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ACR036_TEXTO_04_MELLO-VASCONCELOS_os res_ preservação

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Re: atras de,
depois de ...
Lelia Mendes de Vasconcellos
Maria Cristina Fernandes de Mello
o prefixo REindica um movimento de volta, para tnls
(Ferreira, 1975: 1190), alguma coisa que repete 0 ja existente
com uma nova forma. 0 nosso objetivo e analisar como esse pre-
fixo foi aplicado em nomenclatura de projetos para intervenc;oes
urbams, voltadas para a preservac;ao do ambiente construfdo.
A partir da dccada de 1960, a1 ac;oes em sftios com preexis-
tencias significativas introduzem 0 reconhecimento de valor his-
torico e cultural. Essa nova postura em relac;ao ao meio ambien-
te construfdo indica uma atitude crftica- as praticas precedentes
de demoEc;ao de extensas areas da cidade, para fins de expansao
e/ou substitnic;ao de usos e edificac;oes. Os planos urbanfsticos
passam a ganhar denominac;oes sempre acompanhadas do prefi-
xo RE - reabilitac;ao, revitalizac;ao, entre outras. A variedade na
terminologia aplicada as praticas urbanas evidencia urn elenco de
metaforas. Investigar SUaSorigens e significados no tempo saD
questoes relevantes para a compreensao do modo como essas di-
versas intervenc;oes.vem sendo aplicadas.
Percorremos as alterac;oes dos seus significados e conceitos,
com base no estuclo de algumas ca1"taspat1'inJoniais dataclas e na
especulac;ao sobre as origens hist6r;cas de urn conjunto de ter-
mos relativos as pdticas urbanfstic 15, em especial aquelas que
tratam de ac;oes do poder publico. Embora each pais utilize tais
termos de maneira propria, de acordo com seu contexto, criando
novos significados, observam-se tentativas de nniversalizac;ao nao
so da nomenclatura, como tambem da tipologia dos projetos que
os acompanha. A fim de aprofundannos 0 significado dessas di-
versas nomenclaturas e a correlac;ao destas com a metodologia do
projeto, propomo-nos a analisar algumas delas, pon~m sem qual-
quer pretensao de esgotar 0 assunto.
A busca da compreensao dos significados no tempo reportou
a Foucault (1979)1. Segundo 0 autor, 0 conceito cia medicina so-
cial, de modo geral, expressa a I reocupac;ao com a saude dapopu-
lac;ao. Esse conceito surge-na Europa em mead03 do seculo XVIII,
tomando, porem, formas dife1 enciadas de ar;oes em cada pais.
Foucault assinala que, na Franc;a da seg:unda metade do seculo
XVllI, a cidade deixa de ser urn lygar de mercado e passa a repre-
sentar tambem, ante a industria nascente, urn lugar de produc;ao.
o aparecimento de um,l populac;ao opcdria gcra revoltas de sub-
sistencia. Estas caracterizam-se pOl' revoltas urbanas, ao contdrlo
das revoltas camponesas ocorridas anteriormente (1979: 86). A
plebe (em via de se proletarizar) e a burguesia, representadas por
grupos naturalmente opostos, geram conflitos que culminam com
a Revoluc;ao Francesa. 0 chamado 77ledo urbano (1979: 87) pass a a
ser uma presenc;a forte nas cidades, cujas novas atividades econo-
micas, alem do desenvolvimento dos transportes (trem, navio a
vapor), produzirao, no seculo seguinte, urn crescimento popula-
cionalnunca antes observado. Comec;a a snrgir a necessidade de
1. A leitura de Foucault e 0 exame das cartas patrimoniais ajudaram a elaborar 0
texto "Terminologias em busca de uma iclentidade", llpn:sentado no Congresso
Ibero-americano, realizado na ciclade de PortO, Portugal (1998), e reapresentado
no "III Seminario Internacional Patrimonio e Cidade Colltcll1podnea", n;alizado
em Salvador (2002); 0 texto foi recem-publicado na integra na revista Rutl 11; 8,
do Programa de P6s-gradua~0 em Arquitetura e Urhanisma, da Faculdade de Ar-
quitetura da Universielacle Federal cia Bahia, em julho/cll'zembro de 2003. 0 pre-
seute texto retoma as ideias lan~adas, reviSfmda-as e descnvolvcndo-as.
um poder polItico que possa conter e esquadrinhar essa popula-
r;ao urbana. A urbanizac;ao surge como suporte para a medicina
social- rnoes economicas e polfticas levam a necessidade da uni-
f1car;ao do pocicr urbano (Ibid. p. H6).
o a771ontot!7lze71to, as casas excessiva7nente aftas, a continua cons-
truc;ao de oficinas e fabricas, associados a falta de saneamento das
cidades, as epidemias e as infecc;oes, causadas, inclusive, por falta
de covas individualizaclas2 para a Iwpulac;ao mais pobre (Ibid. p.
