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1 PARADIGMAS OU CENARIOS EPISTEMOLOGICOS COMPLEXOS? * Hugo Assmann Teólogo e sociólogo, professor de pós-graduação na área de Ciências Humanas e Sociais na Universidade Metodista de Piracicaba-SP. Fonte: DOS ANJOS, Márcio Fabri. Teologia Aberta ao Futuro. São Paulo, Loyola & Soter: 1997. Pp. 41-66. Como é notório, de alguns anos para cá fala-se muito em crise de paradigmas. Até certo ponto a chamada crise dos paradigmas adquire feições de obviedade, dadas as múltiplas e rápidas transformações do mundo atual. E, como veremos, sob diversos aspectos, trata-se de um assunto irrecusável. Porém, é bom ficar atento ao contrabando tácito de certos pressupostos de cunho nitidamente ideológico. O discurso sobre a crise dos paradigmas transforma-se com frequência numa espécie de chantagem para entrar numa tensão para a frente sem se perguntar pelo rumo ou para aderir acriticamente a montagens semânticas efetuadas com palavras-curinga (tome-se como exemplo a junção verbal: qualidade, produtividade, competitividade, criatividade no discurso sobre a “Qualidade Total”). Por vezes o discurso sobre a crise dos paradigmas presta-se para simular um caráter providencial e até compulsório dos fatos e o consequente cancelamento da busca de alternativas para além da limitada história factual do presente. Serve, então, para uma utopização do status quo. Esta advertência preliminar não visa, de modo algum, bloquear a disposição de abertura para a mudança de paradigmas, quer apenas sublinhar que não estamos em território neutro. Este texto compõe-se de duas partes. A primeira entreabre uma espiral conceitual que parte do discurso sobre paradigmas e se estende até um novo discurso acerca de configurações epistêmicas bem mais complexas. O objetivo dessa primeira parte é familiarizar-nos com os conceitos de paradigma e mudança de paradigma, mas sugere também que a noção de paradigma está ficando estreita demais para acolher a complexidade de mudanças que enfrentamos e que, por isso, talvez convenha nos acostumar, ao menos em certos assuntos, a enfoques epistemológicos mais abertos. Nessa linha estão surgindo expressões como novos cenários epistemológicos ou novas configurações epistêmicas. Num tópico final dessa primeira parte, destaco o caso exemplar de transitividade epistemológica de Edgar Morin. A segunda parte traz alguns prelúdios exemplificadores de uma prática teórica transdisciplinar. Trata-se de breves exercícios que pretendem alavancar a tese proposta na primeira parte de que muitos temas candentes de hoje requerem configurações epistêmicas complexas e conceitos que possam transitar através de diversas disciplinas (transversáteis). Para exemplificar isso, escolhi três exemplos: a redefinição do conceito de vida que aponta para a coincidência entre processos vitais e processos do conhecimento; a insuficiência do modelo computacional para entender o cérebro/mente enquanto sistema dinâmico e complexo; e, por último, o tema da complexidade e a relevância e os limites das metáforas biológicas e/ou sistêmicas para abordá-lo. A ideia de fundo é aproximar-nos de um tipo de pensamento radicalmente transdisciplinar 1 que trabalhe com conceitos transversáteis. E é preciso enfatizar que não se trata apenas de uma nova disposição teórica, mas também de uma atitude prática diante da vida e do mundo. Em síntese, nosso assunto tem tudo a ver com uma refundamentação do ético-político. I. DOS PARADIGMAS AOS CENÁRIOS COMPLEXOS 1. Os paradigmas como filtros e acessos na construção da realidade Que vem a ser um paradigma? O conceito é utilizado em diversos níveis e com referências bastante diferentes 2 . Por isso é fundamental dizer de início que o assunto não pode ser discutido no ar e que é preciso detectar o quadro referencial no qual está inserido. Assim, a pergunta fundamental é: 1 A preferência pelo conceito do transdisciplinaridade, em vez de multi- ou interdisciplinaridade, começa a adquirir força sobretudo no inglês e no francês; avança rapidamente em português, italiano e espanhol: mais lentamente, por ora, no alemão (confirmar o verbete na Internet, por exemplo, via gerenciadores de acesso Alta Vista e Lycos). Exemplos de sites interessantes: o Groupe de Réflexions Transdisciplinaires (Université de Pau, França) e sua revista Trans-Disciplines (há um número inteiro dedicado ao conceito transdisciplinaridade); Judge, Anthony J. N., Transdisciplinar through structured dialogue; Id., Metaphors as Transdisciplinary Vehicles of the Future (disponíveis na Internet). 2 Ver Boff, L., Ecologia - grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática, 1995, p. 27: O que é um paradigma?; p. 29: A emergência do novo paradigma: a comunidade planetária. 2 mudança de paradigma em relação a quê? Fora do quadro referencial específico no qual se situa, a pergunta inicial é praticamente irrespondível. Mas é possível mencionar algumas características gerais do conceito de paradigma. Para você, a quem me dirijo neste livro, espero que baste simplesmente nomear alguns aspectos básicos para que suas várias implicações sejam percebidas. Por que precisamos de paradigmas? Kant tentou explicar isso, razão pela qual ainda hoje boa parte da discussão epistemológica sobre os paradigmas retoma e atualiza questionamentos iniciados por Kant 3 . Não se pode dizer o mesmo da discussão sociocultural, histórica e ideológico-política sobre os paradigmas. Essa recebeu um empurrão importante com o livro de Thomas Kuhn A estrutura das revoluções científicas 4 . Nosso acesso à realidade não vai além do fenomênico. O próprio sensoriamento do real está sempre inscrito em modelizações. Do ponto de vista epistemológico, toda realidade “para nós” é uma realidade inventada “por nós”5. É o assunto central da teoria e das formas do conhecimento possível aos humanos. Além dessa temática filosófica, há razões mais pragmáticas para recorrer a paradigmas. A informação existente hoje é tanta que é mais fácil filtrá-la e processá-la mediante janelas (Windows) de acesso. Ao que parece, não apenas o senso comum, mas qualquer ciência necessita dessa âncora um tanto positivista que são os paradigmas6. O desafio epistemológico é reconhecer seu caráter instrumental transitório e saber distanciar-se dele o mais cedo possível sem ter a ilusão de que teremos acesso direto à pergunta sobre o sentido das coisas pela via do empirismo. É enganoso o aforismo basista de que só o que nasce da experiência é válido. Muita gente está tão absorvida nesse positivismo banal do senso comum, ou no positivismo semi-elaborado do cientificismo experimentalista, que nem sequer entende o que se pretende dizer com a tese epistemológica básica de que todo conhecimento resulta de uma modelização do real. Admitida a necessidade de paradigmas que organizem nosso sensoriamento do real e permitam sua leitura interpretativa, cabe enfatizar um segundo aspecto: todo paradigma tem um caráter histórico relativo ao tipo de perguntas que a humanidade é capaz de colocar-se na época histórica em questão. Em outras palavras, não há paradigmas perenes nem omni-explicativos, porque em qualquer paradigma há um recorte das perguntas admitidas como relevantes e, portanto, uma demarcação do que é admissível como real. Por isso, todo paradigma, além da sua inscrição histórica, é relativo em suas linguagens acerca da certeza e da verdade. Nesse sentido, creio que foram dados alguns passos epistemológicos importantes, especialmente no século XX, no sentido de abandonar algumas das pretensões do cientificismo moderno. Houve, em nosso século, diversas importantes despedidas do velho sonho de poder atingir uma linguagem científica axiomaticamente perfeita7. Todo paradigma contém princípios e critérios deinclusão e exclusão (e, portanto, uma raiz de autoritarismo e violência potencial). Os paradigmas tendem a fazer aparecer como natural o que cabe neles e como pouco sério, não-científico ou até inaceitável o que não cabe neles. Mesmo depois de algumas décadas de discussão epistemológica e sociopolítica sobre a relatividade dos paradigmas, esse traço ainda é visto como característica inerente a qualquer proposta paradigmática. Tocamos aqui num ponto-chave: os paradigmas, assim como as epistemologias específicas de tal ou qual área do saber, sempre funcionam mediante o estabelecimento de uma ponte sólida entre o que se tem como certo e o exercício do poder. Os paradigmas não existem apenas para explicar o mundo, mas para organizá-lo mediante o uso do 3 Quitterer, J., Kant und die Thesen vom Paradigmenwechsel – lnwiefetn kann die Tranzendentalphilosophie einen Beitrag zur rationalen Rekonstruktion des naturwíssenschaftlichen Fortschritts liefern? Dissertation. Univ. Gregoriana, Roma, 1993. 