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Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial Vol. 13 Inquisição no mundo ibero americano

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Ficha Catalográfica 
 
Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. 
Inquisição no mundo ibero-americano / Rafael Chambouleyron & 
Karl-Heinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, volume 13, 2014. 
 
 
217 p. 
 
 
ISBN 978-85-61586-63-8 
 
 
1. História – Inquisição. 2. Reinos Ibéricos – Espaços coloniais - 
História. 3. Religiosidades – Inquisição – Intolerância religiosa. 4. 
História. 
 
CDD. 23. Ed. 338.9973 
 
 
 
Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de 
História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de 
Setembro de 2012. O evento contou com a participação de 
aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de 
trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos, 
ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas 
inscritas para apresentação de trabalho em alguma das 
modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre 
professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. 
Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da 
região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região 
Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26 
instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3 
da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da 
Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da 
Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da 
CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer. 
Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos 
Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos 
textos apresentados nas Mesas Redondas. 
Boa leitura. 
A Comissão Organizadora 
 
 
 
 
 
Este volume contém os textos apresentados em dois Simpósios Temáticos: 
1) Inquisição no mundo ibero-americano: funcionamento, 
estrutura, relações, personagens 
2) Inquisição e sociedade no mundo ibérico e ultramarino: os 
agentes do Santo Ofício 
Sumário 
 
 
“Casar segunda vez no sertão”: a bigamia na 
capitania do Ceará Grande (1752-1813) 
Adson Rodrigo Silva Pinheiro...................................................................................................1 
 
As mulheres do Livro. Criptojudaísmo, metamorfoses da fé 
e Inquisição na Modernidade iberoamericana 
Angelo Adriano Faria de Assis..............................................................................................16 
 
Vecinos e testigos: a população de Cartagena de Índias diante 
do conflito entre a Inquisição e o governador Murga (1629-1636) 
Carlos Guilherme Rocha.........................................................................................................29 
 
O sába do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas em 
Congresso Noturno no Piauí Colonial (1750-1758) 
Carolina Rocha Silva..............................................................................................................44 
 
Inquisidores, jesuítas e os gentilismos 
Célia Cristina da Silva Tavares..............................................................................................56 
 
A inquisição herege: os crimes contra o Santo Ofício 
no mundo Luso-brasileiro, séculos XVII e XVIII 
Daniela Buono Calainho ........................................................................................................70 
 
Feitiçaria nos seiscentos: novas perspectivas 
Dayane Augusta Santos da Silva ...........................................................................................78 
 
Os portugueses e a Inquisição Novo-hispânica no Archivo 
General de la Nación (AGN) do México. 1600-1630 
Elisabete da Silva Vasconcellos ..............................................................................................89 
 
Cristãos novos em Minas Gerais setecentista 
Franciany Cordeiro Gomes .....................................................................................................98 
 
Na mira das delações: a presença do clero baiano nos 
cadernos do promotor (séculos XVII e XVIII) 
Grayce Mayre Bonfim Souza ................................................................................................109 
 
Tribunal de medo: Inquisição e Cristãos-novos nos espaços coloniais – 
capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraiba (1593-1595) 
Halyson Rodrygo Silva de Oliveira........................................................................................121 
 
Os Mágicos Coloniais 
Helen Ulhôa Pimentel ..........................................................................................................133 
 
A França Antártica, Anchieta e João de Bolês: Protestantismo e Inquisição 
nos Trópicos, Século XVI 
Ivo Pereira da Silva ..............................................................................................................147 
 
As redes de sociabilidade de uma família a serviço da Inquisição 
em Colônia de Sacramento: os Almeida Cardoso 
Lucas Maximiliano Monteiro...............................................................................................159 
 
Circularidades e Apropriações entre “cultura erudita” e “cultura popular”: 
os processos inquisitoriais de Maria Gonçalves, Violante Carneira e 
Felícia Tourinho (1591-1595) 
Marcus Vinicius Reis ...........................................................................................................172 
 
O falso comissário do Santo Ofício: padre José Aires 
nos Sertões do Piauí colonial 
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz ...................................................................................184 
 
Brites Fernandes: Uma apropriação da “mentecapta” 
judaizante do Pernambuco colonial 
Suzana do Nascimento Veiga...............................................................................................196 
 
Da Crítica ao Pecado: a transformação jurídica do 
ato de criticar o reto ministério do Santo Ofício 
Yllan de Mattos....................................................................................................................209 
 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
1 
“Casar segunda vez no sertão”: a bigamia na capitania 
do Ceará Grande (1752-1813) 
 
Adson Rodrigo Silva Pinheiro1 
 
Transplantada para a América portuguesa no século XVI, inspirada e submissa 
aos preceitos ditados no Concílio Trento2 que vigoraram em Portugal a partir do 
alvará de 12 de setembro de 1564,3 a Igreja católica ultrapassou o mar e marcou de 
forma substancial o dia a dia dos colonos que ocupavam as novas terras, em um 
empreendimento que constituía não só em organizar famílias em novos espaços, mas 
também em se legitimar por meio de práticas como o batismo dos filhos, a 
celebração dos esponsais e dos matrimônios, e os rituais funerários.4 
Nesse sentido, homens e mulheres, sob pena de excomunhão, tinham suas vidas 
esquadrinhadas por sacramentos que inspiravam a conduta do “bom cristão” e em 
atividades que despontassem sua fé, dentre elas as principais tenham sido os cortejos 
religiosos e o pedido de perdão nas confissões que marcavam o “consciente” moral 
da população. Os visitadores em peregrinação pelas dioceses, nas quais as 
 
1 Mestrando em História Social – UFC. 
2 O fim das heresias, e dos erros cometidos contra a fé estavam entre os objetivos do 
Concílio, como pode ser analisado em REYCEND, João Baptista. O Sacrosanto, e 
Ecumênico Concilio de Trento, Em Latim e Portuguez: dedica, e consagra aos Excell., e 
Rev. Senhores arcebispos, e bispos da Igreja Luterana. Lisboa: Officina Patriarc. de Francisco 
Luiz Ameno, Tomo I, 1781, p. 171-173. Ainda: DELUMEAU, Jean. El catolicismo de 
Lutero a Voltaire. Barcelona: Labor, 1973, e também MULLET, Michel. A Contra-
Reforma. Lisboa: Gradiva, 1984. KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: Representação 
Religiosa no Brasil e no México do século XVI. São Paulo: ed. Hucitec, 1998, p. 56; 
DICKENS,A. G. A Contra-Reforma. Lisboa: editorial Verbo, 1972. JEDIN, Hubert. 
História del Concilio de Trento. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1972. 
Tradução castelhana do original alemão Geschichte des Konzils von Trient, de 1957, e o 
artigo Catholic Reformation or Counter-Reformation? In: LUEBKE, David M. (org.). The 
Counter-Reformation. Malden/Oxford: Blackwell Publishing, 1999. TREVOR ROPER, 
Hugh. Religião, reforma e transformação social. In: Religião, Reforma e Transformação 
Social. Lisboa: Presença, 1972, p. 13-42. CANTIMORI, Delio. Humanismo y Reforma. In: 
Humanismo y Religiones en El Renacimiento. Barcelona: Península, 1984, p. 151-165. 
DELUMEAU, Jean. Un Chemin d’Histoire Chrétienté et Christianisation. Paris: Fayard, 
1981. 
3 Esse Alvará obrigava a todos os súditos reais “fieis” Católicos a seguirem obrigatoriamente 
todos os princípios ditados em Trento. O Alvará está disponível em 
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=85&id_obra=65&pagina=146. 
Acesso em 3 abr.2012. 
4 SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Sexualidade, família e religião na colonização 
do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 9. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
2 
populações deveriam estar mobilizadas pelo espírito católico proposto, ajudavam na 
missão de incentivar os membros das comunidades a denunciarem práticas 
heterodoxas de blasfemos, concubinados, sodomitas, curandeiros e feiticeiros.5 Por 
seu lado a Inquisição, também entendida como um desses mecanismos que reforçam 
os ideais tridentinos tricotou uma verdadeira rede de controle “graças aos familiares e 
aos comissários do Santo Ofício espalhados pelo território brasileiro. 
Ocasionalmente havia uma visita especial de um visitador inquisitorial enviado do 
Reino”.6 
Dentro desse cenário, ao lado da transgressão e de vidas familiares em 
desenvolvimento no processo de concessão de sesmarias, paulatinamente nos 
séculos XVII e XVIII se consolidaria o povoamento do território do Ceará, depós de 
se haver desvanecido pela economia a impressão de aridez e inospitalidade da região. 
Assim, impulsionados pelo estímulo dado pela indústria pastoril, cujas ricas 
pastagens sertanejas prometiam vasto futuro, o gado regente da ocupação cumpria 
sua missão de dar sentido aos espaços ermos do sertão, porém sozinha essa atividade 
não seria capaz de definir àqueles lugares. A presença da Igreja, aliada pelo padroado7 
com o Estado Português, com suas ermidas, suas capelas e suas paróquias e seus 
missionários e visitadores, levantando preocupações com a moral daquela gente, 
principalmente com os “vadios”, garantissem uma maior atenção ao projeto 
português daquela região. 
 O Padre Domingos Ferreira Chaves, clérigo do habito de São Pedro, missionário 
geral das missões do Sertão da parte do norte no Ceará, e o padre António de Sousa 
 
