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O_campo_da_Antropologia

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2
O campo da antropologia:
constituição de uma ciência
do homem
Luiz Henrique Passador
A diferença, objeto da antropologia
A ciência antropológica pode ser consideradabastante nova se comparada com outras, como a
física, cuja história remonta à Grécia antiga, através das
primeiras tentativas de sistematização dos conhecimentos
sobre as leis da natureza. Não que os pensadores gregos
desconhecessem ou deixassem de se questionar sobre a na-
tureza humana. Os gregos apenas o faziam de uma ma-
neira diferente da conduzida pelos antropólogos modernos.
Estes adotam uma abordagem original, caracterizada pelo
estudo do homem em sociedades. Fazem a observação di-
reta das práticas quotidianas e buscam a compreensão das
instâncias socioculturais que definem tais práticas, as
quais possuem um significado que é compartilhado por in-
divíduos que se relacionam entre si num contexto histori-
camente constituído. Etimologicamente, "antropologia" sig-
nifica "ciência do homem"1, e ela procura compreendê-lo
enquanto espécie. Uma espécie que se caracteriza pela for-
1. Do grego anthropos, que significa homem, e logus, que significa
conhecimento, estudo, ciência.
30 Luiz Henrique Passador
mação de grupos socioculturais, que se constituem como
agrupamentos de indivíduos que compartilham de uma
mesma história particular e de uma mesma visão de mun-
do daí derivada, definindo formas coletivas e ordenadas de
pensamento, práticas, comportamento, convivência e sobre-
vivência.
O conjunto dessas formas é a cultura. Todo grupo
humano se organiza socialmente constituindo uma cultura,
que define sua cosmovisão bem como formas individuais
e coletivas de atuar sobre o mundo. A antropologia
moderna adota esses grupos como seu objeto de estudo por
excelência, procurando estudá-los em suas particula-
ridades, sem fazer hierarquizações comparativas (melhores
ou piores, superiores ou inferiores, mais ou menos
evoluídos). Toda cultura deve ser vista como uma maneira
possível de os homens se organizarem, se adaptarem e
transformarem o meio em que vivem, sem que haja
determinações ambientais para tanto. A antropologia
permite observar e compreender como pensam e vivem,
sejam eles habitantes de um arquipélago do Pacífico
ocidental ou nós mesmos.
Por tal motivo, é possível afirmar que a antropologia
tem até mesmo um caráter terapêutico, no sentido de
produção de uma autocompreensão: ao deparar-se com
outras culturas, isto é, com o outro, um homem depara-se
essencialmente com diferenças - as do outro e as suas
próprias. Deparando-se com o diferente, alguém pode
perceber e definir a si mesmo pelo que é e pelo que não é
(sua própria particularidade). A consciência que tende a
emergir desse encontro - ser um entre outros, pensar e agir
de determinada maneira dentre tantas possíveis - pode
fornecer-lhe a dimensão do lugar que ocupa no mundo,
permitindo-lhe conhecer o outro pelo contraste consigo
mesmo e, inversamente, a si próprio em relação ao outro.
A partir disso, será possível enxergar-se como membro de
um grupo sociocultural particular no qual é socializado,
aprende a viver, pensar e a se relacionar com seus pares,
O campo da antropologia 31
construindo-se como sujeito no mundo, dentro de uma
cultura que não é a única, mas apenas uma, diferente. À
medida que conhece outros povos e culturas, seu mundo
se amplia, deixando de ser absoluto e "natural", passando
a ser relativo, particular e histórico. Esse duplo movimento
de compreensão, do outro e de nós mesmos em relação a
ele, é que vai definir a vocação da antropologia: enquanto
compreensão do homem, ela acaba por se realizar também
como compreensão e autocompreensão dos homens,
permitindo a construção de uma visão crítica em relação
a nós mesmos e às nossas próprias formas de vida,
possibilitando uma atuação mais consequente sobre o
mundo em que vivemos e em relação àqueles que nos
cercam, isto é, sobre nossa própria realidade.
Até constituir um corpo de conhecimentos sobre
questões relativas aos grupos humanos e sua diversidade,
a antropologia percorreu um caminho que se confunde com
a história do encontro do homem ocidental com os povos
que habitavam (e ainda habitam) os continentes que ele
alcançou a partir do século XVI. Foi um percurso histórico
de encontros e desencontros com o outro. As concepções de
homem e de ciência do homem daí resultantes provêem das
relações históricas entre grupos reais e em condições
específicas, tentando lidar com questões particulares a
partir de formas histórico-culturais de atuação e
compreensão da realidade.
A construção das diferenças
A compreensão da diversidade das manifestações
culturais não foi experimentada somente pelo Ocidente ou
numa época específica apenas. No entanto, é na cultura
ocidental que se constitui uma ciência que sistematiza as
formas de conhecimento acerca das diferenças culturais.