4 Kuhn, Thomas S., A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1982; Kuhn, Thomas S., Que son Ias revoluciones científicas? Y otros ensayos. Barcelona, Paidós, 1981; Epstein, Isaac, Revoluções Científicas. São Paulo, Ática, 1988. 5 Watzlawick, Paul (org.), A realidade inventada. Como sabemos o que cremos saber. Campinas, Psy, 1994. 6 A bibliografia sobre o assunto é imensa. Eis alguns títulos: Carvalho, Maria Cecília M. de (org.), Paradigmas filosóficos da atualidade. Campinas, Papirus, 1989; Crema, Roberto, Introdução à visão holística - Breve relato de viagem do velho ao novo paradigma. São Paulo, Ágora, 1989; Crema, Roberto e Brandão, Dênis H. S. (orgs.), O novo paradigma Holístico: ciência, filosofia, arte e mística. São Paulo, Summus, 1990; Crema, Roberto e Brandâo, Dênis H. S. (orgs.), O novo paradigma holístico: visão holística em psicologia e educação. São Paulo, Summus, 1991; Garcia, Celio, Um novo paradigma em ciências humanas, física e biologia. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1988; Wilber, Ken (ed.), O novo paradigma holográfico e outros paradoxos. São Paulo, Cultrix, 1991; Badiou, Alain, Sobre o conceito de modelo. São Paulo, Mandaracu, 1990; Gutting, Gary (org.), Paradigms and revolutions. Notre Dame, Notre Dame University Press, 1980. 7 Eco, Umberto, La ricerca della lingua perfetta. Bari, Editori Laterza, 1993. 3 poder. Em última análise, os paradigmas nunca são puramente científicos, porque servem de apoio à estabilidade e possibilitam a sensação de segurança tanto na aplicação de métodos de pesquisa como na organização do poder. Uma questão central é, portanto, a dos "sete fôlegos" ou a tendência dos paradigmas à autopreservação e à resistência a mudanças. Essa tendência não existiria se não tivessem ocorrido plausíveis comprovações da serventia teórica e prática do paradigma em questão. Os paradigmas tendem a sobreviver enquanto conseguem absorver ou marginalizar as anomalias que encontram pela frente. Mas precisamente neste ponto Thomas Kuhn acrescentou um ele- mento explicativo importante: nunca se trata apenas da serventia ou utilidade comprovada de um paradigma, porque sempre estão em jogo interesses corporativos muito fortes do "colegiado de apoio" (os cientistas filiados a tal ou qual paradigma), e esses interesses corporativos têm um papel decisivo na preferência por determinados projetos, na canalização de verbas, no aval público e na difusão do conhecimento científico. Além de humanamente necessários, historicamente relativos e naturalmente seletivos, os paradigmas tendem - talvez por isso mesmo - a "territorializar-se", isto é, tendem a compartimentalizar a leitura (construção) do real. Dão a impressão de servir tão satisfatoriamente como modelos explicativos para determinados contextos específicos que é enorme a tentação de nem sequer tomar conhecimento de outras áreas e dimensões da realidade. É preciso salientar que grande parte da comunicação entre os seres humanos só funciona razoavelmente no círculo restrito de campos semânticos comuns, geralmente bastante territorializados. No mundo de hoje é espantosa a territorialização dos modelos interpretativos. E é bom não se iludir: simplesmente não dá para transpor facilmente as percepções do sentido de um campo semântico a outro. Trata-se de uma espécie de hologramas sociais que se tocam apenas em alguns pontos, ou seja, que têm uma interface mútua sumamente precária. A índole corporativa dos paradigmas costuma criar códigos crípticos. (O mesmo sucede com as linguagens intra- eclesiais de boa parte da teologia e da pastoral que representam um mundo à parte, praticamente sem conexões com as demais linguagens acadêmicas e científicas... Seria interessante pesquisar até que ponto e em que contextos conseguem criar, apesar disso, hologramas comunicativos e em que aspectos realmente não passam de códigos crípticos para a maioria do povo.8) Já que não é possível, e provavelmente nem conveniente, querer abolir os paradigmas territorializados (vejo com simpatia certos aspectos das propostas multiculturalistas), devemos propiciar um chão comum de conceitos transversáteis capazes de inaugurar atitudes, teóricas e práticas, que busquem situar-se além das fronteiras dos paradigmas. Receio que não seja conveniente aplicar a esse novo patamar pós-paradigmático a terminologia de "novo paradigma". Guardo algumas reservas nesse sentido, dada a infecção ideológica da linguagem sobre os paradigmas. Tomemos como exemplo de particularização contextual e, se quiserem, de infecção ideológica (o que não é motivo para desconsiderá-lo) o conhecido vídeo Os paradigmas, bastante usado como peça inicial em cursos de reciclagem em gestão empresarial. Nesse vídeo, o conceito de paradigma viaja desde as coisas mais banais dos comportamentos cotidianos – nos quais, aliás, os paradigmas estão soberanamente encrustados – até a visão ampla de paradigmas científicos de Thomas Kuhn. O objetivo do vídeo é muito claro: quebrar as resistências à mudança, mostrar as desvantagens mercadológicas do imobilismo e, no fundo, levantar a questão do gerenciamento de qualidade ("uma doença que, se você não a pegar, talvez não sobreviva"). Dentro desse quadro referencial específico caberia explicar que os paradigmas funcionam como filtros na percepção do mundo, que agudizam, por um lado, a capacidade perceptiva para alguns aspectos e, por outro, criam uma verdadeira cegueira para o resto, afetam a escolha da informação tida como relevante, selecionam as perguntas tidas como válidas e tendem a estabelecer parâmetros de crença. Por isso o vídeo propõe estar alerta e viver numa espécie de tensão em busca de novos paradigmas emergentes. Já que os paradigmas funcionam como modelos de compreensão do mundo, eles simulam sempre uma consistência isenta de contradições para poderem direcionar melhor as expectativas. O risco é o da paralisia 8 Tomem-se como exemplo as peculiaridades das “três tradições" sobre a “nova evangelização” em Comblin, J., Cristãos rumo ao século XXI - Nova caminhada de libertação. São Paulo, Paulus, 1996. 