própria qualidade do trabalho policial, fortalecendo-o com boa dose de renovada legitimidade); e novos canais de comunicação direta com cada comunidade local. A polícia comunitária é um novo modelo de policiamento que ganhou força nas décadas de 1970 e 1980, quando as organizações policiais, em diversos países da América do Norte e da Europa Ocidental, começaram a promover uma série de inovações em sua estrutura e na forma de lidar com o problema da criminalidade. Em distintos países, as organizações policiais promoveram experiências e inovações diversificadas, ou seja, os contextos de cada lugar foram levados em conta na elaboração de estratégias a serem desenvolvidas. 26/61 No Brasil, o policiamento comunitário38 é normalmente entendido como uma filosofia de atuação e construção de estratégias de policiamento baseadas na cooperação entre a polícia e a comunidade. Essa filosofia estaria voltada para a melhoria da Segurança Pública através da identificação e resolução dos problemas da comunidade que aumentam o risco de crimes. A proposta desse policiamento é associar, de forma inteligente, elementos para prevenção de crimes, que, frequentemente, são dissociados e desvalorizados pela polícia – como a participação popular e parcerias entre a polícia e a comunidade (vale reiterar) na identificação e resolução de problemas locais. Por essa razão, o policiamento comunitário também é chamado de policiamento orientado para a comunidade, policiamento orientado Para a identificação e resolução de problemas da comunidade e policiamento orientado para a manutenção da ordem pública e para a melhoria da qualidade de vida da comunidade39. A proposta do policiamento comunitário não exclui ou substitui, nas instituições policiais, o indispensável investimento em recursos humanos e materiais. Pelo contrário, essa proposta visa, justamente, qualificar os profissionais e suas condições de trabalho como forma de alcançar maior eficiência, mas também como um meio de reconquistar a credibilidade pública – o que se cumpre com melhores resultados na provisão de segurança, com abordagens mais adequadas, inteligentes, civilizadas, eficientes e de acordo com a legalidade. O policiamento comunitário constitui uma metodologia, uma concepção e até mesmo um paradigma técnico-profissional alternativo ao modelo atual, que pode ser entendido como algo militarizado e de combate do inimigo. A ideia de policiais atuarem em colaboração com a comunidade supõe uma mudança40 de paradigma41 da polícia tradicional. Para isso, muitos obstáculos têm de ser superados. Ao longo dos 200 anos de sua história, as organizações policiais do Brasil42 estiveram quase sempre voltadas para a proteção do Estado contra a sociedade. Até mais ou menos a década de 1970, essas organizações foram, por força de lei, forçadas a abandonar seu lugar de polícia em favor de outro lugar, cuja função poder-se-ia definir 38 Para refletir sobre o policiamento comunitário, leia um artigo disponível em: http://www.upis.br/nusp/downloads/nusp10.pdf. 39 O quality of life policing valoriza e chama a atenção para a importância de manter a ordem pública e melhorar a qualidade de vida da comunidade, a fim de promover a Segurança Pública. Esse tipo de policiamento ficou conhecido principalmente através dos programas Tolerância Zero, inspirados na teoria das janelas quebradas que será abordada na Aula 4. 40 “[...] mudar quer dizer alterar o modo corrente de interação no seio do sistema com os usuários e a população em geral. Trata-se de diminuir a dependência em relação à lógica burocrática e de confiar, cada vez mais, em consenso e participação, transformando a experiência de todos e cada um com o sistema de justiça.” Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359. Acesso em: 05 ago. 2007. 41 Para refletir sobre o assunto, leia o artigo Reinventando a polícia: a implementação de um programa de policiamento comunitário, disponível em: http://www.crisp.ufmg.br/reinventando.pdf. 42 Sobre as organizações sociais do Brasil, acesse a entrevista com a antropóloga Jacqueline Muniz, disponível em: http://www.comciencia.br/entrevistas/jacquelinemuniz.htm. 27/61 como a imposição da ordem do Estado. Dessa forma, o processo de afastamento da polícia em relação à sociedade teve curso, no País, desde a fundação das instituições policiais. A ideia que se tinha – e que vigorou por um bom tempo como única forma de entender as polícias – é que essas instituições deveriam proteger-se de uma sociedade insurreta e rebelde, porque os germes da desordem poderiam contaminá-las ou poluí-las. A partir da década de 1990, as instituições policiais procuraram estabelecer novos caminhos de atuação e buscar sua identidade como instituição que deve proteger o cidadão e garantir-lhe sua liberdade e seus direitos, através de um protocolo vinculado a uma prática cidadã. Resgatando sua função essencial para o Estado Democrático de Direito, os processos de reestruturação da polícia