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ANO XIII No 303 ps ico log ia • ps icaná l i se • neuroc iênc ia PÂNICO | ESPECIAL | O QUE AS CRIANÇAS GUARDAM NA MEMÓRIA PSICANÁLISE O novo sujeito da contemporaneidade OUVIR A LUZ Cientistas descobrem como pessoas surdas “escutam” sinais luminosos Técnicas que funcionam como pronto-socorro para combater crises de ansiedade o medo de ter medo ELETROCHOQUE A utilidade do tratamento que já foi usado como tortura Além dos limites do pavor V ivemos em um mundo assustador. Na maior parte do tempo transitamos entre necessidades, obrigações e desejos como se tivéssemos controle sobre a maio- ria das variáveis que nos rodeiam, e procuramos acreditar que temos muito mais autonomia do que de fato dispomos. A fragilidade, no entanto, salta aos olhos quando o ambiente – externo ou interno – desafia nossa restrita capacidade de manter as coisas como desejamos. “Apesar das transformações culturais, ainda há pouco lugar para dife- renças, as subjetividades contemporâneas caracterizam-se pelo apagamento da alterida- de e há grande tendência em nos reduzirmos à dimensão da imagem”, diz a psicanalista Luciana Menezes, uma das especialistas ouvidas nesta edição de Mente e Cérebro. Em sua opinião, o pânico tem uma dimensão social, na medida em que expressa o fracasso do sujeito em atender às exigências dos ideais e valores que a sociedade atual prega. Não por acaso a síndrome ganha espaço progressivo e cada vez mais pessoas enfrentam seus sintomas físicos e psicológicos. No entanto, vale lembrar que nada é puramente psíquico, já que os fenômenos de ordem emocional estão associados a reações físicas – e vice-versa. Além disso, o cérebro tem participação fundamental nesses processos. Mais especificamente, as estruturas que deflagram o pânico são as mesmas que desenca- deiam reações de fuga e luta, necessárias em situações de risco verdadeiro. O problema é que, às vezes, esse mecanismo de interpretação do que é perigo passa a funcionar de forma descontrolada. De forma simplificada, podemos dizer que, do ponto vista neurológico, o pânico re- sulta da hiperatividade do sistema cerebral, que foi desenhado para produzir respostas imediatas às ameaças à própria vida. Para lidar de fato com o medo extremo da finitude, é fundamental haver-se com as próprias angústias e elaborá-las em um ambiente tera- pêutico seguro. Simultaneamente ao processo de autoconhecimento, algumas atitudes práticas podem ser fundamentais para diminuir a ansiedade e permitir a travessia com maior tranquilidade por uma crise de pânico, apreendendo esse momento desconfortá- vel como o que de fato é: uma crise que, como tal, tem começo meio e, felizmente, fim. Boa leitura. GLÁUCIA LEAL, editora-chefe glaucialeal@editorasegmento.com.br carta da editora sumário | abril 2018 capa Um fantasma chamado pânico Quando sensações inesperadas de medo irracional se tornam uma ameaça e a pessoa passa a conviver com o temor constante da morte iminente, os índices de estresse se tornam absurdamente elevados e o mundo, muito mais ameaçador 32 Do que você tem medo Esse sentimento resulta de processos tão básicos quanto a respiração ou a digestão; mesmo assim, compreender e descrever o que acontece em nosso cérebro quando algo nos apavora continua sendo um desafio para cientistas 38 Pronto-socorro contra o pânico O que passa em sua cabeça quando reconhece os sinais de uma crise? Talvez pense: “Estou morrendo, estou ficando louco, vou desmaiar, estou enjoado, vou passar vergonha em público”. E a lista continua. Para lidar com a angústia e evitar que o descontrole aumente, alguns exercícios práticos podem ser muito úteis especial 58 Do que as criançasse lembram? A forma como os pequenos aprendem os leva a criar mais recordações falsas e fantasias do que os adultos; novas maneiras de investigar o assunto, porém, têm trazido novas pistas sobre esse tema 08 O que um sorriso revela Estudos sobre a capacidade de decifrar as nuances das expressões faciais mostram como o cérebro acessa memórias e decodifica gestos 16 O novo e o sujeito Com tantas transformações ocorrendo de forma rápida e múltipla no mundo contemporâneo, são inevitáveis as indagações e os questionamentos a respeito do que se transforma e do que permanece em relação ao que acreditamos saber sobre o funcionamento psíquico 44 Expectativas influenciam efeito de medicamentos Acreditar tanto no efeito positivo quanto no negativo dos remédios que tomamos pode mudar a maneira como o organismo recebe a droga e a forma como ela age 48 Os sons da luz Estímulos luminosos podem produzir atividade neural bastante precisa no tronco cerebral, similar à provocada pela audição normal; os animais conseguiram ter um elevado grau de discriminação, superior ao que próteses atuais podem alcançar 62 Por que esquecemos nossos primeiros anos O cérebro do bebê prioriza a aprendizagem em vez da formação e consolidação de recordações duradouras 22 www.mentecerebro.com.br Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez Editora-chefe: Gláucia Leal Editora de arte: Sheila Martinez Colaboradores: Maria Stella Valli e Ricardo Jensen (revisão) Tratamento de imagem: Paulo Cesar Salgado Produção gráfi ca: Sidney Luiz dos Santos PUBLICIDADE Gerente: Almir Lopes almir@editorasegmento.com.br Escritórios regionais: Brasília – Sonia Brandão (61) 3321-4304/9973-4304 sonia@editorasegmento.com.br Rio de Janeiro – Edson Barbosa (21) 4103-3846 /(21) 988814514 edson. barbosa@editorasegmento.com.br TECNOLOGIA Gerente: Paulo Cordeiro Analista programador: Diego de Andrade Desenvolvedores: Thean Rogério MARKETING/WEB Diretora: Carolina Martinez Gerente de marketing: Mariana Monné Eventos: Lila Muniz Coordenador de criação e designer: Gabriel Andrade Analista de web: Lucas Alberto ASSINATURAS E CIRCULAÇÃO Supervisora: Cláudia Santos Eventos Assinaturas: Simone Melo Vendas telemarketing ativo: Cleide Orlandoni FINANCEIRO Contas a pagar: Siumara Celeste Controladoria: Fabiana Higashi Recursos humanos/Depto. pessoal: Roberta de Lima Mente e Cérebro é uma publicação mensal da Editora Segmento com conteúdo estrangeiro fornecido por publicações sob licença de Scientifi c American. 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NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição www.mentecerebro.com.br Acompanhe a @mentecerebro no Instagram 3 CARTA DA EDITORA 6 ASSOCIAÇÃO LIVRE 69 LIVROS seções 52 A verdade sobre a terapia de choque Apesar de a eletroconvulsoterapia ser uma técnica ainda cercada de preconceitos, há casos em que pode ser uma solução razoavelmente segura para algumas doenças mentais graves 64 Marca-passo cerebral para retomar movimentos Aplicada por neurocirurgiões brasileiros, técnica tem obtido sucesso em conter o avanço dos sintomas da doença e proporcionar melhor qualidade de vida aos pacientes, que chegam a obter uma melhora de até 90% após a cirurgia associação livre XTEATRO Quando a inclusão sobe ao palco Montagem do grupo Os Satyros, na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, apresenta elenco formado por artistas refugiados, trans e egressos do sistema prisional O espetáculo O incrível mundo dos baldios se passa em uma noite de Ano-Novo, em que um anjo circula pela Terra e um peregrino busca atender às promessas de pessoas que esperam por milagres para suas vidas. Surgem daí cinco encontros inesperados. Em uma casa de repouso, uma voluntária dá um banho em um velho palhaço adoentado. Em um ponto de ônibus, uma cantora maranhense conhece dois verdureiros evangélicos. Na quebrada, um segurança faz um plano com um amigo para enriquecer rapidamen- te. Em um cruzeiro, uma advogada bem-sucedida vive seus últimos mo- mentos ao lado de uma médica e um amigo. Em uma área de fumantes de um clube, uma refugiada palestina conhece um adolescente perdido. As histórias apresentadas nas- ceram das biografias dos próprios participantes. Partindo do contato entre os diferentes, a peça se pro- põe o diálogo em um mundo que se mostra, cada vez mais, carregado de polarizações, intolerância e ódio. A palavra “baldio” não foi esco- lhida ao acaso, pelo contrário: faz referência à ideia de algo inútil, sem proveito, utilizado basicamente para terre- nos abandonados. Do ponto de vista capitalista, é “baldio” todo e qualquer grupo social que não faça parte da força de trabalho utilizada com o fim de gerar lucro. Transexuais, refugiados, idosos, negros, adolescentes em situação vulnerável e ex-detentos são grupos sociais com dificuldade de inserção na força econômica e social. Nesse sentido, Os Satyros se consideram tão baldios quanto esses gru- pos e essa identificação é o que nos une: somos a escória econômica, que vive à d iv u lg a ç ã o 6 associação livre d iv u lg a ç ã o sombra de um sistema que visa, acima de tudo, a geração de lucro. No sentido clássico da língua, no entanto, “baldios” eram os terrenos comu- nitários de pequenas vilas do interior de Portugal que eram utilizados para rea- lizar várias ações comunitárias, tais como