Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Ficha Catalográfica Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. Inquisição no mundo ibero-americano / Rafael Chambouleyron & Karl-Heinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, volume 13, 2014. 217 p. ISBN 978-85-61586-63-8 1. História – Inquisição. 2. Reinos Ibéricos – Espaços coloniais - História. 3. Religiosidades – Inquisição – Intolerância religiosa. 4. História. CDD. 23. Ed. 338.9973 Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de Setembro de 2012. O evento contou com a participação de aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos, ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas inscritas para apresentação de trabalho em alguma das modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26 instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3 da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer. Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos textos apresentados nas Mesas Redondas. Boa leitura. A Comissão Organizadora Este volume contém os textos apresentados em dois Simpósios Temáticos: 1) Inquisição no mundo ibero-americano: funcionamento, estrutura, relações, personagens 2) Inquisição e sociedade no mundo ibérico e ultramarino: os agentes do Santo Ofício Sumário “Casar segunda vez no sertão”: a bigamia na capitania do Ceará Grande (1752-1813) Adson Rodrigo Silva Pinheiro...................................................................................................1 As mulheres do Livro. Criptojudaísmo, metamorfoses da fé e Inquisição na Modernidade iberoamericana Angelo Adriano Faria de Assis..............................................................................................16 Vecinos e testigos: a população de Cartagena de Índias diante do conflito entre a Inquisição e o governador Murga (1629-1636) Carlos Guilherme Rocha.........................................................................................................29 O sába do sertão: feiticeiras, demônios e jesuítas em Congresso Noturno no Piauí Colonial (1750-1758) Carolina Rocha Silva..............................................................................................................44 Inquisidores, jesuítas e os gentilismos Célia Cristina da Silva Tavares..............................................................................................56 A inquisição herege: os crimes contra o Santo Ofício no mundo Luso-brasileiro, séculos XVII e XVIII Daniela Buono Calainho ........................................................................................................70 Feitiçaria nos seiscentos: novas perspectivas Dayane Augusta Santos da Silva ...........................................................................................78 Os portugueses e a Inquisição Novo-hispânica no Archivo General de la Nación (AGN) do México. 1600-1630 Elisabete da Silva Vasconcellos ..............................................................................................89 Cristãos novos em Minas Gerais setecentista Franciany Cordeiro Gomes .....................................................................................................98 Na mira das delações: a presença do clero baiano nos cadernos do promotor (séculos XVII e XVIII) Grayce Mayre Bonfim Souza ................................................................................................109 Tribunal de medo: Inquisição e Cristãos-novos nos espaços coloniais – capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraiba (1593-1595) Halyson Rodrygo Silva de Oliveira........................................................................................121 Os Mágicos Coloniais Helen Ulhôa Pimentel ..........................................................................................................133 A França Antártica, Anchieta e João de Bolês: Protestantismo e Inquisição nos Trópicos, Século XVI Ivo Pereira da Silva ..............................................................................................................147 As redes de sociabilidade de uma família a serviço da Inquisição em Colônia de Sacramento: os Almeida Cardoso Lucas Maximiliano Monteiro...............................................................................................159 Circularidades e Apropriações entre “cultura erudita” e “cultura popular”: os processos inquisitoriais de Maria Gonçalves, Violante Carneira e Felícia Tourinho (1591-1595) Marcus Vinicius Reis ...........................................................................................................172 O falso comissário do Santo Ofício: padre José Aires nos Sertões do Piauí colonial Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz ...................................................................................184 Brites Fernandes: Uma apropriação da “mentecapta” judaizante do Pernambuco colonial Suzana do Nascimento Veiga...............................................................................................196 Da Crítica ao Pecado: a transformação jurídica do ato de criticar o reto ministério do Santo Ofício Yllan de Mattos....................................................................................................................209 Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 1 “Casar segunda vez no sertão”: a bigamia na capitania do Ceará Grande (1752-1813) Adson Rodrigo Silva Pinheiro1 Transplantada para a América portuguesa no século XVI, inspirada e submissa aos preceitos ditados no Concílio Trento2 que vigoraram em Portugal a partir do alvará de 12 de setembro de 1564,3 a Igreja católica ultrapassou o mar e marcou de forma substancial o dia a dia dos colonos que ocupavam as novas terras, em um empreendimento que constituía não só em organizar famílias em novos espaços, mas também em se legitimar por meio de práticas como o batismo dos filhos, a celebração dos esponsais e dos matrimônios, e os rituais funerários.4 Nesse sentido, homens e mulheres, sob pena de excomunhão, tinham suas vidas esquadrinhadas por sacramentos que inspiravam a conduta do “bom cristão” e em atividades que despontassem sua fé, dentre elas as principais tenham sido os cortejos religiosos e o pedido de perdão nas confissões que marcavam o “consciente” moral da população. Os visitadores em peregrinação pelas dioceses, nas quais as 1 Mestrando em História Social – UFC. 2 O fim das heresias, e dos erros cometidos contra a fé estavam entre os objetivos do Concílio, como pode ser analisado em REYCEND, João Baptista. O Sacrosanto, e Ecumênico Concilio de Trento, Em Latim e Portuguez: dedica, e consagra aos Excell., e Rev. Senhores arcebispos, e bispos da Igreja Luterana. Lisboa: Officina Patriarc. de Francisco Luiz Ameno, Tomo I, 1781, p. 171-173. Ainda: DELUMEAU, Jean. El catolicismo de Lutero a Voltaire. Barcelona: Labor, 1973, e também MULLET, Michel. A Contra- Reforma. Lisboa: Gradiva, 1984. KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: Representação Religiosa no Brasil e no México do século XVI. São Paulo: ed. Hucitec, 1998, p. 56; DICKENS,A. G. A Contra-Reforma. Lisboa: editorial Verbo, 1972. JEDIN, Hubert. História del Concilio de Trento. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1972. Tradução castelhana do original alemão Geschichte des Konzils von Trient, de 1957, e o artigo Catholic Reformation or Counter-Reformation? In: LUEBKE, David M. (org.). The Counter-Reformation. Malden/Oxford: Blackwell Publishing, 1999. TREVOR ROPER, Hugh. Religião, reforma e transformação social. In: Religião, Reforma e Transformação Social. Lisboa: Presença, 1972, p. 13-42. CANTIMORI, Delio. Humanismo y Reforma. In: Humanismo y Religiones en El Renacimiento. Barcelona: Península, 1984, p. 151-165. DELUMEAU, Jean. Un Chemin d’Histoire Chrétienté et Christianisation. Paris: Fayard, 1981. 3 Esse Alvará obrigava a todos os súditos reais “fieis” Católicos a seguirem obrigatoriamente todos os princípios ditados em Trento. O Alvará está disponível em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=85&id_obra=65&pagina=146. Acesso em 3 abr.2012. 4 SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 9. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 2 populações deveriam estar mobilizadas pelo espírito católico proposto, ajudavam na missão de incentivar os membros das comunidades a denunciarem práticas heterodoxas de blasfemos, concubinados, sodomitas, curandeiros e feiticeiros.5 Por seu lado a Inquisição, também entendida como um desses mecanismos que reforçam os ideais tridentinos tricotou uma verdadeira rede de controle “graças aos familiares e aos comissários do Santo Ofício espalhados pelo território brasileiro. Ocasionalmente havia uma visita especial de um visitador inquisitorial enviado do Reino”.6 Dentro desse cenário, ao lado da transgressão e de vidas familiares em desenvolvimento no processo de concessão de sesmarias, paulatinamente nos séculos XVII e XVIII se consolidaria o povoamento do território do Ceará, depós de se haver desvanecido pela economia a impressão de aridez e inospitalidade da região. Assim, impulsionados pelo estímulo dado pela indústria pastoril, cujas ricas pastagens sertanejas prometiam vasto futuro, o gado regente da ocupação cumpria sua missão de dar sentido aos espaços ermos do sertão, porém sozinha essa atividade não seria capaz de definir àqueles lugares. A presença da Igreja, aliada pelo padroado7 com o Estado Português, com suas ermidas, suas capelas e suas paróquias e seus missionários e visitadores, levantando preocupações com a moral daquela gente, principalmente com os “vadios”, garantissem uma maior atenção ao projeto português daquela região. O Padre Domingos Ferreira Chaves, clérigo do habito de São Pedro, missionário geral das missões do Sertão da parte do norte no Ceará, e o padre António de Sousa 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 “Regime cuja origem remonta à Idade Média, pelo qual a igreja instituía um indivíduo ou instituição como padroeiro de certo território, a fim de que ali fosse promovida a manutenção e propagação da fé cristã. Em troca, o padroeiro recebia privilégios, como coleta dos dízimos e a prerrogativa de indicar religiosos para o exercício das funções eclesiásticas. Em Portugal, em decorrência da luta contra os mouros, o rei adquiriu não só o padroado sobre diversos locais restritos como também um padroado propriamente régio, que o habilitava a propor a criação de novas dioceses, escolher os bispos e apresentá-los ao papa para confirmação. A ele estava associado o chamado beneplácito, isto é, a exigência de que o monarca aprovasse previamente as normas e determinações da Santa Sé que se destinasse o reino”. NEVES, Guilherme Pereira. Padroado. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p. 466. Assim sendo, o Padroado régio garantia aos monarcas portugueses o simultâneo exercício tanto do governo secular como do religioso, com o direito de cobrança e administração dos dízimos eclesiásticos, a expansão da fé cristã, a construção e manutenção de igrejas e o sustento do clero. Nas Ordenações Filipinas reafirmando o poder real ao adotar o Direito romano, confirmando a predominância do poder civil sobre o eclesiástico, que era baseado no Direito canônico. PIRES, Maria do Carmo. Juízes e infratores. São Paulo: Annablume, 2008, p. 33. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 3 Leal, missionário e clérigo do mesmo hábito, em 1720 escrevem sobre as aventuranças, as violências e as injustas guerras com que eram perseguidos e tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande passaram no processo de ocupação, não deixando de narrar também em suas cartas a Vossa Majestade sobre o perfil desses desordeiros e sobre as desordens e vícios em que a capitania se encontrava: Portugueses, mulatos e mamelucos que andam “vagabundos” sem ocupação nem domicilio vivendo e prejuízo não só aos Indios, mas ainda aos mesmos brancos, por que vivem e se sustentao a custa alheya, com embuste, violências e roubos, sera preciso que se se ordene ao Ouvidor que por editais, aos governadores por bandos notifiquem para que todos dentro de três meses tomem ocupação e domicilio certo e que não o fazendo sejão presos e mandados para Pernambuco para dali serem remetidos da cadeya para Angola para reencher o batalhão de guarnição daquele reino. […E porque he constante que havendo ali muitos homens portugueses não há molheres brancas com quem casem, e daqui nascem grandes desordens e offenças de Deos, como são os concubinatos, com as Índias, de cuja prole como infecta mal criada, e pior disciplinada senão pode esperar ação boa, nem para o serviço de deos, nem para o do príncipe e da republica como mostra a experiência em toda a parte, e principalmente naqueles pais, parece que seria conveniente e acertado que Vossa Magestade mandasse fundar ali huá colônia ordenando que focem das Ilhas cem cazaes, e procurando-se que estes fossem os que tivessem filhos para poderem aquelles habitadores do Ceará ter molheres, Portuguezas com quem cazar, sendo certo que as republicas só se estabelecem e se reduzem aregularidade civil e política por meio de cazamentos.8 Dentre essas apreensões, percebemos que talvez a maior fosse a que está em torno do casamento, principalmente as com mulheres brancas. A ausência dessas parece trazer um incômodo grande aos religiosos locais, que se deparava com problemas circunscritos ao concubinato com as índias, e com a falta de “gente de qualidade” para o bem da república. 8 CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre a carta do padre Domingos Ferreira Chaves, missionário-geral e visitador-geral das missões do sertão da parte do norte no Ceará, e exposição do padre António de Sousa Leal, missionário e clérigo do hábito de São Pedro, sobre as violências e injustas guerras com que são perseguidos e tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande. AHU_CU_006, Cx. 1, D. 67. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 4 Mediante a essas considerações, em meio à construção da sociedade colonial em que se buscava evitar contrassensos na formação das famílias por meio do matrimônio, principalmente com casamentos mistos, o “jogo de interesses dentro do corpo social para formar famílias e laços de solidariedade era uma maneira encontrada por muitos para garantir o seu espaço e dos seus”,9 o uso do sacramento matrimonial se revelava como responsável pelas regularidades civis e políticas, e pela criação de um ar de respeitabilidade, de segurança e de ascensão social a todos que o atingisse,10 o que devia ser regimentadocom segurança tanto do Estado como a própria Igreja. Para assegurar tais princípios, o matrimônio se comportaria como um regulador social em que o seu sentido devia ser dado, segundo as Constituições, para três fins, que refletiam a segurança do patrimônio e a submissão aos desejos da Igreja e consequentemente do Estado:11 O primeiro é a propagação humana, ordenada para o culto, e honra de Deos. O segundo é a fé e lealdade, que os casados devem guardar mutuamente. O terceiro é o da inseparabilidade dos mesmos casados, significativa da união de Christo Senhor nosso com a Igreja Católica. E é Com Trento, concílio tão mencionado nos textos dos livros de casamento, e mais tarde com as Constituições do Arcebispado da Bahia,12 que o contrato de união com o Senhor e com a Igreja pelo sentido de eficácia do estado da graça13 se consolida, onde o artifício em torno do sacramento que corresponde as decisões conciliares resultante de um dúbio comprometimento da Igreja em dar respostas às principais oposições dos protestantes e, por outro, regulamentar e esclarecer algumas questões das irregularidades diversas, nomeadamente as que davam origem aos denominados como “casamentos clandestinos”, considerados nulos nesse momento.14 Afinal, para casar deviam ser seguidos muitos procedimentos. 9 SILVA, Gian Carlo de Melo. Inquisição e Igreja Católica no Pernambuco Colonial: Os desvios morais contra o Sagrado Matrimônio. Disponível em: < http://www.ufrb.edu.br/simposioinquisicao/wp-content/uploads/2012/01/Gian-Carlo.pdf> Acesso em 03 abril de 2012. 10 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 11 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010. 12 Promulgadas em 1707, pela Igreja Católica, esta obra traduzia, de forma fiel, as tendências teológicas daquele momento específico, normatizando a prática religiosa da sociedade colonial do século XVIII. 13 Interpretar com estado com os princípios cristãos, estar com Deus. 14 BRAGA, Isabel Drumond. A Bigamia em Portugal na Época Moderna. Lisboa: Hugin, 2003, p. 23-24. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 5 O sacramento do Matrimônio era, como podemos perceber, algo sagrado, que merecia ser preservado para a ordem de uma importante instituição da sociedade, que é a família.15 Indissolúvel é a palavra que talvez traga os problemas que esse vai ter com delitos que vão se seguir. Não era tolerado nada que viesse de encontro a este sacramento. Porém, como em todo “sistema de poder”, havia aqueles que buscavam forjar essas normas. Os problemas com o concubinato, adultério e bigamia foram grandes para a manutenção da ordem. De todos os dolos em torno do casamento, percebemos que a bigamia, vai ser o único a ganhar a atenção da alçada da Inquisição.16 Para Michelle Trugilho, essa atenção dada pelo Santo ofício aos bígamos e não a fornicários, adúlteros e concubinários se deve que esses “transgrediam os mandamentos divinos e até eram passíveis de punição pela Justiça Civil e pela Eclesiástica, mas tais indivíduos não envolviam e enganavam os ministros da Igreja, bem como toda a comunidade”.17 Contrariamente, os bígamos, além de embaçar as determinações régias e canônicas, “ludibriavam padres, vizinhos e, muitas vezes, os cônjuges e seus familiares, fraudando o próprio sacramento do matrimônio”.18 Se, a despeito de todas as atenções do clero, a transgressão de bigamia fosse cometida, a punição no século XVI competia ainda às justiças civis, a bigamia ainda não constava entre os crimes mixti fori, ou seja, aqueles que podiam ser investigados ao mesmo tempo tanto pelas justiças civis quanto eclesiásticas,19 embora o monitório do inquisidor geral D. Frei Diogo da Silva de 1536 pedisse à todos que “ sabeis, vistes ou ouvistes que algumas pessoas se casassem duas vezes, sendo o primeiro marido ou a primeira mulher vivos, sentindo mal do sacramento do matrimônio”.20 Em Portugal, a bigamia parece ter sido punida pelas ordenações desde o século XV com as ordenações Afonsinas (Liv. V, tít.XIV), que instituía pena de morte para os 15 Aqui percebemos, pela bigamia, a ausência do marido em muitos desses lares, o que nos leva a concluir que não vai configurar bem uma família patriarcal como tenta uniformizar determinados autores sobre as capitanias no Brasil Colonial. Pela mobilidade masculina, podemos pensar que outras formas de núcleos familiares podem ter sido formadas. 