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Ana Maria Capitanio Alfabetização e Letramento Sumário 03 CAPÍTULO 2 – Escrita: é um Sistema de Representação da Linguagem? ...............................05 Introdução ....................................................................................................................05 2.1 A leitura como um processo ......................................................................................05 2.1.1 Sobre como lemos ...........................................................................................06 2.2 O Socioconstrutivismo ..............................................................................................09 2.2.1 Compreendendo a abordagem socioconstrutivista ...............................................09 2.2.2 As formas de linguagens que antecedem a simbolização pela escrita ....................11 2.2.3 Os gestos e a escrita .......................................................................................12 2.2.4 A brincadeira e o simbolismo no brinquedo ........................................................13 2.2.5 Desenho como primeira linguagem gráfica ........................................................14 2.3 As funções pré-instrumental e instrumental da escrita ...................................................15 2.3.1 Os experimentos de Luria .................................................................................15 2.3.2 A função pré-instrumental da escrita ..................................................................16 2.3.3 A função instrumental da escrita .......................................................................19 2.4 A escrita simbólica ...................................................................................................21 Síntese ..........................................................................................................................23 Referências Bibliográficas ................................................................................................24 Capítulo 2 05 Introdução Você já deve ter percebido que, ao discutirmos práticas de alfabetização, é inevitável que pen- semos sobre a formação de professores, não é mesmo? E para discutirmos sobre esta formação, precisamos conhecer as teorias, no campo da psicologia, sobre as concepções construtivistas: o construtivismo e socioconstrutivismo. Sabe por quê? Pois novas práticas pedagógicas dependem da desconstrução dos conceitos tra- dicionais de alfabetização para construir novos conceitos e práticas. Trata-se de uma mudança de paradigma: caem as teorias de ensino, preocupadas com os métodos mecanizados para a alfabetização com ênfase em resultados, para serem substituídas pelas teorias que explicam o processo de ensino-aprendizagem, isto é, as abordagens com ênfase no processo. Neste tópico, a nossa ênfase será sobre o socioconstrutivismo por meio de seu principal re- presentante: Lev S. Vygotsky, seguido de Alexander Luria, um de seus principais colaboradores. Abordaremos as contribuições da psicologia sócio-histórica para compreender como ela explica o desenvolvimento cognitivo, a importância da linguagem falada, enquanto constituinte do pen- samento, e como acontece o desenvolvimento da escrita na criança. Interessante, não é? No entanto, vamos começar este tópico com as contribuições de pesquisadores que concordam com Vygotsky e entendem a leitura e a escrita como um processo complexo de compreensão e sentido. O que isso quer dizer? Significa que ambas não se resumem em simples atos de decodi- ficação e codificação. Todos eles afirmam que muitos aspectos psicológicos, racionais e emocio- nais, são mobilizados durante a leitura e de acordo com a inserção cultural do leitor. Percebeu como o assunto é interessante? Então, vamos começar? Acompanhe-nos e bons estudos! 2.1 A leitura como um processo Você já refletiu sobre como se lê? Já reparou em todas as formas que utilizamos para compreen- der um texto? Parece bastante complexo, correto? Pois foi justamente para isso que várias pes- quisas foram realizadas: para compreender como lemos, buscando contribuir para desmitificar a leitura como um processo de decodificação simples e mecanizada. A que resultados chegaram? Neste item, conversaremos sobre isso e veremos como esse processo é mais complexo para com- preender a leitura e a escrita como sistemas simbólicos. Vamos? Escrita: é um Sistema de Representação da Linguagem? 06 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento 2.1.1 Sobre como lemos Pesquisas realizadas desde o começo do século XX, como por exemplo, as de Vygotsky (2003) e seus colaboradores, ou as realizadas em meados da década de 1980, por Emília Ferreiro e Ana Teberosky revelaram que, enquanto lemos, aspectos psicológicos são mobilizados e, à medida que nos desenvolvemos e interagimos com o meio físico e social, vamos tornando-nos cada vez mais competentes em compreender esse complexo sistema simbólico. No final do século XX, Smith (1999; 2002) e Bajard (2002) confirmaram que aspectos mentais, emocionais e culturais estão envolvidos no ato da leitura e concluíram que esses aspectos são responsáveis ao sentido que damos à leitura. [...] Do ponto de vista da linguagem, a leitura não exige nada além daquelas habilidades que o cérebro necessita para compreender a fala. E visualmente não há nada na leitura que os olhos e o cérebro deixam de realizar quando olhamos ao nosso redor em uma sala para localizar um objeto ou distinguir um rosto do outro. Para compreender a leitura, os pesquisadores devem considerar não somente os olhos, mas também os mecanismos da memória e da atenção, a ansiedade, a capacidade de correr riscos, a natureza e os usos da linguagem, a compreensão da fala, as relações interpessoais, as diferenças socioculturais, a aprendizagem das crianças pequenas, em particular (SMITH, 1999, p. 4). Para esses estudiosos, os nossos olhos não deslizam simples e linearmente sobre as linhas: nós lemos em saltos e globalmente. O que determina o quê e como vemos é, sobretudo, a nossa relação com o texto a partir de nossos referenciais construídos dentro de nossa cultura. Vemos o que sabemos, selecionamos o que temos de conhecimento e concluímos o restante, isto é, o ato de ler é resultado da nossa interação, enquanto leitores, com o texto. Então, podemos dizer que somos responsáveis por construir o sentido do texto, considerando nossos conceitos prévios e nossas referências culturais. Interessante, não é mesmo? Frank Smith é um psicolinguista contemporâneo reconhecido por suas contribuições em linguística e psicologia cognitiva ao longo dos últimos 35 anos. Foi repórter, editor de revista e novelista antes de iniciar sua pesquisa sobre a linguagem e a psicologia do aprendizado. Recebeu seu PhD do Centro de Estudos Cognitivos da Universidade de Harvard. Foi professor no Instituto Ontário para Estudo em Educação e na Universidade de Vitoria. Atualmente, dedica-se a escrever e pesquisar sobre alfabetização, com- putadores e educação. Disponível em: <http://www.tirodeletra.com.br/institucional/ Oqueeleitura-Bibliografia.htm>. Acesso em: 17 set. 2015. VOCÊ O CONHECE? A seguir, o exemplo de um texto, muito comum nas redes sociais e de autoria desconhecida, que nos fará compreender Smith e Bajard. Acompanhe! 