87), explicam esse "panico urbano" referido pelo autor.
A classe burguesa, nesse periodo ainda fora do exerdcio do
poder, "[ ... ] detido pelas autoridades traclicionais [...]" (Ibid. p.
87), passa a utilizar, como estrategia, um modelo poIftico inspi-
raclo nas medldas tomaclas na Idacle Media por ocasiao da peste:
o lliodelo de quarentena. Este consistia em um plano de urgen-
cia a ser aplicaclo quando a peste ou outra doenc;a epiclemica vio-
lenta aparecesse. Os proceclimentns aclouclos simultaneamente
eram confinamcnto, vigiJanci;l, rcgistroccntralizado, clesinfecc;ao
e divisao do cspa~o para inspc<,.:ao.
A medicina urbana - c1enomina<;ao utilizada pelo referido au-
tor - nada mais e que 0 aperfeir;oamento do modelo cia quaren-
tena (Ibid. p. 90) identif1caclo por tres grandes objetivos:
Q analise dos lugares de "amontoamento", confusao e perigo
(surgem, em 1780, como uma das ac;oes efetivas, os cemiterios
com covas individualizadas);
• controle e estabelccimcnto (]a circuLlr;ao cia {igua e clo ar
para "manter 0 bom est;cldo de saucle da populac;ao" (Ibid. p. 92);
2. Foucault (1979) aprcscilia l}m'l imprcssionanrc dcscri"ao dos cad,ivcres que se
amontoavam jUllto aos muros clas cLlllstros; '1 quantidade de corpos era tao gran-
de que a pressao dcstes sobre os mums das casas canstruid'lS em torno do claustro
desmoronavam, procluzindo tocla a orclem de infec~ijcs. A mec1ida de instituir co-
vas inclividualizadas foi uma fa;]aa de evitar tais problemas: "[ ...] para que os vivos
estejam ao abrigo cia intlucncia ncfasta dos martos, c preciso C] Je os mortos sejam
tao bem classitlcaclos qU'lllto as vivos [...j".
• organiza\=ao dos clifcrcntes elementos necessarios a vida co-
mum da cidacle (esgotos, fontes, Cflves,cemiterios).
Foucault tambem comenta como as polfticas medicas urba-
nas, no seculo XVlIl, "poem a pratica medica diretamente em con-
tato com ciencias extrameeliG1S,fundamentalmente a qufmica"
(Ibid. p. 92l A medicina urbana nao trata dos corpos dos ho-
mens, mas cbs condic,:()csde Vjd~l c do meio de existencia. "A me- ,
dicina passou cIaanalise do meio ados efeitos do meio sobre 0 01'-
ganismo, e finalmcnte a analise do proprio organismo" (Ibid. p. 92).
Parece estar localizada, nesta passagem, a origem das preocupa-
r;oes sobre os efeitos do meio ambiente no organismo humano.
Foucault assinalou ainda a importancia da nor;ao de salubridade.
Segundo 0 autor, a saluoridade trataria do meio e de seus ele-
mentos constitutivos pJra garantir a saude da populac;:ao.POl' ul-
timo, e importante destacar a assertiva de que "[...] a inserc;:aoda
pratica medica em um corpus de ciencia ffsico-qufmica se fez pOl'
interm6dio da urbaniza~ao" (Ibid. p. 92). Nao e de espantar, por-
tanto, que a tenninologia adotada para as urbanizac;:oessurgidas
nesse mesmo perfodo venha, aos poucos, constituindo urn con-
junto de met:iforas advindas das ciencias medicas, as quais entao
tomavam corpo, t~liscomo intervcn{oes, dna'gifls urbanas etc.
