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75 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Unidade II Estudamos os conceitos de Estado e demais correlatos partindo da perspectiva de diversos autores. Agora, voltando o nosso olhar para o entendimento de outros conceitos, os quais nos permitem compreender a dinâmica da realidade contemporânea, sobretudo no que diz respeito à participação social e ao poder das redes, também veremos aspectos afetos ao desenvolvimento capitalista e acerca da atual configuração do Estado de influência neoliberal. Isso porque olhar para o Estado hoje requer essencialmente voltar‑se para a totalidade de fenômenos que condicionam a vida em sociedade, assim como trazem influências para a própria organização estatal da atualidade. Dito isto, convidamos você para conhecer a perspectiva de Boaventura Santos acerca da participação social e também a de Manuel Castells a respeito do poder das redes. Na sequência, apresentaremos a você informações gerais acerca do atual estágio de desenvolvimento capitalista que vem assentado na globalização e na tecnologia e encerraremos com a discussão sobre o Neoliberalismo. Iniciamos com a compreensão de Boaventura Santos sobre a participação popular. 5 A PERSPECTIVA DE BOAVENTURA SANTOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL E O CONTEXTO HISTÓRICO DO BRASIL 5.1 A democracia e a participação popular de Boaventura Santos Boaventura Santos é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e graduado em Direito. Fez sua tese por meio da observação da vida cotidiana em favelas do Rio de Janeiro, e toda a sua produção teórica, antes do doutorado, sempre esteve voltada para a análise crítica da sociedade. Atualmente, além de advogado, Boaventura é sociólogo, e suas produções têm sido orientadas para discutir a globalização, os direitos humanos e as questões afetas à democracia. Voltaremos o nosso olhar para o entendimento de Boaventura Santos acerca da participação social. Saiba mais Para conhecer um pouco mais da obra desse autor, propomos a leitura do texto: PEREIRA, M. A.; CARVALHO, E. Boaventura de Sousa Santos: por uma nova gramática do político e do social. Lua Nova, São Paulo, n. 73, 2008. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=67311189002>. Acesso em: 19 ago. 2016. 76 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Iniciamos afirmando que para o autor o conceito de participação social vem diretamente influenciado pelo conceito de democracia e a este relacionado. Assim, entender a participação popular demanda entender a democracia. A participação popular só é possível em um regime, de fato, democrático. Podemos então nos perguntar: o que é democracia? Poderíamos rapidamente responder: é o governo de todos para todos. Correto? Não. Segundo Santos, em Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social (2007), democracia não é apenas o governo de todos e para todos, mas o governo em que todos tenham voz e todos tenham visibilidade. No governo democrático, de acordo com o autor, temos a discussão pública, o debate de diversos atores sociais, motivo pelo qual a democracia não pode estar restrita ao sistema de representação, mas deve ser entendida como os múltiplos espaços que passam a ser construídos visando à participação de toda a sociedade, a fim de discutir assuntos de interesse coletivo. Assim, a democracia, para ser efetivada, demanda que as pessoas de uma determinada sociedade exponham suas necessidades e construam uma nova forma de diálogo entre Estado e Sociedade Civil. A figura a seguir nos chama a refletir sobre os processos de decisão. Figura 9 – Participação democrática A figura demonstra a organização do MST, que em setembro de 2016 invadiu o prédio do Ministério do Planejamento exigindo direitos relacionados à Reforma Agrária. Nessa forma de organização temos um modelo de participação social e, por conseguinte, de democracia. De tal maneira, Santos nos diz que ainda não temos uma sociedade democrática. Aliás, o autor chama a nossa atenção para o fato de que hoje a sociedade capitalista se diz democrática. Há uma grande quantidade de Estados que diz possuir uma gestão democrática, mas, de verdade, não a têm. Esses Estados acabam reduzindo a democracia ao voto, que nem sempre é obrigatório, e não instituem outros espaços de participação popular. No sentido posto, o autor nos coloca que o que temos é uma democracia liberal. Sabe o que é isso? 77 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Santos (2007) entende que a democracia liberal seria a democracia condicionada à liberdade viabilizada pelo mercado, ou seja, há muitas escolhas que só estão acessíveis aos segmentos que possuem certa situação financeira, o que os permite escolher. Assim, a democracia liberal não seria uma democracia que chegaria e envolveria a todos, a toda população, mas somente àqueles que possuíssem poder aquisitivo para escolha. O autor chama a nossa atenção para o fato de que essa forma de democracia luta para se manter. Eventualmente, faz concessões no sentido de partilhar o poder, buscando assim evitar embates da população excluída dos processos decisórios, assim, partilha algumas instâncias de poder com a população geral, mas mantém seu controle e predomínio dos espaços mais relevantes de poder. É bastante singular e relevante o termo usado por Santos (2007) em suas obras em que o autor nos diz que precisamos democratizar a democracia, ou seja, nos fala que precisamos de outros espaços que nos permitam efetivar, de fato, a participação democrática, que ainda não está plenamente constituída em todo o mundo. Aliás, é preciso aqui destacar que Santos entendia que as análises sobre os espaços democráticos, sobre a democracia e sobre o Estado até então estavam sustentadas em estudos realizados na Europa, e, para ele, essas análises não seriam suficientes para explicar as singularidades presentes na realidade latino‑americana, dadas as especificidades observadas nesse contexto. É necessário ainda ressalvar que o autor em pauta realizou inúmeras viagens pelo mundo a fim de apreender a realidade e a cultura de outros povos. De tal maneira, é necessário, no entanto, apontar que a luta pela ampliação dos espaços democráticos é inerente ao gênero humano e encontra várias expressões pelo mundo. Assim, se por um lado ainda temos em grande medida a democracia liberal instituída, também temos, por outro lado, conforme Santos (2007), movimentos sociais de luta e embate pela mudança das relações de poder estabelecidas socialmente. A luta pela democracia se desenvolve ao longo da história, e essa luta não tem uma forma hegemônica, mas vem das condições experimentadas por cada uma das realidades dos países. Aqui, um contraponto: Santos (2007) entendia que não há como traçar uma referência única dos movimentos de reivindicação democrática. Apenas nos diz que os movimentos sociais, em diversas partes do globo, são preponderantes nesse aspecto, posto que questionam determinadas situações já instituídas e viabilizam a exposição dos pontos de vista da população. Mas os movimentos pela ampliação da democracia, assim como os movimentos sociais de reivindicação dos direitos sociais e de demais aspectos afetos à vida humana, também são condicionados pela realidade circunscrita em uma determinada região ou país. O que vemos nos trabalhos de Boaventura Santos, a nosso ver, é que o autor busca fugir de explicações genéricas e pretende evidenciar a necessidade de encontrarmos “explicações” focais sobre fenômenos contemporâneos queenvolvem a participação popular. Em tese, sabemos que essa forma diferenciada de compreender os fenômenos sociais origina‑se de mudanças processadas na ciência e na produção de conhecimento, sobretudo a partir de meados do século XX. Agora, as formas de analisar, compreender e conhecer o mundo são alteradas. As metanarrativas e os paradigmas globais e amplos passam a ser substituídos por explicações assentadas no aspecto focal, localizadas em uma determinada realidade. 