celebrações, hortas, festas e eventos culturais. Os baldios portugueses eram os espaços do convívio social, da troca simbólica e cultural, do prazer da coletividade. Os Satyros buscam fazer das suas ações na Praça Roosevelt um grande baldio, onde os mais diversos grupos sociais, vindos dos mais diversos pontos da cidade, podem se sentir acolhidos e o convívio social possa ser enriquecedor e respeitoso. O projeto foi construído pelo grupo de teatro no jogo entre os dois significa- dos dessa palavra. A pesquisa do elenco foi desenvolvida durante sete meses, com base nas experiências biográficas dos próprios participantes e acabaram ecoando na proposta de dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez. Os atores mais antigos da companhia (Ivam Cabral, Gustavo Ferreira, Fabio Pen- na, Henrique Mello, Julia Bobrow, Ju Alonso, Lorena Garrido, Robson Catalunha e Sabrina Denobile) dividiram o processo com novos integrantes, como Roberto Francisco, ator idoso morador do Palacete dos Artistas; Junior Mazzine, egresso do sistema prisional; Oula al-Saghir, refugiada palestina recém-chegada ao país; Alex de Jesus, adolescente contemplado pelo projeto teen dos Satyros e egresso da Fundação Casa; e a transexual Márcia Dailyn. Desde a sua fundação em 1989, Os Satyros tem se dedicado a ter em seus processos criativos artistas vindos de minorias silenciadas que, além de sua posi- ção social historicamente vulnerável, foram alijados de qualquer acesso ao mundo teatral. A chegada do grupo teatral à então deteriorada Praça Roosevelt, em 2000, aprofunda o interesse da companhia em abordar as questões dos grupos sociais subalternizados, transformando a trajetória estética do próprio coletivo. O incrível mundo dos baldios. Duração: 85 minutos. Satyros Um – Praça Roosevelt, 214 (tel. 11 3258 6345). Sextas às 21h; sábados às 19h30 e 21h30; domingos às 19h30. Até 26 de agosto de 2018. Ingresso: R$ 20,00 (inteira)/ R$ 10,00 (meia)/ R$ 5,00 (moradores da Praça Roosevelt). 7 8 d iv u lg a ç ã o /e d u a r d o k o br a O que um sorriso revela Estudos sobre a capacidade de decifrar as nuances das expressões faciais mostram como o cérebro acessa memórias e decodifica gestos O AUTOR ALBERTO OLIVERIO é neurobiólogo, professor de psicobiologia da Universidade La Sapienza, em Roma. comportamento A s expressões faciais revelam muito sobre nossos in- terlocutores. Com base em mínimos indícios que às vezes escapam à consciência, somos capazes de avaliar em que medida expressões amigáveis são autênticas ou falsas, detectamos se um sorriso é espontâneo ou de conveniência, se uma risada é sincera ou forçada. Essas nossas competências derivam, pelo menos em grande parte, de duas questões geométricas. Sabemos intuitivamente que: 1. a expressão facial espontânea implica uma resposta simétrica das duas metades do rosto; 2. os diversos mús- culos faciais são ativados de modo simultâneo e rápido. Algo que fuja disso, portanto, costuma – ou pelo menos deveria – fazer piscar nosso “si- nal vermelho interno”, avisando que algo ali não parece exatamente sincero. No entanto, nem sempre somos capazes de avaliar objetivamente as expressões dos outros, principalmente quando queremos mentir para nós mesmos – por exemplo, quando contamos uma piada com tanta animação que não perce- bemos que quem está ouvindo demonstra estar se divertindo só por gentileza ou conveniência. De que depende a capacidade de decifrar as expressões faciais? Hoje sabemos que o hemis- fério direito tem papel central nessa forma de decodiicação: a prova mais evidente é o fato de que as pessoas que sofreram uma lesão na metade direita do cérebro apresentam déicit relativo à compreensão das expressões faciais. comportamento d iv u lg a ç ã o /e d u a r d o k o br a 9 Quando o problema se refere especii camente às expressões de medo, a lesão é localizada na amígdala direita. Diante de gente de carne e osso ou de fotograi as que retratam expres- sões de medo ou de terror, os pacientescom uma lesão nessa área cerebral demonstram não entender o signii cado das ex- pressões faciais, como se fossem impermeáveis à mensagem visual, mesmo que possam descrevê-la com detalhes. Também no que se refere à compreensão da expressão fa- cial das emoções, foi observado o predomínio do córtex motor do hemisfério direito (que contro- la a metade esquerda do rosto, enquanto o córtex do hemisfério esquerdo controla os músculos faciais do lado oposto). Com um programa de computador capaz de revelar a dinâmica de uma ex- pressão facial, é possível obser- var que em um sorriso forçado (ou dado após a pessoa receber um comando para que sorria) o hemisfério direito está mais capacitado para governar a “meta- de sorriso” da esquerda, enquanto o esquerdo se mostra me- nos capaz. Na prática, isso se traduz em maior artii cialidade de expressão na metade direita do rosto. Mas há uma questão a ser considerada: o fato de que, nas pessoas que sofreram lesão em qualquer lado do córtex motor, o sorriso comandado, controlado pelo córtex, ser obviamente limitado à parte do rosto que corresponde aos comandos do córtex saudável – da direita ou da esquerda – faz com que o sorriso seja, portanto, totalmente assimétrico. Essas mesmas comportamento d iv u lg a ç ã o /e d u a r d o k o br a 10 pessoas podem, no entanto, sorrir ou rir de modo pleno, isto é, com as duas metades do rosto se a emoção for espontâ- nea: isso ocorre graças à intervenção dos gânglios da base, núcleos nervosos localizados no interior do cérebro que têm a função de governar gestos automáticos e memórias proces- suais como caminhar, andar de bicicleta, rir e sorrir. Focos de atenção Considere um paciente que sofre de diminuição das funções do cérebro após uma alteração da circulação do sangue (íctus), o que pode acar- retar uma hemiparesia (interrupção parcial dos movimentos de um ou mais membros superiores, inferio- res ou ambos conforme o grau do comprometimento). Se o pesquisa- dor lhe pede que sorria ao seu co- mando ou por conveniência, para ser gentil, seu movimento será par- cial. Mas, se a mesma pessoa en- contra um amigo querido, o sorriso surge de forma normal, no- vamente simétrico, visto que é relacionado aos automatismos governados pelos gânglios da base, não atingidos. Em alguns casos, bastante raros, é possível observar uma lesão de meta- de dos gânglios da base (direita ou esquerda): nessa situação, o sorriso comandado emerge graças ao fato de o córtex motor estar íntegro, enquanto o espontâneo, devido aos gânglios da base, falha. Geralmente, porém, apenas as pessoas próximas percebem isso. comportamento d iv u lg a ç ã o /e d u a r d o k o br a 11 Mesmo para quem não tem nenhum problema em nenhum dos dois hemisférios cerebrais, talvez o mais indecifrável dos sorrisos seja o da Mona Lisa. Ai nal, qual é o segredo que tor- na tão mutável a expressão da Gioconda retratada por Leo- nardo da Vinci? Em geral, as respostas baseiam-se no pres- suposto de que a ambiguidade se deve à técnica do sfumato (“esfumado”, em italiano), que desfoca os cantos dos olhos e da boca dando ao quadro um ar de mistério. Mas a neurobió- loga Margaret Livingstone, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, propôs uma explicação ba- seada nas diferenças da percepção da chamada “frequência espacial” no interior do nosso olho. Trata- -se de uma medida de quanto é detalhada uma imagem: se para cada centímetro quadrado da tela de um computador há mais pixels (isto é, pontinhos que emitem luz), então a representação do objeto é mais nítida. Ou, em outras palavras, a frequência espacial é mais elevada. Quando utilizamos a visão central (mirando diretamente o objeto), apreciamos, sobretudo, as imagens nítidas (frequências elevadas), antes das maldeini- das, enquanto a nossa visão periférica é mais apta a perceber os contornos esfumados. Assim, segundo Livingstone, quando não olhamos dire- tamente a boca da Mona Lisa, percebemos a parte “alegre” escondida nas baixas frequências, isto é, no esfumaçado dos lábios. Mas, se direcionamos o olhar para os lábios, perdemos comportamento div ul ga çã o/ ed ua rd o k ob ra 12 uma parte de seu sorriso e temos a impressão de que a ex- pressão muda. No livro A expressão das emoções no homem e nos animais, de 1872, Charles Darwin buscou uma explicação do signiica- do das expressões no reino animal, perguntando-se por que se apresentam em certas formas particulares. Segundo o pai da teoria da evolução, nos homens numerosas emoções têm uma expressão universal, isto é, são as mesmas independen- temente de raça, cultura e nível de instrução. São inatas, e não adquiridas, mero produto do nosso caminho evolutivo. Nós, humanos, temos uma gama de expressões complexas cujo signiicado, ao longo do tempo, se imprimiu na nossa mente. De forma análoga, os animais possuem expressões que lem- bram as nossas: os répteis, por exemplo, emitem sinais quando abrem a boca mostrando os dentes. No início do século 20, os behavioristas puseram em dúvi- da a universalidade das expressões faciais dos estados