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Psicanálise e Escrita: Uma Reflexão

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PSICANALISAR E ESCREVER: 
SOBRE UMA DICOTOMIA QUE NÃO PRECISARIA EXISTIR�
TO PSYCHOANALYZE AND WRITE:
ON THE DICOTOMY THAT DOESN’T NEED TO EXIST
Ana Cláudia Santos Meira�
Resumo
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as semelhanças entre a atividade psicanalítica de tratar um paciente e a de escrever a clínica, apontando para os objetivos tão próximos entre um processo e outro. Apesar desta proximidade, psicoterapeutas e psicanalistas parecem adotar atitudes diferentes no encontro com o paciente no setting e o encontro com a folha de papel em branco, no momento de escrever um trabalho científico. Com o objetivo de desfazer esta dissociação entre uma postura mais livre com o paciente e uma atitude mais presa, mais engessada no escrever, proponho pensarmos numa escrita mais livre e flutuante – de acordo com a indicação de Freud sobre uma “atenção livre e flutuante” – que nos leve a viver o processo de escrita de modo mais prazeroso e a um texto com maior qualidade em termos de apresentação do conteúdo e com possibilidade de firmar nossa posição como autores. 
Palavras-chave: escrita, trabalhos científicos, psicanálise, atitude analítica
Abstract
This paper presents a reflection on the similarity between the psychoanalytical activity of treating a patient and the one of writing the clinic, pointing to very close objectives from one process to another. Due to this proximity, psychotherapists and psychoanalysts seem to adopt different attitudes towards meeting the patient in the setting and in meeting the blank sheet of paper at the time of the writing of a scientific paper. Aiming at dissolving this dissociation between a “lighter” posture with the patient and a more restrained attitude, more plastered in the writing, I propose that we think of a freer and floating writing that – according to Freud’s indication about one “free and floating attention” – let us live the writing process in a more pleasant way and then leads to a text with more quality in terms of presentation of the content and in the possibility of establishing our position as authors. 
Keywords: writing, scientific papers, psychoanalysis, attitude analytics 
Introdução
Qual a linha que une a atividade psicanalítica de tratar um paciente e a de escrever a clínica? Talvez nos espantemos ao perceber objetivos tão próximos entre um processo e outro, e a distância com que julgávamos estivessem. Ao constatar as semelhanças entre o que caracteriza um e outro, passamos a reparar na diferença com que nos portávamos ante o paciente e ante a folha branca. Ao nos darmos conta de que ambas as atividades podem fazer parte de nossa formação e de nosso quehacer com as mesmas qualidades, percebemos como até então pensávamos de maneira dissociada, ao qualificar a primeira como fonte de gratificação – poder trabalhar na clínica! – e a segunda, como fonte de extremo desagrado – ter que escrever. 
	O resultado desta dissociação instalada em todos os níveis de nossa formação – no pós-graduação, na especialização ou na formação psicanalítica – é triplamente sofrido: perdemos no que poderia ser o exercício prazeroso da escrita de textos, já que o tipo de sentimento que domina o entorno da escrita é de total desafeto: incômodo, cansaço, angústia, pavor. Perdemos na qualidade do texto produzido, pois, acostumados a um modelo fechado de escrita acadêmica, fazemos textos duros, secos, sem vida. Tecnicamente corretos, mas sem nossa presença como autores. E perdemos de usufruir também na escrita do tipo de escuta e de ação que aprendemos na psicanálise, uma postura “livre e flutuante”. Esta é a indicação daquele que muito nos ensinou sobre psicanalisar e sobre escrever. Freud nos ensinou. Mas e nós? Aprendemos?
 
Atenção Livre e Flutuante na Clínica e na Escrita
A relação de Freud com sua própria escrita é curiosa: ele nunca riscou uma linha, afirma Strachey (1895/1969), no prefácio do artigo “Projeto para uma Psicologia Científica”, de Freud, e as páginas de seus manuscritos se sucedem completamente livres de alterações. O Editor das Obras Completas descreve que, no “Projeto”, no meio de cerca de quarenta mil palavras, existem pouco mais de vinte correções.
Pelo exame efetuado por Strachey (1895/1969), vemos um escritor com liberdade de usar o papel. Em seus escritos, fica marcada a despreocupação de Freud com a pontuação, a mudança de parágrafos, o emprego correto de artigos, a construção completa da frase, o uso incoerente de símbolos e abreviaturas para substituir palavras inteiras; bem como nota-se o uso por vezes indefinido de marcações pessoais no texto, como o sublinhado de palavras ou frases de importância. 