4 paradigmática. (Sobre esse vídeo haveria muito mais a comentar porque, apesar de sua aparência laica, obedece a uma estrutura catequético-religiosa quase proselitista.) Embora também seja utilizada para contextos restritos e até banais, não cabe dúvida que o âmbito mais condizente para o discurso sobre os paradigmas é o das grandes mudanças ocorridas (e por ocorrer) nos paradigmas científicos. Foi nesse âmbito que Thomas Kuhn elencou as famosas cinco características para um bom paradigma: a) Ser exato (não necessariamente a teoria em si, mas suas consequências devem ser matematizáveis e experimentalmente comprováveis);b) Ser consistente (sem contradições internas e entendível para a comunidade científica); c) Ser amplo (permitindo generalizações além de um campo restrito); d) Ser simples (obedecendo ao critério de descomplicar o complicado); e) Ser útil (por conter novidade explicativa para adentrar-se em fenômenos ainda não compreendidos e, sempre que possível, uma ponte para o conhecimento aplicável). É impossível detalhar aqui todos os meandros da discussão epistemológica relacionada com a questão dos paradigmas (Lakatos, Popper, Feyerabend, Bachelard etc.). Creio que seria pouco promissor qualquer esforço por estabelecer uma pauta teórica unificada que servisse de denominador comum de categorias e conceitos aplicáveis por igual a todas as ciências. Não existe a Ciência como campo inteiramente unificado. Por isso também os exemplos de revoluções paradigmáticas costumam ter uma atenção preferencial a determinada área, mais ou menos extensa, do conjunto das ciências. A chamada revolução copernicana foi muito mais do que a passagem do geocentrismo ao heliocentrismo – que se tornou sua metáfora básica –, porque transitou da astronomia para a astrofísica (leis da gravidade e do movimento) e das metáforas circulares para as elípticas. Se juntarmos as contribuições de Copérnico, Galileu, Brahe, Kepler e Newton, temos um conjunto bastante heterogêneo, embora obviamente convergente, de teorias. É importante ressaltar que foram necessários 150 anos para que esse paradigma fosse universalmente admitido entre os cientistas, e para a teoria newtoniana da gravidade foram necessários outros 40 anos. No caso da revolução einsteiniana e quântica, o panorama científico da Física se alterou radicalmente em 25 anos. Nos dois casos citados, o campo referencial básico foi o da Astronomia e da Física, com multiplicadas derivações para outras áreas científicas. Os dois exemplos ilustram também o fato de que as mudanças de paradigma não são pura substituição de um pacote teórico concluído por outro pacote teórico concluído. Há evidentemente uma ruptura radical e, nesse sentido, um novo começo, mas sempre permanecem também amplas margens para subteorias e complementações. Não se pode, por exemplo, confundir a posição de Einstein com a de Niels Bohr, Heisenberg ou David Bohm no tocante à Mecânica Quântica. Nas últimas décadas, a convulsão paradigmática mais revolucionária já não se limita às novidades na Física e na Astrofísica. Ela se intensificou enormemente no campo das Ciências da Vida (Biociências) e na Tecnotrônica (Informática, Inteligência Artificial, Vida Artificial). É sobretudo dessas duas vastas áreas que provém, na atualidade, uma profusão de novas linguagens e novas categorias analíticas. Os “novos espaços do conhecimento” – para usar uma expressão de Ladislau Dowbor9 – abrem-se sobretudo a partir dessas duas áreas, como veremos mais adiante. Para entrever parte do novo panorama de questionamentos, valha como exemplo introdutório o elenco de questões básicas que John L. Casti levanta em seu livro Paradigmas Perdidos10: o genoma humano e as velhas questões da liberdade e da responsabilidade; a constituição da identidade do eu e os condicionantes neuronais e das linguagens; a “máquina” cognitiva natural do cérebro e sua crescente interação com máquinas cognitivas artificiais; somos os únicos seres inteligentes?; A dialética do real e do virtual: quão real é o mundo real? 9 Dowbor, L., “Os novos espaços do conhecimento”, in: Revista do COGEIME (Conselho Superior das Instituições Metodistas de Ensino, Secret. Geral apud UNIMEP, Piracicaba, SP), n. de agosto 1996 (no prelo). Disponível também na Internet numa primeira versão sob o título “Os espaços do conhecimento”. 10 Casti, John L., Paradigms lost. Images of man in the mirror of science. New York, William Morrow and Co., Inc., 1989. 5 2. Aproxima-se o fim do cientificismo racionalista? Ao que tudo indica, está chegando a um “momento de transformação” uma longa etapa evolutiva durante a qual a humanidade “precisou” da crença na existência, em praticamente todos os âmbitos da natureza e da história, de supostas “leis objetivas” que estariam garantindo a consistência do real. Hoje, o próprio conceito de vida está sendo redefinido como algo que se dá sempre na fronteira entre ordem e caos, melhor: como interpenetração de ambos. O cérebro/mente é analisado, numa perspectiva pós-mecanicista, como um “sistema” dinâmico, complexo e adaptativo. Inteligência e memória são reconceituadas igualmente como processos complexos e dinamicamente auto-organizativos. Por milênios vigorou uma espécie de obsessão pelos parâmetros ordenadores, tanto na concepção da natureza e da história, como na visão do corpo e das formas de ativação neuronal do cérebro denominadas “mente”. As epistemologias articuladas a partir dessa ânsia de “fixar o real” em formas estáticas de conhecimento estão sendo substituídas por uma visão epistemológica que tem como referência básica a autopoiesis – o auto-fazer-se – dos processos vivos, imersos interativamente em ambientações (ecologias cognitivas), propícias ou adversas. O processo do conhecimento começou a reconciliar-se com a maneira dinâmica na qual acontece a vida, redefinida pelas Biociências de hoje como encadeamento de aprendizagens. Até muito pouco tempo atrás, os processos de pensamento eram vistos como ordenamentos sistematizadores. No Ocidente preponderou o apreço às lógicas formalizadoras de linguagens sobre o real, que eram tidas como “expressivas” de algo supostamente “objetivo”. As lógicas pretendiam chegar a dizer a “verdade”. Até mesmo o conceito de beleza obedecia geralmente a parâmetros de “ordem”. As lógicas “científicas” modernas representam a culminação desse longo período evolutivo que agora se aproxima visivelmente do seu termo. A revolução epistemológica que está em curso atualmente em diversas áreas científicas já se manifesta, há bastante tempo, nas diversas formas da expressão artística. A música foi um dos campos artísticos mais profundamente marcados por ordenamentos rígidos. Hoje ela se encontra em plena convulsão. Os conceitos de ordem e desordem não passam de divisões artificiais que o ser humano elaborou para facilitar sua organização mental das aparências muito parciais da realidade que a sua limitada capacidade de sensoriamento do real consegue registrar. Trata-se de ferramentas epistemológicas do e para o ser humano. Não se trata, portanto, de propriedades do real em si, que está fora de nosso alcance perceptivo direto, mas apenas de divisões artificiais atribuídas ao real em determinado marco perceptivo. Os epistemólogos, que discutem as armações e o caráter histórico das epistemes que os humanos foram elaborando para os mais diversos fins interpretativos e pragmáticos, discutem muito entre si o que seria universal a todos os seres humanos no que se refere a esquemas epistemológicos e o que não passa de constructos socioculturalmente situados. Nosso cérebro/mente acolhe e cria conceitos. Enxergamos a realidade mediante as linguagens e ideias sobre a realidade que as nossas culturas nos deram. As ideias-acerca-da- realidade recebem o rótulo equivocado de “realidade”. É por isso que as pessoas, que ignoram essa distinção fundamental, costumam ficar perplexas com o fato de que outras pessoas, especialmente outras culturas, veem a “realidade” de maneira diferente. O que difere são as ideias-acerca-da-realidade. A questão sobre o que é a realidade-em-si refere-se a um nível que não coincide com o plano no qual se movem nossas linguagens e conceitos. Mas, para nós, o limite de nossas linguagens é o limite do nosso mundo (como dizia Wittgenstein). Não há mundo perceptível por/para nós além da nossa elaboração conceitual e linguístico-simbólica apoiadaem nosso limitado sensoriamento do real. O Windows (janelas), conhecido software para computador, representa uma opção epistemológica: a “janelização” de todos os acessos que o programa possibilita. Sua incrível versatilidade tem aspectos sedutores. Do ponto de vista filosófico, a opção programática do Windows representa uma boa oportunidade para refletir sobre como funciona um reducionismo exacerbado acerca do “real admissível” numa visão epistemológica de “janelização” do real. Nosso comportamento epistêmico usual é muito parecido com esse tipo de enquadramento dentro de enquadramentos dentro de enquadramentos dentro de enquadramentos ... 