Portanto, a antropologia é uma ciência ocidental e sua
história resulta das experiências e interpretações históricas
vividas e produzidas pelo Ocidente. Como qualquer
32 Luiz Henrique Passador
produção cultural, a ciência se vincula às experiências
históricas do grupo que a produziu. Vejamos resu-
midamente como isso ocorreu.
Na origem dos questionamentos que desembocaram
na antropologia moderna estão as Grandes Navegações.
Iniciadas durante o período mercantilista (final do século
XV e início do XVI, que coincide com o fim da Idade Média),
quando os europeus buscavam rotas marítimas para o
comércio com o Oriente, as navegações deram origem à era
dos descobrimentos e do expansionismo e colonialismo
ocidentais. Assim, o europeu encontrou terras habitadas
por povos até então desconhecidos por ele.
A política de dominação e colonização dessas novas
terras - genericamente denominadas como "Novo Mundo" -,
visando à exploração extrativista e comercial das riquezas
nativas, obrigou os europeus a enfrentarem um dilema
crucial: compreender e explicar os nativos do Novo Mundo,
pois a colonização impunha o contato direto e a convivência
(pacífica ou não) com eles, mesmo porque a utilização da
mão-de-obra nativa era fundamental nesse processo. O
ocidental se viu impelido a encarar e entender esse
diferente, esse outro. No entanto, para além das razões
utilitaristas do processo colonizador, a descoberta de novas
terras e povos também teve consequências filosóficas,
ontológicas e existenciais, pois uma das questões que
emergiram desse encontro foi um debate sobre os limites
da humanidade: "Eram os nativos humanos ou não?"
Eles se encontravam fora da cultura e da noção de
humanidade que os ocidentais haviam historicamente
construído para si. Eram povos com costumes, crenças,
línguas e características físicas completamente estranhos,
vivendo num ambiente até então desconhecido e
inimaginável para os ocidentais. É nessa época que surge
o termo "selvagem" para descrever de forma genérica e
incompleta sua condição de vida: eram povos habitantes
das selvas tropicais. Os primeiros relatos que chegaram à
Europa sobre suas formas de vida, principalmente quanto
à prática do canibalismo, produziram grande impacto nos
O campo da antropologia 33
pensadores, na classe política, no clero e nos cidadãos
comuns.
Naquele período não havia ainda a separação entre
Estado e Igreja. A concepção teocêntrica de mundo
predominava na filosofia, na qual o ser humano era
concebido como portador de uma alma outorgada como
dádiva divina e a condição humana era definida pela fé.
Assim, as discussões sobre a humanidade ou animalidade
do selvagem se desenvolveram em bases teológicas: "O
selvagem possui alma ou não? Foi criado por Deus como
homem ou como animal?" Por referirem-se à fé, tais
questões traziam consequências existenciais sobre os
horizontes da criação divina e da vida humana ordinária.
Ao perguntar-se que homem era o selvagem, o ocidental
perguntava sobre si próprio.
Essas eram tambémquestões políticas e económicas,
pois a Igreja dividia com o Estado os interesses na
colonização. O selvagem tornou-se, assim, um assunto
económico, político, teológico e também objeto de in-
vestigação filosófica. Pensar o selvagem era pensar o ho-
mem: a definição do que era a humanidade passava
obrigatoriamente pela definição do que era humano ou não
no selvagem. Este passou a habitar definitivamente o
imaginário europeu. Tal encontro foi um marco no pen-
samento ocidental.
A colonização se desenvolvia com o envio de adminis-
tradores e missionários às novas terras e uma política de
"civilização" dos nativos através da catequese, a fim de
"humanizá-los" e submetê-los aos interesses coloniais e às
formas de vida, fé e trabalho ocidentais para uso de sua
mão-de-obra. Enquanto isso, na Europa surgia o Renasci-
mento como movimento filosófico e artístico que reintrodu-
ziu uma perspectiva antropocêntrica no pensamento oci-
dental, através da recuperação dos ideais gregos abando-
nados durante o período medieval. Embora a política ofi-
cial continuasse definida pela influência da Igreja e pela
primazia do teocentrismo nas questões de Estado, o ima-
ginário ocidental começava a se interessar por questões ré-
34 Luiz Henrique Passador
lacionadas à natureza e à produção profana dos homens,
levando-os à investigação do mundo objetivo e das razões
não divinas da existência.