emo- cionais, mas depois dos anos 50 alguns estudos conirmaram, sem margem a dúvidas, a existência de expressões universais. comportamento d iv u lg a ç ã o /e d u a r d o k o br a Em 1969, o anatomista Carl Hjortsjö descreveu em detalhe o efeito dos 23 músculos mímicos da face durante os estados emocionais. Com base nisso, ao im dos anos 70, os psicólogos Paul Ekman e Vincent Friesen criaram o Facs (Facial Action Coding System, ou Sistema Codiicador da Ação Fa- cial), um conjunto de todas as ações musculares associadas à expressão de dada emoção, que inclui a medida da intensidade das contrações e da sua duração. Por exemplo, no caso de um sorriso de alegria, contraem-se o músculo zigomático maior, que ergue os cantos da boca, e o músculo orbi- cular do olho, que estreita as órbitas oculares. Nó de contato Ekman e Friesen usaram depois es- ses dados para medir o grau de con- cordância das expressões entre os membros da etnia fore, na Nova Gui- né, e em americanos. Depois levaram em conta registros em vídeo e foto- graias de expressões faciais efetuadas entre japoneses, bra- sileiros, chilenos e argentinos. Suas pesquisas conirmaram a concepção evolucionista de Darwin e constituíram a prova da universalidade para oito emoções: surpresa, tristeza, cólera, prazer, desprezo, nojo, vergonha e medo. Os estudos condu- zidos nos últimos anos no campo das neurociências mostram comportamento divulgação/eduardo kobra 14 que a amígdala, área do cérebro que representa um “nó de contato” entre os sinais cerebrais, contribui para o reconheci- mento da sensação suscitada por uma face. Uma pessoa com essa estrutura em forma de amêndoa afetada não reage à visão de um rosto aterrorizado e é incapaz de reconhecer expressões em que emoções como felicidade e surpresa estão misturadas. Ainda assim, a amígda- la não seria essencial para identiicar as emoções: se- gundo alguns experimen- tos efetuados com PET (tomograia por emissão de pósitrons), método de análise que permite visua- lizar o aluxo de sangue nas diversas estruturas do cérebro durante a execu- ção de operações mentais, as faces alegres ou tristes provocam aumento de ati- vidade do giro do cíngulo. Parece também que a amígdala, ao contrário do córtex, não reageàs expressões de nojo. O riso e o sorriso nos revelam ainda algo mais geral sobre o funcio- namento do cérebro: muitas vezes uma função não depende apenas de uma única estrutura, como no caso especíico do córtex motor, mas do concurso de mais estruturas, o que nos permite compensar uma perda neurológica com o auxílio da reabilitação. Cabe, de qualquer modo, ao córtex frontal a maior parte das decisões conscientes: por exemplo, a interpretação de um sorriso que reclama discernimento – como o da Mona Lisa PARA SABER MAIS A psicologia das emoções - O fascínio do rosto humano. A. Freitas-Magalhães. Editora Leya Portugal. 2013 O sorriso de Mona Lisa. Susana Martinez-Conde e Stephen L. Macknik. Especial Mente e Cérebro – Ilusões, n° 28, págs. 36-45. comportamento divulgação/eduardo kobra 15 16 Com tantas transformações ocorrendo de forma rápida e múltipla no mundo contemporâneo, são inevitáveis as indagações e os questionamentos a respeito do que se transforma e do que permanece em relação ao que acreditamos saber sobre o funcionamento psíquico psicanálise O AUTOR FÁBIO SANCHEZ é psicanalista e jornalista, mestre em divulgação científica e cultural pelo Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp) e integrante do grupo de pesquisa Sujeito Punção Contemporâneo, do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. O novo e o sujeito psicanálise A pergunta incomoda a cena psicanalítica: o mundo psíquico, ou, exatamente, o sujeito da psicanálise, muda com o tempo ou ainda é o mesmo da época de Freud? Parece óbvio que, se o sujeito, no sentido lacaniano, é constituído na sua relação com o Outro (a lingua- gem, a “sociedade”) e este Outro muda com o tempo, o sujeito também mudará, tal como mudam os conceitos de família, de masculino e feminino etc. Mas, se assim for, os fundamentos teóricos lançados por Freud quase 120 anos atrás, ou por Lacan, há quase sete décadas, e que são base para as escolas de psi- canálise poderiam ser questionados a cada modismo. O assunto ocupa espaço generoso nas grades curriculares de instituições sintonizadas com as discussões de ponta. O Fó- rum do Campo Lacaniano de São Paulo, por exemplo, mantém o grupo de pesquisas (ao qual pertenço) chamado Sujeito Pun- ção Contemporâneo. A Sociedade Brasileira de Psicanálise pre- parou para agosto deste ano seu primeiro Simpósio Bienal com o tema “O mesmo, o Outro, psicanálise em movimento”, e o 32º Congresso Latino-Americano de Psicanálise, que ocorrerá no Peru em setembro, foca desconstru- ções e transformações, com o objetivo de discutir, segundo seu presidente, Roberto Scerpella, as “complexidades da psicanálise contemporânea”. O Ins- tituto Sedes Sapientiae, tradicional es- cola psicanalítica de São Paulo, tem pelo menos dois cursos sobre clínica contemporânea, cuja proposta é inves- tigar em que medida as novas deman- das podem ser lidas “como variantes 17 psicanálise das formas clássicas da psicopatologia psicanalítica”. As dúvidas são tantas que, quando o lacaniano francês Da- vid Bernard, focado na interface entre psicanálise e contem- poraneidade, esteve no Brasil em março, alertou em artigo que os psicanalistas “não deveriam versar sobre um medo e um catastroismo generalizados” sobre a modernidade e o receio de que tudo mude. Os herdeiros de Freud e Lacan acreditam em um diferencial contemporâneo, ou pelo menos se interro- gam a esse respeito na maior parte do tempo. Freud já esta- va atento ao contexto cultural de cada momento, como se vê em textos como A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (1908), em que atribui algumas patologias ao contex- to comportamental repressivo da virada do século. Ou quando atribui à tecnologia de transporte (proliferação de ferrovias e tran- satlânticos) a causa de certo mal- -estar psíquico pelo distancia- mento de pessoas queridas (em O mal-estar na civilização, de 1930). Mas mesmo aí a estrutura psíquica se mantinha a mesma. Freud considerava tão imutáveis os parâmetros do funcionamento psíquico que avaliou com cri- térios psicanalíticos Leonardo da Vinci e Moisés. Lacan foi mais complexo quanto a esse tema. Era de certa for- ma conservador, como quando defendeu que a “estrutura” da ho- mossexualidade em 1960, data de seu seminário sobre a “trans- ferência”, era a mesma que a da Roma antiga, mudando apenas Lacan inovou e questionou paradigmas, como nos momentos em que relativizou a força da figura paterna, ou quando destacou e teorizou sobre o capitalismo, que seria responsável, entre outras coisas, pela ampliação do racismo e da segregação 18 psicanálise “a qualidade dos objetos” (os adolescentes seriam melhores no passado, mais dignos, porque não precisavam ser buscados “na sarjeta” ou em “esquinas recônditas”). Acreditava mesmo que a questão sexual estruturalmente se mantinha porque a interdição ao sexo reformula-se para se manter intacta mesmo quando se estabelecem os novos paradigmas sexuais. Apesar disso, Lacan não só inovou como questionou os paradigmas. Isso ocorreu, por exemplo, na criação de conceitos como o do “objeto a”, que rela- tivizou a importância do falo e ou quando teo- rizou sobre questões como o gozo, o cinismo e o capitalismo, que seria responsável, entre outras coisas, pela ampliação do racismo e da segregação. Essa relação com o contempo- râneo – e os ajustes que requer ou não – é o que se pode chamar de um mal-estar. Requer trânsito interminável no litoral entre o que é psicanálise e o que não é. Exige pensar pos- síveis paradoxos como, por exemplo, uma parceria do superego (a instância psíquica repressora por excelência) com o gozo (caso este seja obrigató- rio, como no capitalismo descrito por Lacan e Slavoj Žižek). Exige, por exemplo, contemplar um aparato como o da tela que carre- gamos diuturnamente junto à mão (o telefone celular), como um ambiente ao mesmo tempo público e privado, um nó conceitual que já exige novas investigações teóricas. É evidente que, para domar idiossincrasias, já foram providen- ciadas soluções retóricas, que acomodam, lado a lado, o proces- so histórico e a epistemologia da psicanálise. Há os que falam, por exemplo, não em sujeito contemporâneo, mas em “subjeti- vidades” contemporâneas. Intérpretes de Lacan como Jacques- 19 psicanálise -Alain Miller citam uma “nova estrutura do discurso hipermoderno da civilização”, mas ainda dentro dos paradigmas lacanianos. A corajosa inquietude da psicanálise com relação a isso en- contra caminhos e consensos interessantes quando lança mão de pelo menos duas aberturas para se pensar a contempora- neidade, porque são submissas ao tempo e decididamente in- terferem no humano. Elas são a tecnologia, na medida em que propicie uma subjetividade e um comportamento novos; e o processo histórico, com seus determinantes (sociais, econômi- cos, morais, sexuais