Os prucedimemos aplicados na medicina urbana serviram
como instrumentos para as intervenc;:oes nas cidades desse tern...:
po, consolidando-se no seculo XIX. Com 0 aumento da popula-
c;:ao,a palavra de ordem era a "higieniza\=ao": surgiram os primei-
ros pIanos de nnova{iio urbana. 0 exemplo c1assicoe a reforma de
Paris, realizada por Haussmann (1851-1870). Organizando a ci-
cladeem arrondissements, {Dramabertas largas avenidas, estenden-
3. Foucault refere-se as tcnt:1tivas confUS,lSdc ParaceIso e V111 Helmont de associar
as duas ciencias; esscs estudos foram, porcm, deixados de lado atc 0 seculo XVlIl,
quando se p,lssa a elm' impordncia a qualiebdc cia ar e eb sua circula<;ao nas cida-
des, para evitar a contamina<;30(acreditava-sc, na epoca, na prcscn<;a dos miasmas
e na a<;aomedniC<l pOl'meio da pressao eLlatmosfera nos corpos).
do os limites do tcrritorio urbanizado e destruindo grande parte da
, estrutura precxIstente. No Brasil, assim como em outras capitais
latino-american as, exemplos semelhantes - guardadas as propor-
c;:5esde escala - :'ao encortrados, como a reforma realizad: pelo
prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro (1903-1906), entao ca-
pital do pafs. ., .
Segundo Choay e Merlin (1988: 580), a crIbca desse modelo
.,(renovafiio) coloca-se no plano social, uma vez que des~az a las;o
'dos habitantes da area "renovada" quando sac remoVldos para
outros lugares. Quanto a morfologia, rompe brutalmente as .c~-
,racterfsticas do tecido urbano anterior e a relar;ao com a VlZl-
;'nhanr;a.Essa atitudc foi propria das ideias modernistas, como es-
tao implfcitas na Carta de Atenas (Oam, 1933, apud I?h~n et aI.,
1995) e refon;adas por Le Corbusier dez anos depOls, mfluen-
cianciovarias gerac;:oesde urbanistas, os quais justificavam a ~ele-
~ao de conjuntos arquitctonicos a ser conservados ou demoltdos.
A amplitude das expressoes culturais, reconhecidas como pa-
trimonio nos anos que se seguir~m a decada de 1930, levou as 01'-
ganizac;:ocsinternacionais, a exemplo do International Co~ncil
on Monuments and Sit'es (Icomos), a elaborar cartas especlficas
em uma tentativa de construir crit~ios gerais para solucionar
problemas relacionados com a preservac;:aoe conservac;:aodesses
novos reconhecimentos.
Grupos de especialistas tentaram - e tentam ate hoje - ~o~-
malizar procedimentos. Com a proliferas;ao de doc~~entos slln~-
lares, particularizados ou generalizantes, 0 que se~rIa para a~-
liar acabou aumentando a indefinic;:aode termos e bpOSde ac;:oes.
No perfodo pos-guerra, com as reconstrli<;oes das cidades
europeias, 0 surgimento de novas capitais, construidas de acordo
com os preceitos de Corbusier (Brasflia, Chandigard), a const~-
<;aodas new towns inglesas e tantos outros exemplos, os par~dlg-
mas ate entao consagrados nos principios ditados pelo urbamsmo
~y modernista pass;1ma ser revistos.
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A Carta de Veneza (1964) ampliou 0 conceito de 11l0numen-
to hist6rico: este, nao restrito a exemplos isola dos, seria estendi-
do a todo conjunto representativo, mesmo modesto, testemunho
de evoluC;6es, civilizaC;6esou aeo ltecimentos hist6ricos. 0 ClJlltinllZl7JZ
do tecido urbano passara a ser ~onsiderado como espac;o merece-
dol' de valorizac;ao. A "era das Jemolic;6es" comec;ava a chegar ao
fim. Surgiram ac;6es integradase simultaneas, visando a retomada
de atividades economicas, como a recuperac;ao fisica dos imoveis
e a fixac;ao da populac;ao de origem no seu habitat. Embora nem
sempre bem-sucecIida'!, essa atitude de reconhecimento das pree-
xistencias trouxe um novo conceito, amplamente cIifundicIo ate os
dias de hoje. Surgiu, conSetTlientemente, um elenco de termos com
significados scmclhantes: Vfl!oriZII(fIO, nujlfllizfI(lIO, -reflbilitrWIO.Es-
te ultimo, no sentido de origem, significa 0 restabe1ecimento dos
direitos. Na jurisprudencia, e i'a ac;ao de recuperar a estima e a
considerac;ao" (Choay e Merlin, 1988: 573).