Aquele que introduziu a técnica da associação livre como linha mestra do tratamento de um paciente, só poderia seguir a mesma orientação. Em casa de ferreiro, espetos da mais alta qualidade. Ele orientou e ele seguiu. 
O conceito de associação livre já o rondava. Um autor que precocemente chamou a atenção de Freud, ainda jovem, foi Ludwig Börne, o primeiro autor em cujos escritos penetrara profundamente. Pois foi este mesmo autor que, em 1823, escreveu “A Arte de Tornar-se um Escritor Original em Três Dias”. É um breve ensaio que abrange apenas quatro páginas e meia, com o qual Freud veio a ter contato muitos anos depois. Ele termina o ensaio com as seguintes frases: 
Vou expor agora o método prometido. Pegue umas quantas folhas de papel e escreva durante três dias, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe ocorra. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua mulher, da Guerra contra os turcos, de Goethe, do processo criminal de Fonk, do Juízo Final, de seus superiores e, ao cabo de três dias, ficará maravilhado ante a série de ideias originais e inauditas que surgiram em seu pensamento. Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias (Börne citado por Freud, 1920/1981, p. 2464).
É exatamente a regra da associação livre adotada em nossos consultórios. E desde aí já ficam marcadas as associações já não tão livres entre a psicanálise e a arte, entre a psicanálise e a literatura, entre psicanalistas e escritores, entre produção científica e produção literária.
Outras indicações na literatura apontam o uso desde há muito do método da associação livre como o melhor aliado da escrita, entre eles, do grande poeta Schiller. As publicações de outro poeta chamam a atenção: em 1857, J. J. Garth Wilkinson fala sobre a escolha do tema da produção escrita e pontua: “Um tema é escolhido ou escrito”. Para a criação, ele indica que, escolhido o tema, atentemo-nos para a primeira impressão que surge na mente após a escritura do título. Por mais estranha ou exótica que a palavra ou sentença possa parecer – alerta Wilkinson (citado por Freud, 1920/1981) – este é certamente o começo da evolução do tema. “O primeiro movimento mental, a primeira palavra que surge é a reação ao desejo da mente para o desdobramento do tema” (p. 2463). 
Freud (1925/1981) tomou emprestado dele, assim como de outros autores, as orientações para os pacientes que se submetiam à análise: em vez de dirigir o paciente para algum assunto específico, pedia-lhe que se entregasse a um processo de associação livre, isto é, que dissesse o que lhe viesse à cabeça, enquanto deixasse de dar qualquer orientação consciente a seus pensamentos. Era essencial, contudo, que o paciente se obrigasse a informar literalmente tudo que recorresse a sua mente, e não desse margem a objeções críticas que procurassem pôr certas associações de lado, imaginando que não eram irrelevantes ou inteiramente destituídas de sentido.
Com estas orientações, tanto Wilkinson como Freud defendiam a necessidade de liberdade. Com uma ordem dada às mais profundas pulsões inconscientes para se expressarem, intentavam que a razão, a vontade e os aspectos críticos fossem deixados de lado, de modo que as faculdades mentais fossem levadas por um influxo e dirigidas para fins que não conhecem. 
Como este processo é levado acabo, na forma de escrever? Há muito, Freud (1933/1981) já comparara o progresso no trabalho científico com o que se dá numa análise. Em ambos os campos, haveremos de ter tolerância frente à desorganização inicial, até que possamos encontrar um elemento novo. Ele descreve este momento de caos inicial: 
Empreendemos o trabalho abrigando determinadas esperanças, porém, temos logo que abandoná-las. A observação nos revela logo algo novo, sem que, de momento, nos seja possível reunir tais fragmentos em um todo. Arriscamos, então, hipóteses e edificamos construções auxiliares que, tão logo não se confirmem, retiramos; gastamos ampla paciência; acolhemos abertamente todas as possibilidades e renunciamos às convicções anteriores, para não desatender, sob sua coerção, novos fatores inesperados e, ao final, todos os nossos esforços encontram sua recompensa; as descobertas dispersas se adaptam umas às outras; conseguimos a visão de toda uma parte dos eventos mentais, e temos completado o nosso trabalho e, então, estamos livres para o próximo trabalho (p. 3201). 