tentam romper com práticas abusivas utilizadas rotineiramente, naturalizadas no âmbito das culturas corporativas tradicionais e forjadas em períodos autoritários da vida nacional. O modelo de policiamento comunitário – como o próprio nome diz – concede à comunidade ou às comunidades um papel central. Esse lugar lhes é concedido a título duplo: como vítimas diretas da atuação do Estado em suas vidas e como participantes da construção de novas formas de administrar os conflitos locais – entendendo-se que, quando alguém é afetado por alguma forma de violênciacriminal, esta atinge não só a pessoa diretamente prejudicada pela criminalidade mas também a comunidade mais ou menos próxima da vítima direta. Essa ideia de que a comunidade será lesada, indiretamente, pela violência baseia-se em uma orientação que desloca o foco de uma justiça clássica punitiva – na qual o Estado é tido como a entidade prejudicada pelo crime – para um movimento restaurativo43, no qual as pessoas e suas comunidades, junto à polícia, sofrem os contragolpes da violência e da criminalidade. Para que exista, efetivamente, uma polícia comunitária, não é demais repetir: é preciso construir, desde que haja vontade política, canais de participação e colaboração da população com a polícia, entendendo que os policiais também são cidadãos e estão ali desempenhando suas funções de profissionais de Segurança Pública. O desafio é inserir os policiais enquanto membros das comunidades, e não como seus inimigos. Resta a pergunta: o que é uma comunidade e o que seria uma comunidade genuína44? O conceito de comunidade é comumente utilizado para identificar um grupo de pessoas que, convivendo em um mesmo local, compartilham dos mesmos interesses e problemas. Há a expectativa de que, nas comunidades, todos sejam fraternos entre si e 43 Movimento referente à justiça restaurativa e à resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam àqueles que foram prejudicados por um incidente ou transgressão a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteçam novamente. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal. O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa. Trata-se, enfim, de suprir as necessidades emocionais e materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma a responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos. 44 Na obra A ideologia alemã (apud BOTTOMORE, 2001), Marx e Engels afirmam: “[...] em uma comunidade genuína, os indivíduos conquistam sua liberdade na/e através de sua associação.” 28/61 vivam em concordância com os mesmos valores, mas sabemos que não é essa a realidade. Uma comunidade caracteriza-se justamente pela diversidade. É a partir do diálogo entre diferentes opiniões, religiões e concepções que se torna possível criar canais de interlocução com a comunidade em seu conjunto – entendida como uma rede de segmentos diferenciados. Se as instituições policiais desejam criar fluxos positivos e abertos de interlocução, têm de fazê-lo respeitando e trabalhando com essa pluralidade constitutiva da comunidade. As relações internas às comunidades são complexas por natureza, e não haverá uma harmonia comunitária idealizada para interagir com a polícia. A palavra comunidade evoca, muitas vezes, tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para vivermos seguros e confiantes no mundo moderno. O conceito de comunidade não pode ser idealizado de forma cálida45, ou seja, um lugar em que todos se entendem bem, no qual podemos confiar no que ouvimos, no qual não há estranhamento entre os indivíduos e onde todos vivem em harmonia. Geralmente, as pessoas esperam das polícias um atendimento individualizado, pautado por ocorrências, com culpados punidos imediatamente. A expectativa da opinião pública é a de que se efetue o combate à criminalidade de forma tradicional (militarizada). Em outras palavras, da forma como tem atuado até este momento, se a polícia não conquistou a confiança da população, certamente não foi por falta de sintonia ideológica com o pensamento médio da sociedade, mas por suas deficiências, inclusive, na execução do modelo tradicional de segurança, bem como por conta das limitações intrínsecas a esse modelo. Ignorando-o, a opinião social média acaba atribuindo às polícias os defeitos do modelo que ela mesma idealiza. Ainda não vivemos a cultura da prevenção, do trabalho em parceria para cuidar de todos, e não do individual. A diferença do que é público para o que é privado constitui um desafio importante a ser superado para aproximar as instituições policiais do cidadão comum, até porque, no Brasil, o que é público não necessariamente o é para todos da mesma forma. A maioria da população não conhece os museus, os teatros, não pode entrar nos shoppings, não frequenta as universidades públicas etc. Nesse processo, a construção da comunidade passa pelo entendimento de que cuidar do que é público e coletivo é também cuidar do privado e do individual. Sendo