6 Costumamos enxergar o mundo através de “janelas" armadas com linhas divisórias. Nossos conceitos/linguagens têm marcos/grades embutidos. Filosofias diferentes usam marcos/grades conceituais diferentes. Mediante uma janela conceitual determinada percebemos, por exemplo, certas coisas como desordenadas e caóticas, que não se “encaixam”. Isso porque estabelecemos uma relação enquadradora com determinados parâmetros divisórios de nossa grade mental e emitimos o “juízo” de que tal ou qual fenômeno merece o nome de desordem/caos. Em outras palavras, na maioria de nossos “juízos” já nem sequer advertimos os pressupostos com os quais julgamos e que funcionam como uma “ordem” pré-embutida em nosso marco/grade de conceitos. A cultura ocidental nos condicionou fortemente para determinados acessos-janelas na percepção da “realidade”. Nossa forma de “pensar” trabalha, em boa medida, com comandos de acesso a recortes do real que são como janelas conceituais. O programa Windows ilustra, de maneira exemplar, as possibilidades e os limites desse reducionismo epistemológico. O pensamento filosófico ocidental esteve tradicionalmente preocupado com confrontações e contraposições de um marco conceitual com outro, e foi criando, assim, marcos e mais marcos, grades e mais grades, janelizações sobre janelizações, na esperança de encontrar um conjunto perfeito de grades/marcos que daria supostamente conta da compreensão da realidade e seria (aos olhos dos ocidentais epistemologicamente ingênuos) a expressão plena da “verdade”. Isso foi se revelando, nos poucos, como ilusão ou, se quiserem, como um impressionante encadeamento de alucinações coletivas, às vezes, praticamente consensuais. Hoje a ciência começa a reconhecer seu parentesco com os mitos. Não raras vezes ocorreu na ciência algo semelhante às fantásticas elaborações míticas e religiosas sobre as origens e a criação, o pecado, a redenção, as colisões apocalípticas entre o reino do bem e o reino do mal, enfim, os “novíssimos” ou perspectivas escatológicas. Hoje voltamos a enxergar semelhanças entre os grandes “criadores de mitos” (como São Paulo e Santo Agostinho) e os criadores de paradigmas científicos. Um sintoma revelador da insatisfação com a racionalidade cientificista aparece no enorme êxito de livros sobre o papel das emoções no conhecimento humano11. 3. Novas configurações epistêmicas Há ao menos três grandes áreas de avanços científico-tecnológicos nas quais entrou em ebulição o debate sobre a necessidade de novas configurações epistêmicas. São elas: 1) as Biociências e a Nova Antropologia; 2) a Tecnotrônica (Informática Avançada, Realidade Virtual, Inteligência Artificial, Cibernética de Segunda e Terceira Ordem, Vida Artificial) e 3) a Complexidade e os Sistemas Dinâmicos Complexos, que representam em conjunto um novo patamar ou uma espécie de cenário epistemológico abrangente que recobre as duas áreas anteriores e irradia novos conceitos de forma transdisciplinar. 1. Entre os grandes temas irrecusáveis, eu citaria os seguintes: a auto-organização dos sistemas vivos (autopoiesis); a bio-psico-sociogênese do conhecimento humano; a coexistência de auto-organização e auto-regulação nos processos sócio-históricos; as teorias dos sistemas (abertos, fechados, dinâmicos e complexos)12; as tecnologias e sistemas de interação cognitiva entre aprendentes humanos e máquinas aprendentes (engenharia cognitiva, sistemas aprendentes etc.); a mimética enquanto nova abordagem sociocultural das ideologias e do funcionamento dos consensos e dissensos coletivos (memes = os genes da cultura). 2. O termo complexidade parece ter adquirido o status de holograma abrangente desse vasto conjunto de temas multidirecionais. Ao debruçar-se sobre a questão da complexidade, Laerthe Abreu 11 Goleman, D., Inteligência emocional. São Paulo, Ed. Objetiva, 1996 (seis edições de maio a julho); Damasio, Antônio, O erro de Descartes. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 12 Vale conferir, além das centenas de sites sobre isso na Internet, a revista eletrônica Cybernetics & Human Knowing. A Journal of Second Order Cybernetics & Cyber-Semiotics (disponível na Internet). 7 Jr. 13 optou por descartar a linguagem solene do anúncio de um novo paradigma: o paradigma da complexidade. Preferiu falar de um cenário em que os constructos conceituais não se congelam isoladamente, mas formam parte de uma dinâmica de inter-relações abertas. Algo parecido às chamadas “instalações” artísticas que admitem percursos internos. Como escrevi no prólogo a seu livro, “o conceito de complexidade não pode ficar prisioneiro do senso comum, no qual o termo funciona como uma espécie de curinga verbal para aludir a coisas complicadas. Tampouco deve incorrer num neopositivismo de suplência para apenas nomear os confins em que os algoritmos regenerativos e a maciça computação paralela ainda não se entranharam. Nada a objetar à complexificação eficiente dos cálculos, nem a que se os chame de complexos por serem sumamente intrincados. Mas a complexidade como ruptura epistemológica com a razão calculante do cientificismo moderno refere-se, sobretudo, aquilo que não pode ser analisado pela somatória de todas as análises parceladas de todos os seus componentes. O que equivale a dizer que, por mais modelos mecanicistas que se invoquem para complementar-se, nunca se chega a capturar por essa via as interações que existem no bojo dos sistemas complexos. Só afinado desse modo, o conceito de complexidade se presta para inaugurar um novo modelo explicativo não-reducionista". 3. Para perceber melhor para onde apontam essas novas configurações epistêmicas tomemos o exemplo da explosão de novas linguagens sobre a morfogênese do conhecimento. Como já terão notado, “conhecimento” virou tema obrigatório. Mas convém nos aprofundar nesse fenômeno para entendê-lo melhor. Deparamos, então, com o insight básico que consiste na equiparação cada vez mais nítida entre processos vitais e processos cognitivos. Constata-se hoje uma profusão de linguagens novas sobre o conhecimento. As palavras “conhecimento” e “aprender” voltaram a exercer um fascínio quase mágico. Aparecem por todo lado. Podemos verificar isso não apenas em títulos de livros e artigos, mas até na publicidade. O que estará acontecendo? Já que é impossível mapear aqui todo esse fenômeno, vejamos pelo menos alguns exemplos. Sociodade do conhecimento (knowledge society), sociedade aprendente (learning society), sistemas com base no conhecimento (knowledge based systems), gestão do conhecimento (knowledge management), engenharia do conhecimento (knowledge engeneering), ecologia cognitiva etc. Essas expressões, e outras similares, rendem um bom número de acessos interessantes nos melhores sistemas gerenciadores da Internet. O livro de R. Fagin et al. Reasoning about knowledge faz um mapeamento dos novos conceitos e linguagens