5 Ibidem. 
6 Ibidem. 
7 “Regime cuja origem remonta à Idade Média, pelo qual a igreja instituía um indivíduo ou 
instituição como padroeiro de certo território, a fim de que ali fosse promovida a manutenção 
e propagação da fé cristã. Em troca, o padroeiro recebia privilégios, como coleta dos dízimos 
e a prerrogativa de indicar religiosos para o exercício das funções eclesiásticas. Em Portugal, 
em decorrência da luta contra os mouros, o rei adquiriu não só o padroado sobre diversos 
locais restritos como também um padroado propriamente régio, que o habilitava a propor a 
criação de novas dioceses, escolher os bispos e apresentá-los ao papa para confirmação. A ele 
estava associado o chamado beneplácito, isto é, a exigência de que o monarca aprovasse 
previamente as normas e determinações da Santa Sé que se destinasse o reino”. NEVES, 
Guilherme Pereira. Padroado. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial 
(1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p. 466. Assim sendo, o Padroado régio 
garantia aos monarcas portugueses o simultâneo exercício tanto do governo secular como do 
religioso, com o direito de cobrança e administração dos dízimos eclesiásticos, a expansão da 
fé cristã, a construção e manutenção de igrejas e o sustento do clero. Nas Ordenações 
Filipinas reafirmando o poder real ao adotar o Direito romano, confirmando a predominância 
do poder civil sobre o eclesiástico, que era baseado no Direito canônico. PIRES, Maria do 
Carmo. Juízes e infratores. São Paulo: Annablume, 2008, p. 33. 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
3 
Leal, missionário e clérigo do mesmo hábito, em 1720 escrevem sobre as 
aventuranças, as violências e as injustas guerras com que eram perseguidos e 
tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande passaram no processo de 
ocupação, não deixando de narrar também em suas cartas a Vossa Majestade sobre o 
perfil desses desordeiros e sobre as desordens e vícios em que a capitania se 
encontrava: 
Portugueses, mulatos e mamelucos que andam “vagabundos” 
sem ocupação nem domicilio vivendo e prejuízo não só aos 
Indios, mas ainda aos mesmos brancos, por que vivem e se 
sustentao a custa alheya, com embuste, violências e roubos, sera 
preciso que se se ordene ao Ouvidor que por editais, aos 
governadores por bandos notifiquem para que todos dentro de 
três meses tomem ocupação e domicilio certo e que não o 
fazendo sejão presos e mandados para Pernambuco para dali 
serem remetidos da cadeya para Angola para reencher o 
batalhão de guarnição daquele reino. […E porque he constante 
que havendo ali muitos homens portugueses não há molheres 
brancas com quem casem, e daqui nascem grandes desordens e 
offenças de Deos, como são os concubinatos, com as Índias, de 
cuja prole como infecta mal criada, e pior disciplinada senão 
pode esperar ação boa, nem para o serviço de deos, nem para o 
do príncipe e da republica como mostra a experiência em toda a 
parte, e principalmente naqueles pais, parece que seria 
conveniente e acertado que Vossa Magestade mandasse fundar 
ali huá colônia ordenando que focem das Ilhas cem cazaes, e 
procurando-se que estes fossem os que tivessem filhos para 
poderem aquelles habitadores do Ceará ter molheres, 
Portuguezas com quem cazar, sendo certo que as republicas só 
se estabelecem e se reduzem aregularidade civil e política por 
meio de cazamentos.8 
 
Dentre essas apreensões, percebemos que talvez a maior fosse a que está em 
torno do casamento, principalmente as com mulheres brancas. A ausência dessas 
parece trazer um incômodo grande aos religiosos locais, que se deparava com 
problemas circunscritos ao concubinato com as índias, e com a falta de “gente de 
qualidade” para o bem da república. 
 
8 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre a carta do padre 
Domingos Ferreira Chaves, missionário-geral e visitador-geral das missões do sertão da parte 
do norte no Ceará, e exposição do padre António de Sousa Leal, missionário e clérigo do 
hábito de São Pedro, sobre as violências e injustas guerras com que são perseguidos e 
tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande. AHU_CU_006, Cx. 1, D. 67. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
4 
Mediante a essas considerações, em meio à construção da sociedade colonial em 
que se buscava evitar contrassensos na formação das famílias por meio do 
matrimônio, principalmente com casamentos mistos, o “jogo de interesses dentro do 
corpo social para formar famílias e laços de solidariedade era uma maneira 
encontrada por muitos para garantir o seu espaço e dos seus”,9 o uso do sacramento 
matrimonial se revelava como responsável pelas regularidades civis e políticas, e pela 
criação de um ar de respeitabilidade, de segurança e de ascensão social a todos que o 
atingisse,10 o que devia ser regimentadocom segurança tanto do Estado como a 
própria Igreja. Para assegurar tais princípios, o matrimônio se comportaria como um 
regulador social em que o seu sentido devia ser dado, segundo as Constituições, para 
três fins, que refletiam a segurança do patrimônio e a submissão aos desejos da Igreja 
e consequentemente do Estado:11 
 
O primeiro é a propagação humana, ordenada para o culto, e 
honra de Deos. O segundo é a fé e lealdade, que os casados 
devem guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade 
dos mesmos casados, significativa da união de Christo Senhor 
nosso com a Igreja Católica. 
 
E é Com Trento, concílio tão mencionado nos textos dos livros de casamento, e 
mais tarde com as Constituições do Arcebispado da Bahia,12 que o contrato de união 
com o Senhor e com a Igreja pelo sentido de eficácia do estado da graça13 se 
consolida, onde o artifício em torno do sacramento que corresponde as decisões 
conciliares resultante de um dúbio comprometimento da Igreja em dar respostas às 
principais oposições dos protestantes e, por outro, regulamentar e esclarecer algumas 
questões das irregularidades diversas, nomeadamente as que davam origem aos 
denominados como “casamentos clandestinos”, considerados nulos nesse 
momento.14 Afinal, para casar deviam ser seguidos muitos procedimentos. 
 
9 SILVA, Gian Carlo de Melo. Inquisição e Igreja Católica no Pernambuco Colonial: Os 
desvios morais contra o Sagrado Matrimônio. Disponível em: < 
http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wp-content/uploads/2012/01/Gian-Carlo.pdf> 
Acesso em 03 abril de 2012. 
10 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 
11 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da 
Bahia. São Paulo: Edusp, 2010. 
12 Promulgadas em 1707, pela Igreja Católica, esta obra traduzia, de forma fiel, as tendências 
teológicas daquele momento específico, normatizando a prática religiosa da sociedade 
colonial do século XVIII. 
13 Interpretar com estado com os princípios cristãos, estar com Deus. 
14 BRAGA, Isabel Drumond. A Bigamia em Portugal na Época Moderna. Lisboa: Hugin, 
2003, p. 23-24. 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
5 
O sacramento do Matrimônio era, como podemos perceber, algo sagrado, que 
merecia ser preservado para a ordem de uma importante instituição da sociedade, 
que é a família.15 Indissolúvel é a palavra que talvez traga os problemas que esse vai 
ter com delitos que vão se seguir. Não era tolerado nada que viesse de encontro a 
este sacramento. 
Porém, como em todo “sistema de poder”, havia aqueles que buscavam forjar 
essas normas. Os problemas com o concubinato, adultério e bigamia foram grandes 
para a manutenção da ordem. De todos os dolos em torno do casamento, 
percebemos que a bigamia, vai ser o único a ganhar a atenção da alçada da 
Inquisição.16 Para Michelle Trugilho, essa atenção dada pelo Santo ofício aos 
bígamos e não a fornicários, adúlteros e concubinários se deve que esses 
“transgrediam os mandamentos divinos e até eram passíveis de punição pela Justiça 
Civil e pela Eclesiástica, mas tais indivíduos não envolviam e enganavam os ministros 
da Igreja, bem como toda a comunidade”.17 Contrariamente, os bígamos, além de 
embaçar as determinações régias e canônicas, “ludibriavam padres, vizinhos e, muitas 
vezes, os cônjuges e seus familiares, fraudando o próprio sacramento do 
matrimônio”.18 
Se, a despeito de todas as atenções do clero, a transgressão de bigamia fosse 
cometida, a punição no século XVI competia ainda às justiças civis, a bigamia ainda 
não constava entre os crimes mixti fori, ou seja, aqueles que podiam ser investigados 
ao mesmo tempo tanto pelas justiças civis quanto eclesiásticas,19 embora o monitório 
do inquisidor geral D. Frei Diogo da Silva de 1536 pedisse à todos que “ sabeis, 
vistes ou ouvistes que algumas pessoas se casassem duas vezes, sendo o primeiro 
marido ou a primeira mulher vivos, sentindo mal do sacramento do matrimônio”.20 
Em Portugal, a bigamia parece ter sido punida pelas ordenações desde o século XV 
com as ordenações Afonsinas (Liv. V, tít.XIV), que instituía pena de morte para os 
 
15 Aqui percebemos, pela bigamia, a ausência do marido em muitos desses lares, o que nos 
leva a concluir que não vai configurar bem uma família patriarcal como tenta uniformizar 
determinados autores sobre as capitanias no Brasil Colonial. Pela mobilidade masculina, 
podemos pensar que outras formas de núcleos familiares podem ter sido formadas. 
16 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna…, p. 302. 
17 ASSUMPÇÃO, Michelle Trugilho. Transgressores do Matrimônio: Bigamia e Inquisição 
no Brasil Colonial. São Gonçalo: Dissertação de Mestrado em História Social – UERJ, 2010, 
p. 51-52. 
18 Ibidem. 
19 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Bahia, a corte da América. São Paulo: Companhia Editora 
Nacional, 2010, p. 30. 
20 Collectorio de Diversas Letras Apostolicas, Provisões Reaes e outros Papeis, em 
que se contém a Instituyção, & Primeiro Progresso do Santo Ofício em Portugal, & 
Varios Privilegios que os Summos Pontífices, & Reys destes Reynos lhe concederão. 
Lisboa: Casas da Santa Inquisição, 1596, p. 6. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
6 
bígamos, fosse homem ou mulher, de qualquer condição social. Já nas Manuelinas 
(1521 – Liv. Tit.XIX), tinha-se punições de morte, porém, havia algumas exceções. 
Isso se seguiu também nas Filipinas. Segundo elas, se o bígamo: 
 
