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39º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT03 AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A Nova Classe Média brasileira: um objeto de disputas político- ideológicas no contexto do Reformismo Fraco no Brasil Jana Martins Leal 2 1. Introdução A tese da Nova Classe Média1 (NERI, 2008a, 2008b, 2011) no Brasil nunca foi um debate estritamente acadêmico. Em 2008, quando os resultados das pesquisas que mensuravam a desigualdade de renda no Brasil produzidas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) foram divulgados, a tese da FGV de que a classe média teria se expandido no Brasil ganhou mais espaço na mídia do que os resultados do IPEA. Muitos jornais e revistas divulgaram que o Brasil teria se tornado um país de classe média, endossando então a tese da Nova Classe Média. Concomitantemente diversos intelectuais e artistas começaram a opinar sobre o tema, abrindo-se, portanto, espaço para um verdadeiro debate público no país. Diversos intelectuais e pesquisadores buscaram se posicionar a favor ou contra a ideia da NCM. Muitas críticas foram dirigidas à tese. Uma delas dizia respeito aos parâmetros utilizados na definição de classe e de classe média que a fundamentavam. O modelo de estratificação sobre o qual se baseou a ideia da Classe C utilizou basicamente a renda e o consumo como parâmetros centrais para a divisão das classes sociais. Este aspecto foi alvo de críticas por parte de muitos pesquisadores que alegavam que, em função da utilização exclusiva desses parâmetros para a definição da noção de classe, a tese apresentava um caráter economicista (SOUZA, 2010, 2013; POCHMANN, 2012). Além disso, a diferença entre as faixas de renda era o que separava umas classes das outras no modelo. As classes A, B, C, D e E eram definidas a partir de determinados valores estipulados de forma aritmética e a classe C expressava o conjunto de pessoas que possuíam literalmente a renda média da população. Para muitos intelectuais estes aspectos demonstravam que o modelo utilizava uma noção estratificada de classe que não dialogava com as definições sociológicas e utilizava valores de renda arbitrários para sua definição (SOBRINHO, 2011; SCALON & SALATA, 2012). Por outro lado, o aspecto ideológico que se evidenciou na tese também instigou críticas nessa direção. Segundo Jessé Souza (2010, 2013), a tese da NCM significava a expressão dos ideais liberais que geravam a invisibilidade dos conflitos e lutas de classes que realmente perpassavam a realidade de classes no Brasil. Debaixo da tese da NCM 1 Ao longo do texto, a sigla NCM será utilizada para designar o termo Nova Classe Média. 3 estava encoberta a ideia de que o capitalismo era “bom”, já que, por meio da inclusão via mercado, seria possível diminuir a pobreza. Este era, portanto, mais um aspecto que deslegitimava a NCM. Apesar da polêmica diante do tema, a tese da Classe C galgou mais um degrau e se transformou em assunto de políticas públicas. Em 2011, a ideia saiu do papel e transformou-se em assunto estratégico do governo Dilma Rousseff. Foram realizados diversos estudos no governo sobre a população inserida nesta nova camada social que resultaram em cartilhas para promover as políticas para esse setor. Em pouco tempo a NCM deixou de ser apenas uma “constatação” econômico-social da realidade brasileira e assunto de debate público para se transformar em objeto de política pública. Diante do caráter público e da dimensão política que permeava o tema, parecia ser quase um dever ideológico se posicionar a favor ou contra a Classe C. Nesse sentido, teriam os debates em torno da NCM se transformado mais numa disputa ideológico- política entre os autores que se debruçavam sobre o tema do que num debate propriamente científico? O que estaria em jogo nessa disputa? E o que representava, em termos heurísticos, este suposto atrelamento da dimensão ideológica e política ao debate? Estas são, portanto, as questões que norteiam este trabalho. Em função disso, investigar as relações entre ideologias e conhecimentos presentes nos debates acerca da Nova Classe Média brasileira é uma das tarefas desta pesquisa. Por meio de uma hermenêutica, ela procura demonstrar as relações entre texto e contexto, isto é, entre os posicionamentos teóricos dos autores inseridos nesse debate e as ideologias subjacentes a eles, apontando os condicionamentos ideológicos de suas posições. Dessa forma, este trabalho busca apresentar não só os horizontes intelectuais nos quais os autores estão inseridos e que condicionam a produção de seus conhecimentos, mas as disputas ideológicas que subjazem ao debate da Classe C presentes no contexto político contemporâneo do Brasil. Em termos metodológicos, este trabalho parte das contribuições teóricas da Sociologia do Conhecimento, como desenvolvida por Karl Mannheim (1979). Com base na ideia de que as ideologias são estruturas condicionadas socialmente e que, ao mesmo tempo, condicionam sistemas de conhecimento distintos, legítimos e relacionais, este trabalho realiza uma Sociologia do Conhecimento, isto é, investiga os condicionamentos 4 sócio-políticos que estão por trás do desenvolvimento da tese e dos debates que giram em torno da Nova Classe Média, destacando as ideologias que orientam o posicionamento dos autores e demonstrando os embates político-ideológicos que subjazem ao tema. A partir disso, realiza-se uma classificação ideológica dos autores inseridos no debate de acordo as orientações ideológicas que condicionam a sua produção teórica, buscando construir um subsídio analítico que corrobore a ideia de que as discussões acerca da NCM estão mais próximas de uma confrontação ideológico-política do que de um debate científico. Por conseguinte, procura-se defender a hipótese de que, mais do que um objeto político em disputa, a sustentação teórica da NCM expressa a defesa do Reformismo Fraco no Brasil. Por fim, procura-se refletir como essas disputas ideológicas impõem limites heurísticos ao debate e como novas abordagens poderiam ser produtivas para o tema em questão. 