78 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Derivando de tal perspectiva, podemos compreender que, assim como as formas de expressão popular não possuem, segundo Santos, uma direção única e focal, também não podemos definir um caminho único do que pode ser entendido como democracia, tampouco podemos definir um modelo geral de viabilizar a participação popular. Tudo isso decorre de uma série de fatores, como o desenvolvimento econômico, político e social presentes em uma determinada sociedade. Assim, há espaços e possibilidades democráticas para serem constituídos no Brasil e que funcionariam muito bem, mas que não seriam tão efetivos no Chile, por exemplo. No entanto, a construção democrática, segundo o autor, em grande parte dos países, passa pela constituição e existência dos movimentos sociais. Santos nos diz que os movimentos sociais, como feminista, de igualdade racial, de homoafetividade, de lutas da juventude, de idosos, ecológicos, enfim, todos os movimentos sociais são atores fundamentais e importantes no processo de abertura e luta para a democratização. Lembrete Os movimentos sociais também são espaços de participação política e, consequentemente, dispositivos de democratização. Santos (2007) chama a nossa atenção para o fato de que o homem tem sua subjetividade determinada de acordo com a realidade que vivencia. O ser humano habituado a participar e a decidir possuirá uma subjetividade distinta daquele que não é estimulado a fazê‑lo. As novas formas de democracia fundam uma nova subjetividade no homem. No entanto, em países e em locais onde a democracia inexiste, mesmo contemporaneamente, vemos também uma subjetividade diferente. Por exemplo, no Brasil estamos nos acostumando à ideia de democracia para além do voto. Aqui, é livre o direito de expressão, que tem sido potencializado na sociedade contemporânea. Se analisarmos a realidade de outros Estados, por exemplo, a Coreia do Norte, em que há um governo extremamente ditador, veremos que a população não tem uma perspectiva de participação tão aguçada quanto a do brasileiro. Assim, as subjetividades acerca da participação e da democracia do brasileiro e do coreano são extremamente distintas porque decorrem de suas experiências e de sua realidade concreta. Como não há receita de bolo para o exercício democrático ou um mapa da mina que permita a construção de um Estado de fato democrático e participativo, Santos (2007) nos diz que a instituição de tal formato de gestão só é possível por meio do estímulo à emancipação social. Assim, conforme o autor, independentemente do contexto econômico, social e político do país, é necessário e fundamental o estímulo à emancipação social. É preciso que você esteja, de fato, atento a isto que iremos colocar, ou seja, o conceito de emancipação social assume grande relevância e importância no conceito de democracia e de participação popular. Observação O conceito de emancipação social é fundamental ao entendimento da democracia contida na abordagem de Boaventura Santos. 79 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Mas em que consiste a chamada emancipação social? Santos (2007) nos diz que a emancipação social é constituída por meio de uma série de relações emancipatórias nas quais o ser humano é estimulado, de forma coletiva, a participar das relações de poder. O homem não nasce sabendo o que é uma relação emancipatória, mas vai construindo esse tipo de relação que, para ter significado e sentido, precisa ser solidificada de forma conjunta, coletiva. Como tal, faz parte do processo de humanização do gênero humano, ou seja, tais relações só são possíveis quando o homem atinge um determinado estágio de desenvolvimento. Nossa sociedade possui todas as condições para estabelecer relações emancipatórias, mas estas precisam ser estimuladas entre os homens. A emancipação social só poderá efetivar‑se, no dizer de Santos (2007), se forem estabelecidas relações emancipatórias nas quais aconteça a partilha de poder e de decisões. Portanto, não há como efetivar a emancipação social sem as relações emancipatórias, sem as relações que efetivam a partilha do poder. A emancipação é tão relacional como o poder contra o qual se insurge. Não há emancipação em si, mas antes relações emancipatórias, relações que criam um número cada vez maior de relações cada vez mais iguais. As relações emancipatórias desenvolvem‑se, portanto, no interior das relações de poder, não como resultado automático de qualquer contradição essencial, mas como resultados criados e criativos de contradições criadas e criativas (SANTOS, 2007, p. 269). Quanto às relações de poder, de acordo com Santos (2007), é necessário destacar que só se tornam emancipatórias caso se transformem em relações de poder compartilhadas. Essas relações de poder compartilhadas seriam possíveis por meio da ampliação de esferas públicas, espaços de debate, de interlocução de diversos atores sociais e que também possibilitassem a decisão dos participantes. A longo prazo, o autor compreende que a emancipação social viabilizaria a transformação das desigualdades sociais, visando assim sua minimização. Ora, se o Estado representasse o desejo de todos, a necessidade de todos, buscaria alcançar níveis mais elevados de igualdade e de justiça social. Partindo da instituição da emancipação social, teríamos, conforme Santos (2007), a criação de uma nova linguagem entre a sociedade civil e o Estado. Surgiria uma nova gramática social e cultural, um novo diálogo. Aliás, o autor tece críticas e se afasta do marxismo por entender que tal corrente não realizou uma análise que considerasse as atuais configurações da sociedade, que teríamos agora a possibilidade de maior diálogo entre a sociedade e o poder público. Para dar vazão a essa nova forma de linguagem chamada gramática social e cultural, é necessária a inovação institucional, ou seja, espaços institucionalmente constituídos que viabilizem a participação política dos diversos segmentos na esfera pública. Sem esses espaços a participação popular permanece apenas no diálogo e no discurso, mas não é efetivada na prática. Esse espaço de participação é um exercício comum e coletivo que deve oferecer possibilidades iguais de partilha do poder e de decisão entre os diversos segmentos. Quando englobar os diferentes atores sociais, teremos a partilha do poder, dos espaços de decisão e, somente a partir de então, poderemos construir uma sociedade mais justa. 80 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Essa sociedade estaria assentada na Democracia Social e nos processos de participação social. Concluindo nossas colocações sobre esse autor, vejamos o texto a seguir. Democracia na lupa de Boaventura de Sousa Santos “Por que é que hoje é muito fácil um país ser democrático? Por que é que hoje somos todos democratas”? Foi com estas interrogações provocadoras que Boaventura de Sousa Santos iniciou a sua palestra no auditório da Rádio Moçambique, naquela tarde de quarta‑feira, 11 de julho. Uma quarta‑feira “iluminada”,diga‑se de passagem, pois o maior sociólogo português tinha no mesmo dia, mas no período da manhã, ministrado uma aula magistral na Escola de Comunicação e Artes da UEM. As respostas às suas perguntas consubstanciaram a aula de quase uma hora atentamente acompanhada por intelectuais, professores universitários, jornalistas, estudantes universitários e outros cidadãos anónimos que se interessaram pelo sugestivo tema de “democratizar a democracia”. Segundo o sociólogo, o actual contexto em que se produz e se reproduz a democracia é muito diferente do contexto de há 10 anos. Hoje, explica, a democracia tornou‑se o único sistema legítimo e legitimado por pessoas e instituições que antes lutavam contra ela. O actual contexto apagou a velha tensão entre a democracia e o capitalismo, justamente porque as instituições financeiras internacionais que propagam o capitalismo, nomeadamente o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial, são hoje as reguladoras da democracia. “O capitalismo floresce onde há democracia”, declarou o Professor Catedrático da Universidade de Coimbra. Sendo a democracia um condicionalismo para o capitalismo, o seu florescimento acabou com as políticas sociais do Estado, reduzindo a intervenção deste aos serviços mínimos. Tudo está privatizado e a regulação da economia ficou confiada ao mercado, este por sua vez dominado pelo grande capital internacional. Em nome de atracção de mais investimentos privados, o Estado deixou de tributar as empresas, incluindo as multinacionais. Resultado: não tem dinheiro e vai pedir empréstimos, o que lhe faz perder a soberania no plano internacional. É que os empréstimos, quer a título concessional, quer a título comercial, acarretam sempre condicionalismos. “Um Estado quando tributa as empresas é soberano, pois tudo ocorre a nível interno”, considerou o sociólogo. Viragem Há bem pouco tempo, a grande discussão entre os cientistas sociais era sobre as condições de possibilidade de uma democracia. Agora, diz ele, o debate virou e a democracia é a condição de todo o resto. “É muito suspeito que a democracia venha hoje ser defendida por quem não só nunca a defendeu, mas também defendeu ditaduras”. 81 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Com a democracia ligada ao capitalismo neoliberal, os países vivem e convivem com duas constituições, nomeadamente a nacional, do país, e a grande constituição das multinacionais e das instituições financeiras, o constitucionalismo global, para usar as palavras de Boaventura de Sousa Santos. Outra consequência apontada por ele é a grande dispersão do poder político. “Agências nacionais e sobretudo internacionais têm um grande poder de decisão, mas não foram eleitas”. A falta de transparência, o fraco regime de regulação das empresas multinacionais, o neopatrimonialismo e a corrupção são outras consequências da democracia representativa, um modelo onde os cidadãos não decidem sobre o seu próprio devir, mas delegam alguém a decidir por eles. Trata‑se de problemas, sendo que alguns deles decorrem do facto de os mercados políticos, dominados por convicções, e económicos, dominados por valores que se vendem e se compram, terem‑se fundido. Essa fusão faz com que em política tudo se compre e tudo se venda. “Enquanto os dois mercados estiverem fundidos, não há forma de a democracia ser uma anomalia, não há forma de a corrupção ser combatida”. Dupla legitimidade A coexistência de várias legitimidades políticas é apontada pelo orador como um grande risco para a democracia em África. Muitos países africanos têm partidos que convivem com duas legitimidades, nomeadamente a revolucionária e a democrática. “O ANC, por exemplo, tem duas legitimidades, a revolucionária (foi ele quem lutou contra o Apartheid) e a democrática. Quando uma enfraquece recorre à outra”, explicou. Democracia de baixa intensidade Boaventura de Sousa Santos chama democracia de baixa intensidade àquela que não reconhece outras formas de participação. Ou seja, ela bloqueia a cidadania através da exclusão política e social, das imposições internacionais e da trivialização da participação. “Os cidadãos são chamados a decidir em coisas cada vez menos importantes”, ilustrou. Esta democracia de baixa intensidade não reconhece também as outras legitimidades, sobretudo as tradicionais. Se na Europa as autoridades tradicionais estão no topo, os Reis e as Rainhas, em África as autoridades tradicionais estão em baixo, os Régulos. “Muitas vezes as formas comunitárias de resolução de conflitos são marginalizadas em África, desperdiçando‑se uma valiosa experiência de justiça”. Para ele, o que pode parecer à luz da democracia representativa uma “fraude”, é uma forma interessante de democracia comunitária. 