Condenado à morte pelo dito malefício for menor de vinte e 
cinco anos ou for fidalgo, e a segunda mulher for de baixa 
condição ou for fidalgo, e a segunda mulher, com que casou, for 
de baixa condição, ou se o condenado, sendo-lhe fugida a 
primeira mulher, casou com a segunda, sem saber certo, que era 
a primeira morta, ou em outros casos semelhantes, não se fará 
execução sem primeiro no-lo fazer saber.21 
 
Depois de o alvará de 12 de setembro de 1564 ter recomendado a observância 
das determinações do Concílio Tridentino, quando a provisão de 2 de março de 1564 
ter recomendado a observância das determinações do concílio de Trento, quando a 
provisão de 2 de março de 1568, só em 23 de agosto de 1612, a Inquisição 
portuguesa teve a licença efetiva para julgar o delito de bigamia.22 Essa medida teve 
implicação direta no regimento de 1613, onde : 
 
os inquisidores conhecerão do crime dos que se casam segunda 
vez sendo viva a primeira mulher, ou marido, pela suspeita que 
contra eles resulta de sentirem mal do sacramento do 
matrimônio: sem embargo de os ordinários se quererem 
intrometer no conhecimento dele: por quanto sua Santidade tem 
determinado, que o caso pertence aos Inquisidores 
privativamente e assim o mandou por Carta da Congregação da 
Inquisição, em que ele assistiu.23 
 
Como se percebe, os casos de bigamia eram tanto de jurisdição inquisitorial 
quanto civil, mas na prática, tanto no Brasil colonial, quanto na capitania do Ceará 
Grande, por exemplo, não parece ter havido esse tipo de casos julgados pela justiça 
régia, pelo menos é o que percebemos ao fazer a leitura dos autos de querela24 e do 
 
21 LARA, Silvia Hunold. (org) Ordenações Filipinas. São Paulo: Companhia das Letras, 
Livro V, 1999. 
22 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna… 
23 Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (1613). Tít. V, cap. 
XXXII. In: ASSUNÇÃO, Paulo de; FRANCO, José Eduardo. Metamorfoses de um polvo. 
Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI – XIX). Lisboa: 
Prefácio, 2004, p. 184. 
24 Libelo, apresentação criminal apresentada em juízo, passada com o prazo máximo de um 
ano após o crime. Deveria ser assinadapela parte e pelo julgador, que não poderia aceitá-la 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
7 
rol de culpados da capitania presentes no Arquivo Público do Estado do Ceará, cujas 
páginas estão cheias de delitos que compõem o ramo da sexualidade, tais como o 
estupro, o defloramento, o concubinato e o adultério, as transgressões dos bígamos 
eram encaminhados ao Santo Ofício, modelo esse que se contradiz ao espanhol.25 
Era, portanto as autoridades inquisitoriais as responsáveis por averiguar (muitas 
vezes em conjunto com os bispos) e punir casos dessa natureza. As Constituições 
Primeiras do Arcebispado da Bahia reafirmam esse poder dado para o tribunal do 
Santo Ofício em julgar os bígamos, deixando assim claro que: 
 
Qualquer religioso ou religiosa, ou clérigo de ordens sacras, que 
se casar, além da pena de excomunhão maior em que incorre, 
ficam suspeitos na fé, portanto, serão remetidos ao Tribunal do 
Santo Ofício, a quem pertence o conhecimento de semelhantes 
culpas. E os que casarem segunda vez durante o primeiro 
matrimonio, porque também ficam suspeitos na fé, serão da 
mesma maneira remetidos ao Tribunal do Santo Ofício, onde 
por breve particular, que para isso há, pertence o conhecimento 
deste caso.26 (grifo nosso) 
 
Nessa discussão, compete então perguntar: Seria tão fácil casar no século XVIII 
no Brasil colonial e aqui no Ceará Grande, por exemplo, recorte regional dessa 
pesquisa? Ou ainda: Era fácil ser um bígamo? Como é que Igreja e Estado poderiam 
chegar a esses casos? 
Iniciaremos partindo do estado do casamento. Para casar, as Constituições do 
Arcebispado da Bahia recomendavam que o nubente masculino tivesse catorze anos 
completos e a “fêmea”, doze anos.27 Ademais, era necessária a reunião de uma 
determinada documentação para os autos do casamento, dentre elas tinha-se o 
batismo, o “primeiro de todos os sacramentos”, pois ele é a porta de onde se entra 
na Igreja Católica, e sem ele os outros não teriam efeito.28 Para que se licitamente se 
administrasse o sacramento do batismo, devia ser perante o próprio pároco ou 
missionário que levasse a licença dele. Após receber os santos óleos, o padre deveria 
 
sem conhecer o “quereloso” e as testemunhas. Para saber: PIRES, Maria do Carmo. Juízes e 
infratores…, p. 131. 
25 FEITLER, Bruno. Poder Episcopal e Inquisição no Brasil: o Juízo eclesiástico da Bahia nos 
tempos de D. Sebastião Monteiro da Vide. In: FEITLER, Bruno & SALES, Evergton. A 
Igreja no Brasil: normas e práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do 
Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. 
26 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da 
Bahia. São Paulo: Edusp, 2010. 
27 Ibidem. Liv. I, tít. LXIV. 
28 Ibidem. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
8 
assentar o nome da “criança” no livro de batizados.29 Os atestados de batismo por 
escrito poderiam ser dispensados, caso o vigário-geral comunicasse e autorizasse a 
escusa, mas era necessária a declaração do clérigo. 
Outra obrigação estava em apresentar a certidão atestando ter recebido os 
sacramentos de penitência e da eucaristia por ocasião da festa da Páscoa. Era 
necessário comprovar a presença no “rol dos confessados”, uma relação de todos os 
cristãos capazes de cumprir com esse comprometimento, elaborada pelo pároco, a 
qual era entregue a posterior para a autoridade episcopal. 
Porém, para o sistema de casamento se realizar dentro de uma realidade em que 
as comunicações com outras capitanias e até freguesias eram difíceis, muitos 
documentos eram dispensados, devido às distâncias entre os arcebispados e 
freguesias entre si e com o Reino, de onde por ventura moravam anteriormente os 
nubentes. Segundo o Regimento do Auditório: 
 
E quando as tais pessoas não ajuntarem a tal certidão em forma, 
ao tempo em que pedirem licença para casarem, e ao juiz dos 
Casamentos parecer que o casamento não admite demoras e se 
seguirá algum dano grave aos contraentes ou a alguns deles, 
atendendo às longas distancias dos mais bispados a este e às 
dificultosas viagens do Reino, lhes poderá dar licença para 
serem recebidos feitas as diligências acima ditas e corridos os 
banhos no lugar e lugares onde residir e tiver residido neste 
arcebispado por tempo de três anos, e dando primeira fiança 
pignoratícia ou fidejussória, da quantia que ao Juiz de 
Casamentos parecer, para em certo termo que lhe arbitrar 
respective à distancia, apresentar a certidão de banhos em certo 
termo do seu natural e lugares onde tiver residido, dentro e fora 
deste arcebispado (grifo nosso).30 
 
Muitos casamentos também poderiam depender apenas, como salienta Donald 
Ramos, da palavra dos participantes, tanto o casal como os seus familiares e as 
testemunhas. Na realidade quotidiana, “os sistemas da justiça eclesiástica e civil 
dependiam das testemunhas verdadeiras”.31 Porém, muitas dessas poderiam não 
corresponder, sendo possível fraudarem ou mentirem diante os interrogatórios feitos 
 
29 Perceberemos ao longo dessa pesquisa, que esses livros serão constantemente recorridos 
pela Inquisição em casos de bigamia, o que mais tarde nesse artigo entenderemos o motivo, e 
que cobrava das Igrejas locais certa organização, o que muitas vezes não acontecia. 
30 Regimento Auditório Eclesiástico Tít. 5. In: VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. 
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia… 
31 RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil Colonial: o caso de Manuel 
Lourenço Flores e o seu contexto histórico. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). 
Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil… 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
9 
pelos Juízes ou escrivães, possibilidade essa marcada nos regimentos e punidas com 
o castigo adequado, assim: 
 
Achando o dito Juiz que alguma pessoa abriu os sumários das 
diligências que lhe eram remetidos e que testemunhou falso em 
seu juízo, ou sendo parte negou a verdade ou disse falsidade nas 
perguntas que se lhe fizeram sobre os casamentos ou 
esposórios, fará disso auto com fé do escrivão, e, havendo 
testemunhas presentes, as perguntará, citada a tal pessoa, e 
sendo logo presa, a remeta e enviará tudo ao vigário-geral para 
que diante dele se livre e haja o castigo que merecer.32 
 
Assim percebemos que apesar das recomendações feitas pelo Concilio de Trento 
com 
os que andam vagando e não tem residência fixa, e como são de 
más intenções, desamparando a primeira mulher, se casam em 
diversos lugares com outra, e muitas vezes com várias, estando a 
primeira viva. Desejando o Santo Concílio pôr um remédio 
nesta desordem, alerta paternalmente às pessoas a quem toca, 
que não admitam facilmente ao Matrimônio esta espécie de 
homens volúveis, e exorta aos magistrados seculares que os 
sujeitem com severidade, ordenando também aos párocos que 
não realizem o casamento se antes não fizerem averiguações 
minuciosas, e dando conta ao Ordinário obtenham sua licença 
para fazê-lo.33 (grifo nosso) 
 