nesse terreno, especialmente na última década14. Atentemos para a quantidade de pressupostos teóricos e práticos embutidos nas seguintes formulações: "A aprendizagem como processofundante do comportamento econômico – Elementos básicos para uma teoria econômica da aprendizagem"15. Ou ainda: "A Organização Aprendente - Proposta de criação de uma cultura empresarial orientada para a aprendizagem"16. "Evolução, aprendizagem e dinâmica econômica”.17 É surpreendente a variedade de contextos nos quais se intensificou, nos últimos anos, o debate sobre o conhecimento. Não faz tanto tempo que nosso senso comum via o conhecimento como atributo exclusivo do homo sapiens sapiens. Este pretendido monopólio desmanchou-se com incrível rapidez nas últimas décadas. Tanto nas Biociências como na Informática avançada foi surgindo uma quase indissolubilidade dos conceitos de agentes cognitivos e sistemas cognitivos. Hoje a noção de agentes cognitivos aplica- se a um grande número de “sistemas baseados no conhecimento”, ou seja, sistemas complexos com, ao menos, dois tipos de capacidade operacional: o manejo e a inovação interna de fluxos informativos e o acoplamento funcional, mas flexível, a contextos externos variáveis. 13 Abreu Jr., Laerthe, Conhecimento Transdisciplinar – O Cenário Epistemológico da Complexidade. Prólogo de Hugo Assmann, Plracicaba, Ed. UNIMEP, 1996 (no prelo). 14 Fagin, R. et aI., Reasoning about knowledge. The MIT Press, 1995. 15 Texto disponível na Internet (Trabalho de habilitação para professor titular do Dr. Oec. Tilman Slembeck – http://www.unisg.ch/- vwal/slembeck/slem-akt.html). 16 Bertels, T./Walz, H., Die Lernende Organisation. Cf. na Internet (por Alta Vista, Lycos ou outro gerenciador) o verbete Learning Organization ou diretamente Thomas Bertels Unternem... ; Raggat, T. et aI., The Learning Society. Challenges and Trends. London, Routledge, 1995. 17 Cf. na Internet AI Roth's game theory and experimental economics page, que abre múltiplos acessos para a inter-relação entre dinâmica econômica, aprendizagem, teoria de jogos etc. 8 “Cognição” (do latim cognitio, conhecimento) é o termo adotado pelas Ciências Cognitivas para designar os estudos relacionados com fluxos supostamente informáticos (e supostamente medíveis) no substrato neuronal do cérebro/mente e nas máquinas “inteligentes”. Por décadas (dos anos 40 a 80) prevaleceu uma vinculação conceitual forte entre cognição e processamento da informação. Ainda hoje um grande número de cognitivistas, quer estudem mais o cérebro/mente ou mais o desempenho de máquinas “inteligentes”, persiste em preferir teorias estritamente computacionais para a análise de processos cognitivos. Mas nos últimos quinze anos, com a crescente aplicação de algoritmos recursivos e regenerativos na Inteligência Artificial e o consequente aumento do uso da “lógica nebulosa” (fuzzy logic) na tecnologia e na bioengenharia, o conceito de. cognição tornou-se transversátil em diferentes ciências. Foi também nesse contexto que se vulgarizou o conceito de “Vida Artificial”. Já se tornou normal a aplicação de linguagens cognitivas tanto aos processos de conhecimento e aprendizagem naturais como aos artificiais. Mais recentemente, de uns cinco anos para cá, já se dá o nome de processos cognitivos ao conjunto de operações mistas que acontecem na parceria entre seres humanos e máquinas informáticas. A atribuição da capacidade ativa de conhecimento e aprendizagem aplica-se, pois, a plantas, animais e máquinas “inteligentes”. Muitos não hesitam em estender o conceito de sistema cognitivo complexo a ecossistemas (nichos que propiciam e albergam tais ou quais formas de vida) e sistemas sócio-organizativos (empresas, instituições). Não é de estranhar que se fale de aprendizagem e conhecimento na economia. Para Friedrich Hayek 18 (que muitos consideram o inspirador-mor do neoliberalismo) e muitos outros economistas, o mercado seria, antes de mais nada, um conjunto dinâmico de operações cognitivas a partir das quais estariam surgindo constantemente as mais variadas formas de conhecimento (com destaque à formação dos preços etc.), sem a necessidade de intenções conscientes. Segundo tais economistas, o mercado seria basicamente uma grande máquina cognitiva, isto é, geradora de conhecimentos e experiências de conhecimento. Em síntese, a discussão sobre o conhecimento abarca hoje todos os processos naturais e sociais nos quais se geram, e a partir daí são levadas em conta formas de aprendizagem. Tudo aquilo que é capaz de aprender cumpre processos cognitivos. Embora existam tendências redutivistas, é claro que não se trata de ignorar as enormes diferenças de grau e nível nas operações cognitivas. A novidade consiste no fato de ter surgido um traço comum, ou seja, um conjunto inegável de semelhanças fartos, entre os mais diversos sistemas cognitivos complexos. Sob esse ponto de vista, desfez-se em alguns aspectos a nitidez das fronteiras diferenciadoras que antes pareciam evidentes. E é sobre as surpreendentes semelhanças entre os mais diversos sistemas cognitivos que certas propostas teóricas avançam rapidamente. Por isso, é inevitável que comecemos a familiarizar-nos com esse tipo de linguagem, mantendo-nos sempre em alerta crítico. Para que a nossa reflexão possa avançar em direção a uma série de implicações desses “novos espaços do conhecimento” para a Pedagogia, é preciso entender bem um ponto fundamental: processos vitais e processos cognitivos tornaram-se praticamente sinônimos tanto para as Biociências como para os mentores da “Vida Artificial”19. Note-se que isso significa adotar uma definição bastante nova do que se entende por “vida” e também do que se chama “conhecimento”. As consequências dessa revolução conceitual para o agir pedagógico são simplesmente tremendas. Onde não se propiciam processos vitais tampouco se favorecem processos de conhecimento. E isso vale tanto para o plano biofísico como para a inter-relação comunicativa. 4. Um exemplo de transitividade epistemológica: Edgar Morin Quando Edgar Morin se propôs, em meados dos anos 70, repensar uma base mais exigente para seu projeto intelectual, que já se manifestara numa produção fecunda de duas décadas, concebeu o opus magnum que leva o título de O método20. Conforme nos relata agora 18 Nemo, Philippe, La société de droit selon F. A. Hayek. Paris, PUF, 1988; especialmente o primeiro capítulo: “Psychologie cognitive et ordre sociale”, pp. 21-65. 19 Ver Negroponte, Nicholas, Vida digital. São Paulo, Companhia das Letras, 1996; Levy, Steven, Vida artificial – Em demanda de uma nova criação. Lisboa, Dom Quioxote, 1993. 20 Morin, E., O método. 4 volumes. Trad. port., Publicações Europa-América. 