Contudo, parece termos menos paciência que Freud no processo de criação do trabalho científico e, nesta pressa, o desejo que acaba predominando é o de ver o trabalho pronto sem precisar passar por um período de elaboração que nos deixa sem chão firme onde pisar. 
O que muitas vezes acaba acontecendo é esta dicotomia entre nossa postura frente ao paciente e nossa atitude frente ao papel. Analistas que tratam, analistas que escrevem, somos um só. Então, para nós, a tarefa de escrever poderia transcorrer com a mesma tranquilidade, conquanto é esta a postura pretendida frente ao paciente que associa livremente, dando mostras de seu mundo interno. A recomendação não é a de que mantenhamos livre e flutuante nossa atenção para com o material do paciente? Pois assim pode ser com nosso próprio material associativo também, na sessão e – quando escrevemos – em frente ao papel, ou ao computador, em tempos de alta tecnologia.
Esta dissociação entre a postura analítica e a escrita faz parecer que precisamos ou podemos usar dois mecanismos diferentes na construção de uma interpretação junto ao paciente, e de um texto que pretende ser psicanalítico. Por que na sessão a regra da atenção livre e flutuante (Freud, 1925/1981), e da posição de paciência (Bion, 1981) são tão facilmente zeladas, enquanto na escrita nos revestimos de uma rigidez para com o processo de criação do texto? Como esperamos com tanta curiosidade e expectativa os conteúdos novos que o paciente comunica e, por outro lado, não toleramos um texto que se faz com muito esforço, dispêndio de tempo e energia psíquica? Por que podemos aceitar a desorganização do paciente, e não o caos inicial do conteúdo desordenado de nosso trabalho escrito? 
Não haveríamos de tomar de Freud o modelo para ambas as atividades, de psicanalisar e de escrever? Indicações não nos faltam; falta-nos a síntese entre este duplo papel. A escrita nos põe na mesma posição que o paciente que, sentado a nossa frente, se apresenta no caos. No início do processo analítico, desconhecemos seus dados de vida. Quando conhecemos estes dados, desconhecemos seu significado; quando compreendemos seu sentido no psiquismo do paciente, ignoramos o caminho de sua mudança... São raros os momentos na clínica em que temos uma ideia clara, organizada, completa sobre o que se passa com esta pessoa. Somos constantemente pegos de surpresa, e é isso que também a escrita faz conosco. Especialmente se deixarmos.
É urgente desfazermos o equívoco sobre o que vem a ser um trabalho científico. O supostamente científico fez-se equivaler a uma escrita dura, estéril, neutra, hermética, exata, em que o autor devia manter frente ao tema proposto uma postura tão asséptica como a de um laboratorista, demonstrando, através de provas concretas e irrefutáveis o que vinha a ser a psicanálise. O problema, no entanto, é que isso está exatamente na contramão da psicanálise. O que observo é um descompasso entre – em um primeiro tempo – os textos produzidos por Freud e os trabalhos acadêmicos dos vários níveis de formação; e – em um segundo tempo – entre estes trabalhos e os textos que figuram nas revistas de psicanálise que circulam atualmente em nosso meio e que já ousam apresentar um jeito mais dinâmico de escrever. 
Parece que o caminho a ser percorrido pelo aluno� desde a concepção do texto seco e sem vida até um texto autoral é maior do que a própria formação da identidade como psicoterapeuta ou psicanalista. Isso quer dizer que desenvolvemos um pensar e um fazer psicanalíticos, mas nos atrasamos em assumir uma escrita psicanalítica. Ninguém nos disse que as coisas mudaram e, às vezes, seguimos escrevendo do mesmo jeito porque desconhecemos até mesmo a possibilidade de um outro jeito.
Rocha Barros (1992) discorda desta proximidade. Ela julga um mal-entendido acreditar numa relação de linearidade entre a postura do analista durante sua escuta clínica do paciente e aquela adotada pelo analista-escritor, ao produzir um trabalho que se serve de relatos clínicos. Assim, a coerência e a articulação presentes e valorizadas no trabalho escrito não deveriam permear a clínica, na qual o desejável é a associação livre. Ela explica que, ao produzir um trabalho escrito, ao contrário do que ocorre durante a sessão, estamos compromissados com as circunstâncias externas e a teoria com as quais trabalhamos, e mobilizamos toda nossa capacidade consciente de articulação para dar um sentido à nossa comunicação.