O casamento com pessoas de outros bispados poderia ser justificado e agilizado 
por conta da justificativa da distância, tendo os forasteiros a chance de justificar seu 
estado de solteirice com possíveis testemunhas falsas conseguidas por meio de 
mandonismos, talvez seja por isso que em meio dos “sertões”, como o Ceará 
Grande, esse crime fosse mais frequente. Mas qual seria o perfil dos bígamos aqui 
encontrados, processados ou não (em negrito) pelo Tribunal, e que estratégias se 
utilizavam para não serem descobertos? Observe o quadro que segue.32 Regimento Auditório Eclesiástico Tít. 5. In: VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. 
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia… 
33 O Sacrossanto e Ecumênico Concílio de Trento, Sessão XXIV. Decreto de reforma do 
matrimônio. Cap. VII. Disponível em: < http://agnusdei.50webs.com/trento29.htm>. 
Acesso em 3 de abr de 2012. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
10 
N° NOME IDADE NATURAL OCUPAÇÃO ANO CRIME LOCAL 
N° DO 
PROCESSO 
1 
Antônio Correa de 
Araújo Portugal 52 anos 
Freguesia de 
São Miguel de 
Sande 
(Arcebispado 
de Braga) 
Entalhador 1761 Bigamia Icó 6269 
2 Antônio Mendes da Cunha 40 anos 
Linhares 
(Braga) Pedreiro 1761 Bigamia 
Quixeram
obim 6274 
3 
José Luis Pestana 
(Polinardo Caetano 
C.de Ataíde) 
40 anos Funchal, ilha da madeira 
Juiz Ordinário 
/Juiz dos 
Órgãos) 
1779 Bigamia Sobral 1480 
4 
Manuel Fragoso de 
Albuquerque 40 anos Icó CE Trabalhador 1752 Bigamia 
Cariri 
Novo 
(Hoje 
Crato) 
0514 
6 Manuel Ferreira de Morais 60 anos 
Goiana 
Grande, Brasil Vaqueiro 1769 Bigamia 
Sertão do 
Jaguaribe 4397 
7 Miguel Alves de 
Faria Pita 
46 anos 
Santo Antonio 
de Tracunhões 
- PE 
Comerciante 
1783 
(condena
do) 
Perjúrio Sertão do 
Jaguaribe 
2776 
8 
José Cardoso de 
Melo 66 anos 
Santo 
Antonio, BA 
Curtidor de 
Couro e criador 
de gados 
1783 
(condena
do) 
Perjúrio 
(cumplicid
ade de 
bigamia) 
Sertão do 
Jaguaribe 2778 
9 Antônio Tavares de 
Sousa 
38 anos São Miguel, 
Angra 
Trabalhador 1770 Bigamia Sertão do 
Jaguaribe 
0720 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
11 
 
 
10 
Francisco José e 
Sousa Coutinho 
(Francisco Morais e 
Araújo) 
40 anos Bahia Comerciante 1768 Bigamia Icó 9803 
11 Francisco Barbosa 
(Paschoal Martins) 
60 anos 
Ilha de São 
Miguel,Açoure
s 
Pastor 1765 Poligamia 
Sertão de 
Acaracu 
/Freguesia 
de Caiçara 
(Hoje 
Acaraú 
/Sobral) 
7157 
12 
Antonio Abreu 
(Antonio Illario) 27 anos 
freguesia de 
Santa Luzia 
(PE) 
não consta 1783 bigamia 
Nossa 
Senhora 
do 
Rozario 
das Russas 
6696 
13 
Francisco Ludovico 
Pereira 
(Francisco 
Ludovico Leitam) 
50 anos 
São Luís do 
Maranhão, 
Brasil 
soldado 1777 bigamia 
Viçosa 
Real 5674 
14 
Joana Leitão 
(Ana Luzia) 
 
ausente 
freguesia de 
São Gonçalo 
dos Cocos 
escrava - parda 1788 bigamia 
freguesia 
de São 
Gonçalo 
dos Cocos 
6692 
15 
Manoel Sadinha 
Jardim 40 anos 
Ilha da 
Madeira, 
freguesia de 
N. Senhora 
das Graças 
tropeiro 1752 bigamia 
Cariris 
Novos 
(Hoje 
Missão 
Velha) 
Caderno do 
Promotor 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
12 
O primeiro ponto a ser analisado são os nomes dos acusados. Muitos dos réus, 
talvez conhecendo o delito, usavam a troca de nomes para despistar a atenção da 
justiça eclesiástica, que por meio de visitas pastorais, recolhiam as alcunhas dos 
“suspeitos da fé” e encaminhavam para o Tribunal do Santo Ofício e não serem 
reconhecidos pelos “andantes do sertão” que sempre traziam notícias de outras 
regiões. Um desses casos era o Ouvidor de Sobral Polinardo de Ataíde, nome falso 
de José Luis Pestana.34 
Outra questão se dar em torno da idade dos bígamos. Em sua maioria 
percebemos que estavam com a idade média de 40 a 50 anos, embora 
encontrássemos um indivíduo com 27 anos, que apenas recebeu um sumário e não 
foi processado. Quiçá, a idade fosse também uma forma de livrar das suspeitas, o 
que fazia com que o homem se sentisse mais a vontade em cometer o delito. 
Um terceiro elemento que percebemos no gráfico são os dados que constam a 
origem dos acusados, de onde vieram, e nos faz pensar o que levaram eles a seguirem 
para a região do sertão da Capitania do Ceará. Esses dados nos ajudam a pensar, a 
partir das regiões que vieram os sujeitos, os possíveis motivos para a sua migração 
até as localidades que passaram a residir. Talvez a atração provocada pelo 
desenvolvimento econômico das áreas escolhidas, regiões das charqueadas e 
oportunidades de ocupação e enriquecimento. Em 1752, também nos Cariris Novos 
se davam a notícia de existência de Minas de Ouro na região. O fator econômico 
assim pode dizer, também poderia fazer regiões ganharem a atenção eclesiástica. Pelo 
menos, a figura de Manoel Sardinha e de Manuel Fragoso de Albuquerque recebeu 
também esse zelo. 
O ano do início do processo é outro componente que merece nossa atenção. 
Apoiado na cronologia feita pelo Barão de Studart,35 percebemos que alguns dos 
bígamos tenham sido denunciados nas visitas pastorais que aconteciam no sertão a 
mando do bispado de Pernambuco, o qual a Capitania do Ceará. Em 20 de setembro 
de 1761, o Dr. Veríssimo Rodrigues Rangel, vigário colado na Igreja Matriz de Nossa 
Senhora da Conceição da villa das Alagoas e visitador geral da Capitania do Ceará, 
assenta e concorda com os moradores de Russas representados pelo Capitão 
Antônio Alvares Maciel e Francisco Alvares Maia a respeito dos usos e costumes e 
direitos paroquiais a adotar nessa freguesia. Provavelmente, o padre também tenha 
visitado outras regiões, como a de Quixeramobim e de Icó dos casos mostrados na 
tabela acima. 
Valem ressaltar que os bígamos notórios eram também denunciados por fieis, 
esses motivados pelo sacramento da Confissão revelavam aos padres os delitos de 
outrem; quer as delatas também partissem pelas visitas pastorais, quer à Inquisição 
 
34 O número do Processo segue na tabela e se encontra no Arquivo da Torre do Tombo. 
35 STUDART, Guilherme (barão de.). Datas e fatos para a história do Ceará. Ed. Fac-sim. 
Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1 t., 2001. 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
13 
por meio dos familiares36 ou dos comissários; eles próprios também poderiam se 
apresentar ao Santo Ofício.37 
Por fim, têm-se as profissões que nos levantam inúmeras problemáticas. A 
primeira como já comentamos é a mobilidade que muitas delas proporcionavam aos 
homens. Segundo dados de Isabel Braga (2003), de 97 dos bígamos identificados na 
América Portuguesa, apenas 12 eram mulheres e 89 homens, resultado deve-se, assim 
podemos instigar, à transitoriedade que muitas dessas profissões davam e também ao 
caráter de honra38 que circunscrevia o feminino. Segundo, nos faz refletir sobre o 
caráter punitivo do Tribunal Inquisitorial. Apesar de terem cometido o mesmo 
desvio, a bigamia, eram punidos igualmente? 
Percebemos tanto pela leitura da documentação, quanto do texto de David Higgs 
que a diferenciação era clara. Qualquer pessoa considerada culpada pelos 
inquisidores devia abjurar39 o seu desacerto e, caso fosse plebeia, era açoitada pelas 
ruas Lisboetas, e depois enviada para as galés40 durante certo número de anos.41 As 
 