9 em seus fragmentos autobiográficos Os meus demônios21, sua mente de militante social e político havia sido tomada por uma espécie de evidência: não podia continuar em sua trajetória de pensamento socialmente engajado sem criar uma refundamentação da visão abrangente sobre o funcionamento dos processos humano-sociais. Essa convicção o levou a fazer uma pesquisa de fôlego na qual seguiu metodologicamente determinada sequência de passos: abordou, sucessivamente, “a natureza da natureza”, “a vida da vida”, “o conhecimento do conhecimento” e, só depois, atreveu-se a esboçar uma teoria das “ideias”, já que desejava analisá-las como conjuntos quase holográficos em “sua natureza, vida, hábitat e organização”. Como consta, Morin cumpriu os quatro mergulhos, expressos em quatro volumes. Só que aconteceram, ao que tudo indica, dois “pequenos” imprevistos sintomáticos. O volume sobre o conhecimento leva a etiqueta III/1, já que o autor se deu conta de que a discussão sobre o tema estava em plena efervescência e não havia como arredondar o assunto. O III/2 foi sintomaticamente adiado, embora tenha saído o vol. IV sobre “As Ideias”. O segundo imprevistoé da maior relevância: Morin teve de render-se à primazia do tema “complexidade” (ou seja, a teoria dos sistemas dinâmicos complexos), que irrompeu na discussão científica nos anos 80 e se intensificou nos anos 90. A essa altura já lhe devemos uma série de publicações que resituam toda a problemática da morfogênese do conhecimento no interior desse novo cenário epistemológico22. Relato essa pequena história porque ela é sumamente ilustrativa para a virada científica que está acontecendo sobre o conhecimento. Na realidade, ainda não sabemos muito sobre certos aspectos básicos da morfogênese do conhecimento, por exemplo, o que acontece com a parte de nosso imenso potencial neuronal que fica “subutilizada” ou até socialmente impedida de ativar-se devidamente. Não é absurdo levantar a hipótese de que, nas escolas e na sociedade excludente em geral, se pratica um violento “apartheid neuronal”. Sabemos algo, mas não muito, sobre hiperativações estressantes do sistema nervoso. E só aos poucos começam a aparecer embasamentos científicos mais sólidos sobre o papel fundamental do prazer nos processos cognitivos (sobre isso direi algo mais adian- te). Mas pode-se afirmar com toda segurança que não basta, de modo algum, ater-se a certas chaves interpretativas de corte socioanalítico para aprofundar a compreensão da morfogênese do conhecimento. O recurso às Biociências já não pode ser visto como algo apenas complementar a análises de cunho social e/ou psicológico. Melhor dito, não há como dar-se por satisfeito com categorias monodisciplinares. II. PRELUDIOS A UM PENSAR TRANSDISCIPLINAR 1. A coincidência entre processos vitais e processos de conhecimento Um aspecto importante é a comprovada capacidade do ser humano de criar, entender, observar e manipular regras. É ilustrativo o caso (aludido de forma parecida por diversos cognitivistas) daquele homem que conhecia e sabia usar as regras de mais de 140 jogos com diferentes baralhos, sabia como lidar com grande quantidade de aparelhos eletrônicos, era programador de computadores e hacker (quebrava códigos informáticos), jogava xadrez, além de conhecer obviamente os complicados rituais da vida moderna urbana, mas... não conseguia acompanhar uma conversa rasamente filosófica por mais de alguns minutos e empacava na compreensão do segundo ou terceiro parágrafo de um texto de filosofia, embora se sentisse perfeitamente “em casa” na leitura de complicados manuais técnicos. Sobre o que esse caso nos leva a refletir? Parece que a evolução nos habilitou a funcionar razoavelmente bem como “animais instrucionais”. Talvez a forte semelhança ou quase imutabilidade dos processos didáticos ao longo de séculos deva-se ao fato de que a escola clássica fez uma espécie de opção preferencial pelo nosso lado de animal domesticável e adestrável. E não se pode negar que, onde foi implantado e cumprido à risca, esse sistema educativo deu apreciáveis resultados na linha do que se propunha, permanecendo mais ou menos fiel à visão mecanicista do corpo proposta por Descartes. 21 Morin, E., Os meus demônios. Portugal, Publicações Europa-América, 1995. 22 Entre elas o texto ágil e de visão geral: Morin, Edgar, Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 1991. 10 Hoje sabemos que todo conhecimento tem, em sua origem e preservação, uma inscrição corporal. Quando se procura compreender as formas de conhecimento como níveis emergentes gerados pelos processos auto-organizativos corporais, com seu apoio básico e permanente na interação sensorial23 (não homeostática, mas homeocinética) entre, por um lado, os processos endógenos do indivíduo com sua relativa autonomia e, por outro, os do meio ambiente propiciador ou obstaculizador dos processos vitais, então passa-se a ter um novo patamar explicativo para avaliar certos enigmas do comportamento humano. A afirmação básica é, portanto, que toda morfogênese do conhecimento – sobretudo na criança, mas também no adulto – instaura-se como cognição corporal. Todo conhecimento é um texto corporal, tem uma textura corporal. É a partir da compreensão desse aspecto básico – toda morphé (forma) de conhecimento é gerada bio-organizativamente – que se multifurcam, depois, diversas e diferenciadas ênfases teóricas. Para Maturana e Varela, por exemplo, parece não haver legitimação teórica alguma para qualquer tipo de dissociação explicativa entre processos linguísticos e orgânico-vitais24. A auto-organização25 físico-orgânica constitui em nós, que somos seres bio-socio-culturais, um processo autopoiético (um autofazer-se) unificado com as formas simbólico-linguísticas, mediante as quais se manifesta nosso estar-vivos e nossa persistência em continuar vivendo, anelando sempre por mais vida. Como expressa Varela em seus avanços pes- soais, trata-se de uma “em-corporeidade” (embodiment) cognitiva que sucede de um modo mais radicalmente corpóreo do que admitem as várias teorias representacionistas. A palavra adequada já não seria “representação”, mas “em-ação” ou ação-desde-dentro (enaction)26. Até hoje predominaram as concepções mentalistas do conhecimento. A instância “operacional” do conhecimento seria a mente e, em decorrência, definiam-se os processos cognitivos como processos mentais. A inteligência e mesmo a memória eram concebidas como instâncias mentais. Portanto também o ensino era concebido como uma espécie de transação entre mentes, ou seja, como transmissão de mensagens da mente do/a professor/a para a mente do/a aluno/a. Esse modelo mentalista não é mais compatível com o que hoje se sabe sobre nossa corporeidade e, em especial, sobre o funcionamento de nosso cérebro/mente. Faz-se necessária uma renovação profunda das linguagens pedagógicas impregnadas de mentalismo. O problema é que muitos insistem num conceito mentalista da razão e da racionalidade. Precisamos de linguagens pedagógicas que explicitem a inscrição corporal dos processos cognitivos. E o ponto de partida fundante de toda uma nova visão do conhecimento consiste em entender a profunda identidade entre processos vitais e processos de conhecimento. 2. O cérebro/mente como sistema complexo e dinâmico Ao que parece também está chegando lentamente ao final a tendência nas ciências cognitivas, predominante há trinta anos, que insiste em hipóteses computacionais no estudo do cérebro/mente. Hoje cresce o número dos que aderem a modelos interpretativos que tomam como base a noção de sistemas dinâmicos complexos e adaptativos27. Em resumo, já se começa a reler a história das ciências cognitivas como uma evolução, grosso modo, em três etapas até hoje: 1) o simbolicismo computacional, que modeliza os processos cognitivos como processos digitais (entendendo-se por “símbolos” algo semelhante aos “bits” do computador); 2) o conexionismo, que usa o modelo das redes neuronais complexas; 3) o dinamicismo, que estuda o cérebro/mente 23 Maccannell, J. F. & Zakarin, L. Thinking bodies. Cambridge Univ, Press, 1994 (livro que estabelece uma ligação explícita entre a inscrição corporal do “pensar” e a condição pós-moderna). Como estudo que insere essa visão da intersensorialidade do conhecimento numa vasta releitura da evolução, cf. Shipley, Thorne, Intersensory origin of mind. A revisit to emergent evolution. London, Routledge, 1995. 24 Maturana, Humberto/Varela, Francisco, A árvore do conhecimento. As bases biológicas de entendimento humano. Campinas, Ed. Psy, 1995. 