etc.). A alteração da sociedade de produção, vivida na época de Freud, para a socieda- de de consumo, que vivemos hoje, é citada desde o próprio Lacan até diversos pen- sadores atuais, não necessariamente psi- canalistas (Žižek, Zygmunt Bauman, Um- berto Eco, Giorgio Agamben, entre outros). Joel Birman já investigou esse cenário em pelo menos dois livros, Mal-estar na atua- lidade, de 2005, e O sujeito na contempo- raneidade, em 2012, e fala em “novas condições” no mal-estar da civilização. Lacan, com seu arsenal de referências externas à psica- nálise (a matemática, o idioma chinês, a linguística, a iloso- ia etc.), saiu pavimentando pontes com o contemporâneo.Apontou claramente, em seu Seminário 18 (de 1971), em Televisão (1973) e outros textos, o capitalismo interferindo no sujeito, em seu gozo (como na “necessidade” de gozar que o capitalismo de consumo exige, inventando o termo “mais-de- -gozar”, análogo à mais-valia de Marx). A alteração da sociedade de produção vivida na época de Freud para a de consumo, que temos hoje, é citada por diversos pensadores atuais 20 Entre os efeitos da assunção dos fenômenos capitalistas, há a “individualização” detectada, por exemplo, por Alain Ehren- berg, quando este fala do “culto à performance”. Nesse contex- to, há teóricos como Fernanda Bruno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que veem o ideal de eu (a identiica- ção narcísica do sujeito com uma imagem projetada sobre um pano de fundo composto pelos pais e heróis da infância) já se sobrepondo ao superego. Os indicadores de uma sociedade repressora estariam cedendo espaço à valorização de heróis; o padrão normativo das identidades contemporâneas parece abandonar os modelos institucionais que se apegam às regras (o bom aluno, o bom trabalhador etc.) em favor dos sujeitos inovadores, intrépidos, desaiadores, com muitos amigos nas redes sociais, portadores de telas. O outro consenso-chave para a contemporaneidade é com relação à ciência e à técnica. Nesse contexto, o cotejamento com os dias correntes está cheio de esparrelas. O narcisismo desbragado das redes sociais, por exemplo, não é necessaria- mente berço de algumas características do sujeito contempo- râneo. Gustave Flaubert, em seu irônico Dicionário das ideias feitas (escrito ainda no século 19), já descrevia como utilizar a mídia para “brilhar” em sociedade (leia-se, por exemplo, o di- vertido verbete “Jornais”). psicanálise Os indicadores de uma cultura repressora parecem ceder espaço à valorização de heróis; o padrão normativo das identidades contemporâneas favorece o abandono de modelos institucionais 21 psicanálise E as fake news, ilhas da imensa facilidade que temos para emitir e acreditar em notícias de procedência evidentemente duvidosa porque nos parecem certas, em registrar a vida pú- blica incluindo nosso pitaco, aí teríamos um comportamento realmente novo? Também não. O historiador Robert Darnton descreve em detalhes, em mais de um livro, fake news se- melhantes às atuais trabalhando na desestabilização da mo- narquia francesa pré-revolução, com redes de distribuição extremamente eicazes. E o que dizer do anonimato proporcionado pelos games, chats, salas de bate-papo, coletivos diversos na internet? Não seriam novas formas de exercer a fantasia? Bailes de másca- ras já no século 17 cumpriam esse pa- pel nos salões e carnavais de rua, onde se podia ser ousado sem a angústia da vergonha e sem ser identiicado; e nas ruas, onde podiam se “misturar” nobreza e povão, casados e solteiros etc. Sem contar as formas mais triviais de exercer a fantasia, como as corres- pondências em festas juninas ou brin- cadeiras de amigo secreto. É claro que, evitados o fetiche e o fascínio pela técnica, ou por seu mais recente avatar, a tecnologia, é preciso conside- rá-la na formação do sujeito contemporâneo. Umberto Eco, por exemplo, lembra, com relação às redes sociais, que “pela primeira vez na história da humanidade, os espionados cola- boram com os espiões, facilitando o trabalho destes últimos” (uma mudança na formação da autoimagem?). O ser humano é considerado há décadas por alguns pensa- dores, de Donna Haraway a Amber Case, um tipo de ciborgue Alguns pensadores chegam a considerar o uso cada vez mais frequente da tecnologia como uma espécie de evolução biológica da espécie 22 psicanálise lowtec, o que leva a diversos insights sobre o relacionamento com uma tela que torna o Outro presente e ao mesmo tempo ausente (uma abordagem do olhar nova entre as muitas das quais dispõe a psicanálise). E alguns pensadores, como Leroi- -Gourhan, chegam a considerar o homem ciborgue, que faz uso cada vez mais frequente de aparatos tecnológicos no dia a dia, uma evolução biológica da pró- pria espécie huma- na. Filósofos como o italiano Maurizio Ferraris pensam uma nova ontolo- gia do ser humano com base no uso já incorporado do te- lefone celular. São questões que não podem ser ignoradas e colocam em jogo a identidade da psicanálise. Se ela está para a passagem do tempo como uma ciência, como a situou Freud, ou se teria alguma das demais atribuições conferidas a ela ao longo de mais de um século, com sujeições distintas ao peso dos anos (investigação, ilosoia, terapêutica, processo, método, herme- nêutica, hipótese, ética etc.). Além disso, os efeitos dessas questões sobre a clínica, que é o que ao cabo interessa aos psicanalistas, convocam os es- crúpulos dos que não temem mudar paradigmas, ou enfren- tá-los. Se houver uma psicanálise da contemporaneidade ou, pelo menos, uma clínica de seus efeitos e da tecnologia, seus termos já estão em campo e pedem passagem. PARA SABER MAIS O amor na era do virtual. Cristiane Dias. Em Discurso e sujeito, trama de significantes. Lauro José Siqueira Baldini e Lucília Maria Abrahão (orgs.). EdUFSCar, 2014. Where are you? Em Ontology of the cell phone. Maurizio Ferraris. Fordham University Press, 2014. Máquinas de ver, modos de ser – Vigilância, tecnologia e subjetividade. Fernanda Bruno. Editora Meridional, Porto Alegre, 2013. O sujeito na contemporaneidade. Joel Birman. Civilização Brasileira, 2012. Um olhar a mais: Ver e ser visto na psicanálise. Antonio Quinet. Zahar, 2002. 23 chamado Um fantasma capa Quando sensações inesperadas de medo irracional se tornam uma ameaça e a pessoa passa a conviver com o temor constante da morte iminente, os índices de estresse se tornam absurdamente elevados e o mundo, muito mais ameaçador capa D e repente vem a certeza: algo terrível está para acontecer. E o corpo oferece sinais que apoiam essa sensação: o ar parece faltar, a boca seca, as mãos tremem, a pessoa sente náuseas e o mal-es- tar se generaliza. Durante uma crise de síndrome do pânico, prevalece o medo de se perder de si mesmo, de enlouquecer ou morrer. Embora um pouco de ansiedade seja até benéico em dadas situações – já que antecipar mentalmente o futuro nos prepara para enfrentar eventuais riscos – o excesso des- se sentimento. O problema ica caracterizado quando essa an- siedade começa a causar sofrimento demais para a pessoa. A preocupação culmina nas crises, e a pessoa ica ainda mais ansiosa porque não sabe quando a próxima irá acontecer. Em geral, a síndrome do pânico aparece no começo da vida adulta, em situações de estresse, em que a pessoa se sente desamparada. Fatores genéticos, biológicos e psíqui- cos e sociais contribuem para o surgimento da crise. A inci- dência é maior em mulheres (de duas a quatro vezes mais frequente que em homens) e costuma ser atribuída à maior sensibilidade das estruturas cerebrais causada pela variação hormonal, já que a incidência de pânico aumenta no período fértil. A maioria dos pacientes tem a primeira crise entre 15 e 20 anos desencadeada sem motivo aparente. Com o passar do tempo, as crises vão se repetindo de maneira aleatória. Um único episódio de ansiedade, porém, não caracteriza a síndrome do pânico, são as crises repetidas que caracterizam o transtorno. Ou seja: o fato de uma pessoa ter sintomas de pânico em dado momento não signiica, necessariamente, que a situação vai se repetir.Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a maioria dos indivíduos tem pelo menos uma crise de pânico ao longo da vida. Segundo estimativas do Insti- 25 capa tuto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade Brasil, 23% da população brasileira terá algum tipo de distúrbio an- sioso ao longo da vida e 12% das pessoas sofrem com algum transtorno de ansiedade, o que representa aproximadamente 24 milhões de brasileiros com ansiedade patológica. A maioria dos pacientes passa por vários médicos em bus- ca de uma resposta e do tratamento para tamanha ansieda- de, sem saber ou, às vezes, aceitar, que tantos sintomas físicos sejam provenientes de problemas emocionais. Felizmente, o transtorno tem tratamento e, quanto mais precoce o diagnós- tico, maiores são as chances de recuperação. A combinação entre medicamentos e sessões de psicoterapia costuma ser a mais eiciente. Raramente há cura espontânea e, apesar de muitas pessoas ainda colocarem em xeque a relevância de complicações psicológicas, a síndrome deve ser encarada como doença, capaz de levar a complicações ainda maiores: depressão, desenvolvimento de outros transtornos de ansie- dade, abuso de álcool e/ou de sedativos, com prejuízos para a vida proissional, social e familiar. De todos os transtornos ansiosos, o de pânico foi o mais estudado nos últimos 30 anos; no entanto, ainda existem la- cunas importantes em termos de diagnóstico e classiicação, etiologia e tratamento dessa condição clínica. A prevenção de novas crises e a diminuição das complicações associadas a elas, como a ansiedade an- tecipatória e a evitação fóbi- ca, são os pontos-chaves no tratamento do distúrbio. Hoje 26 capa se sabe que um dos principais fatores de risco para transtor- nos de ansiedade na vida adulta é a presença de transtornos ou traços de ansiedade durante a infância e a adolescência. Nesse sentido, de forma cada vez mais precoce, pesquisas atuais vêm focando o tratamento precoce dos transtornos de ansiedade ou mesmo a prevenção em crianças de risco, como os ilhos de pais com transtornos de ansiedade, por exemplo. Há poucas pesquisas investigando a eicácia des- sas estratégias de prevenção; no entanto, este é um campo promissor de pesquisas futuras. Por medo de ser tomada por esses sintomas, a pessoa tende a evitar situações que acredita serem mais prováveis ocorrer ou só as enfrenta acompanhada . Os temores costumam estar relacionados a experiências que se tenta eliminar ou reduzir ao máximo para evitar a angústia. Entre os locais temidos estão os espaços abertos, lojas concorridas, centros públicos com grande circulação de pessoas e estádios de futebol. Multidões também são assustadoras para esses pacientes. Especialistas alertam que o pânico pode, em alguns ca- sos, ser uma manifestação secundária do uso exagerado de determinados medicamen- tos utilizados para emagrecer, por exemplo. Psicoestimulantes, como a cocaína e o ecstasy tam- bém podem delagrar crises. Pro- blemas de saúde, como o hiper- tireoidismo (produção excessiva de hormônios), também podem provocar sintomas muito pareci- dos com os do pânico. 27 Psicanálise para enfrentar o desamparo E mbora intervenções embasadas na psico- terapia cognitivo-com- portamental sejam frequente- mente usadas por psicólogos para auxiliar pacientes com transtorno do pânico, a expe- riência clínica mostra que a abordagem psicanalítica pode ser muito útil no tratamento desse quadro. “A proposta é le- var o paciente a se implicar no próprio sofrimento, se ques- tionando sobre o que acon- tece com ele, procurando dar sentido, a partir da sua história, aos ataques súbitos de pânico que parecem não ter sentido”, airma a psicanalista Lucianne Sant’Anna de Menezes, pro- 28 capa fessora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), autora de Pânico: efeito do desamparo na contemporaneidade, um estudo psicanalítico (Casa do Psicólogo, 2006). “Vivemos num mundo onde ainda há pouco lugar para di- ferenças; as subjetividades contemporâneas caracterizam- -se pelo apagamento da alteridade, em que a tendência é uma redução do homem à dimensão da imagem. Nesse sentido, o pânico expressa o fracasso do sujeito em aten- der às exigências dos ideais e valores que a sociedade atual prega. Por isso, o pânico ganha espaço progressivo na cena social. Sob este ponto de vista, portanto, existiria um pro- cesso de produção social do pânico”, diz. Menezes lembra que aquilo que Freud denominou mal-estar na civilização relaciona-se ao mal-estar na modernidade. A civilização é o caminho necessário para o desenvolvimento que vai da fa- mília à humanidade como um todo. “O pânico, na atualidade, seria expressão de um modo que o sujeito encontrou de se organizar na sociedade contemporânea, respondendo aos subsídios que a organização social atual oferece para que ele se sustente para além da cena familiar”, airma. Não apenas o momento em que os sintomas aparecem se torna ameaçador; os intervalos entre uma crise e outra são aterrorizantes, pois o próximo episódio pode ocorrer a qualquer momento 29 capa Para Freud, o desamparo seria o que instaura o mal-estar, nas relações entre os seres humanos; é o motor na construção da civilização. O homem desenvolveu a cultura numa tentativa de diminuir seu desamparo diante das forças da natureza, dos enigmas da vida e, sobretudo, da própria morte. “O desamparo no campo social diz respeito à falta de ga- rantias do sujeito no mundo, que é obrigado a uma renún- cia pulsional como condição de viver em sociedade e, em consequência da satisfação pulsional frustrada, experimenta um desconforto que é sentido como um mal-estar”, ressalta Menezes. A condição de existência do sujeito no mundo, na civilização, é apoiada numa condição de desamparo do psiquismo. “A mensagem freudiana é que, para viver, as pessoas criam possibilidades afetivas no enfrentamento desta condi- ção fundamental e o pânico seria uma dessas possibilidades, seria uma das expressões do mal-estar na atualidade que marca a relação do sujeito com a cultura”, observa a psicanalista. Ela en- fatiza que a modernidade não promoveu a superação do mal- -estar, resultado do excesso de ordem e da escassez de li- berdade; ao contrário, na sua máxima radicalização, o que fez foi “re-conigurar” o mal-estar. “O mal-estar contemporâneo é efeito da desregulamentação e do excesso de liberdade indi- vidual, é fruto do excesso pulsional e da fragilidade de simbo- lização; nesse sentido, há uma marca essencialmente traumá- tica, o que aponta para a vulnerabilidade psíquica do homem contemporâneo, assim como destaca o pânico entre os mo- dos atuais de sofrimento humano.” 30 capa No tratamento psicanalítico, a proposta é criar, junto com o paciente, condições para que ele possa elaborar a condi- ção de desamparo. Em geral, até a eclosão da primeira crise de pânico, a questão do desamparo não se colocara de fato para o paciente, essa condição provavelmente estava enuviada pela ilusão de um ideal protetor onipotente, que garantia a esta- bilidade do mundo organizado longe das incertezas e da falta de garantias da vida. “É comum em quem sofre de pânico um apego dependente e concreto a alguém ou a alguma situação estável”, diz Menezes. “É frequente que o paciente necessite de uma pessoa que o acompanhe aos lugares aonde precisa ir. Ele sabe, tem cons- ciência de que não vai mudar nada, mas necessita desta pre- sença concretaque cumpre o papel de um objeto iador de sua existência (ideal protetor), garantindo a estabilidade de seu mundo. É uma compensação para a incapacidade de lidar com a falta e, ilusoriamente, o livra do confronto com o desamparo. O apego ao remédio tem signiicado semelhante.” Um único episódio de ansiedade não caracteriza a síndrome do pânico, são as crises repetidas que caracterizam o transtorno; no Brasil, estima-se que 12% da população sofre com algum transtorno de ansiedade, o que representa 24 milhões de brasileiros com o problema 31 Esse sentimento resulta de processos tão básicos quanto a respiração ou a digestão; mesmo assim, compreender e descrever o que acontece em nosso cérebro quando algo nos apavora continua sendo um desafio para cientistas capa Do que você tem MEDO? capa O que é mais assustador: uma cobra venenosa serpenteando em sua direção numa trilha, ou observar uma queda de mil pontos na bolsa de valores? Embora os dois acontecimentos se- jam de natureza bastante diversa, ambos são assustadores. “Medo é uma resposta para estímulos imediatos, que pode- mos sentir no corpo como sensação de vazio no estômago, aceleração do coração, suor nas mãos e a tensão muscular”, diz o neurocientista Joseph LeDoux, professor de neurociên- cia e psicologia da Universidade de Nova York, Segundo ele, essas reações evidenciam que o cérebro está responden- do de forma pré-programada a uma ameaça muito especíica. “Ver a bolsa de valores despen- car mil pontos é a mesma coisa que observar uma cobra”, ava- lia LeDoux. “O medo, carateri- zado pela sensação de vazio , aceleração do coração, palmas das mãos suadas e tensão é uma resposta para estímulos imediatos”, airma o neurocien- tista. O pesquisador observa que, do ponto de vista neuroa- natômico podemos assumir que nossas sensações diante de ameaças são semelhantes. O medo afeta diferentes espécies de modo semelhante. “Viemos ao mundo sabendo como ter medo, pois nosso cérebro evoluiu para lidar com a natureza”. avalia LeDoux, observando que os cérebros de ratos e humanos respon- dem de maneiras semelhantes a ameaças, ainda que de naturezas distintas. 