Segundo Diaz-Berrio e Orive (1974: 11), 0 termo 1,ettbilitaftlO
vinha consolidando-se ate se configurar como um dos aspectos
fundamentais da conservaftlO e, no texto cIa COl1venc;ao cIa Unesco
de 1972, substituiu praticamente 0 ten110 restmtrtlfiio, aplicado tan-
to em arquitetura como em urbanismo. Choay considera nabili-
taftlo uma operac;ao mais avanc;ada e nao simples melhorias no
habitat. Menos custosa que a restallrafao,' sup5e trabalhos delica-
dos que, freqiientemente, desencorajam as ac;5es do poder publico
(Choay e Merlin, 1988: 573).
A Carta Italiana del Restauro (1972), nas instruc;5es para tu-
tela dos centros hist6ricos, definiu como uma das principais
ac;5es a reestruturafao urbanistica. A carta aborda especialmente as
relac;5es, sobretudo do ponto de vista funcional, tecnol6gico e de
'uso, entre 0 territorio, a cidade eo centro historic05•
4. As grandes obras vi:irias ocorreram entre as d6cadas de 1950 e 1970 em v:irias ci-
dades, e a atitude foi semelhante it dos pIanos de n:nova9ao, qual scja, a destrui9ao
da morfologia urbana existente, com rcm09aO dos moradarcs.
5. Centro hist6rico € um tenno que surgiu na EurOP<l,ande inumeras cidades pos-
suem sua parte mais anrig" intra-mUfos, caracteriz<llldo seu nudeo original, com
E possfvellocalizar, nesse tempo, a origem dos pIanos de es-
trllturafao urbana. Tomando como exemplo 0 Rio de Janeiro, na
decada de 1980, esses pIanos atendiam a reivindicac;6es das co-
munidades quanto as questocs especulativas, de uso, protec;ao
ambiental e cultural, envolvendo 0 sistema viario e os pIanos de
massa em uma escala de bairr06•
Em 1995, surgiu um novo documento, a Carta de Lisboa,
com a intenc;ao de nomear tipos de intervenc;;ic e ja direcionada
para os temas urbanos, mas com confusocs scmclhantes as outras
que a precederam. Estedocumcnto definiu 0 conceito de ren.ova-
fao, para ser aplicado em tecidos urban os degradados, demolmdo
estruturas l11orfol6gicas c tipO]{lg'icas, substituindo-as pOl' tipolo-
gias arquitCl(')nicas COl1tcmpor;\nC;ls. Curiosall1cnte, cssa c1efini-
~ao toi inclufcla como uma das tecnicas utilizadas para a 1'eabilitafao
urbana. Na Carta, assim san clescritos os termos:
Reabilitm:;ao urbana - E uma cstrategia de gcstao m bana que procu-
ra requalificar a cidadc cxistcntc atrav<:s de intervcn<;6cs multiplas clesti-
nadas a valorizar as potencialidac1es sociais, economicas e funcionais, a
fim de melhorar a qualidade de vida clas populac,:6es residentes; isso exige
o melhoramento das condi<;6es Hsic<,s do parque construfdo pela sua rea-
biIita<;ao e instala<;ao de equipamentos, infra-estruturas, espa<;os publicos,
mantenclo a iclentidadc e as caracterfsticas da ;lrea da ciclacle a que clizem
respeito; revitaIiza<;ao urbana - engloba opera<;6es cIestinaclas a reIan<;ar a
vida economica e social cle uma parte cla cidacle em clecaclencia. Esta no-
<;ao, proxima cla reabiIita<;ao urbana, apJ;ca-sc a toclas as zonas cia cielacle
sem au com identiclaclc e caracteristiC'lS marcaclas.
A Carta de Lisboa apresenta 0 conceito de reabilitafao como
uma estrategia de gestao llrbana, incluzindo a comprecnsao de seu
tipologia espedfica. Esse tenno universalizou-se e nao est:i mais obrigatoriamen-
te ligado a tipalogia arquitet6nica-urbanistica que 0 inspirou.