16 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna…, p. 302. 17 ASSUMPÇÃO, Michelle Trugilho. Transgressores do Matrimônio: Bigamia e Inquisição no Brasil Colonial. São Gonçalo: Dissertação de Mestrado em História Social – UERJ, 2010, p. 51-52. 18 Ibidem. 19 SILVA, Maria Beatriz Nizza. Bahia, a corte da América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010, p. 30. 20 Collectorio de Diversas Letras Apostolicas, Provisões Reaes e outros Papeis, em que se contém a Instituyção, & Primeiro Progresso do Santo Ofício em Portugal, & Varios Privilegios que os Summos Pontífices, & Reys destes Reynos lhe concederão. Lisboa: Casas da Santa Inquisição, 1596, p. 6. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 6 bígamos, fosse homem ou mulher, de qualquer condição social. Já nas Manuelinas (1521 – Liv. Tit.XIX), tinha-se punições de morte, porém, havia algumas exceções. Isso se seguiu também nas Filipinas. Segundo elas, se o bígamo: Condenado à morte pelo dito malefício for menor de vinte e cinco anos ou for fidalgo, e a segunda mulher for de baixa condição ou for fidalgo, e a segunda mulher, com que casou, for de baixa condição, ou se o condenado, sendo-lhe fugida a primeira mulher, casou com a segunda, sem saber certo, que era a primeira morta, ou em outros casos semelhantes, não se fará execução sem primeiro no-lo fazer saber.21 Depois de o alvará de 12 de setembro de 1564 ter recomendado a observância das determinações do Concílio Tridentino, quando a provisão de 2 de março de 1564 ter recomendado a observância das determinações do concílio de Trento, quando a provisão de 2 de março de 1568, só em 23 de agosto de 1612, a Inquisição portuguesa teve a licença efetiva para julgar o delito de bigamia.22 Essa medida teve implicação direta no regimento de 1613, onde : os inquisidores conhecerão do crime dos que se casam segunda vez sendo viva a primeira mulher, ou marido, pela suspeita que contra eles resulta de sentirem mal do sacramento do matrimônio: sem embargo de os ordinários se quererem intrometer no conhecimento dele: por quanto sua Santidade tem determinado, que o caso pertence aos Inquisidores privativamente e assim o mandou por Carta da Congregação da Inquisição, em que ele assistiu.23 Como se percebe, os casos de bigamia eram tanto de jurisdição inquisitorial quanto civil, mas na prática, tanto no Brasil colonial, quanto na capitania do Ceará Grande, por exemplo, não parece ter havido esse tipo de casos julgados pela justiça régia, pelo menos é o que percebemos ao fazer a leitura dos autos de querela24 e do 21 LARA, Silvia Hunold. (org) Ordenações Filipinas. São Paulo: Companhia das Letras, Livro V, 1999. 22 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna… 23 Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (1613). Tít. V, cap. XXXII. In: ASSUNÇÃO, Paulo de; FRANCO, José Eduardo. Metamorfoses de um polvo. Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI – XIX). Lisboa: Prefácio, 2004, p. 184. 24 Libelo, apresentação criminal apresentada em juízo, passada com o prazo máximo de um ano após o crime. Deveria ser assinadapela parte e pelo julgador, que não poderia aceitá-la Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 7 rol de culpados da capitania presentes no Arquivo Público do Estado do Ceará, cujas páginas estão cheias de delitos que compõem o ramo da sexualidade, tais como o estupro, o defloramento, o concubinato e o adultério, as transgressões dos bígamos eram encaminhados ao Santo Ofício, modelo esse que se contradiz ao espanhol.25 Era, portanto as autoridades inquisitoriais as responsáveis por averiguar (muitas vezes em conjunto com os bispos) e punir casos dessa natureza. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia reafirmam esse poder dado para o tribunal do Santo Ofício em julgar os bígamos, deixando assim claro que: Qualquer religioso ou religiosa, ou clérigo de ordens sacras, que se casar, além da pena de excomunhão maior em que incorre, ficam suspeitos na fé, portanto, serão remetidos ao Tribunal do Santo Ofício, a quem pertence o conhecimento de semelhantes culpas. E os que casarem segunda vez durante o primeiro matrimonio, porque também ficam suspeitos na fé, serão da mesma maneira remetidos ao Tribunal do Santo Ofício, onde por breve particular, que para isso há, pertence o conhecimento deste caso.26 (grifo nosso) Nessa discussão, compete então perguntar: Seria tão fácil casar no século XVIII no Brasil colonial e aqui no Ceará Grande, por exemplo, recorte regional dessa pesquisa? Ou ainda: Era fácil ser um bígamo? Como é que Igreja e Estado poderiam chegar a esses casos? Iniciaremos partindo do estado do casamento. Para casar, as Constituições do Arcebispado da Bahia recomendavam que o nubente masculino tivesse catorze anos completos e a “fêmea”, doze anos.27 Ademais, era necessária a reunião de uma determinada documentação para os autos do casamento, dentre elas tinha-se o batismo, o “primeiro de todos os sacramentos”, pois ele é a porta de onde se entra na Igreja Católica, e sem ele os outros não teriam efeito.28 Para que se licitamente se administrasse o sacramento do batismo, devia ser perante o próprio pároco ou missionário que levasse a licença dele. Após receber os santos óleos, o padre deveria sem conhecer o “quereloso” e as testemunhas. Para saber: PIRES, Maria do Carmo. Juízes e infratores…, p. 131. 25 FEITLER, Bruno. Poder Episcopal e Inquisição no Brasil: o Juízo eclesiástico da Bahia nos tempos de D. Sebastião Monteiro da Vide. In: FEITLER, Bruno & SALES, Evergton. A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. 26 VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Edusp, 2010. 27 Ibidem. Liv. I, tít. LXIV. 28 Ibidem. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 8 assentar o nome da “criança” no livro de batizados.29 Os atestados de batismo por escrito poderiam ser dispensados, caso o vigário-geral comunicasse e autorizasse a escusa, mas era necessária a declaração do clérigo. Outra obrigação estava em apresentar a certidão atestando ter recebido os sacramentos de penitência e da eucaristia por ocasião da festa da Páscoa. Era necessário comprovar a presença no “rol dos confessados”, uma relação de todos os cristãos capazes de cumprir com esse comprometimento, elaborada pelo pároco, a qual era entregue a posterior para a autoridade episcopal. Porém, para o sistema de casamento se realizar dentro de uma realidade em que as comunicações com outras capitanias e até freguesias eram difíceis, muitos documentos eram dispensados, devido às distâncias entre os arcebispados e freguesias entre si e com o Reino, de onde por ventura moravam anteriormente os nubentes. Segundo o Regimento do Auditório: E quando as tais pessoas não ajuntarem a tal certidão em forma, ao tempo em que pedirem licença para casarem, e ao juiz dos Casamentos parecer que o casamento não admite demoras e se seguirá algum dano grave aos contraentes ou a alguns deles, atendendo às longas distancias dos mais bispados a este e às dificultosas viagens do Reino, lhes poderá dar licença para serem recebidos feitas as diligências acima ditas e corridos os banhos no lugar e lugares onde residir e tiver residido neste arcebispado por tempo de três anos, e dando primeira fiança pignoratícia ou fidejussória, da quantia que ao Juiz de Casamentos parecer, para em certo termo que lhe arbitrar respective à distancia, apresentar a certidão de banhos em certo termo do seu natural e lugares onde tiver residido, dentro e fora deste arcebispado (grifo nosso).30 Muitos casamentos também poderiam depender apenas, como salienta Donald Ramos, da palavra dos participantes, tanto o casal como os seus familiares e as testemunhas. Na realidade quotidiana, “os sistemas da justiça eclesiástica e civil dependiam das testemunhas verdadeiras”.31 Porém, muitas dessas poderiam não corresponder, sendo possível fraudarem ou mentirem diante os interrogatórios feitos 29 Perceberemos ao longo dessa pesquisa, que esses livros serão constantemente recorridos pela Inquisição em casos de bigamia, o que mais tarde nesse artigo entenderemos o motivo, e que cobrava das Igrejas locais certa organização, o que muitas vezes não acontecia. 30 Regimento Auditório Eclesiástico Tít. 5. In: VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia… 31 RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil Colonial: o caso de Manuel Lourenço Flores e o seu contexto histórico. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil… Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 9 pelos Juízes ou escrivães, possibilidade essa marcada nos regimentos e punidas com o castigo adequado, assim: Achando o dito Juiz que alguma pessoa abriu os sumários das diligências que lhe eram remetidos e que testemunhou falso em seu juízo, ou sendo parte negou a verdade ou disse falsidade nas perguntas que se lhe fizeram sobre os casamentos ou esposórios, fará disso auto com fé do escrivão, e, havendo testemunhas presentes, as perguntará, citada a tal pessoa, e sendo logo presa, a remeta e enviará tudo ao vigário-geral para que diante dele se livre e haja o castigo que merecer.32 Assim percebemos que apesar das recomendações feitas pelo Concilio de Trento com os que andam vagando e não tem residência fixa, e como são de más intenções, desamparando a primeira mulher, se casam em diversos lugares com outra, e muitas vezes com várias, estando a primeira viva. Desejando o Santo Concílio pôr um remédio nesta desordem, alerta paternalmente às pessoas a quem toca, que não admitam facilmente ao Matrimônio esta espécie de homens volúveis, e exorta aos magistrados seculares que os sujeitem com severidade, ordenando também aos párocos que não realizem o casamento se antes não fizerem averiguações minuciosas, e dando conta ao Ordinário obtenham sua licença para fazê-lo.33 (grifo nosso) O casamento com pessoas de outros bispados poderia ser justificado e agilizado por conta da justificativa da distância, tendo os forasteiros a chance de justificar seu estado de solteirice com possíveis testemunhas falsas conseguidas por meio de mandonismos, talvez seja por isso que em meio dos “sertões”, como o Ceará Grande, esse crime fosse mais frequente. Mas qual seria o perfil dos bígamos aqui encontrados, processados ou não (em negrito) pelo Tribunal, e que estratégias se utilizavam para não serem descobertos? Observe o quadro que segue.32 Regimento Auditório Eclesiástico Tít. 5. In: VIDE, Dom Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia… 33 O Sacrossanto e Ecumênico Concílio de Trento, Sessão XXIV. Decreto de reforma do matrimônio. Cap. VII. Disponível em: < http://agnusdei.50webs.com/trento29.htm>. Acesso em 3 de abr de 2012. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 10 N° NOME IDADE NATURAL OCUPAÇÃO ANO CRIME LOCAL N° DO PROCESSO 1 Antônio Correa de Araújo Portugal 52 anos Freguesia de São Miguel de Sande (Arcebispado de Braga) Entalhador 1761 Bigamia Icó 6269 2 Antônio Mendes da Cunha 40 anos Linhares (Braga) Pedreiro 1761 Bigamia Quixeram obim 6274 3 José Luis Pestana (Polinardo Caetano C.de Ataíde) 40 anos Funchal, ilha da madeira Juiz Ordinário /Juiz dos Órgãos) 1779 Bigamia Sobral 1480 4 Manuel Fragoso de Albuquerque 40 anos Icó CE Trabalhador 1752 Bigamia Cariri Novo (Hoje Crato) 0514 6 Manuel Ferreira de Morais 60 anos Goiana Grande, Brasil Vaqueiro 1769 Bigamia Sertão do Jaguaribe 4397 7 Miguel Alves de Faria Pita 46 anos Santo Antonio de Tracunhões - PE Comerciante 1783 (condena do) Perjúrio Sertão do Jaguaribe 2776 8 José Cardoso de Melo 66 anos Santo Antonio, BA Curtidor de Couro e criador de gados 1783 (condena do) Perjúrio (cumplicid ade de bigamia) Sertão do Jaguaribe 2778 9 Antônio Tavares de Sousa 38 anos São Miguel, Angra Trabalhador 1770 Bigamia Sertão do Jaguaribe 0720 Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 11 10 Francisco José e Sousa Coutinho (Francisco Morais e Araújo) 40 anos Bahia Comerciante 1768 Bigamia Icó 9803 11 Francisco Barbosa (Paschoal Martins) 60 anos Ilha de São Miguel,Açoure s Pastor 1765 Poligamia Sertão de Acaracu /Freguesia de Caiçara (Hoje Acaraú /Sobral) 7157 12 Antonio Abreu (Antonio Illario) 27 anos freguesia de Santa Luzia (PE) não consta 1783 bigamia Nossa Senhora do Rozario das Russas 6696 13 Francisco Ludovico Pereira (Francisco Ludovico Leitam) 50 anos São Luís do Maranhão, Brasil soldado 1777 bigamia Viçosa Real 5674 14 Joana Leitão (Ana Luzia) ausente freguesia de São Gonçalo dos Cocos escrava - parda 1788 bigamia freguesia de São Gonçalo dos Cocos 6692 15 Manoel Sadinha Jardim 40 anos Ilha da Madeira, freguesia de N. Senhora das Graças tropeiro 1752 bigamia Cariris Novos (Hoje Missão Velha) Caderno do Promotor IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 12 O primeiro ponto a ser analisado são os nomes dos acusados. Muitos dos réus, talvez conhecendo o delito, usavam a troca de nomes para despistar a atenção da justiça eclesiástica, que por meio de visitas pastorais, recolhiam as alcunhas dos “suspeitos da fé” e encaminhavam para o Tribunal do Santo Ofício e não serem reconhecidos pelos “andantes do sertão” que sempre traziam notícias de outras regiões. Um desses casos era o Ouvidor de Sobral Polinardo de Ataíde, nome falso de José Luis Pestana.34 Outra questão se dar em torno da idade dos bígamos. Em sua maioria percebemos que estavam com a idade média de 40 a 50 anos, embora encontrássemos um indivíduo com 27 anos, que apenas recebeu um sumário e não foi processado. Quiçá, a idade fosse também uma forma de livrar das suspeitas, o que fazia com que o homem se sentisse mais a vontade em cometer o delito. Um terceiro elemento que percebemos no gráfico são os dados que constam a origem dos acusados, de onde vieram, e nos faz pensar o que levaram eles a seguirem para a região do sertão da Capitania do Ceará. Esses dados nos ajudam a pensar, a partir das regiões que vieram os sujeitos, os possíveis motivos para a sua migração até as localidades que passaram a residir. Talvez a atração provocada pelo desenvolvimento econômico das áreas escolhidas, regiões das charqueadas e oportunidades de ocupação e enriquecimento. Em 1752, também nos Cariris Novos se davam a notícia de existência de Minas de Ouro na região. O fator econômico assim pode dizer, também poderia fazer regiões ganharem a atenção eclesiástica. Pelo menos, a figura de Manoel Sardinha e de Manuel Fragoso de Albuquerque recebeu também esse zelo. O ano do início do processo é outro componente que merece nossa atenção. Apoiado na cronologia feita pelo Barão de Studart,35 percebemos que alguns dos bígamos tenham sido denunciados nas visitas pastorais que aconteciam no sertão a mando do bispado de Pernambuco, o qual a Capitania do Ceará. Em 20 de setembro de 1761, o Dr. Veríssimo Rodrigues Rangel, vigário colado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição da villa das Alagoas e visitador geral da Capitania do Ceará, assenta e concorda com os moradores de Russas representados pelo Capitão Antônio Alvares Maciel e Francisco Alvares Maia a respeito dos usos e costumes e direitos paroquiais a adotar nessa freguesia. Provavelmente, o padre também tenha visitado outras regiões, como a de Quixeramobim e de Icó dos casos mostrados na tabela acima. Valem ressaltar que os bígamos notórios eram também denunciados por fieis, esses motivados pelo sacramento da Confissão revelavam aos padres os delitos de outrem; quer as delatas também partissem pelas visitas pastorais, quer à Inquisição 34 O número do Processo segue na tabela e se encontra no Arquivo da Torre do Tombo. 35 STUDART, Guilherme (barão de.). Datas e fatos para a história do Ceará. Ed. Fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1 t., 2001. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 13 por meio dos familiares36 ou dos comissários; eles próprios também poderiam se apresentar ao Santo Ofício.37 Por fim, têm-se as profissões que nos levantam inúmeras problemáticas. A primeira como já comentamos é a mobilidade que muitas delas proporcionavam aos homens. Segundo dados de Isabel Braga (2003), de 97 dos bígamos identificados na América Portuguesa, apenas 12 eram mulheres e 89 homens, resultado deve-se, assim podemos instigar, à transitoriedade que muitas dessas profissões davam e também ao caráter de honra38 que circunscrevia o feminino. Segundo, nos faz refletir sobre o caráter punitivo do Tribunal Inquisitorial. Apesar de terem cometido o mesmo desvio, a bigamia, eram punidos igualmente? Percebemos tanto pela leitura da documentação, quanto do texto de David Higgs que a diferenciação era clara. Qualquer pessoa considerada culpada pelos inquisidores devia abjurar39 o seu desacerto e, caso fosse plebeia, era açoitada pelas ruas Lisboetas, e depois enviada para as galés40 durante certo número de anos.41 As 36 Os familiares eram agentes da Inquisição no Brasil, em geral um leigo que, sem abdicar de suas atividades profissionais, ajudava a Inquisição nas suas investigações, prisões e outras ações pedidas nas instruções dos comissários ou diretamente de Lisboa. Para saber mais: CALAINHO, Daniela. Agentes de fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2006; RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os Familiares do Santo Ofício (1711-1808). São Paulo: Dissertação de Mestrado em História – USP, 2007; FIGUEIRÔA-RÊGO, João de. A honra alheia por um fio. Os estatutos de limpeza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2011. Sobre os familiaresno Ceará: VIEIRA JR, Antônio O. A Inquisição e o Sertão. Fortaleza: Fund. D. Rocha, 2008. 37 Os comissários eram eclesiásticos residentes no Brasil e deviam encarregar-se pessoalmente de todas as diligências e de modo algum podia delegar a sua autoridade em outra pessoa sem a aprovação de Lisboa. Para Saber mais: SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédios das almas: Comissários, qualificadores e notários da Inquisição Portuguesa na Bahia (1692- 1804). Salvador: Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. 38 A honra é um guia de consciência, uma regra de conduta ou medida de status social. Historicamente marcada, a honra é gestada sob as ações individuais e as aprovações sociais. Cf. PITT-RIVERS, Julian. A doença da honra. In: A Honra. Porto Alegre: L&PM, 1992, p. 17-32. 