33 capa Para outros pesquisadores o medo é uma experiência muito pessoal. Enquanto algumas pessoas icam apavoradas ao as- sistir a um ilme de terror, outras podem icar com muito mais medo ao se encaminharem para seus carros, em um estacio- namento escuro, depois de assistir ao ilme. Se pedirmos para várias pessoas fazerem uma lista das coi- sas que mais as assustam, provavelmente cada uma fará uma lista bem diferente da outra, avalia Michael Lewis, diretor do Instituto de Desenvolvimento Infantil, da Faculdade de Medi- cina Robert Wood Johnson, em New Brunswick, Nova Jersey. “Intimamente, podemos concordar que o medo de uma audi- toria do imposto de renda ou de um assalto pode se manifes- tar da mesma maneira. O problema é que não temos como ob- ter uma boa medida isiológica do medo ou de qualquer outra emoção”, considera Lewis. Ele observa que o comportamento das pes- soas que nos cercam inlui nas nossas respos- tas a situações ameaçadoras. “Aprendemos a ter medo por experiências com fatos assusta- dores, ou com pessoas próximas, como nossos pais, irmãos, amigos”, observa Lewis. “O medo parece ter um componente contagiante, que faz com que o medo dos outros seja transmiti- do para nós. É um comportamento condiciona- do, como Pavlov e os cães que salivavam.” Outros pesquisadores recorrem à tecnologia para ajudar a melhor entender o medo. “É muito difícil deinir essa emoção em termos do sen- timento que ela evoca”, argumenta Joy Hirsch, professora de neurorradiologia, neurociência e 34 capa psicologia, bem como diretora do Pro- grama para Ciências de Imageamen- to e Cognição, da Columbia Univer- sity, em Nova York. “É possível deinir dor? É possível deinir a cor vermelha? Essas sensações extremamente pes- soais são consideradas os problemas mais difíceis em neurociência.” Para descobrir mais sobre o que nos faz perder o sono, Hirsch e sua equipe usam imageamento por ressonância magnética funcional (fMRI) para investigar como fun- cionam as conexões no nosso cérebro. “O circuito que co- manda a sensação de medo é ativado imediatamente por meio de um estímulo específico”. observa Hirsch. Na pes- quisa que ela desenvolve, uma fotografia do rosto de uma pessoa com expressão assustada é mostrada aos partici- pantes. Uma biblioteca padrão de estímulos que evocam atividades assustadoras usa atores para criar expressões faciais que transmitem sensação de medo. Na pesquisa com fMRI, a reação ao estímulo indutor de medo manifesta-se na amígdala, uma estrutura arredonda- da em forma de amêndoa, localizada abaixo do lobo tem- poral e também conhecida como centro cerebral do medo. Hirsch lembra que a amígdala é a primeira a responder a estímulos ameaçadores. O escâner de fMRI rastreia a alteração no fluxo sanguí- neo para a amígdala. “Estamos à procura de mudanças de sinais em regiões específicas do cérebro”, argumenta 35 Hirsch; “Esse sinal significa aumento da atividade neural.” O sinal de ressonância magnética responde à quantidade de sangue que está abastecendo uma determinada área. Durante o período de varredura da amígdala a foto de um rosto apavorado provoca um maior afluxo sanguíneo – in- tensificando o sinal da imagem – que um rosto com ex- pressão neutra. Críticos da pesquisa baseada na fMRI argumentam que nem sempre é claro o signiicado do aluxo de sangue em uma região cerebral. Mas Hirsch reba- te os adversários: “Usamos estímulos escolhidos de forma muito cuidadosa e que não necessariamente assustam as pessoas que estão sendo analisadas, mas que despertam sistemas envolvidos em sensa- ções de medo, se você estiver assustado”. conclui. “A interpre- tação de outra face demons- trando medo estimula regiões neurais do observador que res- pondem ao medo.” Hirsch observa que a amígda- la responde a outros estímulos além de expressões faciais. “Se você estiver em um beco escuro e alguma coisa saltar de repente em cima de você, provocando um susto, ela adverte: “É a amígdala que vai fazer você sair correndo.” 36 capa Pronto-socorro contra o pânico O que passa em sua cabeça quando reconhece os sinais de uma crise? Talvez pense: “Estou morrendo, estou ficando louco, vou desmaiar, estou enjoado, vou passar vergonha em público”. E a lista continua. Para lidar com a angústia e evitar que o descontrole aumente, alguns exercícios práticos podem ser muito úteis capa D e repente seu coração dispara. Parece não haver ar suiciente para respi- rar, você sente uma leve vertigem e as mãos transpiram. Esse conjunto de sintomas costuma revelar uma crise de pânico. “Não raro, nesse momento as pessoas acreditam que estão morrendo ou icando loucas”, diz a doutora em psicologia Ellen Hen- driksen. Ela ensina técnicas desenvol- vidas com base na psico- logia cognitivo-compor- tamental para controlar a angústia, uma espécie de “pronto-socorro” para que a pessoa retome a autonomia sobre o próprio corpo. Considerando que a crise pode ter causas nem sempre óbvias, é fundamental buscar ajuda de um proissional, mas – pelo menos no momen- to mais crítico – é possível se acalmar sozinho e em poucos minutos. Os resultados costumam ser bastante positivos, principalmente quando o pa- ciente aprende a se preparar para enfrentar o des- conforto. Mas a especialista alerta: é precisoestar disposto a suportar um pouco de ansiedade para superar esse estado. Brinque com os sintomas Parece bem pouco atraente induzir o mal-estar justamente quando nos sentimos bem. E é com- preensível que experimentar sentimentos desa- 39 capa gradáveis seja a última coisa que alguém deseja. “Mas é fun- damental se familiarizar com os sintomas, como o coração ba- tendo descompassado, por exemplo, e se dar conta de que isso não é, necessariamente, sinal de perigo”, airma Hendrik- sen. Ela enfatiza que os sinais de que “a pessoa está morrendo” surgem na hora da crise e têm efeito de uma bola de neve, que aumenta de forma descontrolada. Segundo a psicóloga, é importante simular fora do contexto de um ataque os sintomas que tanto nos assustam para nos acostumarmos a não vê-los como perigosos. A ideia é que a pessoa passe a lidar com o coração acelerado ou garganta apertada sem ver essas rea- ções físicas como um grande problema. “Quando estamos no controle, temos a chance de nos habituar aos sintomas isola- damente”, salienta a psicóloga. Mas, na prática, o que fazer? Simples. Se a pessoa está preo- cupada com a aceleração cardíaca, caminhe ou corra na esteira até perceber o coração batendo forte e, então, apenas interrom- pa o movimento e note como o organismo se estabiliza. Aterro- rizado com a possibilidade de sentir tontura? Sente-se em uma cadeira de escritório e gire várias vezes, em seguida pare e res- pire profundamente até que a vertigem passe. Falta de ar? Se- gure a respiração por alguns segundos e depois estabilize a ins- piração e a expiração. O importante é ir, aos poucos, “brincando” com o que o assusta, de forma segura e sem se expor a perigos. Não brigue com a crise Pode parecer estranha a ideia de aceitar calmamen- te a chegada dos sintomas, sem fazer absolutamente nada para fugir deles. “Mas uma pequena dose de ‘psi- cologia inversa’ pode fazer maravilhas”, garante Hen- driksen. Ela observa que grande parte da energia gas- 40 capa ta durante um ataque de pânico é direcionada a fugir dos sintomas para que eles não se tornem intensos a ponto de nos matar, mas isso só au- menta a ansiedade e a sensação de descontro- le. “Por isso, faça o teste: quando começar a se preocupar com o pânico ou sentir o primeiro sinal de que uma cri- se se aproxima, diga a si mesmo: ‘Ei, corpo, eu quero mais. Pode vir!’; então respire fundo e não brigue com seu corpo.” Curiosamente, estar disposto a sentir sintomas de pânico ajudará a parar o ciclo. Ainal, o pânico é a resposta a algo que seu cérebro entende como um grande perigo; quando você entra na briga (ainda que seja consigo mesmo), o embate só aumenta exponencialmente. Em contraste, quando você aco- lhe as sensações de medo sem lutar contra elas, seu orga- nismo percebe que não tem motivos para lutar ou fugir. E as coisas tendem a se acalmar. É só ansiedade, não é realidade O pânico está na interpretação. Considere um exem- plo: são 3 horas da manhã e o telefone toca. O que aconteceu? Pode signiicar que uma pessoa querida está com graves problemas ou até mesmo morta. Mas também pode signiicar apenas que alguém ligou para o número errado. Até que você atenda o telefone, o motivo da chamada é mero produto da sua interpreta- ção. O mesmo acontece durante crises de ansiedade. Em vez de entender o desconforto físico como sinal claro de que você está morrendo, é possível pensar: “É apenas meu alarme interno que está desregulado; é desagradável, mas já senti isso antes e na ocasião eu 41 não estava morrendo, da mesma forma como não vou morrer agora”. Hendriksen oferece uma dica bastante útil: “Vale a pena lembrar que não há perigo em interpretar o medo nesses ca- sos como algo de fato irritante com o qual você já lidou antes e pode lidar de novo; é apenas ansiedade, não realidade”. Fator tempo Uma paciente minha teve um ataque de pânico durante um trei- no na academia e não só não voltou ao local, mas também pa- rou de se exercitar inteiramente. Passou até mesmo a evitar su- bir escadas, pois se preocupava com a possibilidade de seu co- ração acelerar e delagrar outro ataque de pânico. Para reverter essa situação, a moça começou a lidar com o esforço gradualmente: nas primeiras tentativas, tinha uma tarefa simples: atirar longe um bloco de concreto. Dias depois, deveria dar uma volta no quarteirão e, ao longo das semanas, ininterruptamente, fazer um trajeto mais longo, até que após dois meses voltou à academia. “É comum que um lugar ou situação ique associa- do ao temor que a pessoa sentiu, é comum que pas- se a evitar qualquer coisa parecida, mas podemos ‘enganar’ o medo, mostrando ao cérebro que está tudo bem aos poucos, para que uma nova memória seja registrada”, observa Hendrik- sen. “Se você teme ter um ataque de pânico em um cinema lotado, por exemplo, comece por ir ao teatro e se sente o mais perto possível da saída. Da próxima vez, avance mais dois lu- gares em direção ao centro”, sugere a psicóloga. Duas coisas importantes: não deixe passar tempo demais entre um exercí- cio de habituação e outro (nesse caso, as idas ao teatro) nem avance rápido demais, achando que o desaio está muito fácil, pois seu cérebro precisa de treinamento gradual e constante. capa 42 44 Expectativas influenciam efeito de medicamentos Acreditar tanto no efeito positivo quanto no negativo dos remédios que tomamos pode mudar a maneira como o organismo recebe a droga e a forma como ela age U ma atitude otimista pode fazer mais do que ajudar você a começar bem o dia – é capaz também de melhorar condições clínicas gerais do corpo. A pesquisa re- cente coordenada pela neurocientista cognitiva Irene Tracey, professora da Universidade de Oxford, mos- trou que tanto os pensamentos radiantes como os cé- ticos inluem na forma como as drogas são assimila- das pelo organismo. As descobertas foram publicadas no periódico Science Translational Medicine. comportamento comportamento Quando pacientes esperaram que a dor aumente porque pensam que o analgésico foi suspenso, o efeito da droga diminui Durante o estudo, 22 voluntários saudáveis foram submeti- dos a exames de imagem por ressonância magnética funcio- nal (fMRI) enquanto um dispositivo aquecia a panturrilha de sua perna direita até um nível desconfortável durante dez minutos. Como era esperado, regiões do cérebro associadas à percep- ção da dor foram ativadas pelo estímulo. Na fase seguinte do experimento, os participantes recebe- ram continuamente na veia doses do analgésico remifentanil, de ação rápida, enquanto se submetiam ao mesmo aqueci- mento na perna. Os pesquisadores, porém, enganaram os participantes da pesquisa. De início, os voluntários não sabiam que o tratamento ti- nha começado, por isso não pensaram que a dor fosse diminuir. Dez minutos depois, foram informados de que a droga estava sendo adminis- trada – e pensaram que, em razão disso, o desconforto deveria diminuir. Depois de mais dez minutos, os aplicadores do teste informaram aos voluntá- rios que tinham parado de administrar o medicamento, o que induziu as pessoas a acreditar que sua perna começaria a doer mais nos minutos seguintes. Após a experiência, os participantes relataram que a dor que sentiam era muito menos intensa e desagradável quando acreditavam estar recebendo o analgésico, em comparação ao momento em que pensavam não estar sendo medicados 45 – independentemente de a administração da droga ter sido interrompida ou não. O que acontecia era que, quando eles esperaramque a dor aumentasse porque pensavam que a droga tinha sido suspen- sa, essa percepção desanimadora interferia no benefício quí- mico do analgésico. Nesses casos, o desconforto que sofriam era o mesmo do primeiro ensaio, sem administração de me- dicamento. Além disso, as áreas cerebrais responsáveis pela captação de sensações dolorosas permaneciam mais ativas quando eles esperavam pelo pior, imitando a atividade cere- bral durante a aplicação inicial do calor. “Os efeitos do pessimismo são provavelmente mais pronun- ciados em pacientes com condições clínicas crônicas, que vi- venciaram anos de frustração com medicamentos ineicazes”, observa Irene Tracey. “Por isso, é muito importante que pro- issionais da área da saúde não subestimem a inluência das expectativas negativas dos pacientes; estes, por sua vez, tam- bém devem icar atentos para que as baixas expectativas não agravem desnecessariamente o sofrimento.” comportamento 46 Gerenciamento 14º Curso de do Stress com certificação internacional Congresso de Stress da ISMA-BR (International Stress Management Association) Fórum Internacional de Qualidade de Vida no Trabalho Encontro Nacional de Qualidade de Vida na Segurança Pública Encontro Nacional de Qualidade de Vida no Serviço Público Encontro Nacional de Responsabilidade Social e Sustentabilidade 18º 20º 10º 10º 6º Um dos maiores eventos do mundo sobre stress e Qualidade de V ida no Traba lho Estímulos luminosos podem produzir atividade neural bastante precisa no tronco cerebral, similar à provocada pela audição normal; os animais conseguiram ter um elevado grau de discriminação, superior ao que próteses atuais podem alcançar implante Os sons da luz implante O som da orquestra varia do extremamente suave ao mais intenso e os espectadores, todos surdos, apreendem cada nota, graças a implantes coclea- res que traduzem sons complexos em um arco-í- ris de luz óptica. É esse o objetivo de uma equipe de cientistas da Alemanha, do Japão, da Coreia do Sul e de Cingapura. Eles trabalham no desenvolvimento de um dispositivo que usa a óptica em vez de ondas sonoras para desenvolver uma classe reinada de próteses auditivas. No caso de pessoas sem pro- blemas auditivos, neurônios do gânglio espiral no ouvido interno permitem a discriminação preci- sa do som. Podemos reconhe- cer centenas de pessoas pelo som da voz e distinguir entre milhares de diferentes alturas e frequências. Implantes coclea- res tradicionais dispõem de um microfone externo para captar o som e transmiti-lo para essas células através de eletrodos, mas com baixíssima resolução. Os neurônios são ainados como teclas de piano no ouvido in- terno. Usar eletrodos para estimulá-los é como dirigir um con- certo com os punhos em vez dos dedos. Os cientistas acredi- tam que há uma maneira melhor. Em um estudo publicado no Journal of Clinical Investiga- tion, pesquisadores usaram um vírus para implantar genes com sensibilidade à luz em embriões de camundongos sur- dos. As unidades agiram nas vias auditivas do cérebro dos ratos, criando manchas sensíveis à luz nas membranas dos Em um estudo publicado no Journal of Clinical Investigation, pesquisadores usaram um vírus para implantar genes com sensibilidade à luz em embriões de camundongos surdos 49 implante neurônios do gânglio espiral e de outras células. Então, os cientistas direcionaram luz LED sobre esses neurô- nios e gravaram a atividade do tronco cerebral, um pas- so de integração essencial no processamento auditivo. A atividade indicou que os ratos surdos percebe- ram a luz como som com sucesso. Em comparação com a estimulação dos eletrodos de implante coclear tradicionais, a luz produziu atividade neural mais precisa no tronco cerebral, similar à audição normal. Os ratos também exi- biram um elevado grau de discriminação de som que próteses atuais não podem alcançar. Os cientistas acreditam que, no futuro, pessoas surdas po- derão se beneiciar de terapia genética semelhante às abor- dagens atualmente testadas em ensaios clínicos para outras doenças. E caso queiram, poderiam alterar a cóclea para ex- pressar canais sensíveis à luz. Então, uma cadeia de luz LED poderia ser inserida no ouvido, que se acende de acordo com as qualidades de um som externo, permitindo que neurônios auditivos comuniquem ricos detalhes para o cérebro. É possível que, no futuro, pessoas com deficiência auditiva possam se beneficiar de terapia genética semelhante às abordagens atualmente testadas em ensaios clínicos para outras doenças 50 52 A verdade sobre a terapia de choque Apesar de a eletroconvulsoterapia ser uma técnica ainda cercada de preconceitos, há casos em que pode ser uma solução razoavelmente segura para algumas doenças mentais graves tratamento OS AUTORES SCOTT O. LILIENFELD é professor de psicologia na Universidade de Emory. HAL ARKOWITZ é professor-associado de psicologia na Universidade do Arizona. tratamento U m paciente agitado é levado à força para uma sala e contido em uma maca num hospital psiquiátrico. Pu- nido por desaiar a autoridade sádica da enfermeira- -chefe, é submetido – completamente acordado – à intervenção conduzida por um médico e outros membros da equipe, que colocam eletrodos em ambos os lados da cabe- ça e disparam uma rápida carga elétrica. Vários enfermeiros o seguram, enquanto o paciente se contorce de dor descontro- ladamente, caindo em seguida em estado de estupor. A cena do premiado Um estranho no ninho (1975), estrelado por Jack Nicholson como o paciente re- belde, provavelmente inluen- ciou muito mais a percepção do público em geral sobre a terapia eletroconvulsiva (ECT) do que as descrições cientíi- cas. Como resultado, muitos leigos a consideram hoje um procedimento perigoso ou até mesmo cruel. No entanto, diver- sos dados sugerem que, quando administrado de forma correta