Aos poucos, o Ocidente abandonou a contemplação das
obras de Deus e a preocupação com a salvação da alma, e
assumiu uma atitude investigativa dos fatos da natureza
e dos atos humanos. Esse movimento lançou as bases de
um pensamento que alicerçaria a ciência moderna. O
renascentista era curioso e procurava respostas na
observação e investigação das realidades objetivas e
naturais, não mais nas escrituras sagradas. Nessa época,
Galileu Galilei fazia seus estudos astronómicos e era
julgado pela Igreja como herege; Leonardo da Vinci
estudava anatomia e introduzia a perspectiva na pintura
a fim de retratar o que havia de natural na natureza e de
humano no humano. O que a Mona Lisa tem de es-
petacular e intrigante é o que ela retrata e eterniza: a
humanidade bela e complexa presente num sorriso de
mulher, expressão de uma emoção profana. Era esse
espírito renascentista que movia os viajantes e artistas dos
séculos XVI e XVII que se aventuraram nos domínios do
Novo Mundo, produzindo relatos e iconografias sobre sua
flora, fauna e habitantes nativos e alimentando a
curiosidade e o imaginário europeus.
No século XVII, na esteira da expansão do antro-
pocentrismo e a partir das obras de Descartes, surge o
racionalismo. Esse movimento filosófico redefiniu a
condição humana: não mais definido pela alma, o homem
passou a ser concebido como um ser cuja condição é a posse
e o exercício da razão. O conhecimento passou a ser visto
como produção humana, movida por uma razão natu-
ralizada. Baseados nas premissas do racionalismo, no
século XVIII os iluministas criticaram as "trevas" do
pensamento teocêntrico e lançaram as bases de um pen-
samento político que desembocou na crítica à monarquia
e à fusão do Estado com a Igreja. Sua consequência mais
notável foi a Revolução Francesa de 1789, que marcou o
O campo da antropologia 35
surgimento do Estado democrático, separado da Igreja, e
a ascensão da burguesia como classe dominante.
No bojo das revoluções sociais e do pensamento
ocidental marcado pelo antropocentrismo, mais uma vez o
selvagem foi objeto de especulações filosóficas. Retirado dos
domínios das discussões teológicas, ele passou a ser
discutido em termos racionalistas e naturalizantes. Uma
ideia recorrente nessa época era quê eles estariam na
infância da humanidade, vivendo em estado de natureza,
como nos primórdios da História. Já o ocidental era
considerado como tendo superado seu estado natural e
constituído uma civilização que o havia arrancado das
determinações e imposições da natureza. As diferenças
entre os povos passaram a ser pensadas em termos de ra-
cionalidade, natureza e produção histórica de civilizações.
Os selvagens seriam povos sem história e que não
constituíram civilizações complexas por apresentarem uma
razão pouco desenvolvida, pré-lógica, o que explicaria a
ausência de sinais de civilização (como a escrita), a
predominância de um pensamento supersticioso e animista
(como a magia, a feitiçaria e a adoração de elementos da
natureza) e a presença de comportamentos associados à
animalidade irracional (o canibalismo). Tais características
seriam resultado de condições ambientais, pois afirmava-
se que as regiões quentes do planeta não propiciariam
condições geográficas e climáticas para o aparecimento de
civilizações superiores.
Essas concepções acerca da vida dos povos selva-
gens serviram como ponto de partida para as diver-
sas compreensões produzidas no período sobre a condi-
ção humana e a civilização ocidental, fosse para o elogio
da civilização (como no caso de Buffon e De Pauw, que
viam o selvagem como o homem derrotado pela natureza,
ao passo que o civilizado seria o homem vitorioso), fos-
se para a crítica da mesma (como Montaigne, em seu
ensaio sobre o canibalismo, e Rousseau, com seu conceito
do "bom selvagem"). Retirado dos domínios de Deus e
realocado na natureza, o selvagem não era mais um
36 Luiz Henrique Passador
ser carente de alma, mas alienado da história e da ra-
zão humanas.2
Herdeiro da concepção racionalista, o século XIX foi
marcado pelo advento da ciência como forma privilegiada
de conhecimento. Reagindo à metafísica presente no racio-
nalismo, o filósofo francês Auguste Comte propôs o positi-
vismo como escola filosófica e a ciência como forma de co-
nhecimento objetivo. Seu pensamento marcou aquele que
ficou conhecido como o "século da ciência". Tomando o co-
nhecimento empírico como o único válido para se poder
afirmar positivamente qual a realidade objetiva dos fatos
concretos, Comte estabeleceu os princípios do método ci-
entífico baseado na observação empírica dos fenómenos
naturais e sociais para a apreensão dos fatos e desvenda-
mento das leis gerais que governam o funcionamento da
realidade. O filósofo francês também contribuiu para o ad-
vento de um pensamento evolucionista, outra marca do sé-
culo XIX. Partindo de uma forma de pensamento cuja raiz
está nas especulações sobre a origem do homem anterior-
mente citadas, ele propôs um esquema etapista para com-
preender o desenvolvimento histórico da humanidade, ba-
seado em formas de pensamento universais que o homem
teria desenvolvido através de sua marcha histórica. Essas
etapas se sucederiam desde as mais elementares até as
mais complexas, correspondendo cada uma a um grau de
civilização e a formas de razão mais ou menos próximas
do conhecimento objetivo da realidade. Para Comte, o pen-
samento mais primitivo seria o animismo e a religião, cujo
pressuposto é a existência de ordens sobrenaturais que go-
vernariam a realidade concreta. A etapa evolutiva seguin-
te corresponderia ao pensamento metafísico, que pressu-
põe a existência de ordens essenciais, cujas essências se-
2. Sobre as discussões desenvolvidas nesse parágrafo em particular,
consulte as obras de Antonello Gerbi e François Laplantine
listadas na bibliografia.