2. Princípios metodológicos: a Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim e os condicionamentos ideológicos do trabalho científico Karl Mannheim desenvolveu e apresentou a Sociologia do Conhecimento como um dos ramos da Sociologia. Em seu livro Ideology and Utopia (1979), Mannheim defende que todo conhecimento é socialmente determinado e que a missão da Sociologia do Conhecimento consiste em estabelecer relações entre o conhecimento e a existência. Segundo Mannheim, os conhecimentos são relacionais. Possuem relações com a realidade empírica daqueles que o produzem, assim como, com outros conhecimentos produzidos. Isso significa que o posicionamento social daquele que observa a realidade para produzir conhecimento é fundamental na produção deste. Ele influencia na produção deste. O condicionamento social pode ser ao mesmo tempo uma oportunidade para produzir determinado conhecimento, mas também um fator limitador. Nesse sentido, se, por um lado, o conhecimento necessita de uma conjuntura social e política que favoreça a sua produção, por outro, é impossível que o observador ou o pensador tenha uma visão completa de um problema, uma vez que a própria realidade ao condicioná-lo socialmente, limita sua visão. Nesse sentido, compreender o posicionamento social dos produtores de conhecimento e as ideologias que mobilizam suas teorias é um primeiro passo para 5compreender a produção do conhecimento. Isso é uma das tarefas que a Sociologia do Conhecimento busca realizar. Ela se esforça para entender as ideologias como estruturas condicionadas socialmente e que condicionam sistemas de conhecimento distintos, legítimos e relacionais. Assim, compreender as ideologias que mobilizam determinadas teorias, em relação umas com as outras, ou seja, a partir de um ponto de vista relacional, é um primeiro passo para possuir uma visão da totalidade da produção do conhecimento. Totalidade que, segundo Mannheim, não é uma visão imediata e eternamente válida da realidade, nem uma visão estável, mas um processo contínuo de expansão do conhecimento, ou seja, é um esforço para a expansão do horizonte visível. Então, este trabalho, sob a luz da Sociologia do Conhecimento e o arcabouço teórico de Mannheim, realiza uma análise ideológica dos posicionamentos teóricos dos autores que se debruçaram sobre as discussões acerca da Nova Classe Média, a partir do atributo condicionante que as ideologias estabelecem em todo o processo de produção de conhecimento e, portanto, sem julgamentos de valor. A ideia é propor uma classificação dos autores em correntes ideológicas, como forma de averiguar certos determinantes ideológico-sociais que condicionam o debate. Desta forma, espera-se observar os horizontes intelectuais nos quais estão inseridos, não para averiguar o caráter deformante ou falsificado de suas ideias, mas para perceber o caráter relacional de suas teorias, bem como certos limites intelectuais do debate em questão. 3. As divergências teóricas entre os autores que discutem a tese da NCM A análise de uma amostra da literatura que discute o tema permite constatar o dissenso entre diversos intelectuais brasileiros em relação à legitimidade concedida à NCM. Alguns autores acreditam que a NCM é legítima, porque o aumento da renda e do consumo de setores populares significou sua mobilidade social (NERI, 2008a, 2008b, 2011; MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; SOUZA & LAMOUNIER, 2010). Para outros, esta nova classificação social não é legítima, uma vez que a configuração de determinada classe social e da mobilidade social devem ser analisados sob a luz de outros fatores sociológicos (POCHMANN, 2012, 2014; CHAUÍ, 2013; SOUZA, 2010; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; QUADROS et al., 2013). Para estes, a realidade social seria muito mais complexa, para ser interpretada e classificada apenas com base na 6 renda e no consumo. A legitimidade ou não da NCM é, portanto, o ponto inicial de divergência entre os autores. Contudo, é possível verificar a existência de outros pontos de divergência entre os autores. Um deles é a forma como explicam as mudanças econômico-sociais que ocorreram recentemente no Brasil2. Há, grosso modo, duas tendências na forma de explicar essas mudanças3. A primeira tendência enfatiza o mercado ou a ordem capitalista. Estes seriam a força motora das transformações que ocorreram nas camadas populares brasileiras nos últimos dez anos (SOUZA & LAMOUNIER, 2010; SOUZA, 2010.4). Vale ressaltar que essa tendência explicativa perpassa a argumentação tanto de autores que aparentemente são favoráveis (SOUZA & LAMOUNIER, 2010) à NCM quanto daqueles contrários a ela (SOUZA, 2010). Ou seja, ela é comum a autores que são a favor da NCM, como, para outros que são contrários a esta classificação. Um fator apontado como promotor dessas mudanças no país seria a formação de cadeias globais de produção. As empresas transnacionais, com a produção crescente de bens e serviços em cadeia global, teriam induzido à diminuição de preços de produtos industrializados e destes serviços no Brasil, levando ao barateamento dos produtos industrializados como geladeiras, televisores, celulares produzidos por essas multinacionais e, por consequência, à intensificação do consumo das camadas populares. Essas cadeias globais de produção teriam promovido, portanto, uma sociedade low cost, da qual o Brasil não estaria à margem e, sobre a qual, se construiria o pilar do aumento do consumo popular. (POCHMANN, 2014) Um segundo elemento destacado, nesta tendência, seria o recente crescimento econômico dos países emergentes. A prosperidade da economia mundial das décadas de 1990 e 2000, antecessora da crise econômica internacional de 2008-2009, seria um fator 2 Entende-se por mudanças econômico-sociais recentes no Brasil as transformações mais significativas que, segundo a opinião de cada autor, ocorreram, em termos econômicos e sociais nas camadas populares brasileiras ao longo dos últimos 10 anos. Essas transformações, podem se referir, portanto, ao aumento da renda e do consumo dos setores mais pobres da população e/ou às mudanças na configuração da classe trabalhadora brasileira. 3 Evidentemente há diferenças no tipo de argumentação dos autores, entretanto, o que se pretende ressaltar são as características comuns, as tendências gerais. 