Concordaria com Rocha Barros, caso pensasse na escrita em sua forma final, mas não é disto que se trata. A coerência e a articulação das quais a autora fala não caracterizam o processo de criação da escrita, e sim o trabalho pronto. Antes deste ponto, entretanto, não se passa senão por muitos momentos de associação livre, de desorganização e confusão mental, tal como numa sessão analítica. A semelhança entre o trabalho científico acabado se faria com os momentos de insight e de integração na sessão, em que analista e paciente tomam pé dos processos mentais efetuados pelo trabalho analítico. 
Menezes (1994) aponta para outra diferença entre a escrita e o processo analítico: na escrita – ele afirma – a frase pode ser refeita, repensada à vontade, deixando mais lugar para a racionalidade, o que o faz pensar numa aproximação maior entre a escrita e a supervisão (e não a sessão), na qual o analista pode pensar, repensar, refletir, expor, reformular, com o mesmo tempo que a escrita lhe oferece. Sua comparação também vale, mas não invalida nem diminui minha visão: ainda que a sessão transcorra com rapidez e que o analista tenha de sentir, pensar e falar de um minuto para outro e, especialmente, de uma sessão para outra, há tempo e possibilidade de reflexão, crítica e reformulação de ditames. O escrito pode ser mudado; e o dito também pode ser retomado. Dois processos tão dinâmicos como a qualidade que os caracteriza: o inconsciente. 
É preciso que nos demos conta de que nossa formação – de orientação psicanalítica – prepara-nos também para uma escrita diferente da que aprendemos. É um momento de insight de um aspecto relativamente simples e óbvio, mas que passa poucas vezes em nossa mente acostumada a seguir padrões. Ora, se a questão é seguir padrões, sigamos o psicanalítico, que é exatamente seguir o padrão de um elemento sem padrão algum: o inconsciente.
Para escrever, há de se conquistar liberdade, condição que é tanto requisito como resultado de uma produção de qualidade: um texto dinâmico, que apresente ideias abertas e ponha o leitor a pensar; um texto no qual estejamos tão presentes como autores, como estão nossas teorizações a respeito de um assunto; um texto que ouse não ser convencional e capture o leitor por isso; um texto criado com liberdade e que não nos aprisione, nem a nosso paciente, nem a nosso leitor. 
Todavia, tal liberdade é mantida sem facilidades adicionais. As fontes que obrigam um escritor a submeter-se não são poucas e vêmde todos os lados. Birman (1995) descreve a forma como os poetas fazem isso: “O que os poetas faziam era se afastarem momentaneamente das solicitações do cotidiano, romper com os vínculos imediatos, deixando, então, os fantasmas se movimentarem com liberdade, sem impor qualquer censura. Com isso, o mundo ‘imaginário’ se fazia presente” (p. 13). 
Circulamos com nossos pensamentos e com nossa fala – dentro do consultório, com o paciente, e debruçados sobre o papel, na escrita – mas é fundamental que seja com liberdade. Descobrimos a habilidade, a capacidade e até o talento para a escrita, quando nos permitimos este passeio sem rumo por nós mesmos. O que é pulsão pode ser escrito também! Encontrada a palavra, recebe um sentido: é desacomodada do inconsciente e ganha direito à expressão. 
Em uma postura de ousadia, no exercício de uma escrita diferente do padrão, acabamos por descobrir insuspeitáveis possibilidades: aprendemos novas formas de elaborar um texto, a sermos criativos o bastante para escrever uma introdução viva, que não feche o conteúdo do restante do artigo, a apresentar o final do texto no começo, a terminar sem concluir, a deixar o texto aberto, a virar um texto de cabeça para baixo, se este for nosso objetivo para com o leitor. Antes de definir um tema, podemos abrir! E abrir fala de indefinir, de pensar em possibilidades diversas, de não eliminarmos preconceituosamente qualquer alternativa. E assim o fazemos a exemplo do inconsciente, que é aberto, solto, vivo e criador.
Assim, a interpretação de um caso, de uma música ou de um filme – recursos usados em nossa escrita – deve seguir as mesmas condições da interpretação na sessão com um paciente: deve ser aberta, livre, abrir espaço para o paciente pensar, formular suas próprias ideias sobre o tema em questão. Não pode ser absoluta, totalizante ou autoritária, pois uma escrita fechada é, segundo Tuckett (1995), a melhor forma de inibir ou atrapalhar a investigação: “somos alérgicos a atitudes de certeza ou idealização” (p. 400), ele afirma, apontando para o tipo de comunicação que envolve certezas, onisciência ou arrogância de nossa parte. Então, cada trabalho deve transmitir uma experiência viva, e gerar mais significações acerca de um mesmo tema. 