35T3 P3QU3N0 T3XTO 53RV3 4P3N45 P4R4 M05TR4R COMO NO554 C4B3Ç4 CONS3GU3 F4Z3RCO1545 1MPR3551ON4ANT35! R3P4R3 N155O!NO COM3ÇO 35T4V4 M310 COMPL1C4DO, M45N3ST4 L1NH4 SU4 M3NT3 V41 D3C1FR4NDO OCÓD1GO QU453 4UTOM4T1C4M3NT3, S3MPR3C1S4R P3N54R MU1TO, C3RTO? POD3 F1C4RB3M ORGULHO5O D155O! SU4 C4P4C1D4D3 M3R3C3!P4R4BÉN5! 07 Figura 1 – Exemplo de como fazemos a leitura. Fonte: Shutterstock, 2015. Você reparou no exemplo anterior como conseguimos olhar o texto e ‘juntá-lo’ aos nossos co- nhecimentosprévios? Isso mesmo, nós usamos recursos de decodificação como uma das estra- tégias, mas não é a mais importante. Precisamos entender bem esta situação e aproveitá-la para o ensino da leitura. Durante o ato de ler, não precisamos decifrar ou decodificar todas as letras, pois usamos outros recursos. E quais são eles? Mobilizamos estratégias de seleção, antecipação, decodificação, inferência, predição e checagem (SMITH, 1999). Estas estratégias são as habilidades desenvolvidas por nós. São os procedimentos que se consti- tuem nas capacidades para se processar qualquer tipo de leitura. O que isso significa na prática? Que nós as aprendemos e elas tornam-se fundamentais para uma leitura significativa. Parece muita coisa? Calma! Vamos entender melhor sobre esses procedimentos de leitura? Acompanhe-nos! • Decodificação: considerada por muitos como o ato de leitura, atualmente, volta ao seu significado original, que é a decifração do código. • Predição: capacidade de antecipar-se ao texto, à medida que vai processando a sua compreensão. Também chamada, por isso, de antecipação, pois neste ato de previsão, deduz-se por antecipação e por meio da lógica que o conteúdo oferece. Se não entendermos, não será leitura. • Seleção: habilidade de selecionar apenas os índices relevantes para a compreensão e propósitos da leitura. Muitos trechos conhecidos, previamente, tornam-se destaques para deduções e conclusões. • Inferência: completa a informação utilizando as suas competências linguística e comunicativa, o seu conhecimento conceitual e seus esquemas mentais ou conhecimentos prévios. Na verdade, é a hipótese que você levanta a partir da seleção. • Confirmação: verificar se as predições e as inferências estão certas ou se precisam ser reformuladas. Também pode ser chamada de verificação das hipóteses levantadas. • Correção: uma vez não confirmada a predição, o leitor retrocede no texto a fim de levantar outras hipóteses, buscando outras pistas, sempre na tentativa de encontrar sentido no que lê. Isto é, faz a reformulação das hipóteses ou revisão. 08 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento No livro Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do apren- der a ler, o autor, Frank Smith, explica-nos que, assim como a criança aprende a ler com pessoas que utilizam-se de uma linguagem falada e que tem significado para elas, a leitura e a escrita também devem ser ensinadas com textos significativos e con- textualizados, isto é, que têm relação com a realidade das crianças. Este livro não é um manual do tipo ‘como fazer’, mas é um texto revelador, com bases científicas. Ele é muito importante para a reflexão de suas práticas alfabetizadoras. Leia! VOCÊ QUER LER? Como uma prova de que a decodificação das palavras – quando isolada do sentido dado pela interação do leitor com o texto e com os conhecimentos prévios vindos do mundo que o cerca (cultura) – pode-se perceber que, ainda que decifráveis, as palavras são ininteligíveis. Porém, você sabia que a decodificação e a codificação das palavras foram, por muito tempo, a base dos métodos de ensino de alfabetização escolar? O texto a seguir, de autoria desconhecida e também muito comum nas redes sociais, é útil para nos fazer compreender o problema da prática de codificação e decodificação das palavras: Isabel esticurava um po e o artamunia a Carmen. Alberto não pintalucava pos ni tenas, porque Isabel e Carmen custoniam nipas. Agora responda as perguntas: • Quem esticurava um po? • Por que Alberto não pintalucava pos ni tenas? • O que Isabel e Carmen custoniam? VOCÊ QUER VER? O vídeo Olhar da Universidade de São Paulo (USP) sobre os métodos de alfabetização trata, criticamente, sobre os métodos de alfabetização e vale muito a pena assistir. No vídeo, os professores trazem o olhar da USP sobre o uma discussão de quase um sé- culo. Assista! Disponível em: < http://iptv.usp.br/portal/video.action?idItem=3061>. Acesso em 15 out. 2015. No exemplo anterior, você percebeu que saber sonorizar letras não significa saber ler, não é mesmo? No ensino da leitura, dava-se prioridade para esta prática de decodificação, pois também se pensava que a escrita era um ‘código’, isto é, a transcrição das unidades sonoras em grafia (co- dificação), como se alguém tivesse predeterminado as letras em relação aos sons. Porém, tanto o construtivismo quanto o socioconstrutivismo já haviam defendido que a escrita é um sistema de representação de signos e significados. 