6. Phmo de RestnltLJrayaO UrlHllLl (PElI), Rjo de Janeiro.
significado como sinonimo de 7W]ualificafao. Em seguicla, aproxima
esse conceito da definit;50 de revitalizofao. 'I:1nto em urn vocabulo
como em outro, est,l explicita a importiincia de trazer novas ativi-
cladeseconomicas e, com elas, dar nova vida as areas decadentes da
cidade. A diferen~a entre os dois termos e 0 fato de 0 primeiro exi-
gir a manuten~ao da identidade e das caracterfsticas, e 0 segundo
admitir que esse mesmo procedimento possa ser adotado em zonas
com ou sem identidade. Em nenhum momento, porem, parece ha-
ver uma preocupa~do de definir 0 significado de identidade: seria
esta a qualidade de identico? Ou a rela~ao de igualdade valida para
todos os valores das variaveis envolvidas? (Ferreira, 1975: 738) Se
for possfvel nao encontrar identidades e caracteristicas pr6prias de
urn lugar, como dar vida ou nova vida aquele espa~o?Teria esse lu-
gar valor, a ponto de merecer receber uma intervenc;ao criteriosa do
tipo reabilittlfao?
No limiar da virada do seculo xx, comes,:ou-se a falar do ter-
mo regenerafao, ligado a uma metMora que compara a trama de
urn tecido da pele ao tecido urb;lno. A regeneraVlo seria urn pro-
cesso de recupera<;ao do tecido da pele, sem, no entanto, rompe-
10. .i:\1aisuma vez, faz-se presente a ideologia da recuperac;ao, do
trazer nova vida e saucle para 0 tecido urbano, no qual se aplica-ria a a9ao da regelleraf{lo. Este termo foi utilizado em v;irios pIa-
nos, como na reconstru~ao das docas de Londres, onde grandes
complexos arquitetonicos foram edificados ao longo da decada de
19807, sem qualquer preocupaC;ao de continuidade com 0 tecido
urbano remanescente. A entrada dessa nova metafora no denco
de nomes para qualificar as reurbaniza<;oes mais recentes esta ge-
ralmente associada ao mcdelo economico neoliberal, pautado na
privatizas,:aode areas publicas e de gestao do ambiente por meio
de parcerias, nas quais 0 capital privado prevalece. No caso da 1"e-
7. Ver rnais informac;6es sobre a reconstnlC;~O cbs dOC1Slondrinas em v.1sconcellos,
Lelia M ..de. 'A nova ~lrq\litetllra cbs <iocasdc Lonclrcs: par:l qucm c para que" In:
Revista Sinoj!Jes, S~o Paulo, n. 25, 19C)6.p. 33-47.
gme1-ofao, mais uma vel, fica implfcita uma intens,:aode recupera-
<;aoeconomica, tao presente quanto em outros projetos, cuja no-
menclatura ja foi mencionada (revitaliza~ao, reabilita~ao etc.).
Foi visto que a no<;ao de arquitetura estende-se da tradicio-
nal obra isobela ao ambiente urbano, aberto, crescente e jamais
completo. A preocupa<;ao com a ecologia evidencia, na decada de
1990, a discussao sobre meio ambiente e 0 desenvolvimento sus-
tentavel (Carta clo Rio, 1992), buscando urna coesao de concei-
tos universais relativos ao sistema ambiental. Essa compreensao
rompe fronteiras territorjais e elabora defini<;oesprecisas relacio-
nadas com a prcserV{f(;ao e a conservafao.
Para os amhientalistas, parece existir urn consenso de que a
pnservafao seja uma as,:aoglobal voltada a proter;ao de urn bem
cultural na sua totalidade, contra qualquer dano ou degradar;ao,
por meio de instrumentos legal J. No vocabulario do meio am-
biente, a conservacao e a utiliza~3 ) racional de urn bern, garantin-
do sua explorar;ao economica. Essa a<;ao,hoje, traduz-se como
desenvolvimento sustendvel.
