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A saga dos anestesicos

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167Clin. Pesq. Odontol., Curitiba, v.2, n.2, p. 167-168, out/dez. 2005
História Functional occlusion and orthodontics: a contemporary approach
História/History
A SAGA DA ANESTESIA LOCAL
Wilson Denis Martins1
A Odontologia está comprometida profundamente tanto com a descoberta da anestesia geral (Dr.
Horace Wells, 1844) como com as primeiras infiltrações anestésicas com soluções de cocaína (Dr. Richard
John Hall, 1884). Hall realizou o primeiro bloqueio do plexo infra-orbitário utilizando 0,5 ml de uma
solução a 4% de cocaína, para restauração de um incisivo superior. Dr. William Halsted foi o primeiro a
realizar um bloqueio troncular mandibular, para atuação odontológica. Em viagem pela Europa, Hasted
demonstrou para o Dr. Thomas, famoso cirurgião-dentista austríaco, a técnica de injeção de cocaína para
anestesiar o nervo alveolar inferior.
Estes acontecimentos sucederam rapidamente a extraordinária descoberta científica das proprie-
dades anestésicas da cocaína pelo oftalmologista alemão Carl Koller que, durante o verão de 1884, realiza-
va experiências em animais e em alguns de seus pacientes.
O uso de substâncias químicas para aliviar a dor teve origem remota na América do Sul, entre
nativos do Peru, que mascavam folhas de uma planta indígena, a Erythroxylon coca. Das várias espécies
do gênero, a Erythroxylon coca contém os mais altos índices do alcalóide em suas folhas. Isolar o princípio
ativo da folha de coca, entretanto, não foi tarefa fácil. Somente em 1860 o químico alemão Albert Niemann,
em seu laboratório em Gottingen, conseguiu isolar o princípio ativo, que nomeou cocaína. (1). Niemann
fez referências a um efeito do novo alcalóide, o “amortecimento” da língua.
Deve-se, porém, creditar o primeiro estudo científico experimental a um pesquisador sul america-
no, o peruano Dr. Thomas Moreno y Maiz, cuja tese de doutoramento foi publicada em Paris (2). Demons-
trou que a injeção de cocaína causava insensibilidade em ratos, rãs e porquinhos-da-índia. Entretanto, o
pesquisador peruano não mencionou sua possível aplicação em cirurgia (!). Mais tarde, em 1880, o médico
russo Basil Von Anrep, na Universidade de Wurzburg, realizou experiências em animais e, em especial,
auto-experimentações. Injetou intradermicamente, em seu próprio braço, pequena quantidade de solução
de cocaína, notando que a área ficava insensível. Recomendou, em publicação, a cocaína como anestésico
cirúrgico. Estes precursores prepararam o campo para a famosa apresentação do trabalho de Carl Koller,
durante um Congresso de Oftalmologia em Heidelberg, em setembro de 1844. A apresentação foi feita,
excepcionalmente, por Josef Brettauer, uma vez que Koller não pôde comparecer. Relatou-se uma cirurgia
do glaucoma, com utilização de anestesia tópica com cocaína. O enorme impacto científico foi instantâ-
neo. Koller publicou seu trabalho em outubro, na Sociedade Médica Vienense (3).
O médico novaiorquino Dr. Henry Noyes, presente ao Congresso de Heidelberg, levou a grata
descoberta para a América, elaborando relatório que foi publicado no Medical Record, de Nova Iorque, em
11 de outubro de 1844. Seguiram-se publicação na prestigiosa Lancet (4) e, rapidamente, ampla divulga-
ção da descoberta de Koller em mais de 60 artigos, em Inglês e Francês.
Neste momento, entraram em cena os Drs. William Halsted e Richard Hall, realizando aos
primeiros bloqueios tronculares, acima referidos no início deste ensaio, ambos em pacientes odontológi-
cos (5).
1 Doutor em Odontologia, Cirurgião bucomaxilofacial, Professor da PUCPR.
168 Clin. Pesq. Odontol., Curitiba, v.2, n.2, p. 155-163, out/dez. 2005
Marco A. L. Feres; Marines Q. Portella; Renata C. L. Feres
O uso da cocaína, entretanto, não estava
isento, na época, de efeitos colaterais importantes,
uma vez que era usada em concentrações excessivas
(em torno de 30%). Ora, estas concentrações fatal-
mente levaram a severas intoxicações sistêmicas, sen-
do que 13 óbitos foram causados, em período curto
de tempo. Estes acontecimentos “esfriaram” um pouco
o entusiasmo pela cocaína injetável na época, levan-
do os profissionais a optar pela segurança do óxido
nitroso e mesmo do éter, já bastante desenvolvidos
após as descobertas de Wells e Morton, ainda em 1844-
45.