O campo da antropologia 37
riam fatos naturais, porém não concretos e empiricamen-
te inobserváveis, apenas racional e logicamente dedutíveis.
Por fim, teríamos a ciência, cujo pressuposto é a existên-
cia de ordens naturais empiricamente comprováveis, des-
cartando a existência cie ordens sobrenaturais e/ou essen-
ciais na determinação dos fatos concretos. A cada forma de
pensamento, corresponderia um grau de civilização e evo-
lução. Assim, Comte classificou os povos ocidentais como
os mais evoluídos (por praticarem a ciência) e os selvagens
como os mais primitivos (adeptos das formas animistas).
Dessa fornia, os povos "civilizados" e "selvagens"foram re-
classificados como "evoluídos" e "primitivos".
Se Comte foi o responsável pela formulação do projeto
científico no século XK, foi Charles Darwin quem o con-
cretizou. Através de suas viagens e pesquisas empíricas,
Darwin colheu o material que lhe permitiu formular e
comprovar a teoria da evolução das espécies, demonstrando
a viabilidade da ciência ao aplicar um método empírico
para a descoberta de leis gerais da natureza. O sucesso de
Darwin também foi o sucesso do evolucionismo enquanto
princípio explicativo das diferenças. A aplicação de suas
teorias biológicas à compreensão das diferenças culturais,
associadas à classificação comteana das formas de evolução
do pensamento, resultaram no "darwinismo social", modelo
híbrido e questionável de compreensão das formas
socioculturais observadas nos diferentes povos.
O darwinismo social predominou durante o século XIX
e início do XX, sendo a raiz do racismo científico e dos es-
tudos de evolução cultural. Seu pressuposto era a
existência de uma história única e evolutiva para todos os
povos, sendo que as diferenças entre eles se deviam a
etapas distintas na evolução biológica e cultural. As
diferenças teriam um substrato biológico que as expli-
cariam: as diferenças de características físicas passaram
a ser entendidas como determinantes biológicos que
explicariam a diferenciação entre as formas de vida
cultural dos povos. Nesse contexto, a raça surgiu como
38 Luiz Henrique Passador
categoria científica para explicar as diversidades. A
civilização ocidental, caucasiana, vitoriosa no processo de
colonização e ungida pelos benefícios tecnológicos e
económicos gerados pela Revolução Industrial, passou a
ver-se como o mais alto grau de evolução humana; as
sociedades de coletores, caçadores e pescadores, de pele
escura e atadas a formas tradicionais de produção e
subsistência, foram colocadas no grau mais primitivo de
humanidade. Redefinido pela ciência do século XIX, o
homem continuava a ser uma entidade natural e racional,
mas sua natureza e razão deixaram de ser vistas como
essências metafísicas e passaram a ser concebidas como
realidades biológicas determinadas por capacidades inatas.
O século XX viu surgir uma crítica ao evolucionismo
cultural e ao darwinismo social na forma de um pen-
samento relativista que refutou seus pressupostos teóricos.
Sobretudo com a formulação de um conceito de cultura que
veio substituir o conceito de raça na explicação das dife-
renças entre as formas de organização social e pensamento
dos homens, assumiu uma nova perspectiva de análise
histórica da humanidade. Mas essa é outra história que
trataremos a seguir. Por enquanto, é importante frisar que
a tónica das especulações sobre as diferenças entre os
povos, até o século XIX, sempre tomou a civilização
ocidental como medida universal na avaliação qualitativa
da diversidade. Ainda que as visões tenham mudado no
transcorrer dos séculos, é notável que o ponto de vista do
Ocidente sempre foi ele próprio: a sua fé, racionalidade e
raça. O outro sempre foi um pretexto para reafirmação dos
valores ocidentais. Nunca, até então, os nativos do Novo
Mundo haviam falado por si. A antropologia moderna
assumiu essa crítica sem perder de vista os benefícios que
um método de investigação empírica e a sistematização
teórica dos dados observados podiam trazer à compreensão
dos fatos culturais.