A conservafoo, 110 que se refefc aos bens culturais, e urn termo
abrangentc para dcfinir os tipos de medidas destinadas a manter
ou restabe1ecer a saude' ffsica de organismos edilfcios. Existem
varios graus de intervenr;ao conservativa; 0 mais leve e a manu-
ten(ao preventiva, e 0 mais sofistic<ldo, a restaura(ao8•
A restaumfao e considerada pe10s especialistas uma opcrar;ao
de carater excepcional, aplicada sornente em ediffcios ou conjun-
tos particularmente prestigiados. Obedece a rigorosos preceitos
que visam "[...] colocar a obra em eficiencia, facilirar sua leitura
8. Na Carta de Veneza (1964), encontra-se uma definiqao com significado amplo
para diferenciar os'terrnos restauraqao e conserva<;ao: "A conserva<;ao implica urna
atividade permanente"(art. 4') e "a restaura<;ao e urna operac;ao excepcional" (art. 9'),
ou seja, a restauraQiio C urn caso limite de conservac;iio (Diaz-Berrio e Orive, 1974).
POI' sua vez, sah'agu;lnla c qualqucr providcncia conservativa que J1~O implique
a intervenr;~o din.'ra :,nhre a ohra, ponanto, bastante semelh,lnte ao conceito de
preservac;iio.
e transmiti-Ia integralmente ao futuro [...]" (Carta Italiana del
Restauro, 1972).
Na Carta de Lisboa, dois graves equivocos contradizem os
procedimentos e instruc;oes ante1'io1'mente estabelccidos. Ao ad-
mitir "reposic;ao da totalidade", implica a criac;ao de um falso his-
t6rico e, ao selecionar "partes correspondentes aos momentos
mais significativos de sua hist6ria", desconsidera, tl priori, que to-
da durac;ao de uma obra e a sua hist6ri89. AGnaI, toda cidade e
hist6rica, pois ela e a materializaC;ao do processo hist6rico; e im-
possivel nao deixar de atribuir juizo de valor ao escolhe1' as areas
para intervenc;oes. A Carta de Petr6polislO nomeia a ,1rea escolhi-
da de area critica operacional, ct>mo uma forma de reeortar 0 espa-
c;o a ser objeto de um plano, mas nao const~}m expJicitados os cri-
terios de selec;ao, sejam eles quais forem.
Ao refletir sobre os significado.s dos divers os tenllOS analisa-
dos, e possivel delinear algumas considerac;oes.
Em primeiro lugar, e fundamental recupcra1' as hip6teses
apontadas por Foucault sob1'e a medicina urbana, no inicio deste
trabalho. Os procedimentos utilizados na P1'atica do urbanismo
obedecem a mesma sequencia do t1'atamento terapeutico entao
proposto: 0 isolamento (confinamento), ou seja, 0 recorte do ob-
jeto de estudo; a anamnese (hist61'ia), a observac;ao, 0 exame e a
analise dos dados; 0 diagn6stico e, finalmente, a aplicac;ao do re-
medio ou terapia. Segundo Santos (1988' ')1), "[ ...] e nesse pe1'io-
do que se da a evoluc;ao modeLumente bem-suceclida cia medici-
na, alc;ada de parente maldita das feitic;arias a saber legitimado.
9. "Sao proibidas remo~6es ou demoli<;:6esque cancelem a passagcm da obra atraves
do tempo, salvo limitadas altera~6es dcturp Intes" (Carta del Rcstallro, 1972, art. 6",
item 2).
10. "Artigo 1". Entende-se como Sitio Hist6ri :0 Urbano (SHU) 0 espa<;:oque conceu-
tra testemunhos do fazer cultural da cidaoe em suas diversas manifesta<;:6es. Esse
sitio hist6rico urbano cleve ser entcndido em seu scntido opcr~ld()llal de '.lrea criti-
ca', e nao por oposi~ao a espa~os nao-hist6ricos da cidade, jS que toda ddade e um
organismo hist6rico." (Carta de Petr6polis, 1987).
Confo1'me demonst1'am Foucault (1972) e Illich (1987) [...] regis-
t1'a-se uma verdadeira 'corrida do ouro' cientfflco". A observac;ao
do autor confinna a hip6tese de que 0 metodo cientifico postu-
Jado pela medicina serve como paradigma para ()Utn's campos do
conhecimento que se pretendem reconhecer como ciencia, tais
como 0 urbanismo e a restallrac;ao do patrim6nio cultural.