09 Há quem diga que as concepções construtivistas e socioconstrutivistas, bem como a progressão continuada, seriam as responsáveis pelo fracasso escolar. Mas será? Segundo Micotti (2009, p. 26), essas suposições levam a entender que práticas apoiadas no construtivismo ou socioconstrutivismo teriam sido realmente aplicadas. Mas isso é muito questionável. Será que os professores realmente adotaram práticas pedagógicas com base em concepções construtivistas ou socioconstrutivistas? A seguir, vamos conhecer um pouco do socioconstrutivismo ou a abordagem sócio-histórica, e suas implicações no âmbito da educação para compreender a escrita como um sistema simbólico de representação da linguagem. Vamos lá! 2.2 O Socioconstrutivismo Acreditamos que você já percebeu como as nossas experiências, relações sociais e a cultura ao nosso redor influenciam nossa visão do mundo, assim como nossa relação com a linguagem falada e a linguagem escrita, não é mesmo? Pois é justamente nesta ideia que Vygotsky situa o desenvolvimento cognitivo: em uma dimensão sócio-histórica. A psicologia sócio-histórica, fundada por Vygotsky, também é denominada de socioconstrutivismo, diferenciando-se, assim, do termo construtivismo de Jean Piaget. O que isto significa? A partir deste item, seguiremos a compreensão disso, pois consideramos essencial para o entendimento do desenvolvimento da escrita na criança. Vamos? 2.2.1 Compreendendo a abordagem socioconstrutivista Todo o funcionamento psíquico vai constituindo-se por meio das interações sociais que as pes- soas estabelecem no decorrer de suas vidas, determinadas pela cultura e localizadas em uma época. Por exemplo? Quando a criança nasce, ela já encontra um mundo social, humano e não natural criado pelas gerações que vieram antes dela e que, aos poucos, ela mesma vai se apro- priando conforme interage com as outras pessoas. Nesse processo interativo, as reações naturais – herdadas biologicamente – de respostas aos estímulos do meio (tais como a percepção, a memória, as ações reflexas, as reações automáticas e as associações simples) entrelaçam-se aos processos culturalmente organizados e vão transformando em modos de ação, de relação e de representação caracteristicamente humanos (FONTANA; CRUZ, 2007, p. 57-58). Com base no materialismo-histórico e dialético, Vygotsky defende que as pessoas transformam o meio por meio do trabalho, assim, produzindo cultura. Então, ao mesmo tempo em que produz cultura, ela também se transforma. Ou seja, existe uma relação de mão dupla: por meio da in- teração entre a pessoa e o meio é que ambos são transformados. É muito importante dizermos que, esta visão de humano, é de um ser ativo, que age sobre o meio. Você já pensou que por traz de toda teoria psicológica existe uma base filosófica e ideológica e que o conhecimento não é neutro? Sim! Por exemplo, para compreender o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, tais como a memória, a atenção, a percepção, a função simbólica, assim como o desenvolvimento da escrita, Vygotsky e seus colaboradores baseiam-se na filosofia do materialismo histórico e dialético, de Marx e Engels, para estruturar suas pesquisas. VOCÊ SABIA? 10 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento E para Vygotsky, ondeentra a escola nesse processo? Ele coloca a escola como instituição cen- tral pelo desenvolvimento cognitivo das crianças e adultos, em razão da intencionalidade de seu ensino. Destacamos aqui que, para ele, quanto mais aprendizagem, mais desenvolvimento. Para transformar o meio em que vivem, as pessoas utilizam instrumentos físicos e instrumentos psicológicos. Estes instrumentos são mediadores entre a pessoa e o meio. Se nós pensarmos bem, veremos que estamos sempre sendo mediados por um objeto na relação com o meio. Nunca é uma relação direta. Vamos compreender isso melhor? Os instrumentos físicos são, por exemplo, as máquinas, o trator, a pá, o computador. Enquanto isso, os instrumentos psicológicos são os signos. Figura 2 – Exemplo de um tipo de signo psicológico. Fonte: Shutterstock, 2015. Os signos são utilizados para representar, evocar ou tornar presente aquilo que está ausente, por exemplo, as palavras, o desenho, os símbolos. Os signos, por serem internamente orienta- dos, modificam a estrutura e o funcionamento psicológico (VYGOSTKY, 2003 apud FONTANA; CRUZ, 2007). Como modificam? Por exemplo, ao tentarmos compreender o significado da Figu- ra 2, mobilizamos as funções psicológicas como a memória e a atenção, só pra citar algumas. Ao fazermos isso, vamos aprimorando-as. Quando também tentamos compreender o que os outros falam, quando lemos, quando escrevemos, esse processo vai acontecendo. E por falar em outros... Nossa relação com o mundo que nos rodeia também é mediada por pessoas. Todas as pessoas que fazem mediação entre o ‘eu’ e o mundo que nos rodeia chamaremos de o ‘outro’ social. Nossa relação com o mundo é sempre mediada por pessoas, instrumentos físicos ou instrumentos psicológicos (signos). É pelas palavras do ‘outro’ social que conhecemos o mundo a nossa volta. Assim, a linguagem falada tem uma função de mediação. A teoria vygotskyana afirma que nós reconstruímos internamente aquelas informações que rece- bemos das outras pessoas, por meio de um processo de internalização ativa sobre essas informa- ções. A esse processo deu-se o nome de Lei de Dupla Formação, isto é, toda função psicológica se desenvolve em duas dimensões: entre as pessoas e depois dentro da própria pessoa, no plano psíquico (VYGOSTSKY, 2003). 11 2.2.2 As formas de linguagens que antecedem a simbolização pela escrita Segundo Vygotsky (2003), a suposta necessidade do ensino da técnica (como a ênfase nos métodos sintéticos e analíticos utilizados até hoje, por algumas professoras e escolas brasileiras) acabou por confundir a sua natureza, que é provinda da linguagem, abafando-a para considerá-la como se fosse apenas mecânica. O conceito parece complicado? Acompanhe-nos e iremos explicar melhor! Por exemplo, alguém que aprende a tocar um instrumento separando as notas musicais da emo- ção que está expressa na música é um tanto quanto difícil de imaginar, não é mesmo? E o erro seria justamente o mesmo com a escrita, ao desconsiderá-la como uma forma de linguagem e focar a atenção na mecanicidade contida nessas aquisições. No caso da escrita, a função de linguagem fica menos visível em razão de ela não representar diretamente os objetos ou outras coisas concretas em uma primeira ordem, e sim, indiretamente, em um processo de segunda ordem, isto é, ao escrevermos usamos signos que representam sim- bolicamente esses objetos concretos. A primeira ação para representar as coisas ou objetos, até mesmo pessoas, é feita por meio da linguagem falada. O escrever é em uma segunda ação com o qual representamos indiretamente o som da fala. Os nomes dados aos objetos, às ações, às pessoas ou até às coisas abstratas, como sentimentos, são reproduzidos na escrita, considerando-os foneticamente, reproduzindo grafias que represen- tam o som das letras e não imagens (a escrita representa essas imagens). A representação gráfica é referência do som produzido que compõe, em uma segunda ordenação, o nome oral que foi atribuído ao referido objeto (VYGOTSKY, 2003). Algumas linguagens que vieram, historicamente, antes da linguagem escrita repetem-se na aqui- sição infantil. Considerando a linguagem como expressão e veículo de comunicação, as diversas formas manifestam-se na criança nessa mesma funcionalidade, antes da escrita convencional de cada língua falada. De acordo com cada cultura de origem, a fala permeia gestos, brincadeira, desenho e a própria escrita em forma de tentativas, sem se apropriar da forma convencional de escrever. É assim que foram construídos os primeiros pictogramas. Figura 3 – A fala permeia gestos, brincadeira, desenho e a própria escrita. Fonte: Shutterstock, 2015. 