25 Sobre o conceito de “auto-organização”, ver: Flickinger, H-G. & Neuser, W., Teoria da auto-organização – As raízes da interpretação construtivista do conhecimento. Porto Alegre, EdipucRS, 1994. Sobre a transdisciplinaridade desse conceito: Selbst-Organisation. Ordnungprozesse in sozialenSystemen aus ganzheitlicher Sicht. Hamburg, Verlag Paul Parey, 1987. 26 Varela, F. et al., The embodied mind, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1991. 27 Elias, Chris, Mind as a dynamical system. Waterloo (Canadá), Univ. of Waterloo, 1995 (tese disponível na Internet); Kelso, J. A. Scott, Dynamic patterns: the self-organisation of brain and behavior. Cambridge, Mass., MIT Press, 1995 (sumário e resenha disponíveis na Internet). 11 como um sistema dinâmico complexo. Existem obviamente interpenetrações, especialmente entre os dois últimos. Nenhuma dessas tendências abandona totalmente a ideia de que o cérebro/mente é também um “sistema baseado em regras” (a rule based system). A diferença entre os modelos explicativos – e ela é enorme! – está em admitir ou rejeitar que os parâmetros ordenadores, próprios de um sistema baseado em regras, possam servir de chave explicativa principal para os processos cognitivos. É neste ponto que as posições divergem crucialmente. Hoje ganham terreno as posições científicas francamente favoráveis ao uso preponderante dos conceitos: complexidade dinâmica, auto-organização (autopoiesis, na linguagem de Maturana e Varela em Biologia, e em N. Luhman na teoria dos sistemas sociais), níveis emergentes, interpenetração de caos e ordem etc. O cérebro/mente do ser humano possui uma plasticidade fantástica. A herança da longa evolução da vida muniu-o de uma capacidade enorme de captar, criar e observar regras operacionais de toda índole. Mas seu destino, amadurecido na evolução, já não é primordialmente a elaboração e o cumprimento de regras; já não está condenado a lógicas rígidas e lineares. Nascemos inábeis, extremamente carentes e prematuros sob muitos aspectos. Como tal, só conseguimos sobreviver porque nossa corporeidade já vem geneticamente impregnada de extraordinárias capacidades adaptativas que, em boa medida, implicam a aprendizagem de regras comportamentais. Mas o potencial humano é utilizado apenas em níveis muito baixos e elementares pelos sistemas baseados em regras fixas. Precisamos decifrar pedagogicamente esse estranho paradoxo das habilidades humanas: somos seres com capacidade formidável para manejar regras empíricas; a sobrevivência evolucionária nos obrigou a isso; mas nosso cérebro/mente já atingiu um estágio de evolução no qual não costuma chegar aos mais intensos níveis de aprendizagem (nem geralmente aos mais elevados índices de satisfação, embora até isso possa ser distorcido!) por meio de meras performances prescritas por sistemas baseados em regras. Forçar o ser humano ao puro enquadramento em lógicas rígidas significa desqualificar seu potencial humano. Nossa dinâmica neuronal e nossa corporeidade são “subutilizadas” pelas lógicas lineares. Paradoxalmente aprendemos a manejá-las com relativa facilidade, mas, ao mesmo tempo, elas são banais demais para a imensa plasticidade do sistema complexo, dinâmico e aberto que somos. Embora sejamos quase ilimitadamente adestráveis e “domesticáveis”, nunca somos de longe o que podemos ser quando apenas nos querem “amestrar” (não é sintomático que amestrar tenha virado sinônimo de adestrar?). Hoje muitos especialistas sustentam que as lógicas mais condizentes com o modo de funcionar do nosso cérebro/mente são as lógicas multivariantes e sistematicamente abertas como, por exemplo, a “lógica nebulosa” (fuzzy logic) que procura levar em conta o fato básico do predomínio de áreas oscilatórias e indefinidas, e a persistência de referencialidades elásticas – como sendo a regra, e não a exceção no funcionamento do cérebro/mente. A “lógica nebulosa”, enquanto fronteira avançada de simulações matemáticas (mediante algoritmos recursivos e regenerativos) dos processos complexos, procura adentrar-se no caos potenciador que se entremeia nos parâmetros ordenadores e levar em conta as estruturas dissipativas e os níveis emergentes de “novidades vitais” (a surpresa, o imprevisto), que se misturam e entrelaçam nas operações neuronais. Existe uma ficção/fixação racionalista que é preciso abandonar e desmanchar. Trata-se da ficção, fatal em suas consequências pedagógicas, de que o ser humano, para poder avançar em aprendizagens, teria de passar por uma cadeia quase interminável de sucessivas escolhas obrigatórias entre o certo e o errado, entre “representações” racionalmente bem focalizadas e outras rejeitáveis por estarem desfocadas. Cobra-se, assim, a constante superação da tentação de vacilar e duvidar. Duvidar no início, sim; continuar na dúvida, não. Começar com perguntas, sim; contentar-se com melhorá-Ias sem necessariamente respondê-Ias, não. A pedagogia das certezas rege-se por determinações do saber admissível, que, em última instância, pretende espelhar um mundo concebido como regido por determinismos. Nessa pedagogia não se abre espaço para o cultivo da perplexidade e do encantamento pelo ainda não desvelado e talvez nunca desvelável. 12 Na realidade, nosso cérebro/mente está neuronalmente predisposto para lidar com vacilações, mantendo-as e superando-as, conforme lhe é conveniente. Eis uma das pontas mais fascinantes do tema prazer! O cérebro/mente está feito para a fruição do pensar. Por isso a ênfase no “pensar próprio” – não apenas como pensamento que consegue tomar forma e articular-se, mas também como uma experiência humanamente gostosa – é um tema pedagógico fundamental28. O conhecimento só emerge em sua dimensão vitalizadora quando tem algum tipo de ligação com o prazer. As características caóticas da recepção de mensagens e sinais por exemplo, durante uma aula – não requerem ordenamentos imediatos e obrigatórios no plano neuronal. É importante que os aprendentes criem o seu fio de pensamento próprio, mesmo durante uma aula. Existem distrações criativas (além das que são válvula de escape, autodefesa ou desatenção mesmo). O fio de pensamento do ensinante muitas vezes não coincide com o fio do imaginário e do pensamento dos aprendentes. O ideal da pedagogia é conseguir tecer redes com todos os fios de ensinantes e aprendentes e fazer pesca abundante de conhecimentos. Nosso cérebro/mente é feito para aguentar e até cultivar sinuosidades e incertezas. O cérebro/mente não recebe nem decifra os impactos sensoriais em categorias binárias. É perfeitamente capaz de ver simultaneamente coisas bem diferentes num mesmo mapeamento sensorial do “real-de-fora”, porque seu “mundo real” é sempre construído e refeito “desde dentro”. O cérebro/mente só passa a viver o drama (em sentido literal, já que para ele é algo dramático) da binarização e linearidade quando é exposto, demorada e seguidamente, a tais esquematismos formais. Revela-se (rebela-se), então, altamente perito na captação e execução de regras, mas possivelmente se ressinta, e muito, na dimensão mais profunda do prazer, dessa adaptação forçada ao predomínio de parâmetros ordenadores. Se a vida é, como afirmam muitos biocientistas hoje, uma constante interpenetração de caos e ordem, equilíbrio e desequilíbrio, então querer arrancá-Ia dessa combinação dinâmica sempre implica matá-Ia em parte. Não é isso o que a pedagogia das certezas costuma fazer? Em contrapartida, o cultivo de incertezas extremadas também viola expectativas de ordenamentos que já trazemos geneticamente incorporadas a partir da nossa história evolutiva. Por isso parece recomendável uma pedagogia plástica e sinuosa que incentive certezas operacionais imprescindíveis, capacite para modelizações da “realidade”, mas preserve incertezas sobre os rumos, para que sejam buscados e não estejam predefinidos. As implicações dessa concepção dinâmica do cérebro/mente são particularmente importantes para a discussão da cultura pós-moderna. Como se disse no início, o pós- modernismo é, entre outras coisas, uma tentativa de reintroduzir a lógica nebulosa (fuzzy logic) nas práticasculturais, As velhas metanarrativas já não contam com suficiente credibilidade. Por uma parte, isso pode dar uma sensação de orfandade àqueles que se nutriam de “certezas” oriundas daquelas metanarrativas. Por outra, surge a oportunidade de optar por lógicas mais dinâmicas e mais conformes aos sistemas dinâmicos e complexos. Fica aberto, assim, um caminho para uma pedagogia que aceite trabalhar com o jogo de certeza e incerteza que constitui um aspecto importante do novo cenário epistemológico da educação. 