82 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II “Democratizar a democracia é não limitá‑la ao voto, mas encontrar outras formas de democracia, de participação”, apelou. O orador recordou que a democracia representativa não é falsa, mas ela é residual, porque monocultural. “Quando não temos um reconhecimento intercultural, temos uma democracia de baixa intensidade. E só podemos lutar por uma democracia de alta intensidade se reconhecermos que temos uma democracia de baixa intensidade.” Ainda sobre a democracia, o sociólogo questionou por que razão partidos políticos que lutam por ela não são eles mesmos democráticos a nível interno, por que muitas ONGs que lutam pela democracia não são elas mesmas democráticas? “Alguns têm dirigentes que nunca foram eleitos.” Fonte: Lamarques (2012). Exemplo de aplicação Pensemos um pouco sobre o texto em que temos retratada a perspectiva de Boaventura Santos. Seria possível a instituição de uma democracia de fato, tal como a idealizada pelo autor? Há possibilidade de ser implementada uma democracia global e que envolva os segmentos sociais em sua totalidade? Reflita sobre isso, discuta melhor esses conceitos e busque identificar na realidade presente experiências que visem, de fato, ampliar os espaços efetivamente democráticos. Na sequência, de maneira bem pontual, indicaremos algumas observações acerca do processo democrático que vivenciamos em nosso país. 5.2 O Brasil e a Democracia Behring e Boschetti (2010) nos dizem que a constituição democrática no Brasil teve seu início na década de 1980. Na verdade, retomando brevemente a história de nosso país, veremos que nunca foram instituídas possibilidades efetivas de participação popular. No sentido em voga, é preciso destacar que desde o golpe militar nos anos 1930, em que tivemos a tomada de poder por parte dos militares e no qual Getúlio Vargas foi eleito presidente, sempre tivemos em nosso país a ausência de participação da população. A existência, no período em questão, das chamadas eleições indiretas representa um aspecto da ausência de participação popular comum em tal formato de Estado. Couto (2010) nos coloca que na época colonial poderiam votar apenas homens brancos e ricos, estando excluídos desse direito os demais segmentos sociais, como mulheres, escravos e homens pobres. Na verdade, a questão de escolha de representantes é apenas um dos aspectos da efetivação democrática, mas o interessante é saber que mesmo esse aspecto foi impedido aos brasileiros por muitos anos. A ausência de participação política no Brasil foi potencializada na Ditadura Militar, período que se desenhou no país em meados da década de 1960. Nesse contexto, os presidentes que assumiram o poder recorreram a uma série de dispositivos inibidores da participação, que foram desde a coação, o exílio e a agressão física até casos com a morte.83 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Couto (2010) nos diz que o governo, nesse período, restringiu as liberdades políticas, a liberdade de expressão e punir severamente todos os segmentos que se contrapuseram ao poder do Estado. Associada à intensa repressão, observamos uma precarização da vida em geral, posta pela ampliação das situações de pobreza que afetavam os brasileiros. Em decorrência disto, em meados de 1970, observamos que os movimentos sociais, reivindicando melhores condições de vida e também requerendo a abertura política, passaram a ser ampliados, resultando no processo de distensão política. A década de 1980 representa o esforço da sociedade brasileira para ampliar os processos de participação da população. Grande parte dessa expressão é posta pelo movimento “Diretas Já”, que contou com a participação massiva da sociedade, mas que foi orientado pela UNE e por uma série de intelectuais, atores e músicos. Para tanto, somente em 1990 o direito ao voto direto, uma das reivindicações da sociedade, foi alcançado, sendo eleitos nesse processo Fernando Collor e Itamar Franco. Somente na década de 1990, conforme Behring e Boschetti, é que outras possibilidades de participação foram sendo apresentadas à população, para além do voto. É nesse contexto que surgem os conselhos de direitos, os conselhos gestores de políticas sociais, as experiências de orçamento participativo, entre outros afins que buscam a partilha do poder entre Estado e sociedade civil. Essa participação, no entanto, não está plenamente consolidada e carece ainda de uma série de ajustes para de fato ser implementada, mas está em construção. Na sequência, abordaremos a compreensão de Castells acerca da sociedade em redes. Siga em frente e continue com sua aprendizagem. 6 O PODER DAS REDES: A FORTUNA CRÍTICA DE MANUEL CASTELLS Manuel Castells é um sociólogo espanhol nomeado em 1979 como professor de Sociologia na Universidade de Berkeley, na Califórnia. Atualmente, exerce a docência na área de Comunicação na Universidade da Carolina do Sul. Seus estudos e pesquisas estão orientados a analisar o desenvolvimento tecnológico e a comunicação, compreendendo o papel que estes assumem na sociedade moderna contemporânea. Castells também teceu uma série de considerações sobre a economia capitalista globalizada e, por conta disso, cunhou o termo mundialização. A seguir abordaremos as questões afetas ao conceito de redes e sua potencialidade na sociedade contemporânea. Observação Por mundialização da economia Castells faz menção ao desenvolvimento capitalista globalizado. Assim, o conceito de redes descrito por Castells foi construído por uma análise que engloba também aspectos afetos ao desenvolvimento econômico e social presentes na sociedade contemporânea. De acordo com esse autor, temos de entender as redes como resultado de uma tendência histórica dos processos desenvolvidos em nossa sociedade pela evolução da era da informação e da capacidade de 84 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II organização em torno de redes. Portanto, a rede é construída na sociedade pós‑moderna e só é possível porque atualmente a sociedade experimenta um estágio de desenvolvimento tecnológico. Mas, em linhas gerais, o que podemos entender por rede? Vejamos a imagem a seguir, que nos fornece algumas indicações. Figura 10 – Sociedade em rede Na figura observamos o dispositivo de acesso à rede: o computador. Também vemos o acesso a uma rede de amigos. Tal vinculação a uma rede só é possível porque a pessoa tem acesso ao computador e à internet. Por conseguinte, a rede, para existir na sociedade contemporânea, precisa da informática e também do desenvolvimento tecnológico. Para tanto, a rede não se restringe apenas à troca de bits e pixels. A rede cibernética possibilita que as pessoas se relacionem, em relações de amizades, de estudo ou mesmo de comércio. As redes são estruturas abertas que se expandem para possibilitar a convivência de diversos grupos de pessoas que partilham dos mesmos códigos de comunicação, discussão e valores. Castells (1999) indica a necessidade de compreendermos a rede também como decorrente do atual estágio de desenvolvimento capitalista vivenciado pela sociedade. Por conseguinte, a rede não é só possível por esse motivo, mas também é constituída como um instrumento para potencializar o comércio, estimulando assim a extração de lucro e a ampliação de comércio. Assim, é necessário pontuar que a partir do desenvolvimento econômico contemporâneo o comércio passa a acontecer por meio das redes. Isso faz que as pessoas possam adquirir bens, produtos e serviços por meio da rede de computadores, por exemplo. No entanto, passa‑se a exigir que o ser humano esteja integrado por meio das redes. Melhor dizendo, para que você pertença a uma sociedade, você precisa usar dessa rede instituída. No sentido em voga, a rede não é apenas um meio para o comércio, mas também se constitui como um espaço para relações de trabalho e 85 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA até mesmo para relações afetivas. Aliás, as redes também são consideradas pelo autor como espaços que possibilitam maior intercâmbio cultural, assim como a difusão de valores e discussões políticas necessárias à sociedade democrática. Mas, para avançar nesse conceito de redes, vejamos a definição de Castells (1999): [...] redes são instrumentos para a economia capitalista baseada na inovação, globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas voltadas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise a suplantação do espaço e invalidação do tempo. Mas a morfologia da rede também é uma fonte de drástica reorganização das relações de poder (CASTELLS, 1999, p. 498). Dessa definição podemos extrair ainda outros conceitos sobre as redes, ou seja, além de se constituírem como mecanismos fundamentais na economia capitalista globalizada, são um dispositivo de expressão de relações de poder. Assim, a noção de rede de Castells não é restrita ao entendimento desse dispositivo apenas como um meio para o comércio, mas compreendida como uma forma de potencializar as possibilidades de comércio. Ainda visando entender a relação estabelecida entre o desenvolvimento capitalista e as redes, Castells nos coloca que a rede só é possível no mercado capitalista globalizado e por meio do surgimento do capital financeiro. Esse mercado passa a ser estruturado de uma maneira na qual não existem mais fronteiras que dificultem ou impeçam o comércio. O desenvolvimento tecnológico é vital nesse processo, ao passo que facilita e até barateia a aquisição de determinados itens. Exemplificando, hoje, facilmente podemos adquirir um produto que venha da China, e mesmo as taxas de translado não impedem que o comércio aconteça. Aliás, é comum nesse mercado globalizado que os valores relacionados às aquisições sejam barateados, cada vez mais, objetivando o estímulo ao comércio. Essa forma de mercado, de comércio, conforme Castells, visa à maior extração do lucro e depende essencialmente do conhecimento e da tecnologia. A extração do lucro passa a ser potencializada não apenas pela nova forma de escoar a produção, mas também em virtude do surgimento de uma nova modalidade de acumulação capitalista, possível por meiodo capital financeiro. Mas o que seria esse capital financeiro? O capital financeiro é um produto composto por títulos, certificados e outros documentos que representam produtos. Por exemplo, temos os bancos, que sempre nos ligam nos horários, para nós mais inadequados, visando à venda de seguros ou de convênios. Quando compramos um produto expresso em um serviço que não tem, em tese, uma materialidade, é diferente, por exemplo, de um sapato ou de uma bolsa. No capital financeiro, o produto, muitas vezes, não precisa de uma existência material. Nesses produtos podemos dizer que o capital consegue extrair praticamente 200% de lucro, posto que via de regra o único custo é com a mão de obra que vende o produto (pensando obviamente na venda de seguros por uma instituição financeira). O capital financeiro não é 86 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II uma forma de comércio apenas de bancos, mas também é bem comum em empresas privadas, e a venda de itens vinculados ao capital financeiro é substancialmente elevada pelo desenvolvimento tecnológico e pelas possibilidades trazidas pelo mercado global. Para melhor entender o capital financeiro, observe a definição do próprio autor: [...] tem duas características distintas fundamentais: é global e estruturado, em grande medida em uma rede de fluxos financeiros. O capital funciona globalmente como uma unidade em tempo real; e é percebido, investido e acumulado principalmente na esfera de circulação, isto é, como capital financeiro. [...] A acumulação de capital prossegue e sua realização de valor é cada vez mais gerada nos mercados financeiros globais estabelecidos pelas redes de informação no espaço intemporal de fluxos financeiros. A partir dessas redes o capital é investido por todo o globo e em todos os setores de atividade: informação, negócios de mídia, serviços avançados, produção agrícola, saúde, educação, tecnologia, indústria antiga e nova, transporte, comércio, turismo, cultura, gerenciamento ambiental, bens imobiliários, práticas de guerra e de paz, religião, entretenimento e esportes. [...] Qualquer lucro [...] é revertido para a metarrede de fluxos financeiros, na qual todo o capital é equalizado na democracia da geração de lucros transformada em commodities. Nesse cassino global eletrônico capitais específicos elevam‑se ou diminuem drasticamente, definindo o destino de empresas, poupanças familiares, moedas nacionais e economias regionais. O resultado da rede é zero: os perdedores pagam pelos ganhadores (CLS, 1995, p. 500). A nosso ver, é uma forma de capital que potencializa ainda mais as diferenças sociais, já que somente quem tem determinado poder aquisitivo pode participar da rede, e mais, somente quem tem condições financeiras extremamente favoráveis pode adquirir produtos financeiros. Mas Castells não deixa evidente a desigualdade social gerada pelas redes, ao menos não na obra consultada. Em se tratando das relações sociais, o autor entende que temos a diminuição dos postos de trabalho, já que agora toda a rede desenvolve o comércio e se efetiva sem a necessidade da mão de obra convencional. Mais um exemplo? Bem, antes do desenvolvimento tecnológico, pensando em uma livraria, quantos trabalhadores eram necessários? Pensando atualmente, podemos comprar livros na internet e recebê‑los em nossa residência. Nesse formato, em que compramos na rede, quantos trabalhadores são necessários? Vemos que os postos de trabalho estáveis diminuem substancialmente. Por outro lado, Castells (1999) entende que isso não representaria a possibilidade futura de desemprego em massa. O autor nos diz, entretanto, que essas mudanças tornam o trabalho flexível, podendo ser realizado em qualquer local, deslocando o processo produtivo do chão da fábrica. Isso faz que o trabalho seja mais individualizado, ou seja, para exercer um trabalho, não é mais necessário um espaço coletivo. Castells (1999) indica‑nos que isto resultou na perda de vínculos e, consequentemente, na perda da identidade coletiva dos trabalhadores. 87 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Apesar de aparentemente ignorar a existência de grandes contingentes de desempregados após a ascensão da globalização e do mercado em rede, Castells (1999) indica que temos a ampliação das condições precárias de trabalho. Para o autor, temos a ampliação da quantidade de trabalho sem garantias trabalhistas, ou seja, trabalho em que os direitos do trabalhador não são respeitados. Além disso, o autor chama a nossa atenção para a ampliação, após o desenvolvimento da globalização, do trabalho infantil. Se por um lado as redes ampliam e fortalecem o desenvolvimento capitalista, por outro, conforme Castells (1999), também possibilitam a transmissão de valores e da cultura, como indicamos anteriormente. Agora, a cultura e a informação são viabilizadas por meio de hipertextos. O hipertexto é um conteúdo escrito, mas que confere acesso a referências específicas de forma digital, essas denominadas hiperlinks. Para melhor demonstrar, observe a imagem institucional do site da UNIP. Figura 11 – Site institucional da Unip Nessa imagem, temos um hipertexto. Por exemplo, acessando o site e clicando no ensino presencial seremos automaticamente direcionados para essa página, em que teremos à nossa disposição uma série de outros links, com várias informações. Assim, de um site somos direcionados a outros e temos uma gama elevada de dados via internet. Para concluir nossas considerações, é preciso destacar que, conforme Castells (1999), as redes não apenas transformam o comércio, mas também provocam alterações significativas em toda experiência humana. O homem é, portanto, profundamente influenciado pela nova forma de organização em questão, e as redes passam a delimitar todas as relações humanas. 88 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Assim, concluímos nossos estudos sobre os conceitos de Castells (1999) e na sequência faremos uma breve exposição dos conceitos afetos ao desenvolvimento global e tecnológico. Já indicamos no texto supra algumas informações a respeito de tais conceitos, mas agora passaremos a oferecer informações genéricas a respeito desse formato de organização do grande capital. Saiba mais Talvez uma das redes sociais mais utilizadas e conhecidas seja o Facebook. O filme a seguir narra o surgimento dessa rede social. Vamos conhecer essa história? A REDE social. Dir. David Fincher. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2010. 121 minutos. 7 CAPITALISMO GLOBAL E TECNOLÓGICO Adentremos os conceitos de capitalismo global e tecnológico dando início ao entendimento sobre as bases iniciais do surgimento desse novo formato de acumulação capitalista. Dupas (1998) nos diz que as bases iniciais do que denominamos capitalismo global nos levam ao século XV, quando tivemos o início do comércio marítimo no mundo. Para o autor, os primórdios do capitalismo global no mundo aconteceram no século XV. Nesse período teve início o comércio marítimo no mundo, ou seja, a partir de então alguns países se direcionaram para outros espaços, nos quais pudessem ter acesso a bens não produzidos em sua economia local. Durante o século XV, entretanto, não havia, por parte dos filósofos, o entendimento de mercado globalizado. Mas, por sua natureza, entendiam‑no como uma base bastante rudimentar da globalização econômica. Isso porque tal comércio extrapolava as fronteiras instituídas e que dificultavam a circulação de mercadorias. Santos (2007) nos dizque a globalização econômica, no que concerne a ampliar as possibilidades de comércio, deu um novo salto a partir da emergência da Revolução Industrial, no século XVIII. A produção deixa o caráter manufatureiro e passa para o industrial, e em grande quantidade. O surgimento da energia a vapor e a introdução de novos maquinários faz que a produção seja ampliada e que seja possível assim alcançar o lucro. Nos anos 1980, já com a produção assentada na energia elétrica, temos a introdução das tecnologias junto ao processo produtivo, e, posteriormente, nos anos 1990, é associada a essa tecnologia a informação. Os processos tecnológicos de base na microeletrônica e na robótica potencializam significativamente o processo produtivo. Mas, mesmo assim, ainda havia entraves ao comércio. A partir de então, para facilitar o comércio, já que a produção havia sido acelerada por meio de uma série de tecnologias, as fronteiras e os entraves começam a ser derrubados. 