36 Os familiares eram agentes da Inquisição no Brasil, em geral um leigo que, sem abdicar de 
suas atividades profissionais, ajudava a Inquisição nas suas investigações, prisões e outras 
ações pedidas nas instruções dos comissários ou diretamente de Lisboa. Para saber mais: 
CALAINHO, Daniela. Agentes de fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial. 
Bauru: Edusc, 2006; RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas 
Colonial: os Familiares do Santo Ofício (1711-1808). São Paulo: Dissertação de Mestrado em 
História – USP, 2007; FIGUEIRÔA-RÊGO, João de. A honra alheia por um fio. Os 
estatutos de limpeza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa: 
Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2011. Sobre os 
familiaresno Ceará: VIEIRA JR, Antônio O. A Inquisição e o Sertão. Fortaleza: Fund. D. 
Rocha, 2008. 
37 Os comissários eram eclesiásticos residentes no Brasil e deviam encarregar-se pessoalmente 
de todas as diligências e de modo algum podia delegar a sua autoridade em outra pessoa sem 
a aprovação de Lisboa. Para Saber mais: SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédios 
das almas: Comissários, qualificadores e notários da Inquisição Portuguesa na Bahia (1692-
1804). Salvador: Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. 
38 A honra é um guia de consciência, uma regra de conduta ou medida de status social. 
Historicamente marcada, a honra é gestada sob as ações individuais e as aprovações sociais. 
Cf. PITT-RIVERS, Julian. A doença da honra. In: A Honra. Porto Alegre: L&PM, 1992, p. 
17-32. 
39 Retratar-se, renunciar solenemente às crenças e erros contra a fé. A abjuração era adotada 
geralmente para as hipóteses de suspeita de heresia, e aplicada aos que delinquiam pela 
primeira vez. Para o assunto sugere-se a leitura: LIPINER, Elias. Santa Inquisição: Terror e 
Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. 
40 Uma das penas a que eram condenados os réus da Inquisição, e que serviu como fonte 
econômica de trabalho, poupando ao Estado a necessidade de contratar remadores para as 
suas embarcações. LIPINER. Santa Inquisição…, p. 75. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
14 
mulheres recebiam o mesmo castigo de açoite e podiam sofrer o degredo para 
Angola. Tanto os homens como as mulheres tinham quer cumprir a penitencias. Os 
nobres eram poupados do açoite, mas podiam ser degredados por alguns anos. 
Punições também poderiam receber quem acobertasse bígamos. Uma pessoa solteira 
tendo com conhecimento jurava que o primeiro marido ou mulher tinha morrido a 
fim de permitir o casamento do bígamo pela segunda vez, tinha que abjurar e podia 
sofrer com o chicote e o degredo.42 Sendo assim, a exemplo, José Luís Pestana teve 
abjuração de leve, degredo para Angola, por seis anos, penitências espirituais, 
pagamento de custas. Já pela condição social diferenciada de ferreiro, Manoel 
Fragozo de Albuquerque foi penitenciado por abjuração de leve, açoitado 
publicamente, degredo por 5 anos para as galés, penitências espirituais, pagamento de 
custas.43 
Muitos para não sofrerem essas penalidades, esmeravam nas justificativas. No 
caso do Ceará muitas dessas estavam associadas “a fraqueza da carne” ou a 
fragilidade humana, elementos esses apropriados pelos autores dos sermões e dos 
objetivos das confissões, como forma de omitir os seus atos. Desse modo, José Luis 
Pestana na década der 1780 justificava ao Santo Ofício que tem para confessar, 
“equecometeo pelasua mizeria, efragilidade, enaõ por sentir mal dos Sacramentos”,44 
ou seja mostrava que não tinha a intenção de ir de encontro ao sacramento da Igreja. 
Outras justificativas também nos levam a pensar como os réus usavam de estratégias 
para não serem punidos, essas são mencionadas por Isabel Braga:45 a rusticidade e 
falta de instrução na doutrina e mistérios da fé católica, a insatisfação com o 
casamento, a idade com que casaram são algumas destacadas pela autora. 
Em suma, percebemos até aqui alguns aspectos importantes para o estudo do 
casamento do Brasil Colonial e da atuação da inquisição em defesa desse, e por não 
dizer também do Ceará Grande. A bigamia, afinal, refletia certa ambiguidade em 
torno do termo do matrimônio. Conforme tratado por Donald Ramos (2001), esse 
delito “contra a fé” não deixava de ser uma afirmação do ideal da família oficial – a 
família estruturada em redor do sacramento do matrimônio estabelecido nas 
conformidades ou na tentativa da mesma de reafirmar as normas estabelecidas no 
concilio de Trento, que combatia os casamentos clandestinos e as mancebias. Ao 
mesmo tempo, era uma forma ilegal de estabelecer relações, já que a 
 
41 Era comum a comutação de pena por motivos de doença e outros, depois de cumprida 
metade da punição. 
42 HIGGS, David. Bigamia. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Dicionário da 
história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 107. 
43 RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil Colonial: o caso de Manuel 
Lourenço Flores e o seu contexto histórico. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). 
Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil…, p. 123. 
44 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. nº 1480, fl.44r. 
45 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna… 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
15 
indissolubilidade e o caráter monogâmico do casamento estariam em jogo.46 Como 
lidar com isso? 
Por fim, deixo ainda algumas questões: Todos os casos eram resolvidos no 
Tribunal do Santo Ofício em Lisboa, onde geralmente os acusados de bigamia eram 
julgados? O que aconteceria se a Inquisição descobrisse um falso testemunho 
(perjúrio) em um desses casos? 
As mulheres que tinham seu marido preso pelo tribunal ficavam desassistidas, já 
que os provedores do lar haviam sido aprisionados? Que outras justificativas ou 
formas de fugir das punições os bígamos usavam como instrumento de escape? 
Ainda são muitas as questões abertas, mas que nos ajudam a ter uma ideia adequada: 
que um objeto de estudo nunca está acabado, mas sim em constante transformação. 
 
 
46 Ibidem. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
16 
As mulheres do Livro. Criptojudaísmo, metamorfoses da fé e Inquisição na 
Modernidade iberoamericana 
 
Angelo Adriano Faria de Assis1 
 
O trabalho que aqui se apresenta é parte integrante de uma pesquisa em 
desenvolvimento financiada pelo Edital Universal (período 2012-2014) da 
FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, 
intitulada “As Metamorfoses da Fé: Mulheres e Criptojudaísmo no Mundo 
Português durante a Modernidade” que, por sua vez, é desdobramento de meu 
estágio de pós-doutoramento, realizado na Universidade de Lisboa, junto à Cátedra 
de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste”, entre 2010 e 2011. Agradeço à 
FAPEMIG o financiamento da pesquisa e o auxílio para a divulgação dos seus 
resultados no evento. 
A pesquisa tem como encaminhamento central realizar uma exploração do 
processo de resistência e sobrevivência judaica nos variados espaços do luso mundo 
durante o período em que se mantiveram o monopólio católico e o funcionamento 
do Santo Ofício em Portugal, que se inicia no biênio 1496-97 (édito de expulsão dos 
judeus e transformação posterior desta em decreto de conversão forçada), passando 
pela implementação do Tribunal do Santo Ofício em 1536 e se estende até 1821 
(data que marca o fim da Inquisição portuguesa, como um dos desdobramentos da 
revolução liberal iniciada um ano antes), utilizando como principal fonte de pesquisa 
os documentos produzidos pelo Tribunal da Inquisição, tais como denúncias, 
confissões e processos daí decorrentes contra indivíduos acusados de judaizar, 
mormente casos envolvendo figuras femininas, das grandes responsáveis pela 
sobrevivência da antiga fé, bem como mapear as perseguições movidas contra os 
cristãos-novos – judeus convertidos à força ao catolicismo e seus descendentes -, 
alvos preferenciais do Santo Ofício português durante os seus quase trezentos anos 
de funcionamento. 
Não é de hoje, é bom frisar, que o tema da intolerância religiosa no Mundo 
Moderno, em especial, através dos estudos sobre Inquisição e seus personagens, suas 
formas de ação, representantes, imaginário, consequências e desdobramentos 
frequenta as pesquisas produzidas pela Academia, tanto em Portugalquanto no 
Brasil. Nas últimas décadas, intensificaram-se os estudos que abordam, sobre 
diferentes aspectos e recortes temático-temporais, a instauração, estrutura, 
funcionamento, trajetórias e ocaso do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição nos 
reinos ibéricos e seus domínios, bem como de suas vítimas. O incentivo a estas 
pesquisas deu-se, inclusive, através de medidas muito bem-vindas, por sinal, de 
divulgação da documentação produzida pelo ou sobre a Inquisição e seus 
 
1 Universidade Federal de Viçosa. 
Inquisição no mundo ibero-americano 
ISBN 978-85-61586-63-8 
17 
personagens, como a recente disponibilização na rede mundial de computadores de 
uma parcela das fontes do Tribunal do Santo Ofício português que fazem parte do 
acervo documental do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, ou de 
conjuntos documentais presentes em bibliotecas e arquivos de diversos países. O 
acesso a esta documentação, antes limitado aos pesquisadores que frequentavam os 
arquivos e bibliotecas, tem permitido a facilitação da consulta às fontes, incentivando 
novos trabalhos e interpretações, com o cruzamento de informações, construção de 
redes documentais de dados e análise de bibliografia cada vez mais identificada com 
o tema, a desvendar facetas até então inexploradas ou desconhecidas da Inquisição e 
seu entorno. 
O interesse sobre a Inquisição e suas vítimas também ganhou destaque em vasta 
recorrência ao tema na literatura. Autores de Portugal, do Brasil e também de outros 
países debruçaram-se sobre personagens – sejam reais ou fictícios – que enfrentaram 
a intolerância religiosa levada a cabo pela Casa Negra do Rossio e seus 
representantes. Alguns personagens brasileiros, de fasto perseguidos e processados 
pelo Santo Ofício, ganharam novo fôlego através dos romances históricos, a 
recriarem o ambiente de suspeita e vigilância que eram incentivados pela chegada dos 
representantes da Misericórdia e Justiça.2 
Apesar dos avanços, o certo é que ainda há muito a ser desvelado e analisado 
acerca da temática inquisitorial e de tudo que a envolve: estudos de caso, denúncias, 
confissões e processos contra suas vítimas, funcionamento e lógica de atualização do 
Tribunal, cotidiano dos cárceres, estratégias de interrogatório, estrutura 
administrativa, visitações e representantes do Santo Ofício espalhados pelos espaços 
do mundo ibérico e colonial, discursos e ações de aliados e críticos da Inquisição, 
monitórios, correspondência interna, regimentos e documentação administrativa em 
geral, formação e trajetórias seus representantes, listas de autos de fé, lógica de 
penalização dos réus, causas para o surgimento e impactos da presença e atuação do 
Santo Ofício nos diversos espaços de atuação, representações iconográficas do 
Tribunal e de seus réus, influência, imaginário, didática e arquitetura inquisitoriais, 
consequências e desdobramentos num mundo pós-Inquisição, reflexos do Tribunal 
nos dias de hoje, novas leituras e revisões de questões sobre temas e casos já 
analisados pela historiografia. Enfim, uma infinidade de possibilidades de estudos 
sobre uma instituição muito esmiuçada mas ainda bastante desconhecida, tanto nos 
 