O campo da antropologia 39
Um olhar original
As compreensões equivocadas sobre as diferenças
culturais produzidas pelo pensamento ocidental sempre
estiveram atreladas a questões de valor e a pontos de vista
inadequados. O problema da valoração, hierarquização e
classificação das culturas está na premissa básica de que,
para uma medição, é preciso eleger uma unidade de me-
dida universal. Na "medição" das culturas, a "unidade"
sempre foi a cultura ocidental. Tomando a si própria como
referência e ideal de organização em sociedades, durante
séculos a civilização ocidental produziu concepções
etnocêntricas sobre a diversidade. O etnocentrismo é um
fenómeno observável em qualquer sociedade: proclamados
como mais desejáveis, os valores culturais de um povo
passam a ser utilizados como parâmetros para produção
de juízos de valor acerca dos modos de vida dos demais
povos. Tornados absolutos, esses valores tendem a ser
naturalizados e, como consequência, tem-se sempre uma
avaliação das diferenças centradas no ponto de vista do
observador, tomado como um ponto de vista universal e
natural. Assim, as diferenças passam a ser traduzidas e
avaliadas nos termos de quem as descreve e não nos termos
de quem as vive. Absolutizadas, as concepções de mundo,
história e homem ocidentais sempre tenderam a in-
feriorizar, de forma etnocêntrica, as formas de pensamento
e organização sociais dos povos não ocidentais. Não havia,
portanto, neutralidade ou imparcialidade nas análises
sobre a diversidade e sim uma defesa dos ideais da
civilização ocidental frente às diferenças culturais com as
quais se deparou.
O relativismo cultural surge no início do século XX
como crítica ao etnocentrismo. O pensamento relativista
procura romper com os valores e juízos absolutos, per-
cebendo a cultura particular de cada povo como o marco
de referência utilizado nas suas interpretações, avaliações
e produção das diferenças. Melville Herskovitz afirma que
40 Luiz Henrique Passador
"os juízos baseiam-se na experiência, e a experiência é
interpretada pelo indivíduo em termos de sua própria
endoculturação"3. Ou seja, a cultura particular em que cada
sujeito é socializado está sempre presente nas avaliações
que produz sobre as realidades que experimenta. Portanto,
toda diferença deve ser entendida como um fato relativo
ao contexto cultural em que é produzida e vivenciada, pois
a diferença é determinada pelo contexto em que é
produzida, possuindo uma lógica interna e própria.
Considerando que todo contexto é um fato histórico,
particular e dinâmico, a mudança e a diversidade são
elementos constituintes da cultura, o que nos permite
compreender a produção das diferenças como um fenómeno
local e particular.
O relativismo cultural rompe com a noção de uma his-
tória e uma cultura únicas e comuns a todos os povos, as-
sumindo que cada povo tem sua história particular, rela-
tiva às experiências que cada um viveu naquele tempo e
espaço em que se inserem. Afirma, assim, a pluralidade de
manifestações e a singularidade de cada desenvolvimento
histórico-cultural. Esse particularismo histórico, crítico em
relação aos pressupostos evolucionistas, introduz uma nova
noção sobre as culturas. Estas seriam fenómenos subjeti-
vos, produzidos pelos diversos grupos humanos, que se con-
figuram como formas de organização coletiva que respon-
dem a condições objetivas de vida impostas por experiên-
cias históricas particulares a cada grupo, não sendo con-
tudo condicionadas pela objetividade das experiências, nem
determinadas por fatores naturais. As culturas pertence-
riam, portanto, ao campo das possibilidades de produção
da subjetividade humana: resultariam da atividade de
homens concretos lidando com realidades específicas e dan-
do respostas históricas às suas condições de vida mate-
rial. Ainda que lidando com fatos universais, como a
proibição do incesto (que será discutida em outro capítu-
3. HERSKOVITZ, M.J. Antropologia cultural, p. 86.
O campo da antropologia 41
Io), observa-se que os povos deram diferentes respostas e
soluções a eles, sendo característica dessa atividade a
produção de diferenças, não de regularidades. Assim, os
fatos culturais têm sua especificidade, sendo irredutíveis
a outras instâncias da atividade humana. Embora se arti-
cule com as condições biológicas e psicológicas de vida, a
cultura não é explicada por elas, nem se reduz a um fenó-
meno biológico ou psicológico: trata-se de um campo espe-
cífico da produção humana que exige uma abordagem pró-pria. A antropologia moderna se debruça sobre a cultura
como um campo específico, tomando-a por objeto, partin-
do dos pressupostos do relativismo cultural e do particu-
larismo histórico e estabelecendo abordagens teóricas e me-
todológicas particulares.
É comum apontar três autores como os pais fun-
dadores dessa antropologia: Franz Boas, Bronislaw
Malinowski e Mareei Mauss. Seus estudos pioneiros e suas
abordagens originais definiram a produção antropológica
moderna nos principais centros produtores: EUA, In-
glaterra e França.