89 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA À medida que temos o afrouxamento das fronteiras, que antes impediam ou dificultavam o comércio entre os países, temos a globalização, ou o capitalismo global. Santos (2007) denomina esse processo como mercado global. O capitalismo global ou o mercado global fazem menção ao livre‑comércio, que é potencializado a partir de meados dos anos 1990. O capitalismo global é construído e solidificado por meio da possibilidade da livre‑circulação de capitais, agora livre de controle. A tecnologia, por sua vez, está presente tanto na produção quanto no escoamento. A produção torna‑se mais ágil, veloz e com menos desperdício. As novas tecnologias têm condição de produzir mais rápido e com mais qualidade. As formas de venda também são melhoradas substantivamente, ou seja, fica mais fácil comprar, sobretudo pela internet, e, consequentemente, vender. No entanto, Santos (2007) nos coloca que a adesão à tecnologia resulta no desemprego de vários contingentes populacionais. Isso porque, nos locais em que seria necessário o trabalho de vários homens, a tecnologia os substituiu. Isso resulta em grande desemprego, subemprego e faz crescer o trabalho precário, terceirizado e, consequentemente, sem garantia de direitos. Dupas (1998) nos diz que isso faz aumentar também os serviços de home care, ou seja, a prestação de serviços em casa, destinados a um público específico. Já Santos (2007) nos coloca que isso resulta na ampliação substancial de problemas sociais, como a fome, o desemprego, a discriminação das classes sociais e o aumento generalizado e total da miséria. Santos (2007) acredita que devamos construir uma globalização para todos, assentada em valores humanos e solidários e que viabilize as mesmas condições de vida a quem quer que seja. Mas, segundo o autor, o que vemos hoje é que a globalização não é para todos. Para estar inserido em um mundo globalizado é necessário acesso ao mínimo de desenvolvimento tecnológico, algo que, como sabemos, é impossível para as populações vulneráveis. Apesar disto, a consciência criada, conforme Santos (2007), é de que todos integrariam a mesma comunidade, como se o mundo pertencesse a todos. Acredita‑se que todos façam parte de um mundo único. O autor nos diz que a esse conceito denominamos aldeia global, termo pelo qual designa esse suposto mundo sem fronteiras e do qual todos acreditamos participarmos. Assim, a globalização não expressa apenas eventos ligados à economia; da mesma forma, está relacionada a novas possibilidades de perda das fronteiras também para as relações sociais. Isso posto, concluímos nossas colocações sobre o desenvolvimento global e tecnológico do capitalismo e passaremos a conhecer o Neoliberalismo. 8 NEOLIBERALISMO Prezado aluno, agora chegamos ao final dos nossos estudos, ou, melhor dizendo, chegamos ao final de nosso material de referência para estudos. A seguir, abordaremos a questão do Neoliberalismo, um conceito que não é apenas fundamental para entendermos a constituição do Estado na década de 1970, como também para compreendê‑lo em sua atual configuração. Abordaremos o desenvolvimento desse conceito no cenário internacional e na sequência apresentaremos o desenvolvimento do Neoliberalismo no Brasil. 90 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II O sufixo neo, que compõe a palavra Neoliberalismo, como bem sabemos, significa “novo”. Por conseguinte, Neoliberalismo faz menção a novo liberalismo. Assim, quando nos referimos ao Neoliberalismo estamos nos reportando às novas bases ideológicas que foram consideradas como sustentação ao formato de Estado, e que conduziram sua ação. Essas bases ideológicas em questão provêm da doutrina liberal. Antes de darmos seguimento a nossas considerações acerca do Neoliberalismo, façamos uma pequena pausa, em que apresentaremos a você algumas informações sobre a doutrina liberal. 8.1 O Liberalismo, o papel do Estado e o Welfare State O Liberalismo teria surgido entre os séculos XVI e XVII na Europa, tendo como seus principais defensores os filósofos David Ricardo e Adam Smith. Associaram‑se a essa corrente de pensamento também teóricos como Maquiavel, Hobbes e Rousseau. Podemos dizer que o Liberalismo é uma corrente teórica e filosófica que entende o mercado como instância máxima e suprema para a atenção de todas as necessidades apresentadas pelo ser humano. Assim, cada indivíduo tem condições igualitárias de se desenvolver e deve usar todas as suas potencialidades. As oportunidades, segundo essa corrente de pensamento, estariam abertas a todas as pessoas. Caberia a cada um saber aproveitar as oportunidades que a vida lhe conferisse, extraindo dela o que houvesse de melhor e assim preenchendo as suas necessidades (BEHRING; BOSCHETI, 2010). Portanto, podemos dizer que para a corrente liberal é por meio do trabalho que o homem consegue atender as suas necessidades. O trabalho, assim como o mercado, não demanda regulação, aliás, esses aspectos econômicos possuiriam um desenvolvimento natural, independentemente de qualquer intervenção de mecanismos externos. Melhor dizendo, conforme a doutrina liberal: “[...] o princípio do trabalho como mercadoria é sua regulação pelo livre‑mercado” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 56). Dessa maneira, as relações econômicas seriam reguladas por uma suposta “mão invisível” do mercado. Por analogia, podemos entender que compete apenas e tão somente a cada indivíduo atender às suas necessidades. Se não consegue fazê‑lo, é em razão da sua incapacidade e da sua incompetência. Assim, as condições econômicas e que costumam favorecer as dificuldades de determinadas classes sociais não eram consideradas na perspectiva liberal. As dificuldades de sobrevivência passam a ser individualizadas, ou seja, conferidas à responsabilidade do indivíduo que não soube se desenvolver ou não soube aproveitar todas as oportunidades que a vida lhe conferiu. Prezado aluno, pense bem, será que esse discurso foi suprimido em nosso cotidiano? Quem nunca ouviu frases do tipo: “Fulano é assim porque gosta de ser pobre” ou, então, “Beltrano não trabalha porque não quer”. E por aí vai. São expressões da perspectiva liberal na individualização de problemas que têm uma raiz econômica e social. Assim, se o mercado possui potencialidades de se regular, se cada indivíduo pode atender às suas necessidades independentemente de qualquer situação, qual seria então o papel do Estado para a corrente liberal? Ao Estado caberia viabilizar serviços que não fossem interessantes para a iniciativa privada e para o mercado. Podemos citar como exemplo desses serviços a construção de presídios, de infraestruturamínima para o florescimento da economia capitalista e a ampla extração do lucro. 91 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Behring e Boschetti (2010) nos dizem que era atribuída ao Estado a responsabilidade de administrar situações de guerra, além de ser a ele atribuída a gestão de conflitos individuais, ou seja, o Estado não deveria intervir no sentido de administrar problemas sociais, como: “[...] a defesa contra os inimigos externos; a proteção de todo o indivíduo de ofensas dirigidas por outros indivíduos; e o provimento de obras públicas, que não possam ser executadas pela iniciativa privada” (op. cit., 2010, p. 60). Você pode até se perguntar: Mas e a pobreza? E os problemas sociais? A quem caberia? Caberia a cada ser humano, a cada indivíduo que deveria garantir a sua sobrevivência e a daqueles que lhes sejam próximos. Aliás, um dos teóricos que defendiam a doutrina liberal, Malthus, chegava até a propor que para a vida em sociedade seguir o seu curso seria fundamental a eliminação de alguns pobres. De forma que o Liberalismo pressupunha que o Estado não realizasse qualquer intervenção junto à pobreza ou qualquer outro problema social. É o chamado “Estado Mínimo”, por meio do qual se designou que o Estado faz intervenções mínimas, sobretudo junto aos problemas sociais. O conceito de Estado Mínimo seria, conforme Behring e Boscheti, sustentado pela crença de que intervenções sociais, como as políticas sociais, seriam prejudiciais à sociedade porque estimulariam o ócio da população pobre. Ou seja, não caberia ao Estado intervir em problemas sociais por meio de políticas sociais, como a saúde gratuita, por exemplo. Em tese, o argumento liberal compreende que essas intervenções públicas destinadas à população pobre colaborariam para que estas se tornassem ociosas. Além disso, acreditava‑se que essas intervenções seriam custosas demais e elevariam, em muito, os gastos do Estado. Por