12 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento A fala, dos outros que fazem a mediação sobre os significados e o simbolismo, é o veículo que leva à constituição do pensamento. A oralidade está presente nos jogos, nas brincadeiras, nos desenhos como modo de antecipação e de justificação do uso desses símbolos – de segunda ordem – que o indivíduo, a criança pequena, ainda não domina. O gesto, o jogo e desenho, mediados pela fala, constituem momentos diferentes de um processo unificado de desenvolvimento da linguagem escrita. [Eles] representam a pré-história da escrita, pois contribuem para a elaboração do simbolismo na própria escrita (FONTANA; CRUZ, 2007, p. 197) A compreensão da linguagem escrita primeiro toma sentido por meio da linguagem falada, que mais tarde adquire (a linguagem escrita) um caráter de simbolismo direto, isto é, as palavras tornam-se representação das coisas e não as próprias coisas, como as crianças pequenas acre- ditam, passando a ser percebida da mesma maneira que a linguagem falada e tornando-se um simbolismo de primeira ordem. No livro Formação Social da Mente existe um capítulo denominado A pré-história da linguagem escrita, pelo qual Vygotsky discute alguns experimentos realizados e explica porque considera os gestos, o desenho e a brincadeira como linguagens que antece- dem a escrita convencional. Ele é muito importante para você munir de intencionalida- de os usos do desenho e da brincadeira, por exemplo, em suas práticas para alfabetizar e letrar. Anime-se, leia-o! VOCÊ QUER LER? 2.2.3 Os gestos e a escrita Sabe quando dizemos que alguém ‘fala’ com os movimentos de braços e mãos? Pois é, o gesto é o signo visual que contém a futura escrita na criança, assim como uma semente carrega uma árvore. Os gestos são como a escrita no ar. O que representa é uma preparação cognitiva para a representação gráfica da linguagem escrita. Esta é uma linguagem genuinamente de primeira ordem, isto é, representa diretamente o que se quer comunicar (VYGOTSKY, 2003). Segundo Wurth apud Vygotsky (2003), há uma ligação entre os gestos e a escrita pictográfica (imagem). A partir dos gestos são reproduzidos os signos gráficos e, por outro lado, os signos são as fixações dos gestos. Essa escrita pictográfica é derivada da linguagem gestual. No desenho, a criança fixa o gesto indicativo, como por exemplo, para representar o pular. Assim, ela irá tentar desenhar, rabiscando, unindo os gestos com a mão, similar ao movimento de pular. Para Vygotsky (2003, p. 142), “existem dois outros domínios onde os gestos estão ligados à ori- gem dos signos”. No primeiro domínio, do desenho, no rabisco, a criança usa a dramatização, demonstrando por gestos, o que deveria mostrar no desenho. Neste exemplo, quando a criança desenha o ato de pular, sua mão faz o movimento que o seu corpo faria se estivesse pulando. O segundo domínio que une a linguagem escrita e os gestos é o jogo. Para as crianças, alguns objetos podem ganhar outros significados. Por exemplo, uma roupa pode, em um jogo, tornar- -se um bebê, pois os gestos que podem ser utilizados com os bebês, como o modo de segurar e balançar, podem também ser utilizadosnas trouxas de roupas, pois é “o próprio movimento da criança, seus próprios gestos, é que atribuem a função de signo ao objeto e lhe dão significado” (VYGOTSKY, 2003, p.143). Portanto, a brincadeira também é uma linguagem de segunda ordem que precede a escrita para as crianças. 13 2.2.4 A brincadeira e o simbolismo no brinquedo E onde entra a brincadeira na relação de signos e símbolos? Segundo Vygotsky, para ler é preciso fazer a escrita tornar-se direta, ou seja, bater o olho e saber o que está escrito. A escrita é uma função de segunda ordem, sendo uma representação da fala, que é a primeira ordem simboliza- da. Para ler fluentemente, é preciso reconhecer as palavras como primeira ordem. “Diferente do ensino da linguagem falada, na qual a criança pode se desenvolver por si mesma, o ensino da linguagem escrita depende de um treinamento artificial” (VYGOTSKY, 1991, p. 119). Ao falar das linguagens que a antecedem, Vygotsky diz que a linguagem gráfica é fundamental para a própria compreensão da escrita. A grande questão é entender o percurso que leva essa criança a entender a escrita e a leitura. Vamos relembrar alguns conceitos? Os gestos e os signos visuais (mímica, expressão corporal, rabiscos) são simbolismos de primeira ordem na criança. A criança usa o gesto para ‘escrever no ar’ e está assim na origem dos signos escritos. Primeiro, dramatizam o que querem mostrar no desenho, usam a gesticulação para representar o que querem escrever e, depois, mostram isso no desenho e nos primeiros rabiscos. Esta função simbólica atribuída às coisas, ao desenho, ao faz de conta, tem ligação direta com o desenvolvimento da linguagem. À medida que as ações gestuais vão diminuindo, a fala vai predominando. O que é importante focar é que, segundo Vygotsky, a representação simbólica da brincadeira é a fase inicial que leva à escrita. O simbolismo no brinquedo tem um papel de segunda ordem que está sob a forma de faz de conta, no qual o objeto muda de função, por exemplo, a toalha vira um lindo cabelão, os lápis viram personagens e as coisas tornam-se outras, conforme forem ‘necessárias’ à expressão da criança; seus desejos de comunicar-se, de criar e representar. É por isso que dizemos que os ob- jetos cumprem, então, a função de signo. Por sua vez, a brincadeira leva ao desenvolvimento da linguagem escrita, isto é, o sistema de simbolismo de segunda ordem (VYGOTSKY, 2003, p. 146). Nas crianças de 3 