O alemão Boas se fixou nos EUA no final do século XIX
e notabilizou-se por ter lançado as bases da investiga-
ção e abordagem particularistas das culturas, desenvolven-
do estudos sobre populações nativas da América do Nor-
te. Foi um defensor do relativismo cultural contra as
generalizações evolucionistas, privilegiando a etnografia e
o trabalho de campo na pesquisa cultural. Formou discí-
pulos que fundaram uma das principais vertentes teó-
ricas da antropologia: o culturalismo norte-americano.
Essa escola privilegia o estudo do comportamento como fato
cultural e dos intercâmbios culturais como forma de difu-
são histórica em pequena escala de traços e padrões cul-
turais, procurando entender a personalidade e as caracte-
rísticas psicológicas como fenómenos coletivos definidos
pela cultura.
O polonês Malinowski, radicado na Inglaterra, siste-
matizou o exercício etnográfico da observação participan-
42 Luiz Henrique Passador
te, definindo um método investigativo de trabalho de campo
que viria a tornar-se o principal alicerce da moderna pro-
dução antropológica. Crítico do evolucionismo, formulou os
princípios teóricos do funcionalismo. Essa escola de pen-
samento encara cada cultura como uma totalidade autó-
noma e funcional, sistematizada através de instituições
sociais que cumpririam as funções de suprimento das ne-
cessidades humanas, como num organismo composto de
órgãos vitais que funcionariam de forma harmónica para
garantir a sobrevivência coletiva e individual. O funciona-
lismo introduz a noção de organização social como funda-
mento das relações internas que definem as particularida-
des dos grupos humanos. Essa abordagem caracterizou a
produção dos antropólogos ingleses no século XX, embora
tenha sido sistematicamente modificada pelos sucessores
de Malinowski.
O francês Mauss foi sobretudo um teórico. Não desen-
volveu pesquisas de campo mas procurou estabelecer as
bases da compreensão dos fatos culturais, em sua es-
pecificidade e também intimamente articulados com as
instâncias biológicas e psicológicas. Estabeleceu uma
vocação interdisciplinar para a antropologia e procurou
fundá-la como um campo próprio do conhecimento. Seu con-
ceito de "fato social total" contribuiu para uma compre-
ensão da cultura como campo multidimensional e estrutu-
rado, formado pela integração de várias instâncias - bioló-
gica, histórica, económica, política, religiosa etc. - e ao mes-
mo tempo particular. Assim, tais fatos são realidades totais
e também particulares que devem ser entendidos a par-
tir das representações coletivas que os definem no contexto
em que ocorrem. O pensamento de Mauss influenciou
os antropólogos franceses e levou à formulação de corren-
tes intelectualistas, tais como o estruturalismo de
Claude Lévi-Strauss. O estruturalismo incorpora elemen-
tos da linguística e entende a cultura como um campo sim-
bólico cujas estruturas permitem a produção de sentido e
ordem (como uma linguagem, que é um sistema simbólico)
O campo da antropologia 43
e estão presentes na ordenação lógica tanto do pensamen-
to individual como da realidade coletivamente produzida e
experimentada.
Existe ainda uma quarta linha de pensamento antro-
pológico, a antropologia interpretativa ou interpretativis-
mo. Inaugurada pelo norte-americano Clifford Geertz,
incorpora elementos da semiótica e da hermenêutica na
análise dos fatos culturais. Essa escola privilegia a dinâ-
mica e a atividade cultural como formas de interpretação,
em vez de pensar a cultura como um campo estático que
leva os sujeitos a reproduzirem formas previamente defi-
nidas. A cultura é entendida como um texto que os agen-
tes culturais modificam constantemente através de suas in-
terpretações e relações contextualizadas. Antes de serem
leituras genéricas, essas interpretações têm uma relação
intrínseca com o contexto em que foram produzidas e seus
significados são coletivamente determinados.
Essas são as principais tradições do pensamento
antropológico moderno, que incorporam as perspectivas
surgidas com a crítica relativista. Existem ainda outras
correntes contemporâneas, como o neo-evolucionismo e a
sociobiologia, que procuram atualizar as perspectivas
interdisciplinares entre antropologia cultural ou social e
ciências biológicas, mas que não serão discutidas aqui.
Compreendendo as diferenças culturais
Guardadas as diferenças entre autores e escolas de
pensamento, o que os integra e dá unidade à prática
antropológica é o pressuposto de que toda cultura deve ser
entendida "em seus próprios termos", e isso só é possível
se tomamos o cuidado de "apreender o ponto de vista dos
nativos" como condutor das investigações, conforme
afirmava Malinowski4. Isso sá se torna possível com o
exercício da pesquisa de campo etnográfica, que impõe a
4. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental.
44 Luiz Henrique Passador
observação participante como condição da produção do
conhecimento antropológico. Portanto, o que define
primordialmente a antropóloga moderna é o seu método,
e é sobre ele que trataremos mais especificamente a seguir.
