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TEMA: Autonomia da Vontade e Função Social das Obrigações e do Contrato LEITURA Tepedino, Gustavo. “As relações de consumo e a nova teoria contratual”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 217-ss. COMPLEMENTAR: Martins-Costa, Judith. “Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos”, in Revista Direito GV nº 01 (maio/2005); pp. 41/66. Salomão Filho, Calixto. “Função social do contrato: primeiras anotações”, in Revista de Direito Mercantil nº 132; pp. 07/24. Bueno de Godoy, Cláudio Luiz. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130. Ao se iniciar o estudo da teoria e prática das obrigações, é fundamental ter-se em mente a transição pela qual atravessa esse específico e importante campo do Direito Civil. Tradicionalmente vinculada à soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente vê-se permeada por uma série de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da intervenção de dispositivos de ordem pública na regulação das relações contratuais. Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princípios tradicionais, que fundamentaram a construção clássica da teoria dos contratos são os seguintes: 1. autonomia da vontade; 2. força obrigatória; e 3. relatividade. Esses princípios encontram hoje diversas áreas de flexibilização geradas pela ascensão de novos princípios contratuais, como (iv) a função social do contrato; (v) a boa-fé objetiva; e (vi) o equilibrio econômico-financeiro da relação contratual. Na presente aula será conferida atenção especial aos princípios da autonomia da vontade e da chamada função social do contrato. A autonomia privada pode ser entendida, segundo lição de Díez-Picaso e Gullón como “o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governarse a si próprio.” Conforme complementam os mesmos autores: “Poder-se-ia também defini-la como um poder de governo da própria esfera jurídica, e como essa é formada por relações jurídicas, que são a causa da realização de interesses, a autonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relações jurídicas nas quais é, ou há de ser, parte.”1 O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da liberdade contratual. Nesse particular é importante não confundir “liberdade de contratar” com “liberdade contratual”. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relação contratual, isto é, com o grau de liberdade envolvida na decisão sobre concluir ou não um contrato. Já a segunda diz respeito ao conteúdo do contrato. Segundo Francesco Messineo, existem quatro significados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente à outra o conteúdo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociação, no sentido de que o objeto do contrato é livre, salvo bens indisponíveis e exceções previstas no ordenamento; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matérias, é admitida a auto-disciplina, ou seja, a regulação estabelecida pelas partes interessadas.2 Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser encontrados nos princípios elaborados pela Escola do Direito Natural, responsável por conferir importância crescente à contratualidade, a partir do século XVI, sob a influência do conceito de autonomia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual é consolidado no século XVII, quando a própria existência da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendência é explicita por John Gilissen: “A Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem comum. Os interesses da comunidade familiar, religiosa ou econômica, ultrapassam os dos indivíduos que a compõem. (...) É à Escola Jusnaturalista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu primado. Mas foi sobretudo o jurista holandês Hugo Grócio que desenvolveu a nova teoria: a vontade é soberana; o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt servanda é um princípio que deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas mesmo entre as nações”.3 Referências Bibliográficas: 1 Luis Diéz-Picaso e Antonio Gullón. Sistema de derecho civil. Madrid: Editorial Tecnos, S.A., 1994, v. 1, p. 371. 2 Francesco Messineo. Il contratto in genere. Pádua: CEDAM, 1973, pp. 43 e 44. 3 John Gilissen. Introdução histórica ao direito. 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739. Após a consagração dos ideais da Revolução Francesa e a abolição dos privilégios estamentais e corporativos, a promulgação do Código Napoleão em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade, na máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” (art. 1.134), a qual será traduzida na célebre frase de Fouillée: “quem diz contratual diz justo”. A conseqüência imediata desse cenário é a crescente importância conferida pela doutrina contratualista do século XIX para a análise da manifestação da vontade e seus vícios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpretar o contrato tornou-se um exercício de descobrimento das reais intenções das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira “mística da vontade”. As restrições à liberdade contratual começam a surgir com a mudança do cenário histórico, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportunidades no mercado, em termos da proibição de discriminação em razão de gênero, raça, etnia. Posteriormente, razões sociais passaram a determinar certas discriminações positivas, como o tratamento mais protetivo às partes contratualmente mais vulneráveis (tais como o consumidor, o idoso, o trabalhador). Portanto, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, em um movimento que ficou conhecido como dirigismo contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurídico, de uma série de normas cogentes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláusulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguinte, nulas. Segundo identifica Eros Roberto Grau: “A mudança de perspectiva sobre a compreensão da autonomia da vontade é, portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivíduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreendê- lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorização concedida.”4 O mesmo diagnóstico dessa fase de transição é realizado por Gustavo Tepedino ao afirmar que: “Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas relações contratuais, definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”.5 Referências Bibliográficas: 4 Eros Roberto Grau. “Um novo paradigma dos contratos”. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 5, jan/mar 2001, p. 78. 5 Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 204. Todavia, a flexibilização da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislação não representa uma completa anulação desse princípio nas relações contratuais. Muito ao reverso,a autonomia da vontade, e, mais especificamente, a liberdade contratual, permanecem como princípio, e sua derivação respectivamente, a reger os vínculos contratuais, agora atrelada à função social do contrato, consoante o disposto no art. 421: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Uma constatação de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formação dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Código Civil, o qual determina que as partes poderão elaborar contratos atípicos, ou seja, contratos que não seguem os modelos de contrato tipificados na legislação: Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código. A dinâmica existente entre autonomia da vontade e função social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prática dos contratos de locação. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. A lei de locações (Lei nº 8245/91) prevê, no seu art. 52, §1º, que o locador, salvo se remunerar o locatário pelo fundo de comércio, não poderá exercer o mesmo ramo de atividade desempenhado então pelo locatário. É a redação do artigo: “Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...) II o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente. §1º Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences”. Ao interpretar o referido artigo, Fábio Ulhoa Coelho afirma que, em tela, está-se diante de um conflito entre o direito de inerência ao ponto do locatário e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor: “Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o direito de inerência a ponto do locatário, está em oposição uma simples oposição de interesses privados, individuais.”6 Referências Bibliográficas: 6 Fábio Ulhoa Coelho. Curso de Direito Comercial, v. I. São Paulo, Saraiva, 4ªed., 2000; p. 103. Complementa então o autor afirmando que a restrição ao direito de retomada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restrições ao direito de propriedade. Essa é justamente a espécie de situação em que a ampla autonomia da vontade cede espaço para mandamentos constantes da lei, impondo a preservação de determinados interesses. Ao afirmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legislador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa direção, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o trabalho realizado no ponto. Cláusulas de não restabelecimento, ou cláusulas de não concorrência, atualmente desempenham importante papel na configuração dos limites da autonomia da vontade nos contratos. A cláusula de não-concorrência pode ser decorrência natural da venda de um negócio, principalmente nos casos em que seja necessário assegurar ao comprador as condições necessárias para que este usufrua integralmente dos benefícios diretos e indiretos da aquisição. A referida cláusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espaço e no setor relevante. O próprio código civil estabelece que, salvo estipulação em contrário, na aquisição de estabelecimentos empresariais o alienante não poderá concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa é a redação do art. 1147 do Código Civil: Art. 1147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes á transferência.” Ainda na dinâmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especificamente nos shopping centers, as cláusulas de não concorrência assumem a feição de cláusulas de raio, sendo comum que no contrato de locação com a empresa que administra o shopping center conste uma cláusula que veda a abertura de estabelecimento idêntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distância especificada no contrato.
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