a 6 anos, o que mais varia, segundo a concepção de Vygotsky, são as formas de representação, e não a percepção do simbolismo em si. Neste sentido, a similaridade do objeto com a brincadeira não é tão interessante. Quanto mais diversificadas forem as funções simbólicas, mais construtivo pode ser o conhecimento. Têm objetos que as crianças mudam o significado e outros que persistem. Às vezes, acrescentando outros elementos, é possível mudar esse significado. Os objetos cumprem a função de substituição em uma segunda fase e as crianças conseguem transformar um objeto, que tinha apenas uma representação simbólica, em duas coisas diferen- tes ao mesmo tempo. Um copo que era apenas uma casa, ao se fazer um furo, pode ser uma casa com uma passagem secreta para um castelo ou, ao se fazer uma janela, virar uma casa com uma torre da Rapunzel. Por sua vez, o brinquedo transforma-se em um complexo criador de oportunidades, que se inicia com o jogo simbólico e ajuda na compreensão da escrita, da simbologia das palavras e como funciona um texto. Vejamos um exemplo: experimente realizar uma atividade com crianças de diferentes idades. Conte uma história (pode ser já do conhecimento dela), como os contos de fadas mais comuns: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e os Sete Anões, Três Porquinhos, e represente os perso- nagens com quaisquer objetos (lápis, canecas, bolsas, caixas etc) e sinta como o interesse delas será redobrado. O papel da brincadeira no desenvolvimento do pensamento da criança é fundamental. “ao subs- tituir um objeto por outro, a criança opera com o significado das coisas e dá um passo impor- tante em direção ao pensamento conceitual [...]” (VYGOTSKY apud FONTANA; CRUZ, 2007). 14 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento Ao imitar um adulto pela brincadeira, por exemplo, um médico, uma professora ou um bombei- ro, a criança submete seu comportamento às regras que estão implícitas nos modos de agir des- ses que ela imita. Por exemplo: quando ela imita uma professora, ela sabe agir igualmente: dá ordens aos coleguinhas, pede silêncio, arruma a sua mesa, como se fosse a própria professora. Essa subordinação estrita às regras é quase impossível na vida; no entanto, torna-se possível no brinquedo. Assim, o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criança. No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade (VYGOTSKY, 2003, p. 134). Uma vez que criança age e se comporta muito além da sua conduta cotidiana, ela está avan- çando em seu desenvolvimento, isto é, a brincadeira é capaz de criar a zona de desenvolvimento proximal. E o que é isso? São as funções que ainda não amadureceram, que podem ser consi- deradas como embrionárias (VYGOTSKY, 2003). Lemos pelo todo e não por letras, certo? Se lêssemos por letras, demoraríamos muito e não compreenderíamos o que está escrito. O foco não são as letras do texto, e sim, o que este quer dizer. Palavras isoladas não constituem conhecimento, mas pode ter implícito um texto. Um nome é apenas um nome, mas quando conhecemos a pessoa que este nome representa, um conjunto de características, de ações e de emoções que a simbolizam, aí sim, se obtém um texto, algo significativo (nome próprio, por exemplo). Lemos o texto escrito como se admirássemos um dese- nho, pois o desenho é a primeira linguagem gráfica da humanidade e da criança. Interessante, não é mesmo? 2.2.5 Desenho como primeira linguagem gráfica O desenho é a primeira linguagem gráfica da criança, é um estágio preliminar no desenvolvi- mento da linguagem escrita, correto? O momento de passagem do rabisco para o uso de sinais escritos acontece quando a criança passa a descobrir que os traços feitos podem significar algo (simbolismo de primeira ordem). Porém, ainda é preciso que a criança evolua rumo ao simbo- lismo de segunda ordem, isto é, à “criação de sinais escritos e que sejam representativos dos símbolos falados das palavras” (VYGOTSKY, 2003). Para isso a criança precisa fazer uma descoberta básica - a de que se pode desenhar, além de coisas, também a fala. Foi essa descoberta, e somente ela, que levou a humanidade ao brilhante método da escrita por letras e frases; a mesma descoberta conduz as crianças à escrita literal. Do ponto de vista pedagógico, essa transição deve ser propiciada pelo deslocamento da atividade da criança do desenhar coisas para o desenhar a fala (VYGOTSKY, 2003, p. 153). Como já dissemos, os gestos estão ligados à origem dos signos escritos, que tem seu início com os rabiscos. A criança, a princípio, utiliza os gestos quando deveria escrever, sendo os rabiscos apenas um suplemento. As crianças desenham não a representação do real, mas a forma como interpretam suas qualidades gerais, não tendo consciência do significado simbólico do seu dese- nho. Inicialmente, desenham por memória: o que sabem e não o que veem. Os desenhos infantis lembram os conceitos verbais que comunicam apenas os aspectos essenciais. Interessa-nos destacar a relação entre a fala e o desenho: os momentos de nomeação que po- dem ocorrer depois, durante ou antes ao ato de desenhar e a descoberta do desenho como uma forma de simbolizar. Vygotsky (2003) pôde observar, por meio de seus experimentos, que a criança pequena, ao de- senhar, dá um nome àquilo quedesenhou somente depois de terminado. Para ele, neste caso, a fala é determinada pela ação: as crianças pequenas dão nomes a seus desenhos somente após completá-los; elas têm necessidade de vê-los antes de decidir o que eles são. À medida que as crianças se tornam mais velhas, elas adquirem a capacidade de decidir previamente o que vão desenhar (VYGOTSKY, 2003, p. 37). 