39 Retratar-se, renunciar solenemente às crenças e erros contra a fé. A abjuração era adotada geralmente para as hipóteses de suspeita de heresia, e aplicada aos que delinquiam pela primeira vez. Para o assunto sugere-se a leitura: LIPINER, Elias. Santa Inquisição: Terror e Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. 40 Uma das penas a que eram condenados os réus da Inquisição, e que serviu como fonte econômica de trabalho, poupando ao Estado a necessidade de contratar remadores para as suas embarcações. LIPINER. Santa Inquisição…, p. 75. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 14 mulheres recebiam o mesmo castigo de açoite e podiam sofrer o degredo para Angola. Tanto os homens como as mulheres tinham quer cumprir a penitencias. Os nobres eram poupados do açoite, mas podiam ser degredados por alguns anos. Punições também poderiam receber quem acobertasse bígamos. Uma pessoa solteira tendo com conhecimento jurava que o primeiro marido ou mulher tinha morrido a fim de permitir o casamento do bígamo pela segunda vez, tinha que abjurar e podia sofrer com o chicote e o degredo.42 Sendo assim, a exemplo, José Luís Pestana teve abjuração de leve, degredo para Angola, por seis anos, penitências espirituais, pagamento de custas. Já pela condição social diferenciada de ferreiro, Manoel Fragozo de Albuquerque foi penitenciado por abjuração de leve, açoitado publicamente, degredo por 5 anos para as galés, penitências espirituais, pagamento de custas.43 Muitos para não sofrerem essas penalidades, esmeravam nas justificativas. No caso do Ceará muitas dessas estavam associadas “a fraqueza da carne” ou a fragilidade humana, elementos esses apropriados pelos autores dos sermões e dos objetivos das confissões, como forma de omitir os seus atos. Desse modo, José Luis Pestana na década der 1780 justificava ao Santo Ofício que tem para confessar, “equecometeo pelasua mizeria, efragilidade, enaõ por sentir mal dos Sacramentos”,44 ou seja mostrava que não tinha a intenção de ir de encontro ao sacramento da Igreja. Outras justificativas também nos levam a pensar como os réus usavam de estratégias para não serem punidos, essas são mencionadas por Isabel Braga:45 a rusticidade e falta de instrução na doutrina e mistérios da fé católica, a insatisfação com o casamento, a idade com que casaram são algumas destacadas pela autora. Em suma, percebemos até aqui alguns aspectos importantes para o estudo do casamento do Brasil Colonial e da atuação da inquisição em defesa desse, e por não dizer também do Ceará Grande. A bigamia, afinal, refletia certa ambiguidade em torno do termo do matrimônio. Conforme tratado por Donald Ramos (2001), esse delito “contra a fé” não deixava de ser uma afirmação do ideal da família oficial – a família estruturada em redor do sacramento do matrimônio estabelecido nas conformidades ou na tentativa da mesma de reafirmar as normas estabelecidas no concilio de Trento, que combatia os casamentos clandestinos e as mancebias. Ao mesmo tempo, era uma forma ilegal de estabelecer relações, já que a 41 Era comum a comutação de pena por motivos de doença e outros, depois de cumprida metade da punição. 42 HIGGS, David. Bigamia. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 107. 43 RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil Colonial: o caso de Manuel Lourenço Flores e o seu contexto histórico. In SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Sexualidade, família e religião na colonização do Brasil…, p. 123. 44 ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. nº 1480, fl.44r. 45 BRAGA. A Bigamia em Portugal na Época Moderna… Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 15 indissolubilidade e o caráter monogâmico do casamento estariam em jogo.46 Como lidar com isso? Por fim, deixo ainda algumas questões: Todos os casos eram resolvidos no Tribunal do Santo Ofício em Lisboa, onde geralmente os acusados de bigamia eram julgados? O que aconteceria se a Inquisição descobrisse um falso testemunho (perjúrio) em um desses casos? As mulheres que tinham seu marido preso pelo tribunal ficavam desassistidas, já que os provedores do lar haviam sido aprisionados? Que outras justificativas ou formas de fugir das punições os bígamos usavam como instrumento de escape? Ainda são muitas as questões abertas, mas que nos ajudam a ter uma ideia adequada: que um objeto de estudo nunca está acabado, mas sim em constante transformação. 46 Ibidem. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 16 As mulheres do Livro. Criptojudaísmo, metamorfoses da fé e Inquisição na Modernidade iberoamericana Angelo Adriano Faria de Assis1 O trabalho que aqui se apresenta é parte integrante de uma pesquisa em desenvolvimento financiada pelo Edital Universal (período 2012-2014) da FAPEMIG - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, intitulada “As Metamorfoses da Fé: Mulheres e Criptojudaísmo no Mundo Português durante a Modernidade” que, por sua vez, é desdobramento de meu estágio de pós-doutoramento, realizado na Universidade de Lisboa, junto à Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste”, entre 2010 e 2011. Agradeço à FAPEMIG o financiamento da pesquisa e o auxílio para a divulgação dos seus resultados no evento. A pesquisa tem como encaminhamento central realizar uma exploração do processo de resistência e sobrevivência judaica nos variados espaços do luso mundo durante o período em que se mantiveram o monopólio católico e o funcionamento do Santo Ofício em Portugal, que se inicia no biênio 1496-97 (édito de expulsão dos judeus e transformação posterior desta em decreto de conversão forçada), passando pela implementação do Tribunal do Santo Ofício em 1536 e se estende até 1821 (data que marca o fim da Inquisição portuguesa, como um dos desdobramentos da revolução liberal iniciada um ano antes), utilizando como principal fonte de pesquisa os documentos produzidos pelo Tribunal da Inquisição, tais como denúncias, confissões e processos daí decorrentes contra indivíduos acusados de judaizar, mormente casos envolvendo figuras femininas, das grandes responsáveis pela sobrevivência da antiga fé, bem como mapear as perseguições movidas contra os cristãos-novos – judeus convertidos à força ao catolicismo e seus descendentes -, alvos preferenciais do Santo Ofício português durante os seus quase trezentos anos de funcionamento. Não é de hoje, é bom frisar, que o tema da intolerância religiosa no Mundo Moderno, em especial, através dos estudos sobre Inquisição e seus personagens, suas formas de ação, representantes, imaginário, consequências e desdobramentos frequenta as pesquisas produzidas pela Academia, tanto em Portugalquanto no Brasil. Nas últimas décadas, intensificaram-se os estudos que abordam, sobre diferentes aspectos e recortes temático-temporais, a instauração, estrutura, funcionamento, trajetórias e ocaso do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição nos reinos ibéricos e seus domínios, bem como de suas vítimas. O incentivo a estas pesquisas deu-se, inclusive, através de medidas muito bem-vindas, por sinal, de divulgação da documentação produzida pelo ou sobre a Inquisição e seus 1 Universidade Federal de Viçosa. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 17 personagens, como a recente disponibilização na rede mundial de computadores de uma parcela das fontes do Tribunal do Santo Ofício português que fazem parte do acervo documental do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, ou de conjuntos documentais presentes em bibliotecas e arquivos de diversos países. O acesso a esta documentação, antes limitado aos pesquisadores que frequentavam os arquivos e bibliotecas, tem permitido a facilitação da consulta às fontes, incentivando novos trabalhos e interpretações, com o cruzamento de informações, construção de redes documentais de dados e análise de bibliografia cada vez mais identificada com o tema, a desvendar facetas até então inexploradas ou desconhecidas da Inquisição e seu entorno. O interesse sobre a Inquisição e suas vítimas também ganhou destaque em vasta recorrência ao tema na literatura. Autores de Portugal, do Brasil e também de outros países debruçaram-se sobre personagens – sejam reais ou fictícios – que enfrentaram a intolerância religiosa levada a cabo pela Casa Negra do Rossio e seus representantes. Alguns personagens brasileiros, de fasto perseguidos e processados pelo Santo Ofício, ganharam novo fôlego através dos romances históricos, a recriarem o ambiente de suspeita e vigilância que eram incentivados pela chegada dos representantes da Misericórdia e Justiça.2 Apesar dos avanços, o certo é que ainda há muito a ser desvelado e analisado acerca da temática inquisitorial e de tudo que a envolve: estudos de caso, denúncias, confissões e processos contra suas vítimas, funcionamento e lógica de atualização do Tribunal, cotidiano dos cárceres, estratégias de interrogatório, estrutura administrativa, visitações e representantes do Santo Ofício espalhados pelos espaços do mundo ibérico e colonial, discursos e ações de aliados e críticos da Inquisição, monitórios, correspondência interna, regimentos e documentação administrativa em geral, formação e trajetórias seus representantes, listas de autos de fé, lógica de penalização dos réus, causas para o surgimento e impactos da presença e atuação do Santo Ofício nos diversos espaços de atuação, representações iconográficas do Tribunal e de seus réus, influência, imaginário, didática e arquitetura inquisitoriais, consequências e desdobramentos num mundo pós-Inquisição, reflexos do Tribunal nos dias de hoje, novas leituras e revisões de questões sobre temas e casos já analisados pela historiografia. Enfim, uma infinidade de possibilidades de estudos sobre uma instituição muito esmiuçada mas ainda bastante desconhecida, tanto nos 2 É o caso, entre tantos outros, dos romances de FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios Turvos. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; VILAR, Gilberto. O Primeiro Brasileiro. São Paulo: Marco Zero, 1995; CLÁUDIO, Mário. Orion. Lisboa: Dom Quixote, 2003; REAL, Miguel. Memórias de Branca Dias. Lisboa: Quidnovi, 2003; BIRNBAUM, Marianna. A longa viagem de Gracia Mendes. Lisboa: Edições 70, 2005; AGUINIS, Marcos. A Saga do Marrano. São Paulo: Palíndrome, 2005; NISKIER, Arnaldo. Branca Dias, o martírio. Rio de Janeiro: Edições Consultor, 2006. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 18 espaços metropolitanos quanto em suas possessões ultramarinas. E o que dizer, tanto dos que ficaram em Portugal acuados pela perseguição social e religiosa quanto dos que deixaram o reino em busca de espaços onde estivessem (ou, pelo menos, se julgassem) livres do Santo Ofício, e ainda, dos que foram alcançados no além-mar e enviados para serem processados em Lisboa? O fato é que a Inquisição – ou, ao menos, o temor à sua lógica de atuação – tornou-se onipresente, traçando novas relações sociais e de conflito entre os grupos de cristãos considerados puros e os neoconversos, enxergados, de forma generalizada, como suspeitos em potencial das mais variadas heresias. Em Portugal, o ambiente para a perseguição aos cristãos-novos inicia-se com as medidas tomadas por D. Manuel em 1496. Incentivado por contratos nupciais firmados com a Espanha, o monarca ordenaria a expulsão dos judeus e mouros forros do reino, aos moldes do que havia ocorrido no lado hispânico da fronteira ibérica, em 1492. Implementa-se, desta forma, o monopólio religioso católico, impedindo a prática de qualquer outra fé que não o cristianismo. No édito de expulsão, o monarca assim justificava seus atos: Sendo-nos muito certo que os judeus e mouros obstinados no ódio da nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor que por sua morte nos remiu, têm cometido e continuamente contra ele cometem grandes males e blasfêmias em estes nossos reinos, as quais não tão somente a eles, que são filhos de maldição, enquanto na dureza de seus corações estiverem, são causa de mais condenação, mais ainda a muitos cristãos fazem apartar da verdadeira carreira, que é a Santa Fé Católica.3 Embora os mouros também tenham sido vitimados pelo processo de expulsão/conversão forçada – processo este que, diga-se de passagem, precisa ser mais visitado pelas pesquisas históricas -, no espaço deste artigo interessa-nos analisar unicamente o drama hebraico. Os judeus portugueses, que naquela virada de século – com o reforço dos judeus que vivenciaram a diáspora hispânica e escolheram Portugal como refúgio – respondiam por cerca de dez a quinze por cento da população lusa, então estimada em um milhão de almas, perfazendo um número aproximado de cem a cento e cinquenta mil judeus, números que, embora não possam ser definidos com exatidão, mostram o vigor desta comunidade e sua importância para os interesses expansionistas do reino. Transformados em cristãos- novos, batizados em pé e à força ao rebanho cristão, proibidos de manter fidelidade à fé em que nasceram e foram educados, obrigados a criar os filhos de acordo com 3 Édito de Expulsão dos Judeus de Portugal, em 5/12/1496. Apud CANELO, David. Os últimos criptojudeus em Portugal. Belmonte: Câmara Municipal de Belmonte/Marques & Pereira Lda, 2001, p. 206-207. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 19 os preceitos do catolicismo, adorando a Cristo e não à lei de Moisés, o fato é que as leis de Dom Manuel que impuseram o fim do longo e livre convívio entre judeus e cristãos no reino, acabou por gerar resistência numa considerável parcela dentre os agora denominados cristãos-novos, que se fez sentir fortemente, situação esta que seria intensificada em grande escala após a instauração da versão portuguesa do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, no ano de 1536. Assim, proibidos de permanecer judeus e obrigados a abraçar o catolicismo para serem aceitos na sociedade que renegava suas tradições, uma parcela dos antigos judeus buscariam formas de burlar a lei e continuar ocultamente a comungar a fé dos antepassados, sendo, por isto, denominados criptojudeus - fato que não passaria despercebido aos atentos e desconfiados olhares da Igreja. Obviamente, a manutenção do judaísmo – para além de ser uma experiência particular e vivenciada, em cada caso, com especificidades próprias, dependentesde fatores endógenos e exógenos –, deu-se de forma mais intensa dentre as primeiras gerações de neoconversos, ganhando, com o passar do tempo e afastamento do período de judaísmo livre, novos sentidos, contornos e intensidades. Mas o fato é que, nas primeiras décadas pós-conversão forçada, quando vários dos antigos judeus agora cristãos permaneciam vivos e mantinham a memória dos tempos de fé permitida, o judaísmo manteve-se intenso, guardando várias de suas características originais, com realização de reuniões, leitura de textos, antigos rabinos a dar conselhos. Exemplo disso são os discursos sobre a vinda próxima da salvação, incentivados por um judaísmo messiânico bastante recorrente nas primeiras décadas do Quinhentos lusitano.4 Conforme afastamo-nos no tempo, porém, esta lembrança torna-se mais fluida, e o criptojudaísmo ganha formas e modelos bastante distintos do judaísmo tradicional. Todavia, cumpre seu papel, realizando o “judaísmo possível” que, embora não pudesse seguir à risca os preceitos tradicionais, na melhor lógica do melhor pouco do que nada, permitiu sua sobrevivência em período de exceção e exclusão. A busca incessante e desmedida pela pureza e retidão católicas causaria a necessidade de controle sobre as ameaças à religião dominante, identificando nos cristãos-novos os herdeiros diretos dos preconceitos anteriormente destinados aos judeus e o criptojudaísmo como principal impedimento à homogeneidade cristã. Criava-se, assim, o palco para a instauração do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em território luso, a enxergar nos cristãos-novos suspeitos de manter o judaísmo a grande ameaça ao catolicismo. O clima de permanente vigilância inquisitorial acabaria por gerar transformações profundas nas relações sociais, intensificando as hostilidades entre os grupos dos cristãos velhos e dos batizados em pé. Marca da Inquisição ibérica, a perseguição aos antigos judeus ganhava tintas, 4 Cf. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: A construção do sebastianismo em Portugal - Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 20 conforme aponta Ronaldo Vainfas, de “obsessão anti-semita”.5 Malgrado as perseguições, exageros e generalizações, muitos dos antigos adeptos da religião de Israel convertidos à força ao catolicismo realmente continuariam a comungar o judaísmo, permitindo sua sobrevivência e transmissão às novas gerações. Apesar de inicialmente terem sido criados vários tribunais, de vida efémera, a Inquisição estruturou-se com a existência de três sedes no reino - Coimbra, Évora e Lisboa - e uma quarta em Goa, a única localizada no ultramar, nos domínios portugueses das Índias, instaurada em 1543 e oficializada em 1560, responsável pela região do Oriente e pela costa africana até o Cabo da Boa Esperança. O Atlântico português, Brasil incluso, ficava sob a gestão da sede lisboeta. Datam de 1540, as primeiras fogueiras que queimariam hereges no auto-de-fé em Lisboa, didaticamente indicando ao público que assistia, muitas vezes, embevecido, o destino reservado aos que ousavam ir contra as leis da Igreja. A proibição do judaísmo no mundo português reservaria um novo quadro para a sobrevivência judaica. As perseguições tato legais quanto da população aos suspeitos de descumprir a conversão e continuar a manter fidelidade ao judaísmo agora proibido, acabou por levar à adoção de uma série de comportamentos pelo neoconversos que insistiam em celebrar a Torá ao invés do Novo Testamento. Assim, este judaísmo de resistência foi tornando-se, em relação direta com o aumento dos riscos aos que o seguiam, cada vez mais discreto, oculto, secreto, diminuto, adaptado, disfarçado, dissimulado… Impedidas as reuniões públicas, a celebração das festas, o vestuário e uso de símbolos, a língua dos antepassados para a oração, o acesso a textos sagrados, a existência de sinagogas e de rabinos instituídos, a guarda dos sábados e as interdições alimentares, o uso de nomes hebraicos – tudo, enfim, que de algum modo pudesse significar a continuidade na crença agora proibida –, sobrava, aos que desejavam reacender o contato com o povo de Abrahão apenas a interiorização do sentimento, a crença interna, celebrada no lar, protegido pela (quase sempre pouco confiável) privacidade das residências e pelos laços familiares, oculta do mundo cristão que os perseguia. Como não poderia deixar de ser, a necessidade do segredo elevou os lares coloniais a locais fundamentais para esta resistência: as residências se transformaram em espaços privilegiados de manutenção do judaísmo proibido, adaptado à nova realidade, onde se ensinava às novas gerações a história do povo judeu e suas crenças, espaço de reunião onde podiam ser judeus, enquanto fora das paredes do lar, precisavam se vestir novamente a carapuça, e comportarem-se como cristãos. Os lares, tato em Portugal quanto nos domínios de além-mar, transformaram-se em células de resistência criptojudaica para a propagação do judaísmo vivo. A ausência constante do cabeça da família, seja para tratar dos negócios, seja por conta 5 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2ª ed., 1997. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 21 das longas distâncias, que deixavam às mulheres o trato do cotidiano das residências, acabou por catapultar a figura feminina – principalmente as mães – ao papel de grandes divulgadoras do judaísmo às novas gerações, repassado entre as lições das primeiras letras, os ensinamentos de moral, o preparar das refeições, o arrumar da casa… Lina Gorenstein ensina que, com a proibição do judaísmo, “a cultura doméstica continuou, em parte, com aquelas práticas e celebrações de ‘portas a dentro’”,6 embora essas sofressem certo esvaziamento e modificações conforme a necessidade e o afastamento do período de judaísmo permitido. A própria teologia judaica, cada vez era menos profundamente conhecida pelas novas gerações de judaizantes que, por sua vez, acabava por enfrentar as consequências destas limitações, agravadas pela inexistência de rabinos para orientar o caminho a seguir, como deveria ocorrer numa situação de normalidade religiosa. Impedidos de manifestar suas preferências doutrinárias, intimidados pela pressão inquisitorial e procurando driblar as desconfianças da sociedade, viam-se obrigados a abandonar certas cerimônias marcantes da sua profissão de fé em favor de práticas menos conhecidas ou delatoras de sua real entrega religiosa, disfarçando e silenciando o judaísmo à sua vivência interior: substituíam-se, assim, as circuncisões pelas orações e vigílias domiciliares; a guarda pública de certas datas e festas, como o Ano Novo, o Pentecostes ou a Festa das Cabanas, pelos jejuns, determinados costumes alimentares por outros menos delatores… Com o mesmo intuito, celebrações que no judaísmo tradicional ocupavam posição de menor destaque passavam, por serem menos acusadoras, a tema central da resistência marrana, como foi o caso do Jejum da Rainha Ester – a repetir a história da rainha judia que escondeu sua origem ao marido, vivendo, à exemplo dos criptojudeus, num mundo de dissimulação -, tornando-se a Oração de Ester a “prece marrana por excelência”.7 Como não poderia ser diferente, torna-se bastante significativo o fato de uma mulher – a “Santa Ester” -, a heroína dos cristãos-novos, e seu exemplo ser repetido constantemente devido às necessidades impostas aos criptojudeus, a ponto de muitos louvarem a rainha judia no panteão dos santos cristãos, embora, obviamente, santa, ela nunca tenha sido – muito longe disso! - para a Igreja…Este judaísmo mostrar-se-ia, nos mais ínfimos detalhes, influenciado pela figura da mulher. Anita Novinsky acrescenta: catapultadas à posição de principais responsáveis pela sobrevivência da fé judaica, as “mulheres cristãs-novas apresentaram no Brasil uma resistência passiva e deliberada ao 6 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e Impuros: a Inquisição e os cristãos- novos no Rio de Janeiro - século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura - Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1995, p. 121. 7 POLIAKOV, Léon. De Maomé aos Marranos. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1996, p. 198-199. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 22 catolicismo. Foram prosélitas, recebiam e transmitiam as mensagens orais e influenciavam as gerações mais novas”.8 Apesar de nem sempre oferecer privacidade e discrição em medida suficiente para que seus moradores pudessem esconder o que se passava em seu interior, o lar firmar-se-ia como ambiente propício para a continuidade judaica, mulheres à frente da tarefa. E as longas distâncias vencidas com dificuldade e vagar, acabaram por redimensionar ainda mais o papel feminino, conferindo-lhe maior destaque na organização do ambiente familiar, responsável pelo bom funcionamento da casa, atuando na criação e educação dos descendentes, vivenciando tradições impossíveis de serem realizadas em outro espaço, moldando a orientação religiosa dos filhos, servindo de liame entre os componentes do clã. Lar-escola-sinagoga: um espaço único e multifuncional, onde a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de provedora, mãe, protetora, educadora, catequista e rabi. Transmitindo os ritos religiosos ao praticá-los nas residências, realizavam o rabinato possível, diminuto, feminino e oral, baseado mais na memória do que nos textos agora proibidos e que, embora em muitos sentidos contrariasse o códice mosaico, garantiu-lhe a sobrevivência, como a flor que brota no lodo. Elias Lipiner nos informa que se dizia destes mulheres neoconversas que, “devotas e rezadeiras, iam nos domingos e dias santos ouvir missa”, no intuito de evitar, perante a sociedade, quaisquer desconfianças sobre a real entrega ao catolicismo, “mas nos sábados vestiam seus melhores vestidos”,9 preparando-se para o sagrado dia de descanso dos judeus, reunindo a família para celebrar os costumes de seus antepassados. Enfim, agiam de acordo com o momento e as possibilidades, ao cristãos ora judias. Quadro que, contudo, não se limita à América portuguesa: em outros espaços da presença lusa – embora com especificidades próprias – é possível perceber o destaque das mulheres na divulgação judaica, assim como os estratagemas utilizados para tentar ocultar ou ao menos disfarçar o envolvimento com o judaísmo por parte destas mulheres. O Santo Ofício da Inquisição estava atento a estas mulheres. É o que se pode concluir pelo grande número de acusações, confissões, processos e sentenças inquisitoriais que elencam mulheres de idades, origens e posições sociais variadas que acabaram alcançadas pelo braço inquisitorial. Não são poucos os documentos que retratam a dubiedade vivida pelas mulheres cristãs-novas, não só externamente - a suportarem o peso das fronteiras sociais -, mas também em seu interior, a confundirem muitas vezes a tradição cristã com os ensinamentos judaicos, divididas 8 NOVINSKY, Anita W. O papel da mulher no cripto-judaísmo português. In: Comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres. O rosto feminino da expansão portuguesa. Congresso Internacional - Lisboa - 1994. Lisboa, 1995, p. 549-555. 9 LIPINER, Elias. Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos- novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, 1969. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 23 entre a fé imposta e a crença dos antepassados, não raro desconhecendo ambas em detalhes, orando e jejuano nas duas fés, temendo a Jesus e a Yavé. Encontramos, em linhas gerais, indícios de um comportamento judaico mormente ligado a ritos, prática da “esnoga”, guarda do sábado, cultos funerários, interdições alimentares, formas de benzer heterodoxas, negações à religião dominante em seus símbolos e dogmas, onde, indiscutivelmente, o papel das mulheres ganha destaque. No limite, podemos inclusive relacionar alguns aspectos específicos destas novas funções destinadas à mulher na resistência criptojudaica ao judaísmo tradicional, visto que este se caracteriza por ser uma religião de cariz matrilinear, posto que a pertinência e a crença judaica são repassadas aos filhos pela figura materna – ou seja, só pode ser considerado plenamente judeu de nascimento aquele que é vem do útero de mãe judia, e não quem é nascido apenas de pai judeu -, responsável pelos primeiros contatos com a fé, atuando na iniciação dos rituais, orações, festas ou jejuns preparados no aconchego do lar, e auxiliando na educação e iniciação religiosa dos filhos. Ou, como se dizia à época, a religião em que mamei. Como vimos, a importância feminina na propagação criptojudaica não passou desapercebida pela Inquisição, consciente do papel primordial que desempenhavam na reprodução da fé proibida. Assim, descobrir a fonte de disseminação do judaísmo e reprimir exemplarmente os seus responsáveis fazia-se imprescindível. Fruto deste ímpeto são as denúncias e processos contras mulheres dos mais diversos espaços da presença lusa acusadas de judaizar em segredo existentes na documentação da Inquisição portuguesa. O grande e variado número de denúncias e processos envolvendo mulheres acusadas de judaizar em segredo nos mais diversos espaços de dominação portuguesa durante a Modernidade torna o estudo sobre as criptojudaizantes importante para a compreensão não só das especificidades da resistência judaica durante o período em que durou o monopólio cristão, mas também das vivências e práticas religiosas