assim, para falarmos de polícia comunitária, temos de analisar não só o papel dos policiais mas também o papel da comunidade, que, não raro, espera apenas a ação reativa e repressiva, cuja lógica da punição é a única forma de atender as demandas de Segurança Pública. O investimento deve ser intersetorial46, abrangendo desde a redução 45 Nas palavras de Bauman (2003, p. 8): “[...] em uma comunidade, podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé novamente. Ninguém rirá de nós nem ridicularizará nossa falta de jeito e alegrar-se-á com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicação e pedir desculpas, arrepender-nos se, necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre.” 46 Para problemas com causas complexas, devem ser oferecidas resoluções que atendam a multiplicidade de fatores envolvidos. 29/61 da rotatividade de pessoal – para que os policiais possam conhecer, aos poucos, as pessoas, estabelecendo vínculos de confiança com os moradores – até o aumento de efetivos, viaturas, coletes etc. ou mesmo a realização de melhorias no bairro e a revitalização de espaços públicos abandonados – com a participação dos moradores não como mão de obra, mas na construção do conceito do que se espera para o local. Outra decisiva exigência para um policiamento comunitário é a valorização do policial como cidadão e trabalhador, para que, sentindo-se respeitado como profissional e membro da sociedade, também o seja pela comunidade na qual desenvolve suas atividades. Para saber mais sobre os tópicos estudados nesta aula: Assista ao filme Justiça. Sinopse: Este documentário, de Maria Augusta Ramos, pousa a câmera onde muitos brasileiros jamais puseram os pés – o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro –, acompanhando o cotidiano de alguns personagens. Há os que trabalham ali diariamente (defensores públicos, juízes, promotores) e os que estão de passagem (réus). Disponível em: http://www.justicaofilme.com.br. Acesso em: 05 ago. 2010. ATIVIDADE PROPOSTA Lei o fragmento a seguir: “[...] em uma comunidade, podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé novamente. Ninguém rirá de nós nem ridicularizará nossa falta de jeito e alegrar-se-á com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicação e pedir desculpas, arrepender-nos se, necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre.” (BAUMAN, 2003, p. 8) Comunidade não é sinônimo de homogeneidade e paz entre os moradores. Sendo assim, as ações de policiamento comunitário devem ser desenvolvidas apenas nos locais em que há respeito e integração entre os moradores? Justifique sua resposta. Digite sua resposta e acesse o gabarito comentado desta atividade no ambiente online.30/61 Acesse o Fórum de Discussão e debata sobre o seguinte tema: O policiamento comunitário não exclui outras formas de policiamento, apenas abre espaço para que seja criado um novo paradigma, no qual a polícia desempenha suas atividades em colaboração com a comunidade. Quais os benefícios dessa nova forma de pensar a polícia? Nesta aula, você: Conheceu o novo paradigma de atuação das polícias; Realizou uma análise crítica do papel das polícias junto às comunidades; Entendendo que, no processo de prevenção à violência, a responsabilidade não é só da polícia mas também da população como um todo. Nesta aula, analisamos a transformação do papel do Estado e de suas funções de controle da ordem pública, por meio da ideia de policiamento comunitário, entendendo que não há a comunidade idealizada, e sim uma diversidade de fatores que devem ser levados em conta. Na próxima aula, abordaremos o tema das Políticas públicas como processo de escolha das ações do Estado. 31/61 Aula 4: Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública Ao final desta aula, você será capaz de: Definir o caminho teórico-histórico percorrido até chegarmos aos modelos de Políticas de Segurança Pública conhecidos na atualidade. Estudo dirigido da aula 1. Leia o texto condutor da aula; 2. Participe do Fórum de Discussão desta aula; 3. Realize a atividade proposta; 4. Leia a síntese desta aula; 5. Leia a chamada para a aula seguinte; 6. Realize os exercícios de autocorreção. Olá! Seja bem-vindo(a) à aula Discussão e análise crítica das concepções de Política de Segurança Pública. Na aula anterior, abordamos o tema do policiamento comunitário como o conjunto de ações que envolvem tanto o Estado – por meio das polícias – quanto a população – por meio de suas comunidades. Nesta aula, abordaremos a temática das concepções de política de segurança, buscando analisar aspectos teóricos relevantes para a construção do que hoje entendemos que deva ser, no Estado Democrático de Direito, a relação entre o Estado – responsável por garantir a segurança dos cidadãos – e a população. As políticas atuais pensadas para controlar a criminalidade urbana no mundo estão baseadas nas teorias construídas ao longo da história do pensamento social, particularmente