2 É o caso, entre tantos outros, dos romances de FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios 
Turvos. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; VILAR, Gilberto. O Primeiro Brasileiro. São Paulo: 
Marco Zero, 1995; CLÁUDIO, Mário. Orion. Lisboa: Dom Quixote, 2003; REAL, Miguel. 
Memórias de Branca Dias. Lisboa: Quidnovi, 2003; BIRNBAUM, Marianna. A longa 
viagem de Gracia Mendes. Lisboa: Edições 70, 2005; AGUINIS, Marcos. A Saga do 
Marrano. São Paulo: Palíndrome, 2005; NISKIER, Arnaldo. Branca Dias, o martírio. Rio 
de Janeiro: Edições Consultor, 2006. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-63-8 
18 
espaços metropolitanos quanto em suas possessões ultramarinas. E o que dizer, 
tanto dos que ficaram em Portugal acuados pela perseguição social e religiosa quanto 
dos que deixaram o reino em busca de espaços onde estivessem (ou, pelo menos, se 
julgassem) livres do Santo Ofício, e ainda, dos que foram alcançados no além-mar e 
enviados para serem processados em Lisboa? O fato é que a Inquisição – ou, ao 
menos, o temor à sua lógica de atuação – tornou-se onipresente, traçando novas 
relações sociais e de conflito entre os grupos de cristãos considerados puros e os 
neoconversos, enxergados, de forma generalizada, como suspeitos em potencial das 
mais variadas heresias. 
Em Portugal, o ambiente para a perseguição aos cristãos-novos inicia-se com as 
medidas tomadas por D. Manuel em 1496. Incentivado por contratos nupciais 
firmados com a Espanha, o monarca ordenaria a expulsão dos judeus e mouros 
forros do reino, aos moldes do que havia ocorrido no lado hispânico da fronteira 
ibérica, em 1492. Implementa-se, desta forma, o monopólio religioso católico, 
impedindo a prática de qualquer outra fé que não o cristianismo. No édito de 
expulsão, o monarca assim justificava seus atos: 
 
Sendo-nos muito certo que os judeus e mouros obstinados no 
ódio da nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor que 
por sua morte nos remiu, têm cometido e continuamente contra 
ele cometem grandes males e blasfêmias em estes nossos reinos, 
as quais não tão somente a eles, que são filhos de maldição, 
enquanto na dureza de seus corações estiverem, são causa de 
mais condenação, mais ainda a muitos cristãos fazem apartar da 
verdadeira carreira, que é a Santa Fé Católica.3 
 
Embora os mouros também tenham sido vitimados pelo processo de 
expulsão/conversão forçada – processo este que, diga-se de passagem, precisa ser 
mais visitado pelas pesquisas históricas -, no espaço deste artigo interessa-nos 
analisar unicamente o drama hebraico. Os judeus portugueses, que naquela virada de 
século – com o reforço dos judeus que vivenciaram a diáspora hispânica e 
escolheram Portugal como refúgio – respondiam por cerca de dez a quinze por cento 
da população lusa, então estimada em um milhão de almas, perfazendo um número 
aproximado de cem a cento e cinquenta mil judeus, números que, embora não 
possam ser definidos com exatidão, mostram o vigor desta comunidade e sua 
importância para os interesses expansionistas do reino. Transformados em cristãos-
novos, batizados em pé e à força ao rebanho cristão, proibidos de manter fidelidade 
à fé em que nasceram e foram educados, obrigados a criar os filhos de acordo com 
 
3 Édito de Expulsão dos Judeus de Portugal, em 5/12/1496. Apud CANELO, David. Os 
últimos criptojudeus em Portugal. Belmonte: Câmara Municipal de Belmonte/Marques & 
Pereira Lda, 2001, p. 206-207. 
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os preceitos do catolicismo, adorando a Cristo e não à lei de Moisés, o fato é que as 
leis de Dom Manuel que impuseram o fim do longo e livre convívio entre judeus e 
cristãos no reino, acabou por gerar resistência numa considerável parcela dentre os 
agora denominados cristãos-novos, que se fez sentir fortemente, situação esta que 
seria intensificada em grande escala após a instauração da versão portuguesa do 
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, no ano de 1536. 
Assim, proibidos de permanecer judeus e obrigados a abraçar o catolicismo para 
serem aceitos na sociedade que renegava suas tradições, uma parcela dos antigos 
judeus buscariam formas de burlar a lei e continuar ocultamente a comungar a fé dos 
antepassados, sendo, por isto, denominados criptojudeus - fato que não passaria 
despercebido aos atentos e desconfiados olhares da Igreja. 
Obviamente, a manutenção do judaísmo – para além de ser uma experiência 
particular e vivenciada, em cada caso, com especificidades próprias, dependentesde 
fatores endógenos e exógenos –, deu-se de forma mais intensa dentre as primeiras 
gerações de neoconversos, ganhando, com o passar do tempo e afastamento do 
período de judaísmo livre, novos sentidos, contornos e intensidades. Mas o fato é 
que, nas primeiras décadas pós-conversão forçada, quando vários dos antigos judeus 
agora cristãos permaneciam vivos e mantinham a memória dos tempos de fé 
permitida, o judaísmo manteve-se intenso, guardando várias de suas características 
originais, com realização de reuniões, leitura de textos, antigos rabinos a dar 
conselhos. Exemplo disso são os discursos sobre a vinda próxima da salvação, 
incentivados por um judaísmo messiânico bastante recorrente nas primeiras décadas 
do Quinhentos lusitano.4 Conforme afastamo-nos no tempo, porém, esta lembrança 
torna-se mais fluida, e o criptojudaísmo ganha formas e modelos bastante distintos 
do judaísmo tradicional. Todavia, cumpre seu papel, realizando o “judaísmo 
possível” que, embora não pudesse seguir à risca os preceitos tradicionais, na melhor 
lógica do melhor pouco do que nada, permitiu sua sobrevivência em período de exceção e 
exclusão. 
A busca incessante e desmedida pela pureza e retidão católicas causaria a 
necessidade de controle sobre as ameaças à religião dominante, identificando nos 
cristãos-novos os herdeiros diretos dos preconceitos anteriormente destinados aos 
judeus e o criptojudaísmo como principal impedimento à homogeneidade cristã. 
Criava-se, assim, o palco para a instauração do Tribunal do Santo Ofício da 
Inquisição em território luso, a enxergar nos cristãos-novos suspeitos de manter o 
judaísmo a grande ameaça ao catolicismo. O clima de permanente vigilância 
inquisitorial acabaria por gerar transformações profundas nas relações sociais, 
intensificando as hostilidades entre os grupos dos cristãos velhos e dos batizados em 
pé. Marca da Inquisição ibérica, a perseguição aos antigos judeus ganhava tintas, 
 
4 Cf. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: A construção do sebastianismo em 
Portugal - Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 
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conforme aponta Ronaldo Vainfas, de “obsessão anti-semita”.5 Malgrado as 
perseguições, exageros e generalizações, muitos dos antigos adeptos da religião de 
Israel convertidos à força ao catolicismo realmente continuariam a comungar o 
judaísmo, permitindo sua sobrevivência e transmissão às novas gerações. 
Apesar de inicialmente terem sido criados vários tribunais, de vida efémera, a 
Inquisição estruturou-se com a existência de três sedes no reino - Coimbra, Évora e 
Lisboa - e uma quarta em Goa, a única localizada no ultramar, nos domínios 
portugueses das Índias, instaurada em 1543 e oficializada em 1560, responsável pela 
região do Oriente e pela costa africana até o Cabo da Boa Esperança. O Atlântico 
português, Brasil incluso, ficava sob a gestão da sede lisboeta. Datam de 1540, as 
primeiras fogueiras que queimariam hereges no auto-de-fé em Lisboa, didaticamente 
indicando ao público que assistia, muitas vezes, embevecido, o destino reservado aos 
que ousavam ir contra as leis da Igreja. 
A proibição do judaísmo no mundo português reservaria um novo quadro para a 
sobrevivência judaica. As perseguições tato legais quanto da população aos suspeitos 
de descumprir a conversão e continuar a manter fidelidade ao judaísmo agora 
proibido, acabou por levar à adoção de uma série de comportamentos pelo 
neoconversos que insistiam em celebrar a Torá ao invés do Novo Testamento. 
Assim, este judaísmo de resistência foi tornando-se, em relação direta com o 
aumento dos riscos aos que o seguiam, cada vez mais discreto, oculto, secreto, 
diminuto, adaptado, disfarçado, dissimulado… Impedidas as reuniões públicas, a 
celebração das festas, o vestuário e uso de símbolos, a língua dos antepassados para a 
oração, o acesso a textos sagrados, a existência de sinagogas e de rabinos instituídos, 
a guarda dos sábados e as interdições alimentares, o uso de nomes hebraicos – tudo, 
enfim, que de algum modo pudesse significar a continuidade na crença agora 
proibida –, sobrava, aos que desejavam reacender o contato com o povo de Abrahão 
apenas a interiorização do sentimento, a crença interna, celebrada no lar, protegido 
pela (quase sempre pouco confiável) privacidade das residências e pelos laços 
familiares, oculta do mundo cristão que os perseguia. Como não poderia deixar de 
ser, a necessidade do segredo elevou os lares coloniais a locais fundamentais para 
esta resistência: as residências se transformaram em espaços privilegiados de 
manutenção do judaísmo proibido, adaptado à nova realidade, onde se ensinava às 
novas gerações a história do povo judeu e suas crenças, espaço de reunião onde 
podiam ser judeus, enquanto fora das paredes do lar, precisavam se vestir novamente 
a carapuça, e comportarem-se como cristãos. 
Os lares, tato em Portugal quanto nos domínios de além-mar, transformaram-se 
em células de resistência criptojudaica para a propagação do judaísmo vivo. A 
ausência constante do cabeça da família, seja para tratar dos negócios, seja por conta 
 