15 Porém, sabemos que a criança não desenha sozinha. Ao desenhar, pessoas adultas ou outras crianças, seja em casa ou na escola, interagem com ela e costumam perguntar-lhe sobre o que estaria desenhando. A criança vai percebendo que seu desenho pode simbolizar algo. Mas, ainda, essa descoberta não corresponde à função simbólica do desenho, pois é o seu ato de desenhar que se sobrepõe à fala, isto é, ela nomeia o desenho depois de pronto. Dessa maneira, a criança pequena primeiro desenha e depois nomeia. Gradativamente, a no- meação vai acontecendo durante o desenho. Contudo, neste momento, ela é instável: a criança pode, durante o desenho, mudar o seu nome e, somente no final, decidir-se. Quando a nomeação antecede o ato desenhar, o desenho ganha uma dimensão simbólica. “De fato, também no desenvolvimento do desenho nota-se o forte impacto da fala, que pode ser exemplificado pelo deslocamento contínuo do processo de nomeação ou identificação para o início do ato de desenhar” (VYGOTSKY, 2003, p. 150). O desenho, para Vygotsky (2003), é um estágio anterior ao desenvolvimento da escrita. Desenho e escrita têm a mesma origem: a linguagem falada. Durante o tempo em que a escrita não pode assegurar a representação do pensamento desejado, a criança lança mão do desenho como um meio mais eficiente para expressar o seu pensamento. O desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças se dá [conforme já foi descrito] pelo deslocamento do desenho de coisas para o desenho de palavras (...). Na verdade, o segredo do ensino da linguagem escrita é preparar e organizar adequadamente essa transição natural (VYGOTSKY, 2003, p. 153). É interessante notar que, pesquisas iniciadas no final do século XX, cujas descobertas foram rea- lizadas pela psicóloga Emília Ferreiro e a psicopedagoga Ana Teberosky, comprovam que, quan- do a criança tem intenção de escrever e seus rabiscos têm diferenças na figuração, de maneira intencional, ela diferencia estes traços e diz que escrever é a transição do desenho para escrita. Contudo, foi no início do século XX que Vygotsky já atribuía a devida importância a escritas di- ferentes das convencionais. 2.3 As funções pré-instrumental e instrumental da escrita Você já ouvir falar em estágio mnemônico? Ele é o precursor da futura escrita, onde os sinais gráficos desenhados pelas crianças, como traços e rabiscos, podem auxiliar o processo de me- morização e desenvolvimento da linguagem escrita. O simbolismo da escrita é tomado pela criança como ‘pistas’ para ela ‘lembrar-se’ sobre o que escreveu. Como vimos anteriormente, os gestos, o jogo e o desenho são precursores da escrita, compõem a sua pré-história, pois eles contribuem para a elaboração da escrita como uma linguagem simbólica (VYGOTSKY, 2003). Veremos a seguir como Luria foi descobrindo o processo de mudança entre a função pré-ins- trumental e instrumental da escrita, conforme as crianças desenvolviam-se. Destacando que o desenvolvimento psicológico acontecerá por meio das interações sociais que produzem aprendi- zagem, de acordo com o socioconstrutivismo. 2.3.1 Os experimentos de Luria Alexander R. Luria foi um grande colaborador e Vygotsky preocupou-se em pesquisar, por meio de experimentos, como acontece o desenvolvimento da escrita na criança. Luria (2006) acredita que seria muito útil para os professores descobrirem ou, pelo menos, compreenderem que existe uma pré-história individual da escrita. O conhecimento dessa pré-história permitiria aos profes- 16 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento sores fazerem deduções ao ensinar seus alunos a escreverem. Mas, o problema é que muitos professores e professoras desconhecem a pré-história da escrita, que quando é manifestada pela criança, acabam por desprezá-la ou reprimi-la. O exercício de uma atividade correlata, como veremos a seguir, seria útil para facilitar o pro- cesso de aprendizagem da escrita. Veremos com mais detalhes o que ele quer dizer com isso. Acompanhe-nos! Este pesquisador diz que a criança, quando chega à escola, já possui uma relação com a escrita, uma história que “[...] começa muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras”. Isso significa que muito antes de ela entrar no pri- meiro ano escolar, ela já “[...] adquiriu um patrimônio de habilidades e destrezas que a habilitará a aprender a escrever em um tempo relativamente curto” (LURIA, 2006, p. 143). Como será que isso acontece? Vamos nos aventurar em descobrir? Alexander Romanovich Luria nasceu em 1902, em Kazan. Aos 15 anos, deparou-se com a Revolução Soviética na mesma época em que se matriculou no Departamento de Ciências Sociais. Por seu interesse e erudição em psicologia e pedagogia, Luria foi convidado, em 1924, a juntar-se ao corpo de jovens cientistas do recém-criado Institu- to de Psicologia de Moscou. Associado a Aléxis Leontiev, estudaram as bases materiais do fenômeno humano utilizando-se das concepções pavlovianas. No entanto, essas concepções revelaram-se insatisfatórias para a compreensão dos aspectos psicológi- cos, caracteristicamente, humanos. Foi no 2º Encontro Soviético de Psiconeurologia (1924) que conheceram Vygotsky e nele encontram uma perspectiva de solução para esse conflito. Disponível em: <http://www.oocities.org/eduriedades/alexanderluria1. html>. Acesso em: 17 set 2015. VOCÊ O CONHECE? 2.3.2 A função pré-instrumental da escrita Para estudar a pré-história da escrita, Luria (2006, p. 147) utilizou-se de experimentos com crian- ças de diferentes idades e que ainda não sabiam escrever. Ele, como experimentador, apresenta- va a seguinte tarefa às crianças: “relembrar certo número de sentenças que lhe tinham sido apre- sentadas”. Porém, o experimentador sabia que, com o número de sentenças apresentadas, era impossível memorizá-las diante da consciência da incapacidade de memorização das crianças. Assim, entregava-lhes uma folha de papel e dizia “para tomarem nota ou ‘escrever’ as palavras” apresentadas. Geralmente, as crianças explicavam que não sabiam escrever. O experimentador, então, dizia-lhe que os adultos, quando querem se lembrar de algo, anotam ou escrevem em um papel, sugerindo às crianças que fizessem o mesmo, escrevendo aquilo que lhes seria dito daí pra frente. Luria percebeu que as crianças somente apreendiam a escrita externamente e, embora fossem capazes de imitar os adultos (como as crianças costumam fazer), elas eram incapazes de “apre- ender os atributos psicológicos específicos” do ato de escrever, isto é, elas simplesmente imita- vam a escrita do adulto. A figura 4, a seguir, mostra um tipo de imitação da escrita do adulto, ou seja, o escrever estaria associado à tarefa de anotar uma palavra. O escrever ainda não foi descoberto como um ato de se lembrar de uma palavra. 