4 É possível inserir também Pochmann, M. e Chauí, M. a esta tendência, já que atribuem um peso explicativo ao sistema capitalista significativo para explicar as transformações no Brasil. Entretanto, não é possível inseri-los de forma exclusiva a esta tendência, visto que, numa comparação entre as duas tendências, estes autores possuem características mais fortes da segunda tendência. Assim, estarão inseridos na próxima tendência 7 fundamental para se compreender o crescimento econômico dos países emergentes e o aumento do poder de compra dos setores mais pobres de sua população. O Brasil, inserido nessa conjuntura, teria, se modificado internamente, em função das mudanças econômicas internacionais que teriam privilegiado, circunstancialmente, os países emergentes e, dessa forma, a crescente medianização dessas populações. (SOUZA & LAMOUNIER, 2010) Por último, outro fator destacado como o epicentro das ondas de mudanças no país seriam as transformações na configuração do capitalismo fordista para o toyotista, compreendidas também como mudanças do “capitalismo duro” para o “capitalismo flexível” (SOUZA, 2010). Cabe destacar, entretanto, que as transformações às quais Souza se refere, não são o aumento da renda e do consumo dos setores populares, mas, as transformações na configuração da classe trabalhadora. A crescente incorporação da lógica capitalista pelos trabalhadores, típica do capitalismo flexível, teria engendrado, no Brasil, assim como em outros lugares do mundo, transformações na lógica de controle sobre os trabalhadores. O controle sobre estes se daria, hoje, em grande parte, sob um regime mais flexível. Essas mudanças do sistema capitalista indicariam, na realidade, suas continuidades. Seriam transformações superficiais da macroestrutura do capital que expressariam a permanência da essência exploratória do sistema capitalista. Deste ponto de vista, não haveria espaço para pensar o aumento de renda e do consumo dos setores populares que acontece no Brasil como uma mudança econômico-social significativa. O que existiria, de fato, seria uma classe que permaneceria na condição de trabalhadora, entretanto, sob uma nova configuração e, por isso, poderia ser entendida como nova classe batalhadora (SOUZA, 2010). A segunda tendência enfatiza não o mercado ou a ordem capitalista, mas, o Estado para explicar as transformações econômicas e sociais recentes no Brasil (CHAUÍ, 2013; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011; POCHMANN, 2012, 2014; QUADROS et al. 2013). É importante lembrar que nessa segunda lógica argumentativa, na qual há uma ênfase sobre o Estado em detrimentodo mercado, há autores que aceitam a classificação da NCM (MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011), 8 como aqueles que discordam dela (CHAUÍ, 2013; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; POCHMANN, 2012, 2014; QUADROS et al, 2013), como ocorre também na primeira tendência. Nesta tendência, destacam-se as políticas do governo Fernando Henrique Cardoso e as políticas dos governos Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff como fatores fundamentais para a compreensão das mudanças recentes nos setores populares do país. Por um lado, a política de estabilização da moeda (Plano Real) do governo Fernando Henrique Cardoso teria permitido a redução da inflação, preservando o poder de compra dos salários e a estabilização da economia (COSTA, 2013; MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011). Estas políticas de FHC seriam elementos importantes para a explicação da ascensão de renda dos mais pobres, já que teriam permitido o planejamento e crescimento econômico a longo prazo, fundamental para a concessão de crédito às camadas populares. Por outro lado, a política dos governos Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rouseff, em substituição à política neoliberal de FHC, teriam associado crescimento econômico à redistribuição de renda no país. O retorno do crescimento econômico, agregado a taxas reduzidas de desemprego, à política de valorização do salário mínimo e a políticas assistencialistas, como o Bolsa Família, teriam permitido o aumento da renda e do poder de compra das camadas mais pobres do país. A base inferior da pirâmide social, em relação aos mais ricos, teria aumentado seu peso de participação na riqueza do país, permitindo, portanto, a diminuição das desigualdades de renda no país. Assim, as políticas redistributivas destes governos seriam fatores fundamentais para explicar o aumento do crédito e do consumo por parte de setores populares (CHAUÍ, 2013; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011; POCHMANN, 2012, 2014; QUADROS et al, 2013). 4. A classificação teórico-ideológica de uma amostra da literatura acadêmica: a NCM como resultado do Reformismo Fraco Com base no que foi exposto, é possível dividir a literatura acadêmica acerca da NCM brasileira a partir de duas divisões teóricas: a primeira que divide os autores entre os que legitimam e os que se opõem à Nova Classe Média; a segunda que os separa entre 9 a ênfase sobre o mercado/ordem capitalista ou sobre o Estado para explicar as mudanças econômicas e sociais dos setores populares brasileiros dos últimos anos. A partir desta constatação, se propõe, então, uma classificação dos autores com base nestas duas divisões que os dividem em quatro tendências teóricas distintas: (1) os que deslegitimam a NCM e enfatizam o Estado; (2) os que legitimam a NCM e enfatizam o Estado; (3) os que legitimam a NCM e enfatizam o mercado/a ordem capitalista; (4) os que deslegitimam a NCM e enfatizam o mercado/a ordem capitalista. Essa tipologia é expressa por dois eixos centrais. O primeiro eixo abarca os debates em torno da legitimidade da Nova Classe Média. Este se divide em dois polos: o primeiro que coaduna os autores em torno da legitimidade da NCM e o oposto que reúne os que a deslegitimam. O segundo eixo envolve as duas tendências explicativas em relação às transformações econômicas e sociais das camadas populares nos últimos dez anos no Brasil. Essas tendências são denominadas tipos explicativos. Este eixo está dividido entre o polo superior que enfatiza o Estado e o outro que enfatiza o mercado/a ordem capitalista para explicar essas transformações. Para a configuração da classificação proposta são conjugados esses dois eixos centrais que dividem os autores. O eixo da legitimidade da NCM está na horizontal. Sua extremidade da esquerda é negativa e a extremidade da direita positiva. O segundo eixo é o tipo explicativo e se encontra na vertical. Na sua extremidade superior, se encontra a categoria ênfase sobre Estado e a extremidade inferior, a categoria Ênfase sobre o Mercado/Ordem Capitalista. Vale lembrar que, se por um lado, esta classificação pode ofuscar certos pormenores teóricos dos autores, por outro, ela permite elucidar e comparar questões centrais presentes em suas obras, tornando-as passíveis à maior problematização. Cabe, pois, salientar que esta tipologia é apenas uma proposta possível de classificação. Ela não encerra a forma de compreender os autores. Outras formas de classificação, de acordo com a proposição de referências, podem ser desenvolvidas para a literatura em questão. O esquema I, abaixo, sintetiza as divisões classificatórias propostas. 