A observação participante pressupõe a presença do
antropólogo no campo. Ao mesmo tempo em que ele observa
um grupo, compartilhando o mesmo espaço - não como
nativo, o que é impossível e indesejável -, procura olhar
os fenómenos socioculturais e as práticas quotidianas que
compõem o universo cultural que ele deseja compreender
no tempo e no espaço de sua manifestação concreta. Essa
observação in loco permite ao antropólogo apreender os
fatos no momento de sua produção e a investigação de seu
sentido com a ajuda de informantes nativos. É uma
observação sem intermediações de terceiros, que permite
o acesso ao ponto de vista dos nativos e a compreensão dos
fatos nos termos em que eles os definem, compreendendo
as interpretações que os elementos do grupo fazem de si
mesmos e de sua cultura. O antropólogo só terá acesso à
realidade cultural de um grupo através das interpretações
que seus nativos produzem sobre ela. Essas interpretações
são o material que ele deve recolher e analisar.
A observação participante impõe duas atitudes meto-
dológicas que o observador deve assumir em relação ao seu
objeto. Uma vez que esse objeto é de fato um sujeito - ho-
mens produtores de sua própria realidade -, a relação en-
tre observador e observado é perpassada por suas subjeti-
vidades que são postas em contato nesse encontro. A sub-
jetividade é um instrumento fundamental, ainda mais se
o objeto de conhecimento também é dotado de subjetivida-
de. Parece claro que somente um ser humano pode enten-
der as razões humanas. Portanto, o conhecimento antro-
pológico tem uma natureza intersubjetiva (assim como toda
ciência humana), pois pressupõe o diálogo entre sujeitos e
a troca de conteúdos subjetivos. No entanto, essa subjeti-
vidade deve ser controlada, pois pode interferir no proces-
so de conhecimento das particularidades do outro - os pre-
O campo da antropologia 45
conceitos fazem parte da subjetividade e, como já vimos na
nossa análise da História, eles tendem a produzir visões
distorcidas sobre a realidade observada. Por isso, é neces-
sário que o observador assuma uma atitude de distancia-
mento e de estranhamento em relação ao observado.
O distanciamento não diz respeito a uma distância
física, mas sim subjetiva;é necessário que o observador não
se envolva com o observado, ou que esse envolvimento -
de fato inevitável - se dê dentro dos limites da empatia.
Empatia é a capacidade de colocar-se no lugar do outro,
sem no entanto tomar partido em relação a ele. Isso
permite que se observe o mundo através dos olhos do outro,
possibilitando a compreensão de seu ponto de vista em
relação à sua realidade. A simpatia e a antipatia, por
exemplo, seriam formas de envolvimento subjetivo que
levam o observador a uma tomada de posição valorativa
em relação ao observado, resultando numa compreensão
tendenciosa e parcial. A observação participante busca a
compreensão mais complexa e totalizante do outro.
Já o estranhamento procura garantir a compreensão
do outro sem a interferência e o uso de concepções culturais
alheias ao seu universo particular. O observador deve, por
princípio, estranhar os fatos observados e não toma-los
como familiares, por mais que o pareçam, pois as razões
por trás de um fato não são necessariamente as razões de
quem o observa. A falta de estranhamento leva às más
traduções das diferenças, feitas a partir dos termos do
tradutor, não os do traduzido. Estranhar é manter a
possibilidade de questionar e interrogar, pois é manter o
objeto observado sistematicamente desconhecido - só é
possível conhecer aquilo que ainda não se conhece pois o
já conhecido não será investigado. No momento da
observação, o antropólogo deve procurar deixar de lado
seus valores e verdades culturais para que não atuem como
parâmetros de interpretação das diferenças, tomando
erroneamente por conhecido aquilo que ainda não foi
compreendido em seus termos próprios.
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Outro dado importante sobre a abordagem an-
tropológica é a noção de totalidade. As culturas devem ser
tomadas como totalidades, embora não sejam entidades
fechadas em si mesmas, harmónicas, estáticas e perm-
anentes. As culturas são sistemas abertos que se trans-
formam historicamente, seja por contatos e trocas, seja
pelos conflitos internos que fazem parte de suas dinâmicas
próprias. Isso ocorre também na nossa sociedade, que passa
por sucessivas transformações históricas. Os significados
que as atividades culturais assumem estão sempre sujeitos
a mudanças.