conseguinte, políticas sociais seriam também consideradas como ações que iriam onerar o Estado. As únicas possibilidades de intervenção estatal permitidas à doutrina liberal seriam em caso de emergência, ou seja, as políticas sociais seriam paliativas. Por exemplo, no caso de uma situação de calamidade pública ou na ocorrência de uma endemia, nesses casos, a ação do Estado não só era permitida quanto era necessária. Assim, o que vemos, em grande monta, conforme Behring e Boschetti nos dizem, é uma potencialização do individualismo, já que o homem se vê numa luta de vida e morte para sobreviver em um mundo cada vez mais competitivo. Além disso, é mister destacar que a doutrina liberal entende que o indivíduo que consegue se desenvolver colabora para que a sociedade também alcance o bem‑estar. No entanto, o ser humano que não consegue se desenvolver colabora para a ocorrência de prejuízos para a sociedade. Por conseguinte, os indivíduos que apresentam dificuldades para atender às suas necessidades sociais seriam, digamos assim, os “responsáveis” pelos problemas gerados na sociedade. Os problemas sociais, segundo essa ótica, seriam individuais e naturais, inerentes à sociedade. É um entendimento segundo o qual a pobreza existe, integra a vida dos homens e não há nada que possa ser feito para mudar essa condição. Assim, o desenvolvimento capitalista não era considerado como responsável pelos problemas apresentados pelos indivíduos, mas sim como algo que era integrante da natureza daquela determinada sociedade. Behring e Boschetti (2010), sintetizando os principais conceitos difundidos pelo Liberalismo, indicam‑nos os seguintes aspectos: 92 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II [...] predomínio do individualismo, o bem‑estar individual maximiza o bem‑estar coletivo, predomínio da liberdade e competitividade, naturalização da miséria, predomínio da lei da necessidade, manutenção de um Estado Mínimo, as políticas sociais estimulam o ócio e o desperdício e por isso a política social deve ser apenas um paliativo (op. cit., p. 62). Foi dessa corrente teórica que o Neoliberalismo, que estudaremos na sequência, extraiu grande parte de sua fundamentação. Para que você consiga compreender a questão que lhe apresentaremos, é importante saber que a doutrina liberal foi hegemônica até meados dos anos 1920‑30 em todo o mundo. O que isso significa? Significa que grande parte dos Estados do mundo tinha sua forma de gestão orientada por tais ideais. Mas essa doutrina não foi sempre hegemônica e começou a apresentar sinais de seu esgotamento a partir da Crise de 1929‑1930. Nesse contexto, de acordo com Behring e Boschetti (2010), vivenciamos uma grande crise capitalista de elevadíssimas proporções. Para minimizar os impactos dessa crise, vários teóricos, filósofos e economistas passaram a elaborar pesquisas, mas nenhum deles foi tão influente quanto John Maynard Keynes, tanto que as formulações de Keynes ficaram conhecidas por keynesianismo. Observação Keynesianismo é o termo conferido ao pensamento do economista John Maynard Keynes. Keynes foi economista, e como tal procurava uma alternativa à crise. A análise de Keynes identificou que o Estado deveria alterar o seu papel, ou seja, sua forma de agir, como um mero observador da realidade. Para Keynes era necessário que o Estado interviesse na economia, oferecendo a ela todos os meios necessários para se desenvolver. Mas, segundo esse pensador, também caberia ao Estado intervir nos problemas sociais. Behring e Boschetti (2010) nos colocam que essa intervenção nos problemas sociais deveria acontecer por políticas sociais. Estas deveriam garantir a sobrevivência da população que não conseguisse fazê‑lo por meio do mercado. Ainda destacavam a necessidade de o Estado garantir políticas sociais que viabilizassem acesso à renda para os segmentos que, por sua idade, seu estágio de desenvolvimento ou pela situação de suas vidas, não conseguissem trabalhar. Por exemplo, idosos, crianças ou pessoas com deficiência que fossem pobres, e que pelas suas especificidades não conseguissem trabalho, deveriam ter acesso a transferências de renda, mas também fariam jus às demais políticas e aos serviços sociais. Keynes propunha ainda que caberia ao Estado a criação do pleno emprego, que seria, como o nome sugere, a possibilidade de que todos com condições pudessem trabalhar. Além disso, o Estado deveria desempenhar todas as intervenções que fossem necessárias para o desenvolvimento econômico. Melhor dizendo, competia ao Estado: “[...] restabelecer o equilíbrio econômico via 93 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA política fiscal, creditícia e de gastos, via investimentos ou inversões reais que atuem nos períodos de depressão como estímulo à economia com vistas a conter a queda da taxa de lucros” (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 85). Dessa maneira, Keynes acreditava que o mercado seria reestimulado, que haveria novamente consumo e que a crise capitalista seria superada. As formulações de Keynes encontraram grande assento nos Estados, que passaram, aos poucos, a constituir Estados interventores. Esse formato de Estado, diferente do Estado de influência liberal, ficou conhecido pela terminologia Welfare State, ou Estado de Bem‑Estar Social. Saiba mais Uma proposta interessante para conhecer um pouco mais do contexto de expansão do Welfare State é o filme aqui recomendado, elogiado por intelectuais de esquerda, por representar, de forma concreta, a realidade vivida no Pós‑guerra. O ESPÍRITO de 1945. Dir. Ken Loach.Reino Unido: GB Film, 2013. 94 minutos. Na década de 1970 assistimos a uma nova grande crise capitalista que provocou mudanças no formato de Estado Welfare State. Surgiu aí o Neoliberalismo e foi desmontando, aos poucos, o Welfare State. Mas isso veremos no decurso deste material. Agora, deixamos você com o texto a seguir, que discute novamente parte do que abordamos. Solução para a crise Quando o Estado assume, como o fez ao longo dos séculos XIX e XX, um perfil que deixa ao mercado a responsabilidade maior pela organização da economia, trata‑se de um modelo liberal de Estado. O Liberalismo é um tipo de conduta ideológica que dá liberdade para o mercado e prevê um Estado mínimo, que não participa efetivamente da regulamentação econômica. O amplo incentivo à competição entre grupos empresariais seria o motor da economia. Liberalismo e Primeira Guerra Mundial No início do século XX, esta competição atingiu um nível internacional, ou seja, ela passou a ocorrer entre países, e é considerada um dos muitos fatores que levaram à Primeira Guerra Mundial – uma disputa ferrenha de países europeus por mercado. Pode‑se dizer que ali foi realmente o fim do século XIX – o século das grandes transformações, dos grandes desenvolvimentos. 94 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II A economia passava por momentos difíceis quando houve a Crise de 1929. Que atitudes deveriam ser tomadas pelo Estado? Maior intervenção na economia? Maior espaço ao livre‑mercado? Teses liberais propunham que o Estado mais uma vez interviesse menos na esfera econômica, mas o caminho da solução da crise não foi esse. O Estado de Bem‑Estar Social como solução para a crise Na década que se seguiu à Crise de 1929, o modelo que passou a ser adotado foi o do Estado de Bem‑Estar Social. Nele, o Estado é quem se responsabiliza pela política econômica, cabendo a ele as funções de proteção social dos indivíduos – educação, saúde, seguridade social. Além dos Estados Unidos, que pensavam em saídas para a Grande Depressão, países europeus como Noruega, Suécia e Suíça – até hoje conhecidos pelo alto nível de excelência em quesitos socioculturais e que se encontram nos lugares mais altos no ranking mundial de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) – foram os primeiros a adotar o modelo do Estado Social. Contexto Pós‑Segunda Guerra Mundial Se na década de 1930 o Estado de Bem‑Estar Social começou a ser implementado, foi após a Segunda Guerra Mundial que ele se fez mais presente, quando países do eixo capitalista se organizaram pela reestruturação da economia ocidental, devastada pelos horrores da guerra. A partir de então, o contexto era outro. Impulsionado pela ideia de cidadania e pelas pressões dos sindicatos trabalhistas por melhores condições, o Estado de Bem‑Estar Social, também conhecido como Estado‑providência, passou a defender o desenvolvimento econômico e social através do mercado, mas também, e sobretudo, rompendo com a lógica liberal, passou a tomar para si a responsabilidade pela proteção social dos cidadãos e por grandes investimentos e obras, comprometendo‑se a garantir educação pública, assistência à saúde, transporte, seguro‑desemprego etc. – o bem‑estar econômico e social da população. O propósito histórico do Estado de Bem‑Estar Social foi, portanto, ressuscitar a economia ocidental através de grandes investimentos na cidadania, o que veio a fortalecer um público consumidor para o mercado de massa, em plena ascensão na década de 1950. (Deve‑se notar que o Estado de Bem‑Estar Social foi um modelo adotado pelos países capitalistas considerados, à época, como primeiro mundo – deste modo, não estão incluídos os países periféricos (chamados de terceiro mundo), como, por exemplo, as nações latino‑americanas. Muitos destes países viveram ditaduras militares naquela época, afastando‑se do modelo de bem‑estar social, e assumindo posturas mais autoritárias). Crise do Estado do Bem‑Estar Social Vigorante por muitas décadas, esse modelo de Estado entrou em crise já nos anos 1970, quando ficou economicamente sobrecarregado. A Inglaterra (e depois 95 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA outros países), no início dos anos 1980, entrou num processo de substituição deste modelo, justificando que o aparelho estatal não tinha mais condições econômicas de sustentá‑lo. Com isso, os direitos de cidadania passaram a ser revistos. Nascia, então, o Estado Neoliberal. Fonte: Mello [s.d.]