5 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio 
de Janeiro: Nova Fronteira, 2ª ed., 1997. 
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das longas distâncias, que deixavam às mulheres o trato do cotidiano das residências, 
acabou por catapultar a figura feminina – principalmente as mães – ao papel de 
grandes divulgadoras do judaísmo às novas gerações, repassado entre as lições das 
primeiras letras, os ensinamentos de moral, o preparar das refeições, o arrumar da 
casa… 
Lina Gorenstein ensina que, com a proibição do judaísmo, “a cultura doméstica 
continuou, em parte, com aquelas práticas e celebrações de ‘portas a dentro’”,6 
embora essas sofressem certo esvaziamento e modificações conforme a necessidade 
e o afastamento do período de judaísmo permitido. A própria teologia judaica, cada 
vez era menos profundamente conhecida pelas novas gerações de judaizantes que, 
por sua vez, acabava por enfrentar as consequências destas limitações, agravadas pela 
inexistência de rabinos para orientar o caminho a seguir, como deveria ocorrer numa 
situação de normalidade religiosa. Impedidos de manifestar suas preferências 
doutrinárias, intimidados pela pressão inquisitorial e procurando driblar as 
desconfianças da sociedade, viam-se obrigados a abandonar certas cerimônias 
marcantes da sua profissão de fé em favor de práticas menos conhecidas ou delatoras 
de sua real entrega religiosa, disfarçando e silenciando o judaísmo à sua vivência 
interior: substituíam-se, assim, as circuncisões pelas orações e vigílias domiciliares; a 
guarda pública de certas datas e festas, como o Ano Novo, o Pentecostes ou a Festa 
das Cabanas, pelos jejuns, determinados costumes alimentares por outros menos 
delatores… Com o mesmo intuito, celebrações que no judaísmo tradicional 
ocupavam posição de menor destaque passavam, por serem menos acusadoras, a 
tema central da resistência marrana, como foi o caso do Jejum da Rainha Ester – a 
repetir a história da rainha judia que escondeu sua origem ao marido, vivendo, à 
exemplo dos criptojudeus, num mundo de dissimulação -, tornando-se a Oração de 
Ester a “prece marrana por excelência”.7 Como não poderia ser diferente, torna-se 
bastante significativo o fato de uma mulher – a “Santa Ester” -, a heroína dos 
cristãos-novos, e seu exemplo ser repetido constantemente devido às necessidades 
impostas aos criptojudeus, a ponto de muitos louvarem a rainha judia no panteão 
dos santos cristãos, embora, obviamente, santa, ela nunca tenha sido – muito longe 
disso! - para a Igreja…Este judaísmo mostrar-se-ia, nos mais ínfimos detalhes, 
influenciado pela figura da mulher. Anita Novinsky acrescenta: catapultadas à 
posição de principais responsáveis pela sobrevivência da fé judaica, as “mulheres 
cristãs-novas apresentaram no Brasil uma resistência passiva e deliberada ao 
 
6 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e Impuros: a Inquisição e os cristãos-
novos no Rio de Janeiro - século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura - 
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1995, p. 121. 
7 POLIAKOV, Léon. De Maomé aos Marranos. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1996, p. 
198-199. 
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catolicismo. Foram prosélitas, recebiam e transmitiam as mensagens orais e 
influenciavam as gerações mais novas”.8 
Apesar de nem sempre oferecer privacidade e discrição em medida suficiente para 
que seus moradores pudessem esconder o que se passava em seu interior, o lar 
firmar-se-ia como ambiente propício para a continuidade judaica, mulheres à frente 
da tarefa. E as longas distâncias vencidas com dificuldade e vagar, acabaram por 
redimensionar ainda mais o papel feminino, conferindo-lhe maior destaque na 
organização do ambiente familiar, responsável pelo bom funcionamento da casa, 
atuando na criação e educação dos descendentes, vivenciando tradições impossíveis 
de serem realizadas em outro espaço, moldando a orientação religiosa dos filhos, 
servindo de liame entre os componentes do clã. Lar-escola-sinagoga: um espaço 
único e multifuncional, onde a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de 
provedora, mãe, protetora, educadora, catequista e rabi. Transmitindo os ritos 
religiosos ao praticá-los nas residências, realizavam o rabinato possível, diminuto, 
feminino e oral, baseado mais na memória do que nos textos agora proibidos e que, 
embora em muitos sentidos contrariasse o códice mosaico, garantiu-lhe a 
sobrevivência, como a flor que brota no lodo. 
Elias Lipiner nos informa que se dizia destes mulheres neoconversas que, 
“devotas e rezadeiras, iam nos domingos e dias santos ouvir missa”, no intuito de 
evitar, perante a sociedade, quaisquer desconfianças sobre a real entrega ao 
catolicismo, “mas nos sábados vestiam seus melhores vestidos”,9 preparando-se para 
o sagrado dia de descanso dos judeus, reunindo a família para celebrar os costumes 
de seus antepassados. Enfim, agiam de acordo com o momento e as possibilidades, 
ao cristãos ora judias. Quadro que, contudo, não se limita à América portuguesa: em 
outros espaços da presença lusa – embora com especificidades próprias – é possível 
perceber o destaque das mulheres na divulgação judaica, assim como os estratagemas 
utilizados para tentar ocultar ou ao menos disfarçar o envolvimento com o judaísmo 
por parte destas mulheres. 
O Santo Ofício da Inquisição estava atento a estas mulheres. É o que se pode 
concluir pelo grande número de acusações, confissões, processos e sentenças 
inquisitoriais que elencam mulheres de idades, origens e posições sociais variadas que 
acabaram alcançadas pelo braço inquisitorial. Não são poucos os documentos que 
retratam a dubiedade vivida pelas mulheres cristãs-novas, não só externamente - a 
suportarem o peso das fronteiras sociais -, mas também em seu interior, a 
confundirem muitas vezes a tradição cristã com os ensinamentos judaicos, divididas 
 
8 NOVINSKY, Anita W. O papel da mulher no cripto-judaísmo português. In: Comissão 
para a igualdade e para os direitos das mulheres. O rosto feminino da expansão 
portuguesa. Congresso Internacional - Lisboa - 1994. Lisboa, 1995, p. 549-555. 
9 LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-
novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, 1969. 
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entre a fé imposta e a crença dos antepassados, não raro desconhecendo ambas em 
detalhes, orando e jejuano nas duas fés, temendo a Jesus e a Yavé. 
Encontramos, em linhas gerais, indícios de um comportamento judaico 
mormente ligado a ritos, prática da “esnoga”, guarda do sábado, cultos funerários, 
interdições alimentares, formas de benzer heterodoxas, negações à religião 
dominante em seus símbolos e dogmas, onde, indiscutivelmente, o papel das 
mulheres ganha destaque. No limite, podemos inclusive relacionar alguns aspectos 
específicos destas novas funções destinadas à mulher na resistência criptojudaica ao 
judaísmo tradicional, visto que este se caracteriza por ser uma religião de cariz 
matrilinear, posto que a pertinência e a crença judaica são repassadas aos filhos pela 
figura materna – ou seja, só pode ser considerado plenamente judeu de nascimento 
aquele que é vem do útero de mãe judia, e não quem é nascido apenas de pai judeu -, 
responsável pelos primeiros contatos com a fé, atuando na iniciação dos rituais, 
orações, festas ou jejuns preparados no aconchego do lar, e auxiliando na educação e 
iniciação religiosa dos filhos. Ou, como se dizia à época, a religião em que mamei. 
Como vimos, a importância feminina na propagação criptojudaica não passou 
desapercebida pela Inquisição, consciente do papel primordial que desempenhavam 
na reprodução da fé proibida. Assim, descobrir a fonte de disseminação do judaísmo 
e reprimir exemplarmente os seus responsáveis fazia-se imprescindível. Fruto deste 
ímpeto são as denúncias e processos contras mulheres dos mais diversos espaços da 
presença lusa acusadas de judaizar em segredo existentes na documentação da 
Inquisição portuguesa. 
O grande e variado número de denúncias e processos envolvendo mulheres 
acusadas de judaizar em segredo nos mais diversos espaços de dominação portuguesa 
durante a Modernidade torna o estudo sobre as criptojudaizantes importante para a 
compreensão não só das especificidades da resistência judaica durante o período em 
que durou o monopólio cristão, mas também das vivências e práticas religiosas 
nestes espaços, assim como da formação de redes sociais de auxílio e proteção dos 
neoconversos. Nos espaços onde não havia um tribunal inquisitorial estabelecido, a 
prática da antiga lei tornou-se consideravelmente menos ameaçadora do que se fazia 
no reino. Erguendo sinagogas clandestinamente e mantendo os costumes hebraicos 
dentro das residências, as famílias criptojudaicas conseguiram manter viva a chama 
do judaísmo – aquele que se tornara possível - em sua memória. À frente deste 
processo de transmissão da antiga fé, a figura feminina destaca-se como principal 
responsável pela sobrevivência da crença proibida. Compreender a importância 
destas mulheres para o judaísmo no mundo luso faz-se indispensável para o 
entendimento da prática judaica com um todo e da religiosidade vivenciada nestes 
variados espaços. 
Vejamos alguns exemplos deste criptojudaísmo praticado e incentivado pelas 
mulheres a partir de denúncias e confissões ocorridas durante a primeira visitação do 
Santo Ofício às partes do Brasil, entre 1591 e 1591, quando a Inquisição enviou o 
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visitador Heitor Furtado de Mendonça para percorrer as capitanias da Bahia, 
Itamaracá, Pernambuco e Paraíba. 
Vários denunciantes compareceriam à mesa do Santo Ofício para delatar o 
comportamento de mulheres que insistiam na manutenção de práticas referentes à 
religião proibida. Não raro, as denúncias envolviam as murmurações das ruas, 
boatos, fatos sem comprovação, futricas e informações desencontradas de todo o 
tipo, notícias de “ouvi dizer” e “pública fama”, acusações contra personagens 
indevidamente identificados, relatos que, em geral, demonstravam desconhecimento 
do que era o judaísmo tanto porparte dos denunciantes quanto dos denunciados. 
Por vezes, as acusações identificavam qualquer atitude considerada equivocada ou 
não condizente com os costumes cristãos como sinal indiscutível de prática judaica, 
embora comportamentos desviantes da norma católica, claro, não se limitassem aos 
cristãos-novos, principais acusados de criptojudaísmo. Desta forma, uma 
denunciante informaria ter ouvido sobre Ana Franca, “mulher do mundo”, que esta 
“era uma cadela judia, que cuspira em um crucifixo dentro no mosteiro das 
convertidas de Lisboa, onde elas ambas tinham estado”, e que “quando o fizera, 
estava a dita Ana Franca doida, mas que, ao fim, era judia”.10 
Em outros momentos, a documentação revela famílias inteiras acusadas perante a 
Inquisição. Dentre os grupos familiares mais denunciados de prática judaizante 
durante a primeira visitação, encontramos a família de Garcia d’Ávila e Mécia Roiz 
(ou Rodrigues), que teria suas práticas suspeitas seguidamente desveladas ao 
licenciado do Santo Ofício. As denúncias forneceriam em detalhes o cotidiano dos 
Roiz d’Ávila, apontando fortes e variados indícios da manutenção criptojudaica 
naquele seio familiar. Uma das acusações mais repetidas contra a família dizia 
respeito à obediência de costumes e interdições alimentares ao modo dos judeus, 
mantida, segundo os denunciantes, por longo período de tempo: 
 