em suas concepções sobre as relações sociedade-indivíduo e sobre as ideias de consenso e conflito. A relação entre o Estado e a administração da violência vem sendo abordada, de formas diversas, por filósofos e cientistas sociais. A problemática que envolve a relação entre violência e Estado foi introduzida no pensamento social moderno por Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel. Nicolau Maquiavel47 tratou o tema da violência, desnudando as hipocrisias vigentes e trazendo à luz o fato de que a força é o recurso elementar e inevitável do poder. Segundo suas teses, a violência ocupa função destacada nas disputas e estratégias para comover o povo ou acuá-lo, e produzir reações de acordo com as conveniências políticas. A tese hobbesiana48 atravessou, com revisões e 47 Acesse o texto completo de O príncipe, disponível em: http://www.culturabrasil.org/zip/oprincipe.pdf. 48 A tese de Thomas Hobbes afirma: “Sem a força, os pactos não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a ninguém. Apesar das leis naturais – que cada um respeita quando tem vontade e o faz com segurança –, se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará e poderá, legitimamente, confiar apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros”. Acesse o texto completo, disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata.html. 32/61 mudanças, os séculos do pensamento social, baseando-se na ideia-chave de que a concentração despótica da violência no Leviatã-Estado representa condição indispensável para a domesticação da violência selvagem e ilimitada – concebida como ameaça, por excelência, à ordem social. A violência por parte do Estado não é subsidiária à ordem social estabelecida entre os indivíduos. Pelo contrário, os indivíduos necessitam ser controlados, de forma ostensiva, para viverem em sociedade com harmonia ou, no mínimo, sem a guerra generalizada de todos contra todos. Para Hobbes, o meio encontrado para concentrar esse poder central foi o estabelecimento do Estado político. Hobbes propôs, então, a necessidade de criação do Leviatã: monstro que morreria se não realizasse sua missão – proporcionar a segurança dos súditos, isto é, evitar a guerra. Leviatã é considerado um ser artificial e age de acordo com sua vontade, porque sua autoridade foi consentida pelos membros da sociedade. Dessa cláusula, Hobbes deduz que todos os atos do Leviatã-Estado representam, necessariamente, os desejos de toda a coletividade e, como consequência, quem o contestasse estaria se opondo a si mesmo. Se o estado de natureza – ou seja, a situação anárquica, sem Estado – corresponde à guerra generalizada, em que o ser humano se torna lobo do ser humano, a solução autoritária e centralizadora (o Estado-Leviatã) emerge, via contrato social, como uma derivação da natureza humana – mediada pela razão e animada pelo desejo de viver e o medo de morrer – enquanto realidade coletiva. Por outro lado, o francês Jean Jacques Rousseau entendeu a ordem social como um direito sagrado que serve a todos, mas que não advém da natureza, e sim de convenções – a base de toda autoridade legítima entre os homens. Na teoria rousseauniana49, o Estado constitui uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros por meio do pacto social, que dá ao corpo político poder sobre todos. Esse mesmo poder – dirigido pela vontade geral – recebe o nome de soberania. Essas diferentes teorias sobre a relação entre Estado e violência mostram-se como o reflexo da preocupação a respeito de como poderia ser construída uma forma de proporcionar segurança estatal para os indivíduos em sociedade e quais as repercussões que ela teria no poder do próprio Estado. Vemos que, historicamente, o Estado foi entendido, por filósofos e cientistas sociais e políticos, como detentor da força e regulador das relações tidas como potencialmente violentas. Ainda hoje, esse tema está sendo abordado de forma analítica no que tange às possíveis repercussões da utilização de mecanismos controladores ou estimuladores da coação física do Estado em relação à população. As teorias clássicas de Maquiavel, Hobbes e Rousseau serviram de base para novas perspectivas de análise da relação entre Estado, violência e população. Exemplo disso é a 49 A convenção seria um acordo em que as forças existentes estariam unidas em prol do coletivo. Nas palavras de Rousseau: “Trata-se de encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes.” Acesse, na íntegra, a obra de Rousseau, disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf. 33/61 Escola de Criminologia Clássica, que teve sua origem na filosofia iluminista, na qual os direitos do homem tinham de ser protegidos da corrupção e dos excessos das instituições, como penas arbitrárias e delitos mal definidos. Nesse contexto, César Beccaria50, em sua obra Dos delitos e das penas51, formulou, pela primeira vez, os princípios da criminologia
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