nestes espaços, assim como da formação de redes sociais de auxílio e proteção dos neoconversos. Nos espaços onde não havia um tribunal inquisitorial estabelecido, a prática da antiga lei tornou-se consideravelmente menos ameaçadora do que se fazia no reino. Erguendo sinagogas clandestinamente e mantendo os costumes hebraicos dentro das residências, as famílias criptojudaicas conseguiram manter viva a chama do judaísmo – aquele que se tornara possível - em sua memória. À frente deste processo de transmissão da antiga fé, a figura feminina destaca-se como principal responsável pela sobrevivência da crença proibida. Compreender a importância destas mulheres para o judaísmo no mundo luso faz-se indispensável para o entendimento da prática judaica com um todo e da religiosidade vivenciada nestes variados espaços. Vejamos alguns exemplos deste criptojudaísmo praticado e incentivado pelas mulheres a partir de denúncias e confissões ocorridas durante a primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, entre 1591 e 1591, quando a Inquisição enviou o IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 24 visitador Heitor Furtado de Mendonça para percorrer as capitanias da Bahia, Itamaracá, Pernambuco e Paraíba. Vários denunciantes compareceriam à mesa do Santo Ofício para delatar o comportamento de mulheres que insistiam na manutenção de práticas referentes à religião proibida. Não raro, as denúncias envolviam as murmurações das ruas, boatos, fatos sem comprovação, futricas e informações desencontradas de todo o tipo, notícias de “ouvi dizer” e “pública fama”, acusações contra personagens indevidamente identificados, relatos que, em geral, demonstravam desconhecimento do que era o judaísmo tanto porparte dos denunciantes quanto dos denunciados. Por vezes, as acusações identificavam qualquer atitude considerada equivocada ou não condizente com os costumes cristãos como sinal indiscutível de prática judaica, embora comportamentos desviantes da norma católica, claro, não se limitassem aos cristãos-novos, principais acusados de criptojudaísmo. Desta forma, uma denunciante informaria ter ouvido sobre Ana Franca, “mulher do mundo”, que esta “era uma cadela judia, que cuspira em um crucifixo dentro no mosteiro das convertidas de Lisboa, onde elas ambas tinham estado”, e que “quando o fizera, estava a dita Ana Franca doida, mas que, ao fim, era judia”.10 Em outros momentos, a documentação revela famílias inteiras acusadas perante a Inquisição. Dentre os grupos familiares mais denunciados de prática judaizante durante a primeira visitação, encontramos a família de Garcia d’Ávila e Mécia Roiz (ou Rodrigues), que teria suas práticas suspeitas seguidamente desveladas ao licenciado do Santo Ofício. As denúncias forneceriam em detalhes o cotidiano dos Roiz d’Ávila, apontando fortes e variados indícios da manutenção criptojudaica naquele seio familiar. Uma das acusações mais repetidas contra a família dizia respeito à obediência de costumes e interdições alimentares ao modo dos judeus, mantida, segundo os denunciantes, por longo período de tempo: ouviu dizer, não lhe lembra a quem, haverá vinte anos nesta cidade, que a mulher de Garcia d’Ávila, Mécia Roiz, cristã-nova, comia galinha e carnes em dias de peixe, e que a mãe da dita Mécia Roiz, já defunta, fazia coisas de judia, e [a] ela denunciante lhe pareceram sempre mal os modos dela, que eram ajudengados.11 As acusações contra a matriarca dos Roiz d’Ávila seriam repetidas por uma testemunha direta dos acontecimentos e conhecedora da rotina da família: uma filha 10 “[Maria da Motta, que não sabia assinar] Contra Anna Franca”, em 19/08/1591. Ibidem, p. 367-369. 11 “[Margarida Pacheca, mulher de Antonio da Fonseca] Contra Anna Roiz, Violante Antunes, Caterina Mendes, Maria Lopes, Mecia Rodrigues, Fernão Cabral”, em 21/08/1591. Ibidem, p. 392-394. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 25 do primeiro casamento de Garcia d’Ávila, com quem “a dita Mécia Roiz tivera já algumas diferenças como de enteada para madrasta, porém que era e são amigas”. Segundo a enteada, presenciara “a dita Mécia Roiz, três ou quatro vezes, em dias diferentes, mandar lançar azeite nas panelas de vaca e galinha, dizendo que, porque eram magras, o fazia”. Outro hábito suspeito repetido com grande constância pela matriarca e que acabaria por gerar desconfiança com relação ao seu real significado, era o modo como Mécia Roiz costumava agir ao tomar conhecimento de situações que envolviam partos complicados: tem por costume, quando ouve dizer a alguma pessoa que outra alguma mulher teve ruim parto, lamber com a boca as unhas dos dedos de entre ambas as mãos, e isto lhe viu fazer por muitas vezes, e perguntando-lhe a razão por que o fazia, não respondeu nada. Durante os períodos de luto, as mulheres da família também mantinham costumes hebraicos, como vazar a água dos potes existentes na residência. A enteada informava em seu depoimento ter observado “a dita Mécia Roiz, morrendo-lhe em casa um escravo, mandar lançar fora toda água de casa, e ela viu lançar a dita água fora e, depois, foram buscar nova água à fonte”. As práticas judaizantes de Mécia teriam sido ensinadas pela própria mãe, igualmente denunciada pelos mesmos costumes ao Santo Ofício, num sinal da transmissão de mãe para filha dos hábitos de família: “viu também na dita casa Branca Lopes, cristã-nova, defunta, mãe da dita Mécia Roiz, mulher do dito seu pai, e lhe viu dizer também, quando morreu o dito escravo, que lançassem a dita água fora”. Em outra ocasião, durante uma enfermidade da filha Mécia, Branca Lopes teria se comportado de forma não menos estranha, utilizando formas de benzer nada usuais dentre os cristãos: estando a dita Mécia Roiz doente, dormindo, vir a dita sua mãe Branca Lopes e tomar um testo de barro com uma pequena de água dentro, e uma coroa de estopa em cima do testo, que lhe não chegava a água que estava no meio do testo, e com sua mão tinha no ar sobre a dita doente dormindo, e com o dedo da outra mão, molhava em uma tigela d’azeite e lançava as gotinhas do dito azeite dentro na água do dito testo que lhe caíam do dedo, enquanto o fogo ardia na dita coroa de estopas, as quais ela acendera primeiro com a candeia. E isto fez a dita Branca Lopes, fechando as portas das câmaras, só, sem ter outrem consigo. IV Encontro Internacional de História Colonial ISBN 978-85-61586-63-8 26 O comportamento seria repetido em outros momentos de enfermidade ocorridos na família, pois, de acordo com a testemunha, viu também a dita Branca fazer esta mesma cerimônia da dita maneira a um seu neto, estando dormindo, o qual é morto. E viu que quando a dita Branca Lopes fazia estas coisas, estava dizendo manso certas palavras, as quais ela denunciante não entendia, e somente lhe ouviu e lhe entendeu uma das ditas vezes esta palavra, dente de cão.12 Algumas destas práticas, antes de encontrar explicação completa ou aproximada dentro da tradição judaica, parecem ser resultado do crescente processo de circularidade dos antigos rituais e tradições hebraicos dos antepassados com as práticas do catolicismo dominante que envolviam os cristãos-novos, fossem ou não adeptos do criptojudaísmo. O ato de lamber os dedos das mãos ao saber de um parto difícil parece estar ligado à retirada do ayim hará, o “olho mau”, conforme citado anteriormente. Já o uso das gotinhas de azeite na bênção dada por Branca Lopes à filha doente presume um misto de superstição com o ato de ungir um filho. O próprio catolicismo, é bom lembrar, apropriou-se do azeite como elemento para o batismo, para a crisma e para as unções de ordenação sacerdotal e dos enfermos. Assim, não se pode descartar a hipótese - lembremos ser esta uma época de medos e superstições – de que possa ter ocorrido a intercorrência de uma superstição adotada pela matriarca e que acabaria miscigenada aos costumes judaizantes da família. O hábito de usar azeite para a preparação dos alimentos registrado entre os Rodrigues d’Ávila apareceria seguidamente como costume característico dos judaizantes na etapa baiana da visitação. Costume este originário de além-mar, praticado antes pelos judaizantes de Portugal, que herdaram a prática de outrora, quando os judeu viviam em liberdade em Portugal: haverá trinta anos, na cidade de Lisboa, sendo ela denunciante discípula de lavrar de Joana Fernandes, alfaiata da Infante, cristã-nova, mulher velha, viúva, moradora sobre os Cortidores nas Barandas, em Alfama, na banda do mar, ela denunciante viu, por muitas vezes, a uma sobrinha da dita Joana Fernandes que tinha em casa, fregir cebola com azeite e botá-la na panela da carne para comerem todas, e que, algumas vezes, sendo 12 “[Isabel Davilla] Contra Mecia Roiz, Branca Lopes, Antonio Serrão”, em 04/11/1591. Ibidem, p. 552-554. Inquisição no mundo ibero-americano ISBN 978-85-61586-63-8 27 domingo ou dia santo, a viu estar lavrando a dita sobrinha em uma câmara fechada que a tia fechava por fora.13 Elementos característicos da manutenção da guarda dos sábados também seriam denunciados com certa frequência ao visitador Heitor Furtado de Mendonça. A neoconversa Maria da Costa estaria entre as acusadas. Segundo contava uma denunciante, estando em casa dela, denunciante, Caterina Fernandes, também sua vizinha, mulher casada, que mora
Compartilhar