10 ESQUEMA I Neste esquema, os dois eixos funcionam como variáveis qualitativas ordinais. A ordenação dos autores não é absoluta, como em variáveis nominais, mas qualitativa. Tanto no eixo 1, como no eixo 2, existe uma ordenação dos autores com base no grau da tendência argumentativa que apresentam. Ainda que no eixo 1 a categorização se assemelhe à da ordem nominal, é possível verificar certo grau de legitimidade dada à classificação da NCM diferente entre os autores5, ou seja, é possível uma classificação escalonar entre eles. Desta forma, a partir da conjugação dos dois eixos é possível posicionar os autores de forma relativa e gradativa entre si. Nesse sentido, estar num quadrante não significa necessariamente um posicionamento puro, no qual a lógica argumentativa do autor esteja completamente limitada às características do grupo ao qual pertence. Se a posição do autor está próxima de outro quadrante, isso significa que ele tende a incorporar lógicas argumentativas do grupo do qual se aproxima. Por não ser uma classificação absoluta, os autores não estão encerrados nos quadrantes de forma acabada e independente, ao contrário, eles só se enquadram num grupo a partir da posição relativa que possuem em relação os demais. É um esquema que, portanto, privilegia as tendências 5 Por exemplo, ainda que Neri e Souza e Lamounier concordem com a legitimidade da NCM, os últimos defendem que há certa fragilidade nesta nova classe. Assim, há uma tendência entre os cientistas políticos a conceder menor legitimidade à categoria do que Neri. 11 e não os posicionamentos absolutos. A utilização de pontos para localizar os autores, é, antes, uma forma de elucidar didaticamente a classificação, do que propriamente um meio de encerrá-los numa posição. O esquema II, abaixo, demonstra os autores analisados já dispostos nessa classificação. ESQUEMA II Nesse esquema, cada eixo expressa uma divisão teórica entre os autores. No entanto, o arcabouço teórico total que constroem, ou seja, a forma como se posicionam tanto em relação ao eixo 1, como em relação ao eixo 2, pode ser compreendido como o resultado, em grande medida, de condicionantes ideológicos que possuem. Segundo Mannheim, a construção do conhecimento está relacionada ao ponto de vista de onde falam aqueles que produzem os conhecimentos, isto é, às suas ideologias. Nesse sentido, as conclusões teóricas dos autores, em grande medida, correspondem às suas visões de mundo, ou seja, aos horizontes ideológicos nos quais estão inseridos. Então, essas divisões teóricas dos autores acabam por expressar de que ponto de vista eles estão pensando. Dessa forma, são as diferenças ideológicas entre os autores, em grande medida, o que fornecem as bases para a compreensão das divergências em torno da legitimidade da NCM expressas pelo eixo 1 do esquema, bem como em relação às12 diferenças de ênfase sobre o Estado ou o mercado/a ordem capitalista para explicar as mudanças econômico-sociais recentes nos setores populares brasileiros, sintetizadas no eixo 2. Cada quadrante, indica, então, um horizonte ideológico distinto dos autores inseridos no debate. Em relação às divergências teóricas em torno da legitimidade da NCM, expressas pelo eixo 1, no polo em que a NCM é aceita, o aumento da renda e do consumo dos mais pobres no Brasil ao longo da última década tende a ser compreendido como uma mudança significativa. Existe uma superestimação das transformações que ocorreram nessas camadas populares. O aumento dos ganhos e do consumo dos mais pobres é entendido como uma mudança de posicionamento de classe, ou seja, como uma grande transformação social. Para alguns, chega até mesmo a significar uma revolução social. Isso significa que para esses autores as mudanças de classe podem ser produzidas por meio do aumento da renda de trabalho, do crédito e do consumo da população mais pobre, isto é, por meio da inclusão dessa população ao sistema financeiro e mercantil capitalista. O que significa ideologicamente o reforço e/ou a expansão do sistema capitalista, como já apontaram Souza (2010) e Pochmann (2012). Nesse sentido, a constatação teórica da existência da classe C toma como pressuposto a legitimidade da ordem capitalista. Já no polo em que a NCM não é aceita, o aumento da renda e do consumo de setores populares na sociedade brasileira tende a significar uma mudança pouco profunda que, por si só, não modificou a estrutura de classes da realidade brasileira. Os conflitos de classe e as desigualdades sociais tendem a ser entendidos como mecanismos estruturais do capitalismo que necessitam de mudanças mais enérgicas no nível das políticas públicas e/ou da própria estrutura do sistema capitalista para serem modificados. Além disso, as desigualdades sociais são entendidas como algo fundamental da realidade brasileira e/ou há uma forte crítica em relação à ordem econômica vigente nesse polo. Há, portanto, uma tendência a perceber a ordem capitalista como problemática e uma inclinação a perceber o capitalismo de forma mais crítica. O eixo 2, ou seja, as divisões de ênfase sobre o mercado/ ordem capitalista ou Estado para explicar as mudanças sociais que ocorreram no Brasil recentemente constituem um segundo fracionamento teórico entre os autores. Para aqueles que enfatizam o mercado/ a ordem capitalista, a forma de organização da sociedade brasileira 13 é entendida, em grande parte, como reflexo do mercado ou da ordem capitalista internacional. O mercado ou sistema capitalista é entendido como força motriz principal das mudanças econômico-sociais brasileiras. Assim, as mudanças sociais pelas quais passou o Brasil são, em grande parte, reflexo das mudanças ou continuidades do sistema mercantil internacional. Seja para enfatizar os novos formatos dos conflitos de classe no Brasil (SOUZA, 2010), seja para enfatizar as modernizações da economia brasileira (LAMOUNIER & SOUZA, 2010), o motor principal que configura as estruturas sociais do país é dado pela dimensão macroeconômica do capital. É um ponto de vista que entende a configuração social brasileira, sobretudo, a partir da influência da conjuntura macroeconômica externa. No segundo tipo explicativo, há uma ênfase sobre o Estado para explicar as mudanças sociais do país. Aqueles que enfatizam o Estado entendem a configuração econômico-social brasileira como consequência, em grande medida, das políticas governamentais. Ele é o dispositivo dinamizador das transformações econômicas internas do país. Por conseguinte, a configuração social seria, em grande parte, reflexo do estabelecimento ou da falta de determinadas políticas públicas no país. Seja para enfatizar as mudanças de classe no país, como é o caso do surgimento da NCM (MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011), seja para apontar as continuidades da realidade social do país, como em relação à condição de pobreza da maioria da população brasileira ou de precariedade dos trabalhadores brasileiros (CHAUÍ, 2013; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011; POCHMANN, 2012, 2014; QUADROS et al. 2013), neste segundo tipo explicativo, o Estado é apontado como uma força motora fundamental da dinamização ou conservação da realidade social, na medida em que é entendido como responsável por promover ou negligenciar o estabelecimento de políticas públicas capazes de manter ou modificar a realidade social. A partir dessas quatro divisões teóricas, é possível perceber que a forma como os autores que se encontram no quadrante dois, ou seja, aqueles que legitimam a NCM e enfatizam o Estado para explicar mudanças econômico-sociais recentes das camadas populares, constroem suas teorias parece estar ancorada num horizonte ideológico do Reformismo Fraco. 