Croce (apud Abbagnano, 1982: 55) designa de anamnese 0
processo de conhecimento hist6rico e as Fontes da Ilist61'ia, uma
chamada a recordac;ao.
Quando a renovafao urbana abre espac;o para a l~eabilitafiio(re-
vitalizac;ao, regenerac;ao etc.), as praticas urbanisticas, seguindo 0
metodo cientifico, incorpora11l essa an,1lise inicial (anamnese),
reconhecenclo 0 valor da hist{lri,l 11<1 cidadc c do hOlllclll cnquan-
to ser cultural; constatac;oes ate entao desnecess~irias pelas ac;oes
das terms arra.wdas.11
Essas praticas passam a ser identiflcadas na pr6pria termino-
logia que aponta para "vol tar a" refazer uma rcla<;ao temporal. 0
prefixo RE comec;a a ser e11lpregaclo nas novas definic;6es, 1'epre-
sentando referencias explicitas as preexistencias. 0 RE e uma es-
trategia que considera (ou finge considerar) a inclusao do tempo
na ,1l1alise do espaf'o, sern, contudo, explicitar U11lsignificado e
uma metodologia panl tal. Aparecem, nes~;e caso, 0 modismo
oportunista, as imprecisoes de .::Jefini<;aoe cia propria metodolo-
gia a ser adotada como elementos promocionais de mar/eeting ur-
bano. Misturam-se os conceitos, pois esses foram transportados
de urn campo do conhecimento para outro.
11. A exprcssao renova~ao urb,ma rambcm varia conformc a lingua e a pniti-::a urba-
nisrica de cad'i pais. Segllndo Va!. C JalJlIcs (2001), cssa pr<itiCIna Alemanha "[...)
compreende 0 processo permanente de manutcn<;:ao do ambieme edificado em
boas condi<;:6esde uso, implicando, eventualmcnte, mas r..10 necessariamente, re-
constrll~ao [.... )". Nao sed explorad'l essa interpreta~ao, lima vez que tal expres-
SaG tem sido cntellclida no Brasil eomo descrita ao longo do texto, ou seja, com 0
sel1tido de demo1i~ao de tecidos antigos e substitui<;::iopOI'novos.
Implfcita em todos os REs, est,l a manutenc;ii'o da cultura
local. Seria essa cultura posslvel de ser mantida, se 0 proprio con-
ceito de cultura leva a entcnclc-la como um proc~sso dinamico e
muravel no tempo?
Portanto, nao se pode esperar que quaisquer desses pIanos
represente uma intervenc;ao indolor. Em outras palavras, 0 parai-
so prometido relos p1:1nosde revit;lJiza<;~o,reestrutura<;ao, reahi-
litac;ao etc. segue pelo curso ciahistoria pOl'meio cleinumeras in-
junc;6es politicas e economicas, as quais esbarram com quest6es
importantes,como as cia propriedade da terra e do capital, nem
sempre equacionaclas de acordo com a visao m,igica e 0 discurso
facil de que ltm projetc pod era garantir uma nova vida para uma
determinada area.
E fato, pOl'Olltro lac!o,que a area onde se objetiva uma inter-
venc;ao pode ser consiclcr,1(lade mclhor ou pior quaJidade, con-
forme 0 juizo de valor que a ela se atribui. Esse valor pode variar
no tempo. Moral' no centro e born? E junto ii area portuaria?
Melhor moral' na peri feria? Na beira ciapraia? Claro que so tais
perguntas seriam temas de diseussao de varias naturezas. 0 que
se discute neste texto e 0 modo como, nos pIanos de intervenc;ao
nos quais venha a caber 0 prefixo RE, estao sendo atribufdos es-
ses jufzos de valores f:' (~Llaisseriam os metodos de projetos com-
pativeis. Como, pOl'meio desses pIanos, sera realmente possfvel
a manutenc;ao da cultura local e da fixac;aodos seus habitantes?
As varias nomenclaturas dadas aos pIanos implicam uma
grande confusao de cOl1ceitos.Concomitantemente, 0 poder pu-
blico parece colaborar com essa confusao, legitimando novos
termos para manter 0 privilegio de definir quais as culturas a
serem selecionadas e valorizadas, associando 0 tipo de interven-
c;aoao marketing politico.
Afinal, qual e a cultura que vale mais?
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