Estes êxitos letais nos primórdios do uso
da cocaína levaram vários pesquisadores à procura
de maior segurança no uso local do alcalóide. Pode-
se citar Oberst, Pernice, Schleich, Reclus (francês, que
reduziu a concentração para até 0,5% e aplicou em
pulpotomias e extrações). Novamente a odontologia
presente na saga.
Nos Estados Unidos, avulta o trabalho do
grande Dr. William Halsted, que, como referido, foi
o primeiro a realizar anestesia troncular mandibular
com solução de cocaína. É por demais conhecida,
entretanto, a história de Halsted, que por desfortuna
tornou-se adicto à cocaína e não conseguiu publicar
seus estudos de redução de concentração do anesté-
sico (5, 6).
Inovador cirúrgico - talvez um dos maiores
de todos - o Dr. Halsted estabeleceu o treinamento
cirúrgico para médicos nos Estados Unidos e foi pio-
neiro no uso de luvas de borracha em operações.
Suas razões para a introdução das luvas foram pro-
vavelmente as menos científicas de todas. As luvas
foram desenvolvidas pela Goodyear Rubber Com-
pany, a pedido de Halsted, para proteção das mãos
de sua enfermeira cirúrgica, Caroline Hampton, sua
futura esposa, contra a ação de produtos químicos
usados na preparação cirúrgica. O século XX teste-
munhou, assim, uma volta de 360o nos motivos pelos
quais cirurgiões usam luvas de borracha (5).
Originalmente, as luvas foram destinadas à
proteção do pessoal, da equipe cirúrgica; subseqüen-
temente, para proteção do paciente contra possível
contaminação pelas mãos dos cirurgiões; e, finalmen-
te, nos dias atuais, as luvas são utilizadas principal-
mente para proteger os profissionais de possíveis
contaminações pelo sangue de pacientes.
A adição de Halsted à cocaína foi objeto de
vários estudos e publicações, dada a importância o
eminente médico americano na história da cirurgia
(foi o primeiro professor de cirurgia no famosa Uni-
versidade John Hopkins). Na realidade, grande parte
da carreira de Halsted decorreu como adicto da co-
caína e especula-se o quanto poderia ter alcançado
cientificamente, além de sua extraordinária contri-
buição para a evolução da moderna cirurgia, se não
tivesse adquirido o vício (6).
Após dominar o efeito colateral da cocaína
(toxicidade pela concentração excessiva), mesmo
assim a Ciência partiu para a busca de um sucedâ-
neo menos tóxico. A novocaína apareceu em 1905,
desenvolvida por Henrich Braun, tornando-se rapi-
damente o anestésico padrão. Rebatizada como pro-
caína nos EUA (1917), seus efeitos eram de curta
duração, requerendo doses muito altas de adrenali-
na. Somente em 1946 Lofgren e Lundquist publica-
ram os resultados de seus estudos de um derivado
da xilidina, ao qual denominaram xilocaína, anesté-
sico local mais potente, mais seguro e com menos
potencial alérgeno do que os antecedentes (5). Em
seguida, outros compostos amino-amidas foram de-
senvolvidos, como a mepivacaína (Ekestan, 1957),
prilocaína (Lofgren e Tegner, 1969), etidocaína (Ada-
ms, 1972), articaína (Winther, 1972), praticamente
relegando à História o uso da cocaína e dos amino-
ésteres na anestesia local.
Referências
1. Billman G. Mechanisms responsible for the
cardiotoxic effects of cocaine.
 The FASEB Journal 1990;4:2469-2475
2. Moreno y Maiz T. Recherches cliniques et
physiologiques sur l´erythroxylum
 coca du Perou et la cocaine. Paris:Luis Leclerc
Librairie, 1868.
3. Koller C. Historical notes on the beginning of
local anesthesia. J Am Med Assoc
 1928;90:1742-1743.
4. Koller C. On the use of cocaine for producting
anesthesia of the eye. Lancet 1884;2:990-992.
5. Calatayaud J, González A. History of the
developmentand evolution of local anesthesia
since the coca leaf. Anesthesiology
2003;98:1503-1508.
6. Nunn DB. Dr. Halsted´s addiction. John Hopkins
Advanced Studies in Medicine 2006;6:106-108.

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