14 Esses autores (MEIRELLES & ATHAYDE, 2014; NERI, 2008a, 2008b, 2011) imaginam a ordem capitalista a partir dos benefícios que ela pode trazer, corroborando-a, ou até mesmo valorizando-a. O sistema capitalista não é evocado como força central das mazelas sociais. Ainda que haja problemas sociais, estes podem ser solucionados no seio da ordem vigente e, até mesmo a partir do seu aprofundamento. Dessa forma, para eles as reformas sociais podem ser realizadas no final e não na origem do sistema para muda-lo estruturalmente. Nesse sentido, o aumento da renda e do consumo dos mais pobres é entendido como um benefício social e como uma mudança profunda na sociedade. Por isso a hipótese da NCM é compreendida como uma tese legítima neste grupo de autores. Além disso, valorizam o papel do Estado e/ou da população brasileira no estabelecimento dessas mudanças. Acreditam, dessa forma, que as políticas de estabilização da moeda do governo FHC, mas, principalmente, as políticas redistributivas dos governos Lula e Dilma foram fundamentais para o aumento dos ganhos e do potencial de consumo dos mais pobres no Brasil. Essas políticas teriam sido fundamentais para a associação entre crescimento econômico e distribuição de renda no país. Por meio dessas políticas, o Brasil teria conseguido superar a crise econômica internacional de 2008. Por fim, reconhecem a diminuição da desigualdade de renda no Brasil, tendendo a atribuir a isto uma verdadeira revolução social. As ideias desse grupo parecem estar congruentes a aspectos presentes na ideologia do Reformismo Fraco. Segundo Singer (2012), o Reformismo Fraco, aparato ideológico do lulismo, se caracterizaria pela tentativa de diminuição da pobreza e da desigualdade num ritmo lento e gradual. Preocupado em percorrer um caminho intermediário entre capital e trabalho, o Reformismo Fraco, colocado em prática pelos governos do PT, perseguiu um ideal contraditório em si mesmo: alcançar um igualitarismo, preservando a ordem econômica e a não radicalização política. Em função disso, os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff implementaram políticas redistributivas com o aumento do salário mínimo, o estabelecimento do Bolsa Família e estimularam a criação de empregos formais e a concessão de crédito que permitiram o aumento da renda das classes mais pobres e a diminuição da desigualdade no país. Logo, defender a legitimidade da NCM, enfatizando o papel do Estado como responsável por essas mudanças, como advogam os autores do quadrante 2, é uma forma 15 de exaltar o próprio Reformismo Fraco implementado pelo lulismo. Não é à toa que a tese da NCM tenha se produzido nesse contexto. Mais do que simplesmente ter se originado no contextodo Reformismo Fraco, ela é em si, produto do Reformismo Fraco, uma vez que a ascensão de classe dos mais pobres é considerada, por esses autores, produto, em grande parte, das políticas redistributivas do lulismo. Nesse sentido, conceder legitimidade à NCM é uma forma de demonstrar o sucesso dessas políticas redistributivas que, sob esse ponto de vista, foram capazes de transformar a realidade social simultaneamente à manutenção da ordem econômica. Visto isso, é possível inferir que o arcabouço teórico construído pelos autores que se encontram no quadrante 2 possui raízes na ideologia do Reformismo Fraco. Por outro lado, os autores que se encontram inseridos nos quadrantes 1, 3 e 4 parecem ancorar suas teorias em horizontes ideológicos distintos do Reformismo Fraco. Sob a luz dos pressupostos teóricos da Sociologia do Conhecimento, como sugerida por Manheim, de que o conhecimento é um produto relacional, isto é, se produz na relação com o contexto ideológico do seu produtor, assim como com outros conhecimentos já produzidos, é razoável destacar os horizontes ideológicos sob os quais o arcabouço teórico desses autores está ancorado e que parecem se construir em oposição àqueles que exaltam o Reformismo Fraco. O Reformismo Fraco exclui qualquer ideal de reforma implementada pelo Estado que intervenha nos interesses do capital e/ou diminua a riqueza das elites da sociedade brasileira a fim de diminuir a desigualdade econômica de forma mais intensa e rápida. Estes ideais reformistas mais vigorosos, conforme explica Singer (2012), estão no horizonte daqueles favoráveis ao Reformismo Forte. Nesse sentido, o Reformismo Fraco que visa uma mudança social lenta e gradual se distancia do Reformismo Forte, na medida em que expressa um reformismo em doses homeopáticas. A partir disso, é possível perceber, então, que aqueles que são favoráveis a um reformismo forte exigem um papel mais enérgico do Estado na transformação da realidade social. Isto porque pressupõem que I) a realidade social é estruturalmente conflitiva e problemática, mas que II) O Estado é capaz de modifica-la a partir de políticas públicas que interfiram nessas estruturas de forma profunda. 16 A partir disso, os autores que se encontram inseridos no quadrante 1, isto é, que deslegitimam a NCM e enfatizam o Estado para explicar as mudanças econômico-sociais das camadas populares nos últimos anos no Brasil (CHAUÍ, 2013; COSTA, 2013; KERSTENETZKY & UCHÔA, 2013; POCHMANN, 2012, 2014; QUADROS et al, 2013) parecem ter seu arcabouço teórico ancorado sobre o horizonte ideológico do Reformismo Forte. Eles imaginam a ordem capitalista a partir dos conflitos e das mazelas sociais produzidos em seu interior. Podem ou não declarar uma crítica aberta ao sistema capitalista. Mesmo quando não declaram abertamente um questionamento ao modo de produção, partem de uma perspectiva crítica em relação à ordem econômica, já que as desigualdades sociais provocadas pelo sistema estão no centro de sua argumentação. Tendem a reivindicar que as mudanças sociais devem ser mais profundas e realizadas pelo Estado e não pelas mudanças no sistema capitalista. Apesar de perceberem que o capitalismo é o motor fundamental da configuração social desigual do Brasil, eles entendem que o Estado brasileiro, é capaz de corrigir determinadas disparidades sociais. Então, para eles, a desigualdade social no Brasil não seria fruto somente da