17 Figura 4 – Rabiscos do pequeno Vova N. (cinco anos de idade) Fonte: LURIA, 2006. Outra situação observada durante o experimento foi com uma criança que começava a escrever antes mesmo de ouvir as palavras ditadas. A criança não compreendia nem o significado e nem o mecanismo da escrita, “não tem consciência de seu significado funcional como signos auxiliares [...] e os rabiscos das crianças não mantêm qualquer relação com as sentenças significativas que lhe foram ditadas” (LURIA, 2006, p. 150). Na Figura 5, podemos ver nos rabiscos de Lena L. (quatro anos de idade) que o ato de escrever não se apresentou como um instrumentopara representar o conteúdo a ser escrito, não havia nenhuma relação com a ideia que lhe foi apresentada pelas sentenças ditadas. Preste atenção, pois, os rabiscos são numerados de 1 a 6, correspondem à: 1. cinco lápis sobre a mesa; 2. dois pratos; 3. muitas árvores na floresta; 4. uma coluna no pátio; 5. um grande armário (escrita prematuramente); 6. uma bonequinha (escrita prematuramente). 18 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento Figura 5 – Rabisco de Lena L. (quatro anos de idade) Fonte: LURIA, 2006. Estas figuras são exemplos da pré-história da escrita da criança e Luria denominou esse primei- ro estágio da escrita como pré-instrumental. Dessa maneira, a escrita ainda não tem função mnemônica. E o que isso significa? Quer dizer que as crianças não se lembravam sobre o que tinham ‘escrito’. Porém, Luria teve a oportunidade de observar uma criança (Brina, cinco anos de idade) que pro- duziu o mesmo tipo de rabiscos, linhas sem sentido. Mas, ao prestar mais atenção, percebeu que eles eram mais do que rabiscos, mas uma verdadeira escrita. Como ele percebeu isso? Notou que Brina era capaz de lembrar-se de todas as sentenças que havia anotado. Ela ‘lia’ apontando para alguns rabiscos específicos, sem errar. Embora, permanecesse indiferenciada externamente, a relação de Brina com a escrita era diferente: não era uma atividade motora simples, mas a escrita tinha se transformado em um signo auxiliar para se lembrar. A Figura 6 mostra a compreensão da criança em relação à tarefa de anotar as palavras ditadas. Ela anotou, por meio de sinais, uma escrita primitiva. Luria chamou de sinais topográficos. De- pois que era perguntada, ela não misturava o significado, distinguindo-os. Esta é considerada uma forma de escrita rudimentar que mais tarde se transformará em escrita. Na escrita rudimentar, embora as inscrições reais ainda não sejam diferenciadas, existe uma relação funcional da criança com a escrita e, ainda que em um primeiro momento elas fossem marcas que auxiliavam na memorização, mais tarde a criança tornava a esquecê-la. Esse tipo de escrita rudimentar não possui um conteúdo próprio, contudo, indica algum tipo de significado, mesmo que ainda não se saiba qual seja esse significado. Aqui, novamente, atenção! Cada um dos círculos com o risco acima, corresponde a: 19 1. uma vaca; 2. uma vaca tem quatro pernas e um rabo; 3. ontem à tarde choveu; 4. o lixo da chaminé é preto; 5. dê-me três velas. Figura 6 – Escrita rudimentar de Brina (cinco anos de idade) Fonte: LURIA, 2006. Como acontece a mudança da função pré-instrumental da escrita para a função instrumental? Como vão se diferenciando as marcas utilizadas pelas crianças para anotar e lembrar-se, pos- teriormente, do que ‘escreveram’? Vamos pensar e estudar mais um pouco sobre isso? Então, acompanhe-nos! 2.3.3 A função instrumental da escrita Luria começou a perceber um processo de mudança da função pré-instrumental para instrumen- tal quando introduziu, em seus experimentos, o fator quantidade. Pela primeira vez, cada rabisco refletiu um conteúdo particular. Ainda que a diferenciação fosse primitiva - a distinção de ‘um nariz’ de ‘dois olhos’ era que os rabiscos que representavam ‘nariz’ eram muito pequenos ou quando solicitada para escrever, “a menina tem duas mãos e duas pernas” - cada par desses membros tinha seus próprios rabiscos. A quantidade não estava claramente explícita, mas as relações foram explicitamente expressadas. Para Luria (2006, p. 165) o fator quantidade “dissol- veu a produção gráfica elementar, mecânica, não diferenciada, e que, pela primeira vez, abriu caminho para seu uso como um expediente auxiliar, erguendo-se assim do nível da imitação meramente mecânica para o status de um instrumento funcionalmente empregado”. Os experimentos mostraram que, se nas sentenças ditadas houvesse uma relação com algum objeto que evidenciasse sua cor, forma bem delineada ou tamanho, a produção gráfica mudava drasticamente, pois a criança tentava reproduzir esses fatores, expressando a cor, a forma ou o tamanho. Na verdade, a quantidade e a forma leva a criança à pictografia, ou seja, o desenho torna-se um meio de recordar dando indícios de uma convergência para uma atividade intelec- tual complexa. A Figura 7, a seguir, revela que Brina (cinco anos de idade), com a introdução 20 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento do fator quantidade, descobre o uso instrumental da escrita, inventando um signo para isso (os traços). “E o processo de recordação começou a se dar por mediação” (LURIA, 2006, p. 171). Mediação feita por meio desses traços. Ao ler seus traços, ela podia relembrar o que foi ‘escrito’. Figura 7A Figura 7 – Escrita instrumental – Brina (cinco anos de idade) Fonte: LURIA, 2006. A representação da pictografia primitiva, isto é, escrever por meio de desenho, era outra forma de representar, não como um desenho em si, mas as frases ditadas pelo experimentador. O es- crever por meio do desenho constituía-se em signos auxiliares na produção da escrita. Estes experimentos revelam-nos que as crianças são capazes de inventarem seu próprio sistema de escrita, utilizando-o para recordar por meio da leitura desse sistema. Portanto, elas vão ela- borando a função instrumental da escrita. É de extrema importância destacarmos que esse processo de diferenciação da escrita pré-instru- mental para instrumental não segue em etapas linearmente organizadas, hierárquicas e univer- sais. Pois esse processo depende das oportunidades que a criança tem, em sua cultura, de ter acesso ou não às formas de expressões gráficas. A elaboração da escrita é uma função psicoló- gica cultural. 21 Se você é do tipo de pessoa que gosta de conhecer as coisas ‘a fundo’ e, sobretudo, como se dá o desenvolvimento da escrita na criança, leia Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem, de Vygotsky, Luria e Leontiev. E, se você quiser maiores detalhes sobre a história da pré-escrita na criança, leia, especificamente, o capítulo O desenvolvimento da Escrita na Criança, deste mesmo livro. Ler é conhecer o mundo em suas diversas facetas! VOCÊ QUER LER? 2.4 A escrita simbólica Com o acesso a escrita alfabética, que a criança vai aprendendo pelo meio escolar ou familiar, a escrita por imagens vai desaparecendo. A criança, passa a situar-se entre as formas primitivas de inscrição, como vimos, e “as novas formas culturais exteriores, introduzidas de maneira organiza- da no indivíduo (...)”