. Exemplo de aplicação No texto vemos a apresentação do Estado liberal e também do Welfare State. No entanto, o texto diz que o Welfare State ficou “sobrecarregado”, o que justificaria, em tese, a sua destituição. É possível que o Estado não tenha mais condições econômicas para manter as políticas sociais, ou há outros interesses envolvidos nesse desmonte do Estado de Bem‑Estar Social? Melhor dizendo, quais seriam os possíveis fatores que estimulariam essa sobrecarga do Estado e quais medidas deveriam ser adotadas além da diminuição dos recursos destinados às políticas sociais? Vamos pensar sobre isso? Talvez essa indagação seja mais bem‑clareada no decurso do texto a seguir. Vamos a ele? 8.2 O Neoliberalismo no cenário internacional Aqui, avançaremos em nossos estudos com relação ao Neoliberalismo considerando a realidade posta no cenário internacional e também no Brasil. Assim, cabe a nós destacar que a doutrina neoliberal, como referência para a gestão do Estado, passou a ser aceita no mundo em meados de 1970 e no Brasil em 1990. No entanto, esse ideário surgiu em meados de 1940, mas, nesse contexto, não foi aceito, tendo em vista que o que imperava como referência à organização estatal era o padrão proposto por Keynes, estudado anteriormente. Saiba mais Para saber um pouco mais sobre o Neoliberalismo, recomendamos o texto: VIDAL, F. B. Um marco do fundamentalismo neoliberal: Hayek e o caminho da servidão. Observatório Social do Nordeste, dez. 2007. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/fvidal.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2016. Assim, cabe a nós dizer que o Neoliberalismo foi uma nova roupagem conferida aos ideais do Liberalismo sob novas bases, considerando nesse contexto o atual estágio de desenvolvimento experimentado pela sociedade. 96 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Lembrete Liberalismo: pressupunha a não intervenção do Estado na regulação econômica. Assim, a obra que demarca o surgimento da doutrina neoliberal foi escrita em 1944, por Hayek, chamada O Caminho da Servidão. Isso porque nela temos os pilares do Neoliberalismo muito bem delimitados e construídos pelo autor. Nessa obra temos também grande ataque ao Estado, de Bem‑Estar Social, defendido por Keynes e que vinha sendo aceito em grande parte dos Estados. Como nos diz Anderson (1995, p. 9), era “[...] um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política”. Vamos apresentar a você as principais colocações acerca da obra de Hayek. Em O Caminho da Servidão, Hayek nos diz que o Estado, além de não intervir nos problemas sociais deveria também ser antidemocrático. O autor entende que sindicatos e partidos políticos eram nocivos ao Estado e deveriam ser suprimidos ou então severamente controlados. Grande parte dessas colocações de Hayek era orientado ao Movimento Comunista, pelo qual o autor nutria grande aversão, mas também estavam relacionadas aossindicatos. Portanto, o Neoliberalismo não se restringe, em suas bases iniciais, à ausência de um Estado interventor, mas prima também por um Estado antidemocrático. Cabe um contraponto em relação aos sindicatos. Hayek entendia que os sindicatos não deveriam ser extintos, mas submetidos ao controle do Estado. Caso o poder público não adotasse essas medidas, corria‑se um grande risco de novamente a sociedade ingressar em uma nova crise, Gerada e potencializada, segundo o argumento neoliberal, pela adesão do Estado ao Welfare State. Além disso, Hayek, entendia que a intervenção do Estado na economia resultava na diminuição da concorrência necessária e natural ao desenvolvimento econômico capitalista. Por conseguinte, a intervenção estatal passa a ser considerada como inibidora da concorrência, que é natural e necessária para o equilíbrio do mercado. Hayek compreendia ainda que a natureza dessa intervenção estatal, sobre o desenvolvimento econômico, provocaria na subjetividade dos homens um efeito negativo, expresso por meio do desestímulo do homem a competir. No sentido em voga, Hayek ainda salienta que o mesmo se aplicava à concessão de benefícios pelo Estado para o ser humano que comprometeria sua condição de economizar dinheiro e também de trabalhar. Para esse autor, o homem se acostumaria a sobreviver com as concessões do Estado e, dessa forma, sua capacidade criativa e sua potencialidade para o trabalho estariam sendo comprometidas de maneira contumaz e negativa. Estado este que, ao transgredir o princípio da liberdade individual, teria criado condições objetivas de desestímulo aos homens para o trabalho produtivo, uma vez que acabavam escolhendo viver sob as benesses do aparelho estatal do que trabalhar (COUTO, 2010, p. 69). 97 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Isso seria, no entendimento de Hayek, uma invasão do Estado à liberdade dos homens. Mas como o autor compreenderia o caso de pessoas que estivessem em situação de pobreza? O Caminho da Servidão não aborda especificamente essa situação, mas indica que as pessoas que estariam desempregadas seriam necessárias ao sistema capitalista. Como assim? Você deve estar se perguntando. Sim, é isso mesmo. Hayek entendia que era necessário que o Estado mantivesse um nível mínimo de desigualdade e de desemprego. Seriam, segundo o autor, essas condições desfavoráveis que deveriam impulsionar o ser humano que as experimenta a agir, buscando assim melhorar as suas condições de vida. Uma sociedade desigual, com pessoas ricas e pobres, era considerada como positiva pelo o autor (ANDERSON, 1995). No sentido em voga, Hayek, derivando dessa compreensão, indicava que o Estado de Bem‑Estar Social vinha comprometendo o desenvolvimento social. Isso porque o autor entendia que esse formato de Estado colaborava para diminuir o desemprego e as desigualdades sociais. Hayek, por conseguinte, entendia que por conta disso o Estado de Bem‑Estar Social colaboraria para a degeneração da sociedade, motivo pelo qual suas críticas em relação ao padrão keynesiano eram tão contundentes. Podemos pensar que muitos Estados não iriam aderir a tais recomendações, mas não foi isso que observamos. Behring e Boschetti (2010) nos dizem que, seguindo tais ponderações, muitos Estados passaram a estimular as questões de desemprego ou deixar de intervir nelas. Por exemplo, veremos que na União Europeia, no período de 1974 a 1979, a taxa de desemprego equivalia a 4,4%, e no período de 1980 a 1990 subiu para 7,9%, ou seja, quase dobrou. Apesar de tais dados serem antigos, se relacionados à atualidade, demonstram apenas o quanto se ampliou a taxa de desemprego nos Estados a partir da adesão ao Neoliberalismo. Nesse sentido, o Estado não deveria intervir visando o desemprego, mas manter‑se neutro em relação a essa questão e sobretudo evitar, a todo custo, as garantias visadas pelo Welfare State, como o pleno emprego. No sentido em pauta, cabe apenas ressaltar, uma vez mais, que Hayek pressupunha que a ação por meio das políticas sociais deveria ser suprimida, argumentando que ações de tal natureza também seriam fatores condicionantes para estimular o ócio dos homens, mas também funcionariam como os responsáveis pela falência do Estado. Em linhas gerais, a argumentação de Hayek em contraposição ao Welfare State pode estar assim sistematizada, sob os seguintes aspectos: 1) [...] o Estado Social é despótico porque, além de impedir a economia de funcionar, nega aos usuários dos serviços sociais oportunidades de escolhas e autonomia de decisão; 2) [...] o Estado Social, comparado ao mercado, é ineficiente e ineficaz na administração de recursos; 3) [...] o Estado Social é paternalista e, por isso, moralmente condenável porque incentiva a ociosidade e a dependência, ao mesmo tempo que, 98 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II com a sua carga de regulamentações, desestimula o capitalista de investir; 4) [...] o Estado Social é perdulário porque gasta vultosos recursos para obter modestos resultados; 5) [...] que o Estado Social é corrupto (PEREIRA, 2001, p. 37). Além de impedir a economia de funcionar, ser ineficiente, ser paternalista e estimulador do ócio, é perdulário e também corrupto. O Estado de Bem‑Estar Social passa a ser comparado a tudo o que é ruim em uma sociedade. Um dos aspectos citados anteriormente sobre a suposta ineficiência estatal será retomado ao final. Anderson (1995) nos diz que Hayek, além de propor a ausência da democratização, a instituição de um Estado quase Absolutista e de recomendar a ausência do Estado na regulação econômica, ainda defendia ser fundamental e necessário que o Estado instituísse um novo formato de cobrança de impostos. Para Hayek, os impostos dos ricos deveriam ser menores do que os dos pobres. Para esse teórico, aqueles segmentos que colaboravam mais com a economia