configuração da ordem capitalista, mas da falta de políticas públicas mais enérgicas voltadas para a resolução dessa questão. Além disso, estes autores se contrapõem à NCM, já que consideram os aumentos da renda e do consumo das camadas populares mudanças superficiais. Estes apenas significariam inclusão dessa população ao mercado e não, a formação de uma nova classe social. A classificação social dessa população estaria vinculada às desigualdades provocadas pelo sistema capitalista. Por outro lado, reconhecem que o aumento da renda e do consumo dos mais pobres no Brasil contribuiu para a diminuição da desigualdade de renda que se estabeleceu no país e que essas mudanças foram resultado, sobretudo, das políticas redistributivas dos governos Lula e Dilma. Entretanto, tendem a acreditar que essas políticas precisam ser revistas, já que teriam transformado apenas superficialmente a população. Há, por conseguinte, uma propensão a cobrar uma atuação do Estado mais intensa para uma transformação social mais profunda. Por outro lado, os autores que se encontram no quadrante 3, ou seja, que legitimam a NCM e enfatizam o mercado ou a ordem capitalista para explicar as recentes mudanças econômico-sociais dos setores populares, parecem estar mais próximos de um horizonte ideológico Liberal. Isto porque eles (SOUZA & LAMOUNIER, 2010) 17 imaginam a ordem mercantil a partir dos benefícios que ela pode produzir. Eles não problematizam a ordem mercantil capitalista, ao contrário, tendem a valorizá-la. Não destacam, assim como os últimos, o sistema capitalista como causador das desigualdades de classe. Entendem o Brasil, em grande parte, como reflexo do mercado internacional. Deste ponto de vista, o crescimento econômico brasileiro, da década de 2000, seria consequência da conjuntura internacional. Estes fatos teriam permitido o aumento da renda e do consumo dos mais pobres e provocado a mobilidade social deste segmento. Eles partem, portanto, do pressuposto de que o aumento da renda e do consumo produzidos por um cenário econômico internacional favorável para os países em desenvolvimento, por si só, levaram à ascensão da NCM. Ainda que corroborem a legitimidade da NCM e entendam que o aumento da renda e do consumo populares provoque uma transformação estrutural de classes, estes consideram o aumento dos ganhos e do poder de compra dos mais pobres uma mudança frágil. Dada a condição de fragilidade do Brasil, enquanto país em desenvolvimento, qualquer movimento ou crise internacional afetaria sua economia e, por consequência, à também frágil NCM. A configuração social no Brasil seria, portanto, reflexo principalmente das dinâmicas de mercado. Neste ponto, cabe ressaltar que o Reformismo Fraco aparece como um ponto de intersecção entre a ideologia neoliberal e o reformismo Forte. Como Singer explica, existe uma mescla de aspectos ideológicos do neoliberalismo e do Reformismo Forte nessa ideologia. O caminho de equilíbrio entre capital e trabalho trilhado pelas políticas orientadas por esse horizonte ideológico e o ritmo lento e gradual que impõem para a diminuição da pobreza e da desigualdade demonstram como o Reformismo Fraco, ao mesmo tempo, que parte da premissa de que o Estado pode atuar em prol da marcha do igualitarismo, conforme preza o Reformismo Forte, parte também da ideia de que é preciso manter e até expandir a ordem mercantil capitalista, a fim manter intocados os interesses do capital, tal como apregoado pelo neoliberalismo. Vale lembrar também que o Reformismo Fraco se diferencia do Neoliberalismo, na medida em que, tem como norte a diminuição da desigualdade e da pobreza, enquanto o neoliberalismo visa o aprofundamento das desigualdades sociais. 18 Por fim, o autor (SOUZA, 2010) que se localiza no quadrante 4, ou seja, que não legitima a NCM e enfatiza a ordem capitalista para explicar as mudanças econômico- sociais das camadas mais pobres parece sustentar seu arcabouço teórico sob um horizonte ideológico mais crítico, tendencialmente mais à esquerda que o Reformismo Forte e que foi denominado aqui de Crítico Enérgico. Assim como os Reformistas Fortes, Souza imagina a ordem capitalista a partir dos conflitos de classe e das mazelassociais produzidas em seu interior, ou seja, parte de um ponto de vista crítico em relação à ordem capitalista. A superexploração e as péssimas condições dos trabalhadores são bastante evidenciados nessa perspectiva. No entanto, um dos distanciamentos em relação aos Reformistas Fortes é o grau de crítica conferido ao sistema capitalista. Parte-se de uma crítica declaradamente mais contundente à ordem econômica vigente. Nesse sentido, acredita-se que os aumentos da renda e do consumo dos mais pobres não modificam a configuração de classes no Brasil, já que esta última é, em grande parte, fruto dos conflitos estruturais entre capital-trabalho inerentes ao sistema capitalista. Portanto, não se corrobora a tese da NCM, mas a ideia da permanência da classe trabalhadora, ainda que sob novas configurações. Além disso, entende-se, neste horizonte ideológico, que as mudanças econômicas e sociais no Brasil são fruto, em grande medida, das mudanças macroeconômicas do sistema capitalista internacional. Cabe ressaltar aqui que este é um segundo ponto de distanciamento em relação aos Reformistas Fortes, já que, desse ponto de vista, as políticas públicas das últimas décadas não produziram grandes transformações sociais no Brasil e mudanças na estrutura de classes brasileira. O que teria modificado a realidade dos batalhadores brasileiros teria sido a própria dinâmica do sistema capitalista. Nessa perspectiva, o que deveria ser entendido por transformações econômicas e sociais produzidas recentemente no Brasil deveriam ser os novos arranjos da classe trabalhadora brasileira e não o aumento dos ganhos e do potencial de consumo dos mais pobres. A lógica flexível de controle sobre os trabalhadores, característica do capitalismo atual, teria engendrado a incorporação da lógica produtivista nos trabalhadores brasileiros que passariam, a partir de agora, a gerenciar o seu próprio rendimento de trabalho. Os trabalhadores se configurariam como seus próprios patrões. Esta lógica produtivista teria sido incorporada pelos trabalhadores e seria transmitida geracionalmente para as futuras camadas de trabalhadores, dando prosseguimento à reprodução social da classe de 19 trabalhadores. Estabelecendo-se, portanto, uma classe trabalhadora de configurações distintas dos antigos operários no Brasil ou, nos termos de Souza (2010), uma nova classe batalhadora brasileira. 