3. Complexidade: sentido e limite das metáforas biológicas e sistêmicas Há uma dimensão profunda nos processos vitais, cognitivos e culturais que transcorre “aquém da identidade e da oposição”29. O conceito provisório de que dispomos para nos referir a isso é complexidade, que por ser usado com muita frequência corre o risco de banalizar-se. Há centenas de acessos fascinantes a sistemas complexos e adaptativos na Internet. Constata-se um cruzamento ousado entre metáforas derivadas das biociências (chamemo-Ias metáforas “biológicas”, embora muitos entendam esse conceito à antiga) e dos modelos sistêmicos. Como é sabido, os mentalistas têm um medo-pavor dessas metáforas. Elas são, sem dúvida, ambíguas e capciosas e requerem distinções. Falar de sistemas fechados (cibernética de primeiro grau) e abertos (cibernética de segundo e terceiro grau) não é a mesma coisa; nem é o 28 Lipman, Matthew, O pensar na educação, Petrópolis, Vozes, 1995. 29 Colho essa expressão de Pinheiro, Amálio, Aquém da identidade e da oposição. Formas na cultura mestiça. Piracicaba, Editora UNIMEP, 1994. 13 mesmo falar de auto-organização do vivo e auto-regulação do mercado. Portanto, essas metáforas podem nos levar a transposições ingênuas da “natureza” para a “história”. De fato já não vigoram distinções nítidas entre esses dois conceitos. O medo das metáforas biológicas e sistêmicas não se deve principalmente, na minha opinião, ao risco de elas se transformarem em peças ideológicas. Deve-se, mais que tudo, à persistência obtusa de outras peças ideológicas que impedem a compreensão das instigações teóricas que perpassam essas metáforas. Trata-se de bloqueios ideológicos que têm a ver com discutíveis esquematismos sobre os “sujeitos históricos” e a “consciência”. Neles não há lugar para a ideia de processos auto-organizativos do vivo nem para mecanismos auto-reguladores como os que existem no mercado, embora o mercado também seja, ao mesmo tempo, um jogo de poderes (como unir a denúncia da “idolatria do mercado” com um discurso também operacional- mente positivo sobre ele?). No mercado, os dois aspectos podem ser distinguidos e analisados como tais, embora sejam inseparáveis. O pambiologismo, assim como o pan-sistemicismo, é um risco ideológico inegável. Mas isso não pode servir de pretexto para recusar metáforas fecundas. O que alguns ainda não percebem é que a própria hipótese do rechaço global dos desafios epistemológicos provenientes da Nova Biologia e da IA é totalmente absurda. Já não existe um mundo sem esses avanços científicos e tecnológicos e suas linguagens. Portanto também não existe mais a possibilidade de ignorar essas linguagens e discutir o sujeito humano sem levar em conta o que hoje se sabe sobre auto-organização e/ou auto-regulação, sistemas dinâmicos adaptativos, complexidade, inteligência natural e inteligência artificial, e até mesmo “vida artificial”. É no contexto de todo esse conceituário novo que se perfila hoje uma visão desafiadoramente nova da morfogênese do conhecimento, cuja trama básica tem a ver com a correspondência entre processos de vida e processos cognitivos. Aos que se apavoram tanto com analogias biológicas e sistêmicas eu diria duas coisas: primeiro, que se dessem conta da enorme quantidade de metáforas mecanicistas, que levamos embutidas em nossas linguagens e que se vinculam a teorias científicas ultrapassadas. Segundo, que confrontem sua visão do sujeito e da consciência com ponderações e perguntas como as que seguem. Que dizer dos pressupostos de Freud de que os mecanismos do inconsciente são os primários, e não os da consciência? Ou que dizer das afirmações de cognitivistas como Newell que acham que, na comunicação humana, os níveis de compreensão semântica recíproca variam do normal (menos de 10%) a intensidades privilegiadas (de mais ou menos 30%), havendo apenas excepcionalmente níveis de intelecção semântica mútua superiores a 60%? Será que não sabemos por experiência própria (em palestras, discussões, refregas ideológicas, incomunicações institucionalizadas etc.) que esses índices correspondem aproximativamente aos que sabemos por fatos? E como nossa corporeidade viva poderia funcionar sem processos auto-organizativos que, afortunadamente, não necessitam de comandos intencionais, porque possuem inscrita uma intencionalidade da vida? Vale a pena meditar sobre o que é provavelmente correto naquilo que insinua uma conhecida metáfora, a do holograma: estamos, de alguma forma, imersos em hologramas sociais que nos permitem um discreto papel ativo, mas que também nos “transportam”. Não há dúvida de que, uma vez que se tenha entendido razoavelmente o que se pretende dizer com as noções de auto-organização do vivo, caos, níveis emergentes, sistemas dinâmicos adaptativos etc., fica difícil continuar inventando, a todo momento, poderes perversos conscientes por trás dos complexos acontecimentos que nos circundam. A questão do(s) poder(es) não fica eliminada de jeito nenhum; e muito menos o esforço por incrementar em nós a consciência possível, que sempre será extremamente limitada. Essas questões se tornam um pouco mais complicadas, já que não podem mais ser reduzidas ao jogo fácil da invenção do inimigo. O conceito de complexidade parece nos libertar da estreiteza da concepção dialética que não conseguia sair de esquemas triádicos (tese, antítese, síntese) no interior de uma suposta totalidade, confinada em sua estrutura, em que não havia “além” nem “aquém” sem que se passasse pela famosa “contradição”. A “consciência” tinha sido erigida numa instância que inaugurava o “histórico”, mas ignorava soberanamente a essência fluida dos processos vivos. Como então chegar a aceitar que o interfluxo de parâmetros, caóticos uns e ordenadores outros, constitui conjuntamente a dinâmica da vida, e que o mesmo vale para a dinâmica do 14 conhecimento? Não há dúvida de que, para achar tudo isso extremamente fascinante e razoa- velmente esclarecedor, é preciso passar a outro tipo de dialética. Conclusão A reflexão deste texto quis tecer uma espécie de cortina transparente através da qual se pudesse adivinhar um outro espaço a ser iluminado pela reflexão de cada um de vocês. Nele começaram a transparecer, quase como personagens em inevitável desnudamento, temas como o do sujeito histórico, da consciência possível, das inter-relações coletivas, das caminhadas que avançam e dos passos que trepidam e por vezes se cansam... Enfim, uma série de temas ligados à busca de uma sociedade mais participativa e justa. Não é hora para desânimos, mas tampouco para as mesmices ideológicas de sempre, ocas e medíocres. A escolha desses e não de outros prelúdios pretendeu ser a forma suave e não excessivamente brusca para dar a entender que é preciso começar a admitir que, sob muitos aspectos, o buraco do ético-político “é mais embaixo”.
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