. Luria ainda quer saber: “como escreve uma criança que, embora incapaz de escrever, conhece alguns elementos do alfabeto?” (LURIA, 2006, p. 180). Porém, ao conhecer letras isoladas, saber que elas registram algum conteúdo e aprender suas formas externas, não significa que as crianças conhecem o seu uso integral; [...] estamos convencidos de que uma compreensão dos mecanismos da escrita ocorre muito depois do domínio exterior da escrita e que, nos primeiros estágios de aquisição desse domínio, a relação da criança com a escrita é puramente externa. Ela compreende que pode usar signos para escrever qualquer coisa, mas não entende ainda como fazê-lo. Torna-se assim inteiramente confiante em sua escrita, mas é ainda incapaz de usá-la. Acreditando integralmente nesta nova técnica, no primeiro estágio do desenvolvimento da escrita simbólica, a criança começa com uma fase de escrita não diferenciada pela qual já passara muito antes (LURIA, 2006, p.181). Os experimentos realizados por Luria (2006) comprovaram que as crianças apresentavam o domínio de signos arbitrários e um progressivo ganho de atenção e de memória. Lembra-se que estudamos sobre isso, no item 2.2.1 Compreendendo a abordagem socioconstrutivista? E de como os signos mobilizam as funções psicológicas, como a memória ea atenção? Em termos de alfabetização, existe o estágio mnemotécnico (função instrumental da escrita), que contribui para o entendimento progressivo das convencionalidades de nosso sistema alfabéti- co, que precisam de posteriores avanços. Para que isso ocorra, o ensino da leitura e da escrita tornar-se necessário às crianças. O exercício da escrita não deve ser simplesmente um ato me- cânico, mas uma atividade cultural complexa e com significado. Por meio dos experimentos de Luria, realizados ainda no início século XX, concluímos que saber decodificar e codificar não garante a compreensão simbólica da escrita. Esta conclusão leva-nos a pensar sobre o que lemos, anteriormente, a respeito da importância da leitura compreensiva e também sobre as práticas atuais: que elas ainda seguem métodos que privilegiam a mecaniza- ção, a repetição e a memorização. E aí está o grande desafio dos professores: como ensinar que ler e escrever devem ir além do ensino de técnicas externas, mecanizadas e motoras? Uma das formas é alfabetizar letrando, assim como o ensino pode acontecer por meio de brin- quedos e desenhos. A criança começará a perceber a necessidade da escrita e da leitura para expressar-se e para lembrar-se. Quando a criança conseguir desenhar, além de objetos, a fala, o processo atingirá seu objetivo e, para isso, é necessário o acompanhamento do professor em todas as fases. 22 Laureate- International Universities Alfabetização e Letramento CASO Nas aulas de psicologia do desenvolvimento e aprendizagem, geralmente, os alunos trazem suas frustrações, baseadas em inverdades. Explico: eles acreditam que algumas crianças, que ainda rabiscam e não sabem escrever letras convencionais, estão muito longe de adentrarem no mundo da escrita. O problema está mais por não conhecerem a existência da pré-história da escrita do que na ‘imaturidade’ das crianças, como costumam afirmar e acreditar. Acontece que, se eles parassem para prestar atenção aos rabiscos, que geralmente são des- prezados e até mesmo reprimidos, elas teriam acesso às pistas riquíssimas sobre como anda o processo de desenvolvimento e simbolização da escrita em seus alunos e alunas. Existem crianças que ainda rabiscam aos 4, 5 ou 6 anos, sobretudo se convivem com poucas oportunidades de interagir com o mundo letrado ou com pessoas que não valorizam a leitura e a escrita. A pergunta que deve ser feita pela/o professora ou professor é: qual fase da escrita esses rabiscos representam: pré-instrumental ou instrumental? Se você quiser realmente descobrir, volte ao item 2.3 e tente fazer com seus alunos como Luria fez e descubra a pré-história da escrita em seus/ suas alunos/as! 23 Síntese Foi importante compreendermos que a leitura e a escrita não se resumem em atos mecanizados e externos de decodificação e codificação simples, certo? Esperamos que você tenha percebido a importância da linguagem falada e da escrita como um sistema de representação simbólica. Para entendermos isto tudo, estudamos que: • a leitura é um produto da interação entre o leitor e o texto, e não uma decodificação de um significante; • a escrita não é um ‘código’, isto é, a transcrição das unidades sonoras em grafia (codificação); • as concepções construtivistas (construtivismo e socioconstrutivismo) já haviam defendido que a escrita é um sistema de representação da linguagem com signos e significados; • a linguagem falada é importante como constituinte do pensamento e da formação da função simbólica. • há diversas formas de linguagem que precedem à escrita e que devem ser exploradas: a própria fala, os gestos, a brincadeira, o desenho; • o que representa a pré-história da escrita e as funções pré-instrumental e instrumental por meio dos experimentos do neuropsicólogo Alexander Luria; • ainda que os estudos de Luria tenham ocorrido em meados do século XX, ele já afirmava que decodificar e codificar, não garantia a compreensão simbólica da escrita. Síntese 24 Laureate- International Universities Referências BAJARD, É. Caminhos da escrita: espaços de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2002. FERREIRO, E. Reflexões sobre a alfabetização. São Paulo: Cortez, 2011. FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999. GIROUX, H. Pedagogia radical: subsídios. São Paulo: Cortez, 1983. LURIA, A. R. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VYGOTSKY, L; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10. ed. São Paulo: Ícone, 2006. MICOTTI, M. C. O. Leitura e escrita: como aprender com êxito por meio da pedagogia por projetos. São Paulo: Contexto, 2009. SMITH, F. Leitura significativa. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. _______. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 4. 2. reimpressão, 2003. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. VYGOTSKY, L; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendiza- gem. 10. ed. São Paulo: Ícone, 2006. Bibliográficas
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