5. Análises e reflexões: a polarização e certos limites do debate em torno da NCM Visto isso, é possível dividir os autores em quatro grupos “ideológicos” distintos: (1) os Reformistas Fortes (2) os Reformistas Fracos (3) os Liberais; (4) Os Críticos Enérgicos. Essa classificação permitiu perceber que as clivagens ideológicas presentes no debate possuem relações com as ideologias presentes no ambiente político brasileiro. Como sugere Mannheim, o processo de produção do conhecimento não está desconectado da realidade social. Essas clivagens ideológicas são, portanto, expressões das divisões ideológicas do contexto político brasileiro da última década. Elas se forjaram no contexto de disputas políticas em torno do Reformismo Fraco dos governos Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e refletem, de alguma maneira, as disputas ideológicas desse cenário político atual. Daí surge o ponto controverso das relações entre ideologias e conhecimentos. Até que ponto as ideologias que condicionam a produção do conhecimento deixam de ser apenas condicionantes dessa produção para se tornarem objetos de disputas políticas entre os autores? Em outras palavras, até que ponto a sustentação da legitimidade da NCM não deixa de ser apenas um produto da influência da ideologia Reformista Fraca sobre aqueles que a legitimam e se torna a própria “bandeira” do Reformismo Fraco? A constatação de que o debate acerca da NCM se configurou, desde o início, como um debate público e não apenas científico, no qual artistas, intelectuais e pessoas de diversos tipos opinavam a favor ou contra a nova classificação, aliada ao fato de que a classe C passou a ser, em 2011, assunto de políticas estratégicas do governo Dilma Rousseff, fizeram com que o debate em torno da classificação tivesse um forte apelo político. Debruçar-se sobre o tema passava a ter impactos diretos na política do pais. A própria trajetória do economista Marcelo Neri que, após a defesa da tese, se tornou Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, passando a coordenar as políticas 20 públicas destinadas a NCM durante o primeiro governo Dilma Rousseff serve como exemplo para destacar este fato. Isso corrobora a ideia de que a dimensão político- ideológica passou a estar fortemente associada ao tema. Por outro lado, não só as discussões teóricas começaram a ter consequências no cenário político brasileiro, mas este também exerceu influência sobre a forma como a tese havia sido construída. Em 2008, quando da formulação da tese da Nova Classe Média, o Reformismo Fraco encontrava-se em apogeu no Brasil (SINGER, 2012). Como reposta política à irrupção da mais grave crise financeira internacional, o governo Lula, como medidas anticíclicas, estabeleceu políticas públicas para o mercado doméstico de consumo de massas emergente, mantendo o crescimento econômico do país e garantindo assim a “vitória” do Reformismo Fraco no Brasil. O que demonstra que o desenvolvimento da tese, nessa conjuntura, soava como um endossamento das políticas estabelecidas no país. Além disso, o apelo político evocado pelo tema fez com que muitos pesquisadores se voltassem basicamente para averiguação da existência da NCM, ou seja, estivessem preocupados em desenvolver argumentos a favor ou contra a tese como forma de construir seu posicionamento diante do debate público. Parecia ser, portanto, quase um dever político-ideológico se contrapor ou ser a favor da NCM. O que também endossa a ideia de que esse debate se tornou mais uma confrontação política-ideológica do que de um debate estritamente científico. Todos esses aspectos levam a crer que a NCM, mais do que um objeto de divergências científicas, se tornou um objeto de disputas políticas do cenário brasileiro dos últimos anos. E, mais do que isso, ela não era simplesmente um produto teórico do Reformismo Fraco, mas se tornou uma de suas bandeiras. A legitimação da NCM se tornou sinônimo de defesa deste ideal político que mescla aspectos do reformismo forte com o neoliberalismo. Nesse sentido, aqueles que se contrapunham a ela, seja num sentido mais crítico ou mais conservador, se encontravam, de alguma forma, numa luta ideológica contra o Reformismo Fraco. Contudo, é preciso chamar a atenção para o fato de que esse caráter político- ideológico presente nos debates provocou uma simplificação das questões que perpassam a temática. Em grande parte da literatura que discute o tema, o enfoque das pesquisas 21 girou em torno da confirmação ou não da existência da NCM. O modo como a pergunta que mobiliza o debate está formulada “Existe ou não uma Nova Classe Média no Brasil?” limitou os debates à comprovação ou à desconstrução da ideia dessa nova classe no Brasil, o que fez com que outras questões relacionadas à NCM fossem pouco problematizadas. Em função disso, deve-se abrir espaço para novas reflexões. Um primeiro exercício reflexivo é pensar se não haveria outras implicações sociológicas no aumento da renda e do consumo dos mais pobres para a população brasileira para além da hipótese de surgimento da NCM no país? Se for possível pensar a renda e o consumo não só como variáveis econômicas, mas como fatores que geram diferenças culturais e políticas entre as classes sociais, comopropõe a teoria bourdieusiana (2007), por exemplo, talvez seja possível perceber outras implicações sociológicas por trás das mudanças na renda e no consumo dos mais pobres. Nesse sentido, será que o aumento do consumo e da renda dos mais pobres não teria alterado alguma relação de poder historicamente estabelecida entre os grupos no Brasil? Se o consumo pode ser entendido como um fator de distinção entre as classes, até que ponto o simples aumento do potencial de compra dos mais pobres não teria, mesmo que de forma superficial, alterado certos padrões culturais das elites, provocando acirramento de classes no Brasil? Talvez, ainda que de forma precária, incompleta e residual o aumento do consumo dos mais pobres teria atingido determinadas dimensões do conflito de classes no Brasil, provocando certa tensão social na população brasileira. Nesse sentido, a forma polarizada como a NCM vem sendo tratada pelos autores parece ter simplificado os significados que as mudanças econômico-sociais que permeiam essa questão podem ter. Nesse sentido, talvez seja possível perceber que essa temática, mais precisamente que o aumento da renda e do consumo das camadas populares pode mobilizar em si, ainda que de forma precária, a temática de conflitos de classe no Brasil. Um segundo problema que foi pouco desenvolvido e que perpassa o tema da NCM são as relações entre renda, educação e classe social. Será que o aumento da renda dos mais pobres terá impactos nos níveis educacionais e, por conseguinte, na estrutura de classes a longo prazo no Brasil? A ideia não é endossar a hipótese de que o aumento da renda e do