Isso não significa que seus elementos não sejam
referentes entre si ou que estejam desvinculados uns dos
outros, o que permitiria toma-los isoladamente e sem
referência aos seus contextos originais. Assim se fazia no
século XIX, quando se privilegiava os estudos de traços
culturais isolados, observando-se sua ocorrência em grupos
diferentes para efeito de comparação, sem atentar para os
significados que esses traços assumiam em suas culturas
de origem. Essa abordagem, conhecida como difusionismo,
pretendia traçar grandes esquemas de ocorrência e difusão
de traços culturais privilegiando as semelhanças e
regularidades desses traços em detrimento das diferenças
e singularidades originais. Ô difusionismo foi amplamente
criticado por causar mais confusões do que produzir
explicações. A noção de totalidade na antropologia moderna
alerta para o fato de que é necessário primeiro apreender
esses significados em sua particularidade e totalidade, para
depois tentar compará-los. O significado de um fato só pode
ser apreendido quando estiver relacionado à totalidade do
contexto particular em que se origina e faz sentido. Isso
pressupõe um estudo da totalidade cultural de um grupo
e das partes que a compõem através de um movimento
interpretativo circular: o estudo das partes em relação ao
todo e do todo em relação às partes.
Quanto menor o universo estudado, maior a possibi-
lidade de apreensão dos significados particulares, da tota-
lidade cultural e das partes que a compõem. Esse estudo
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"microscópico" da vida quotidiana é uma das característi-
cas do método antropológico segundo o qual todas as ma-
nifestações culturais devem ser observadas nos grupos pois,
por mais insignificantes que pareçam à primeira vista, elas
têm conteúdos que revelam o teor da vida cultural. Por-
tanto, desde as mais inocentes anedotas até os mais gran-
diloqiientes rituais coletivos, tudo é cultura e possui um
significado que deve ser revelado, pois conta algo sobre
quem os produziu e reproduz. Se, como nos mostrou Mauss,
as culturas são campos de trocas e o princípio que as fun-
da e garante sua perpetuação no tempo é a reciprocidade,
o que se troca são mais do que "coisas"; são coisas que sig-
nificam algo para quem as troca - sejam elas palavras, con-
chas, moedas, sorrisos ou presentes de aniversário. É nes-
ses significados compartilhados presentes nas trocas que
se encontra a chave para a compreensão das culturas como
campos de realização humana.
Interdisciplinaridade com a psicologia
Constituído esse corpo teórico e metodológico, essa
abordagem particular, a antropologia se concretiza enquan-
to área autónoma de conhecimento que convive com as de-
mais ciências humanas, auxiliando-as e sendo auxiliada
por elas. Enquanto estudo interdisciplinar, ela independe
de um objeto específico, podendo estudar toda manifesta-
ção cultural, em qualquer lugar. No início do século XX,
temia-se pelo desaparecimento da antropologia em con-
sequência de um suposto desaparecimento dos povos "pri-
mitivos", seu objeto original. Foi quando ela passou a
estudar as sociedades "complexas", as sociedades ociden-
tais, ocidentalizadas ou com organizações sociais de com-
plexidade semelhante. Enquanto estudo das diferentes
manifestações socioculturais, ela pode ser aplicada a qual-
quer grupo humano, inclusive o nosso. Assim surgem a
antropologia urbana, os estudos das sociedades nacionais,
de comunidades rurais, de género e de minorias vivendo
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dentro das sociedades ocidentais. Começamos a olhar an-
tropologicamente para nós mesmos na busca de uma com-
preensão de nossas particularidades culturais. O outro não
precisa mais estar além-mar ou isolado nas florestas tro-
picais para ser objeto da compreensão antropológica; o ou-
tro pode ser aquele a quem nos referimos como o próximo.
Através do distanciamento e do estranhamento em rela-
ção à nossa própria cultura, podemos estudá-la antropolo-
gicamente. A antropologia se realiza, portanto, num duplo
movimento interpretativo de culturas que Roberto Da Mat-
ta bem definiu: ela procura "transformar o exótico no fa-
miliar e/ou transformar o familiar no exótico"5.
Como toda ciência interpretativa - aí incluída a psi-
cologia e sendo esse o ponto de aproximação e encontro da
vocação de ambas -, a antropologia procura penetrar a sub-
jetividade presente nas manifestações humanas, e o faz tra-
duzindo os significados particulares de uma cultura para
outra. Nesse sentido, não difere muito da psicologia, que
busca os significados profundos das motivações e compor-
tamentos dos indivíduos através do distanciamento e do
estranhamento destes em relação a suas práticas mais quo-
tidianas e inconscientes, dando-lhes acesso à sua subjeti-
vidade e a uma compreensão sobre si mesmos e a realida-
de com que lidam. Antropologia e psicologia são ciências
que se completam na compreensão do indivíduo e de seu
coletivo, seja na vivência coletiva da individualidade, seja
na vivência individual da coletividade. Indivíduo e grupo
são, dessa forma, indissociáveis enquanto instâncias que
definem a existência do homem como sujeito da história,
seja ela história de uma vida, seja ela história da humani-
dade. A antropologia e a psicologia são ciências que com-
partilham, além de uma história comum, preocupações re-
lativas à compreensão da cultura e das formas de pensa-
mento humano.
5. DA MATTA, R. "O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological
blues", In: NUNES, Edson de O. (org.).A aventura sociológica, p. 28.
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