e cuidadosa, o tratamento, utilizado em situações especíicas, é relativamente seguro e pode ser benéico para casos de de- pressão grave e outras formas de doença mental. Ossos quebrados O clássico dirigido por Randle Patrick McMurphy está longe de ser o único retrato negativo da ECT. Em uma pesquisa de 2001 com 24 ilmes que abordam o tratamento, os psiquia- tras Andrew McDonald, da Universidade de Sydney, e Garry 53 tratamento Walter, da Central Coast Health do Norte de Sydney, em Nova Gales do Sul, apontam que as representações sobre o méto- do são geralmente pejorativas e imprecisas. Na maioria dos casos retratados, a técnica é aplicada em pessoas totalmen- te conscientes e aterrorizadas, sem seu consentimento e, não raro, como castigo pela desobediência. Após os choques, os pacientes geralmente passam a dizer coisas incoerentes ou permanecem num estado de apatia. Em seis dos ilmes anali- sados, pioram drasticamente ou morrem. É muito provável que o modo como o assunto é tratado nos il- mes colabore com atitudes nega- tivas do público em geral sobre a ECT. Uma pesquisa de 2012, de- senvolvida pelas psicólogas Annette Taylor e Patricia Kowalski, da Universidade de San Diego, com 165 universitários do curso de psicologia (presumidamente mais informados sobre terapias para doença mental), demonstrou que aproximadamente 74% dos par- ticipantes concordavam que o procedimento é isicamente peri- goso. Outro estudo de 2006, com 1.737 suíços, coordenado pelo psicólogo Christoph Lauber, na época do Hospital Universitário de Psiquiatria em Zurique,revelou que 57% consideravam a ECT prejudicial; apenas 1,2% apoiavam a utilização. Coloquialmente chamada de “terapia de choque”, a técnica foi introduzida em 1938 pelos neurologistas italianos Ugo Cer- letti e Lucio Bini como um tratamento para a psicose. (Aparen- temente, Cerletti se inspirou ao observar que vacas que iam para o abate icavam sedadas depois de receberem uma car- ga elétrica.) O tratamento é simples: eletrodos são colocados Para 68% dos pacientes submetidos a ECT a experiência não foi mais perturbadora do que uma visita ao dentista 54 tratamento na cabeça do paciente, por onde passa uma corrente elétrica que provoca mudanças na química e na atividade cerebral. Assim como muitos temiam, de fato a intervenção era pe- rigosa antes de meados dos anos 50. Na época, os pacientes permaneciam acordados durante a ECT. Os choques causa- vam convulsões e os movimentos produzidos eram tão brus- cos que chegavam a quebrar seus ossos. Hoje em dia, nos Estados Uni- dos e em outros países ociden- tais, os pacientes recebem a ECT com relaxante muscular e anes- tesia geral, administrados para conter movimentos desordena- dos durante o episódio epiléti- co (inerente ao uso da técnica) e diminuir o desconforto geral. Embora ainda passem por essa crise, permanecem inconscientes durante o procedimento e não sentem dor nem enfrentam convulsões observáveis. Além disso, as ondas cerebrais e outros sinais vitais são monitorados para assegurar o bem-estar da pessoa. Esses avanços tornaram a ECT mais segura e menos assus- tadora. Em uma pesquisa de 1986, com 166 pacientes subme- tidos a eletroconvulsoterapia, os psiquiatras C.P.L. Freeman e R.E. Kendell, da Universidade de Edimburgo, relataram que 68% dos voluntários descreviam a experiência como não mais perturbadora do que uma visita ao dentista. Para os outros, era mais desagradável, porém indolor. No entanto, o tratamento não é livre de perigos. Em alguns países, muitos médicos ainda administram a ECT como em 55 tratamento 1950. Em um estudo de revisão de 2010, o psiquiatra Worrawat Chanpattana e seus colegas, do Hospital Samitivej Srinakarin, em Bangkok, apontam que 56% dos pacientes de 14 países asiáticos receberam o tratamento sem relaxante muscular ou anestésico. Mas, é preciso considerar que, independentemente do país e do método, a ECT pode causar efeitos negativos, como desorienta- ção temporária, e mais seriamen- te, amnésia retrógrada, o que faz com que a pessoa se esqueça de eventos que ocorreram algumas semanas ou até mesmo meses antes do tratamento. Os efeitos colaterais são menores quando os eletrodos são colocados somente em um dos lados da cabeça. Tecnologias recentes, como máquinas de pulsos breves que permitem calibrar com mais cuidado a dose de energia elétri- ca, minimizam a extensão da amnésia. No entanto, alguns pro- blemas de memória quase sempre acompanham quem passou pelo procedimento. Além disso, estudos sugerem que a ECT pode, em casos raros, levar a perdas cognitivas permanentes. Embora os dados que sustentam essa hipótese ainda não sejam deinitivos, é importante considerar essas informações. Misteriosos mecanismos Devido aos efeitos adversos na memória, a ECT deve ser con- siderada somente como último recurso de tratamento. No en- tanto, muitas pesquisas sugerem que o tratamento pode ser eicaz no alívio de sintomas de várias doenças mentais, como depressão grave e mania no transtorno bipolar. Além disso, pa- rece amenizar a catatonia, uma condição associada à esqui- Para 68% dos pacientes submetidos a ECT a experiência não foi mais perturbadora do que uma visita ao dentista 56 tratamento zofrenia e ao transtorno bipolar, caracterizada por alterações marcantes do movimento, como permanecer em posição fetal ou gesticular repetidamente. Argumentos a favor da intervenção seriam ainda mais fortes se os pesquisadores pudessem determinar exatamente como o tratamento funciona. Em uma revisão feita em 2011, o psi- quiatra Tom Bolwig do Hospital Universitário de Copenhague observou que a ECT pode aumentar a secreção de determinados hormônios, um processo prejudicado na depres- são. Outros pesquisadores sugerem que a eletricidade estimula o cresci- mento neural e ajuda a reconstruir áreas do cérebro que protegem contra o dis- túrbio. Uma terceira hipótese é de que as próprias convulsões redei nem fun- damentalmente a atividade cerebral, o que pode trazer alívio, conclui Bolwig. A ECT também pode ajudar no tratamento de algumas pa- tologias, alterando a sensibilidade dos receptores de neuro- transmissores, como a serotonina. No entanto, nenhuma des- sas teses foi sui ciente para que os cientistas conseguissem apoio para pesquisa. À medida que aprendemos mais sobre essa intervenção mal compreendida, podemos rei nar nossos métodos de aplicação e os efeitos negativos da ECT. E é im- portante que os proissionais de saúde tenham em mente que, mesmo em sua forma atual, o tratamento não se trata de um castigo cruel, como muitas vezes retratado. Em determinadas circunstâncias, quando tudo mais falha, vale a pena considerá- -lo como opção para aliviar um intenso sofrimento psicológico. PARA SABER MAIS Hollywood and ECT. Andrew McDonald e Garry Walter em International Review of Psychiatry, vol. 21, n° 3; págs. 200–206; junho de 2009. Shock: the healing power of electroconvulsive therapy. Kitty Dukakis e Larry Tye. Avery Publishing group, 2006. 57 58 A forma como os pequenos aprendem os leva a criar mais recordações falsas e fantasias do que os adultos; novas maneiras de investigar o assunto, porém, têm trazido novas pistas sobre esse tema desenvolvimento infantil Do que as crianças se lembram? desenvolvimento infantil C rianças não são testemunhas muito coni áveis. A sabedoria popular diz que frequentemente “relembram” coisas que nunca aconteceram. Nos últimos anos, porém, vários cientistas discordaram dessa tese com base em alguns estudos segundo os quais adultos criam até mais memórias falsas do que os pequenos. Um novo estudo, porém, coni rma a pro- pensão infantil para confundir realidade e fantasia, e seus defensores alegam que experimentos an- teriores podem simplesmente não ter utilizado o método de pesquisa mais adequado. Tradicionalmente, em geral, para explorar falsas memórias, os cientistas apresentam aos pequenos voluntários uma lista de palavras (por exemplo, “lacrimejar”, “tristeza” e “molhado”) tema- ticamente relacionadas a um termo que não está na lista (nesse caso, “choro”) e, em seguida, perguntam aos participantes do que se recordam. Tipicamente, os adultos mencionam a palavra que falta com maior frequência do que as crianças. “Isso acon- tece possivelmente porque suas experiências de vida permitem traçar associações entre os conceitos mais facilmente”, diz o psicólogo forense Henry Otgaar, da Universidade de Maastricht, na Holanda, coautor do estudo, publicado no periódico cientíi- co Journal of Experimental Child Psychology. “Em me lembro de uma longa estrada de terra que ia até a casa. Acreditava que o outro lado podia levar ao céu” 59 Em vez de usar esse tipo de analogia para investigar o fe- nômeno, Otgaar e seus colegas mostraram aos voluntários imagens de cenas que se passavam numa sala de aula, num funeral ou numa praia. Depois de uma pequena pausa, perguntavam aos participantes se haviam notado certos ob- jetos em cada igura. Em três experimen- tos, crianças de 7 e 8 anos relataram con-
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