consumo são capazes, por si só, de gerarem uma nova classe média no Brasil, 22 mas produzir uma problematização maior em torno da questão da mobilidade social que perpassa o tema da NCM, pensando-a a partir de uma perspectiva menos imediatista e mais a longo prazo. Num outro exercício reflexivo, é possível entender os efeitos do aumento da renda e do consumo dos brasileiros, não na estrutura de classes, mas, na dimensão cultural e política da população brasileira? Será que o aumento da renda e do consumo dos mais pobres não significou antes o crescimento de um “ideal de classe média” no imaginário da população brasileira, do que propriamente a medianização da população brasileira? E como as elites e/ ou as “velhas” classes médias brasileiras sentem o aumento do poder aquisitivo dos mais pobres? Quais os impactos políticos dessas mudanças? Talvez seja possível pensar essas mudanças como processos de transformação políticos-culturais da população brasileira. Por fim, outra questão não trabalhada profundamente pela maioria dos autores analisados é a relação entre a estrutura de classes e a diminuição da desigualdade de renda no Brasil. Ainda que a diminuição da desigualdade seja um dos assuntos mais estudados no Brasil recentemente, os autores da amostra analisada não incorporaram esta problemática6. Mesmo para os que reconhecem esse fenômeno como algo significativo, é possível perceber que as análises se detiveram, em grande parte, a apontar a diminuição numérica e não a refletir sobre suas implicações sociológicas. O que de fato representaria a diminuição da desigualdade de renda no Brasil? Ainda que o Índice de Gini permaneça alto, isto é, que o Brasil continue entre as nações mais desiguais do mundo, a constatação da diminuição da desigualdade parece não ser um fenômeno insignificante, para um país, cuja sociabilidade é histórica e profundamente marcada pelas imensas desigualdades sociais (CARDOSO, A., 2010). Quais seriam as consequências sociológicas da diminuição da desigualdade de renda no Brasil? A diminuição da desigualdade de renda teria impactado as percepções acerca da desigualdade e do sentido de justiça no Brasil? Teria provocado alguma alteração na fronteira da necessidade para os mais pobres? É preciso, portanto, refletir de forma mais profunda sobre os significados e consequências sociológicas do aumento da renda e do consumo dos menos ricos e, por 6 O artigo de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza e Flavio Alex de Oliveira Carvalhaes (2014) parece ser uma exceção diante da amostra de trabalhos analisados. 23 consequência, da diminuição das desigualdades de renda no país, o que foi pouco discutido nesta amostra da literatura que discute a classe C. Essas ponderações indicam que os debates em torno da NCM, pela forma polarizada que parecem ter tomado, está limitado teoricamente e que, portanto, é preciso desenvolver novos problemas e abordagens para aprofundar as questões que tangenciam o tema da Nova Classe Média. 6. Considerações finais Para a compreensão dos condicionamentos e disputas ideológicas presentes no debate da Nova Classe Média, realizou-se uma classificação ideológica dos autores inseridos no debate. Essa classificação, a partir das contribuições teóricas de Karl Mannheim, demonstrou as relações entre os posicionamentos teóricos dos autores inseridos no debate e suas respectivas tendências ideológicas. Nela, verificou-se a existência de quatro orientações ideológicas condicionantes: o Reformismo Fraco Reformismo Forte, o Liberalismo e o Crítico Enérgico. Inferiu-se, então, que há um condicionamento ideológico a partir do qual os autores propõem seus teoremas. Por outro lado, a constatação do caráter público do debate e do apelo político e ideológico exercido pelo o tema permitiu inferir que existe um tênue limiar entre o condicionamento ideológico, isto é, a ideologia enquanto condicionante da produção do conhecimento e a ideologia como disputa, ou seja, como um propósito ou objetivo a ser defendido durante o processo de produção do conhecimento. O que sugere fortemente que as discussões em torno do tema parecem estar mais próximas de uma confrontação ideológico-política do que de um debate científico. E, nesse sentido, o esquema classificatório proposto serviu como um subsídio analítico para corroborar esta premissa e, principalmente, para endossar a ideia de que a Classe C tornou, em si mesma, uma bandeira do Reformismo Fraco. Isso levou a crer que existe uma polarização nos debates o que, por sua vez, engendra certos limites heurísticos às discussões. Nesse sentido, pode-se concluir que é preciso propor novas questões e abordagens para o tema em questão como forma de agregar novas problemáticas. É preciso, por exemplo, refletir de forma mais profunda sobre os significados e as consequências sociológicas da diminuição das desigualdades de renda sob os conflitos de classe no Brasil. Dessa forma, pensar sobre novas 24 abordagens e a partir de um ponto de vista menos polarizado ideologicamente pode contribuir para pensar a temática para além da mobilidade de classe e abrir uma nova agenda de pesquisas. No entanto, é fundamental destacar que novas questões e abordagens surgem na medida em que é possível ultrapassar, ainda que de forma momentânea, as polarizações teórico-ideológicas que perpassam os debates em torno da NCM. Isso significa que é preciso não se restringir apenas a averiguação da existência ou não da NCM, mas, investigar e problematizar as transformações e implicações sociológicas que podem estar envolvidas nessa temática. Diferentemente de encará-la sob um ponto de vista antagônico, é preciso se debruçar sobre os assuntos controversos que estão abarcados nessa temática a partir de uma complexidade e de um aprofundamento teórico maiores. Então, talvez se trate menos de aceitar ou rejeitar a NCM e, mais, de compreender as transformações econômicas e sociais dos últimos anos no Brasil. Talvez sejapreciso mudar o enfoque da questão. 25 Referências bibliográficas BOURDIEU, P. A Distinção: crítica social do julgamento, São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. CARDOSO, A. M. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades, Ed. FGV, 2010. CHAUÍ, M. “Uma nova classe trabalhadora”. In: SADER, E. (org.), 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma, São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil, 2013, pp. 123-134. COSTA, L. C. “Classes médias e as desigualdades sociais no Brasil”. In: D. D. BARTELT (org) A “Nova Classe Média” no Brasil como Conceito e Projeto Político, Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2013, pp. 43-55. KERSTENETZKY, C. 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