Novas Significações Acerca do Tema da Escrita
Qual a novidade em escrever sobre a necessidade de uma postura de liberdade? Na clínica, nenhuma. Aprendemos exatamente assim: postamo-nos frente ao paciente que vem em busca de uma escuta que o auxilie num processo de construção ou de reconstrução. Para chegar lá, no entanto, haveremos de passar por um estado em que tanto o paciente como nós circulamos com liberdade por entre o caos, a desordem, o incerto, o desconhecido. Ao final de cada sessão, de cada mês, de cada ano, de cada tratamento, teremos conquistado um ordenamento, uma certeza, um conhecimento a mais acerca de seus processos psíquicos e de nossos próprios. 
A novidade disso está na escrita psicanalítica, que deve passar pelo mesmo processo (com todo o movimento que a palavra processo abriga) que a clínica. Ao final de cada página, de cada item, de cada artigo, teremos uma ideia clara do produto construído. Para ter chegado até aí, no entanto, teremos passado por dúvidas e indefinições, pois o texto só se apresenta pronto no final. Esta afirmação parece óbvia e redundante, mas ainda assim, esquecemo-nos de deixar que o texto se construa e seja construído com a mesma liberdade e cuidado com que fazemos com o paciente.
Deparamo-nos com a necessidade de rever e refazer uma série de normas, parâmetros e moldes até então muito bem sossegados em nós, conquanto concordantes com a regra acadêmica. E na medida deste questionamento, podemos descobrir as diferenças, as peculiaridades, os atributos de cada forma de escrever e apresentar a clínica. 
Para nos construirmos como autores, passamos por um processo de desconstrução. Neste momento, frente à escrita, talvez devêssemos nos colocar uns minutos na posição do paciente, que vivencia, escuta, pensa, revisa, muda; tolerarmos como ele termos desconstruídos nossos antigos padrões de escrita, sermos desconstruídos por um texto que ainda não existe em sua forma final e, assim, poder aguardar que, página por página – entre o labor da escrita e a tolerância à não escrita – o trabalho se crie e seja criado, entre um estado de atenção livre e flutuante e de construção ou reconstrução. Este é o processo psicanalítico de tratar. E o processo psicanalítico de escrever.
Referências
Birman, J. (1995). A escritura nos destinos da psicanálise. Pulsional, 76, 7-19.
Bion, W. (1981). A atenção e interpretação. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
Freud, S. (1981). Para la prehistória de la técnica psicoanalítica. Em Lopez-Ballesteros y de Torres. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 3, pp. 2463-2464). 4.ed. Madrid: Biblioteca Nueva. (Original publicado em 1920).
Freud, S. (1981). Autobiografia. Em Lopez-Ballesteros y de Torres. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 3, pp. 2761-2800). 4.ed. Madrid: Biblioteca Nueva. (Original publicado em 1925).
Freud, S. (1981). Nuevas lecciones introductorias al psicoanálisis – Lección XXXV: el problema de la concepción del universo (Weltanschauung). Em Lopez-Ballesteros y de Torres. Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 3, pp. 3191-3206). 4.ed. Madrid: Biblioteca Nueva. (Original publicado em 1933).
Menezes, L. C. (1994). Da escuta ao trabalho da escrita. Jornal de Psicanálise, 27 (52) 37-44.
Rocha Barros, E. L. (1992). Escrita psicanalítica e prática clínica. Pulsional, 44, 17-23.
Strachey, J. (1969) Introdução do Editor Inglês. Em J. Salomão. Edição Standard das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 1, pp. 381-393). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1895).
Tuckett, D. (1995). A conceituação e a comunicação dos fatos clínicos em Psicanálise. Revista de Psicanálise, 2 (3) 395-411. 
� Artigo publicado na Revista da Sociedade de Psicologia, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 11-15, Jun. 2004.
� Psicóloga, Psicanalista (CEPdePA), Professora do Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica do ESIPP e do Gaepsi, Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), Doutora em Psicologia (PUCRS). 
� A denominação aluno aqui abrange desde os psicólogos e os psiquiatras discentes de cursos de especialização, de pós-graduação, até os profissionais em formação nos Cursos de Psicoterapia de Orientação Psicanalítica e nos Institutos de Psicanálise.

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