ouviu dizer, não lhe lembra a quem, haverá vinte anos nesta 
cidade, que a mulher de Garcia d’Ávila, Mécia Roiz, cristã-nova, 
comia galinha e carnes em dias de peixe, e que a mãe da dita 
Mécia Roiz, já defunta, fazia coisas de judia, e [a] ela 
denunciante lhe pareceram sempre mal os modos dela, que 
eram ajudengados.11 
 
As acusações contra a matriarca dos Roiz d’Ávila seriam repetidas por uma 
testemunha direta dos acontecimentos e conhecedora da rotina da família: uma filha 
 
10 “[Maria da Motta, que não sabia assinar] Contra Anna Franca”, em 19/08/1591. Ibidem, p. 
367-369. 
11 “[Margarida Pacheca, mulher de Antonio da Fonseca] Contra Anna Roiz, Violante 
Antunes, Caterina Mendes, Maria Lopes, Mecia Rodrigues, Fernão Cabral”, em 21/08/1591. 
Ibidem, p. 392-394. 
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do primeiro casamento de Garcia d’Ávila, com quem “a dita Mécia Roiz tivera já 
algumas diferenças como de enteada para madrasta, porém que era e são amigas”. 
Segundo a enteada, presenciara “a dita Mécia Roiz, três ou quatro vezes, em dias 
diferentes, mandar lançar azeite nas panelas de vaca e galinha, dizendo que, porque 
eram magras, o fazia”. 
Outro hábito suspeito repetido com grande constância pela matriarca e que 
acabaria por gerar desconfiança com relação ao seu real significado, era o modo 
como Mécia Roiz costumava agir ao tomar conhecimento de situações que 
envolviam partos complicados: 
 
tem por costume, quando ouve dizer a alguma pessoa que outra 
alguma mulher teve ruim parto, lamber com a boca as unhas 
dos dedos de entre ambas as mãos, e isto lhe viu fazer por 
muitas vezes, e perguntando-lhe a razão por que o fazia, não 
respondeu nada. 
 
Durante os períodos de luto, as mulheres da família também mantinham 
costumes hebraicos, como vazar a água dos potes existentes na residência. A enteada 
informava em seu depoimento ter observado “a dita Mécia Roiz, morrendo-lhe em 
casa um escravo, mandar lançar fora toda água de casa, e ela viu lançar a dita água 
fora e, depois, foram buscar nova água à fonte”. 
As práticas judaizantes de Mécia teriam sido ensinadas pela própria mãe, 
igualmente denunciada pelos mesmos costumes ao Santo Ofício, num sinal da 
transmissão de mãe para filha dos hábitos de família: “viu também na dita casa 
Branca Lopes, cristã-nova, defunta, mãe da dita Mécia Roiz, mulher do dito seu pai, e 
lhe viu dizer também, quando morreu o dito escravo, que lançassem a dita água 
fora”. 
Em outra ocasião, durante uma enfermidade da filha Mécia, Branca Lopes teria se 
comportado de forma não menos estranha, utilizando formas de benzer nada usuais 
dentre os cristãos: 
 
estando a dita Mécia Roiz doente, dormindo, vir a dita sua mãe 
Branca Lopes e tomar um testo de barro com uma pequena de 
água dentro, e uma coroa de estopa em cima do testo, que lhe 
não chegava a água que estava no meio do testo, e com sua mão 
tinha no ar sobre a dita doente dormindo, e com o dedo da 
outra mão, molhava em uma tigela d’azeite e lançava as gotinhas 
do dito azeite dentro na água do dito testo que lhe caíam do 
dedo, enquanto o fogo ardia na dita coroa de estopas, as quais 
ela acendera primeiro com a candeia. E isto fez a dita Branca 
Lopes, fechando as portas das câmaras, só, sem ter outrem 
consigo. 
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O comportamento seria repetido em outros momentos de enfermidade ocorridos 
na família, pois, de acordo com a testemunha, 
 
viu também a dita Branca fazer esta mesma cerimônia da dita 
maneira a um seu neto, estando dormindo, o qual é morto. E 
viu que quando a dita Branca Lopes fazia estas coisas, estava 
dizendo manso certas palavras, as quais ela denunciante não 
entendia, e somente lhe ouviu e lhe entendeu uma das ditas 
vezes esta palavra, dente de cão.12 
 
Algumas destas práticas, antes de encontrar explicação completa ou aproximada 
dentro da tradição judaica, parecem ser resultado do crescente processo de 
circularidade dos antigos rituais e tradições hebraicos dos antepassados com as 
práticas do catolicismo dominante que envolviam os cristãos-novos, fossem ou não 
adeptos do criptojudaísmo. O ato de lamber os dedos das mãos ao saber de um 
parto difícil parece estar ligado à retirada do ayim hará, o “olho mau”, conforme 
citado anteriormente. Já o uso das gotinhas de azeite na bênção dada por Branca 
Lopes à filha doente presume um misto de superstição com o ato de ungir um filho. 
O próprio catolicismo, é bom lembrar, apropriou-se do azeite como elemento para o 
batismo, para a crisma e para as unções de ordenação sacerdotal e dos enfermos. 
Assim, não se pode descartar a hipótese - lembremos ser esta uma época de medos e 
superstições – de que possa ter ocorrido a intercorrência de uma superstição adotada 
pela matriarca e que acabaria miscigenada aos costumes judaizantes da família. 
O hábito de usar azeite para a preparação dos alimentos registrado entre os 
Rodrigues d’Ávila apareceria seguidamente como costume característico dos 
judaizantes na etapa baiana da visitação. Costume este originário de além-mar, 
praticado antes pelos judaizantes de Portugal, que herdaram a prática de outrora, 
quando os judeu viviam em liberdade em Portugal: 
 
haverá trinta anos, na cidade de Lisboa, sendo ela denunciante 
discípula de lavrar de Joana Fernandes, alfaiata da Infante, 
cristã-nova, mulher velha, viúva, moradora sobre os Cortidores 
nas Barandas, em Alfama, na banda do mar, ela denunciante viu, 
por muitas vezes, a uma sobrinha da dita Joana Fernandes que 
tinha em casa, fregir cebola com azeite e botá-la na panela da 
carne para comerem todas, e que, algumas vezes, sendo 
 
12 “[Isabel Davilla] Contra Mecia Roiz, Branca Lopes, Antonio Serrão”, em 04/11/1591. 
Ibidem, p. 552-554. 
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domingo ou dia santo, a viu estar lavrando a dita sobrinha em 
uma câmara fechada que a tia fechava por fora.13 
 
Elementos característicos da manutenção da guarda dos sábados também seriam 
denunciados com certa frequência ao visitador Heitor Furtado de Mendonça. A 
neoconversa Maria da Costa estaria entre as acusadas. Segundo contava uma 
denunciante, 
 
estando em casa dela, denunciante, Caterina Fernandes, também 
sua vizinha, mulher casada, que mora

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