deveriam pagar taxas menores ao Estado, ao passo que aqueles que, no dizer de Hayek, não colaboravam com a economia deveriam pagar taxas mais elevadas. Aluno, como você compreende essa proposta neoliberal? Isso é justo? Melhor dizendo, a quem servem esses ideais, à classe burguesa ou à classe que vive do trabalho? Vamos pensar um pouco sobre isso. Observação Por reversão da nacionalização buscamos designar o processo de privatizações potencializado pelo Neoliberalismo. Mas o grande corolário do ideal neoliberal é a reversão das nacionalizações. Conforme muito bem nos diz Anderson (1995), corresponde à privatização das empresas públicas para a iniciativa privada. Aqui é necessário que façamos um pequeno contraponto: anteriormente o parque industriário de grande parte dos países era nacional, ou seja, pertencia ao Estado ou eram empresas nacionais. Assim, empresas criadas pelo Estado, administradas por ele e lucráveis passam a ser vendidas a preços módicos para a iniciativa privada, que passa a lucrar em grande escala. Você pode pensar: como isso é possível? O ideal neoliberal promove conjuntamente uma satanização do Estado, visto que tudo o que é público passa a ser visto como de má qualidade, como ruim. O Estado passa a ser considerado como o responsável por tudo de “ruim” que existe na sociedade. Por um lado, a satanização do Estado: o Estado é tido como o diabo, responsável por todas as desgraças e infortúnios que afetam a sociedade capitalista. Por outro lado, a exaltação e a santificação do mercado e da iniciativa privada, vista como a esfera da eficiência, da probidade e da austeridade, justificando a política das privatizações (IAMAMOTO, 2001, p. 35). 99 SO CI - R ev isã o: E la ine - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Já o mercado, como no dizer de Iamamoto, passa a ser associado a tudo o que é bom e ágil, ou seja, representa a perfeição. No argumento de Hayek que tem grande aceitação pelos Estados, as empresas públicas deveriam ser transferidas para a iniciativa privada, na qual seriam mais bem‑administradas. Apenas visando sistematizar os conceitos que discutimos até o presente momento, cabe a nós destacar que o Neoliberalismo surgiu no mundo em meados de 1940. Nesse contexto, a doutrina neoliberal não foi aceita como referência para a organização do Estado, visto que havia grande influência do keynesianismo. Nos anos 1970, em decorrência de vivenciarmos grande crise capitalista, o Neoliberalismo foi assumido como uma referência para o formato de gestão estatal e tem sido hegemônico na organização dos Estados desde então. Ainda observamos que a doutrina neoliberal compreendia que a intervenção estatal na economia e também junto aos problemas individuais era extremamente prejudicial. No âmbito da economia, vimos que o Neoliberalismo entendia que o controle do Estado provocava a ausência de competição, comprometendo assim a extração do lucro. Já no que diz respeito ao indivíduo, Hayek indicava que o homem se acostumaria a ter suas necessidades contempladas pelo Estado, estimulando assim o ócio. Portanto, para o Neoliberalismo o Estado não deveria intervir por meio das políticas sociais, dos serviços públicos, tão comuns no formato de governo proposto pelo Estado de Bem‑Estar Social. O Neoliberalismo propunha que esse formato de ação do Estado fosse suprimido, posto que, segundo o autor, caso isso não fosse feito, poderíamos vivenciar uma crise capitalista ainda mais agressiva do que a que já fora vivenciada. Na argumentação neoliberal, a crise era tida como responsabilidade do Estado neoliberal. Vimos ainda que Kayek propunha a manutenção de uma taxa mínima de desemprego e desigualdade, e também que o autor defendia que os pobres custeassem impostos de maior valor do que os ricos e que estariam em condição de produzir. Observamos que temos uma grande privatização das empresas nacionais lucráveis e um correspondente comprometimento da imagem construída do Estado, que, agora, passa a ser considerado como sinônimo de tudo o que é ruim. No entanto, devemos dizer que não há um formato único de implementação do Neoliberalismo. Antes, cada Estado foi constituindo formatos e padrões neoliberais dependendo de suas condições econômicas, políticas e sociais. Para tanto, é importante notar que as experiências que mais se aproximaram do que era proposto por Kayek foram as do governo Thatcher, na extinta União Soviética, e as de Reagan, nos Estados Unidos. Também tivemos, conforme Anderson (1995), a experiência chilena, de Pinochet, instituída antes do grande desenvolvimento do Neoliberalismo na década de 1970. Na sequência, abordaremos os aspectos relevantes em relação ao desenvolvimento do Neoliberalismo no Brasil. Mas cabe a nós dizer que todos os Estados, até o final dos anos 1990, tinham aderido ao Neoliberalismo como referência para seu formato de organização. 100 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 Unidade II Saiba mais Para saber um pouco mais sobre os assuntos aqui abordados recomendamos os vídeos: A VERDADE da crise. Dir. Charles Ferguson. Estados Unidos: Columbia, 2010. 106 minutos. Esse primeiro documentário discute a questão da crise econômica, explicando os reais motivadores para a ocorrência desta. O segundo, por outro lado, monstra um pouco do governo chileno de Pinochet. A BATALHA do Chile. Dir. Patricio Guzmán. Chile: Patricio Guzmán, 1975. 80 minutos. Para encerrar nossas considerações, desejamos indicar que apesar de Hayek ter sido considerado o principal representante da corrente neoliberal no mundo, não foi o único. Na verdade, já em meados da década de 1940, após a publicação da obra O Caminho da Servidão, Hayek reuniu um grupo de pensadores que possuíam a mesma perspectiva sobre o Estado que ele. A primeira reunião desse grupo aconteceu em 1947, quando Hayek organizou uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça, convocando para tal um grupo seleto de teóricos, entre eles: “[...] Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwing Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanui, Salbador de Madariaga [...]” (ANDERSON, 1995, p. 10). Destes, os que mais se destacaram, além de Hayek, foram Friedman e Popper. Partindo dessa reunião inicial foi criada a Sociedade de Mont Pèlerin, que funcionava como uma organização contrária ao Welfare State. Essa sociedade funcionava, segundo Anderson, como uma espécie de “[...] franco‑maçonaria neoliberal”, ou seja, uma sociedade, com poucos membros e que combatia, com veemência, o Estado de Bem‑Estar Social. Essa organização chegou até a realizar reuniões e eventos de grande porte a cada dois anos. Mas a adesão ao Neoliberalismo só aconteceu mesmo nos anos 1970, por motivos que já foram aqui sumariados. Ao final desse processo, Anderson (1995) chama a nossa atenção questionando se as propostas neoliberais teriam de fato alcançado os objetivos aos quais se propuseram. Buscando responder a tal indagação, nos indica que no final da década de 1980, em que grande parte dos países já tinha aderido ao Neoliberalismo, foi possível constatar a queda da taxa de inflação de 8,8% para 5,2% e o aumento da taxa de lucro em 4,2%. Também se constatou que houve uma derrota do movimento sindical na Europa e uma ampliação do desemprego. Segundo o autor, no final dos anos 1980, tivemos uma ampliação de 8% no desemprego e uma queda de 20% nos salários, inclusive nos mais altos. No entanto, todas essas medidas, conforme Anderson (1995), não se mostraram suficientes para a ampliação da taxa de crescimento e extração da mais‑valia. Por conseguinte, o crescimento econômico idealizado pelo argumento neoliberal não foi plenamente contemplado. 101 SO CI - R ev isã o: E la in e - Di ag ra m aç ão : F ab io - 1 3/ 10 /2 01 6 TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA Mas a pergunta que, com toda certeza, não quer calar é: e no Brasil, tivemos Neoliberalismo, tivemos Liberalismo, tivemos Bem‑Estar Social? Vamos na sequência apresentar a você tais informações. 8.2.1 Brasil e Neoliberalismo Agora passamos ao nosso último subitem, em que indicaremos como esse formato de Estado se desenvolveu nas condições brasileiras. De uma forma sintética, podemos dizer que no Brasil, desde o regime colonial, não tivemos um Estado interventor, um Estado de Welfare State tal como foi proposto por Keynes. Antes, analisando nosso formato de regulação econômica e social, Couto nos diz que tivemos um Estado mais afinado com os princípios liberais. No entanto, no contexto da década de 1980, em decorrência do elevado número de pressões sociais, além da crise econômica e política que se desenhava no Brasil, tivemos a Constituição de 1988, que determinou a intervenção do Estado por meio das políticas sociais, sobretudo por um sistema de Seguridade Social advindo das políticas sociais de saúde, Assistência Social e Previdência Social. Como vemos, a Previdência Social permanece condicionada à contribuição de seus colaboradores, ao passo que a Saúde, antes contributiva, passa a ser universal, assim como a Assistência Social, que agora assume o caráter de Política Social. Nesse sentido, também é ampliada a responsabilidade do Estado para garantir a educação pública desde o Educação Infantil. Vemos que o Estado brasileiro passa a ser responsabilizado por desenvolver serviços públicos destinados à população e também uma
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