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Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial Vol. 16 A escravidão moderna no Atlântico sul português

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Ficha Catalográfica 
 
Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. A 
escravidão moderna no Atlântico sul português / Rafael 
Chambouleyron & Karl-Heinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, 
volume 16, 2014. 
 
 
234 p. 
 
 
ISBN 978-85-61586-64-5 
 
 
1. História – Escravismo moderno. 2. Tráfico negreiro – Relações 
escravistas - História. 3. Resistência Escrava – Alforrias – 
Escravismo. 4. História. 
 
CDD. 23. Ed. 338.9975 
 
 
 
Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de 
História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de 
Setembro de 2012. O evento contou com a participação de 
aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de 
trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos, 
ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas 
inscritas para apresentação de trabalho em alguma das 
modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre 
professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. 
Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da 
região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região 
Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26 
instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3 
da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da 
Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da 
Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da 
CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer. 
Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos 
Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos 
textos apresentados nas Mesas Redondas. 
Boa leitura. 
A Comissão Organizadora 
 
Sumário 
 
Escravidão e liberdade entre espaços e negociações 
Aldinízia de Medeiros Souza.......................................................................................................1 
 
Práticas de micro economia de escravos e 
quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850 
Alex Andrade Costa.................................................................................................................14 
 
Da Costa africana ao litoral amazônico: tráfico negreiro para 
o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750) 
Benedito Carlos Costa Barbosa..................................................................................................27 
 
Escravidão e mundos do trabalho: escravos e libertos 
enquanto exploradores do ouro - Minas Gerais, século XVIII 
Dejanira Ferreira de Rezende ....................................................................................................42 
 
Revisitando o tráfico interno de escravos para o 
Maranhão no último quartel do século XVIII 
Diego Pereira Santos..................................................................................................................55 
 
Diálogos atlânticos: mulheres escravizadas na 
São Paulo colonial (século XVIII) 
Fabiana Schleumer ....................................................................................................................68 
 
Aspectos sobre escravidão e famílias de cor 
no Recife colonial (séculos XVIII-XIX) 
Gian Carlo de Melo Silva..........................................................................................................79 
 
Do Engenho da Ponta à Prefeitura de Maragogipe: aspecto de 
superação social de uma família negra no Recôncavo Baiano 
Itamar da Silva Santos ..............................................................................................................91 
 
Um olhar sobre os Angolas na capitania de Sergipe Del Rei setecentista 
Joceneide Cunha...................................................................................................................... 100 
 
Identidades em movimento: “senhores” e “escravos” 
no cotidiano escravista brasileiro 
Josenildo de J. Pereira.............................................................................................................. 112 
 
Estratégias sociais utilizadas por senhores e escravos entorno das relações 
de compadrio: São Tomé das Letras – Minas Gerais (1840-1860) 
Juliano Tiago Viana de Paula................................................................................................ 125 
 
Embriaguez, religião e patriarcalismo 
Lucas Endrigo Brunozi Avelar .............................................................................................. 131 
 
Ser Senhor de Escravos no Recôncavo do Rio de Janeiro: 
estratégias de legitimação do poder senhorial na Freguesia de 
São Gonçalo do Amarante, século XVIII 
Marcelo Inácio de Oliveira Alves ............................................................................................ 141 
 
Escravidão e Antigo Regime em tempos de mudanças: o conflito 
entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara; 
Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII e início do XIX 
Mariana Nastari Siqueira...................................................................................................... 159 
 
O tráfico transatlântico de escravos para o Maranhão: 
organização e distinções (séculos XVII – XVIII) 
Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira 
Tarantini Pereira Freire.......................................................................................................... 170 
 
A posse de escravos e seu cotidiano na capitânia de Goiás - (1808-1888) 
Pedro Luiz do Nascimento Neto............................................................................................. 186 
 
Negros na sociedade colonial Acarauense 
Raimundo Nonato Rodrigues de Souza................................................................................... 198 
 
No caminho das mulas (tropas): a instituição da escravidão 
no planalto da província de Santa Catarina, 1778 - 1788 
Renilda Vicenzi ..................................................................................................................... 213 
 
O Atlântico e a escravidão entre o XVII e o XVIII 
Suely Creusa Cordeiro de Almeida.......................................................................................... 227 
A escravidão moderna 
ISBN 978-85-61586-64-5 
1 
Escravidão e liberdade entre espaços e neçociações 
 
Aldinízia de Medeiros Souza1 
 
Desembarcados no Brasil como escravos, os africanos tiveram que construir 
novas formas de organização social e cultural. Embora a historiografia, durante 
muitos anos, tenha abordado prioritariamente o escravo como mão-de-obra, diversos 
estudos acerca da cultura desenvolvida pelos escravos e libertos de origem africana 
têm sido realizados e, com isso promoveram uma maior visibilidade à participação 
africana na sociedade brasileira, na medida em que enfatizaram o hibridismo da 
cultura e a ação dos escravos atribuindo-lhes o papel de sujeito da própria história. 
Tanto os estudos econômicos quanto os culturais são de grande importância para 
uma melhor compreensão da sociedade brasileira e de como esta foi formada. Nesse 
sentido, a história social da escravidão tem trazido à luz novos olhares sobre os 
escravos enquanto atores sociais. Além disso, os estudos de africanistas também têm 
colaborado para uma visão mais positiva dos africanos, contrária à ideia de povos 
atrasados, revelando, desse modo, a multiplicidade e variedade existente na África 
tanto no que diz respeito à economia quanto à cultura. Destarte, John Thornton2 
expõe que a África exerceu um papel ativo no comércio de escravos uma vez que “o 
processo de compra, transferência e venda de escravos estava sob o controle de 
estados e elites africanos” de maneira que o papel exercido pela África neste 
comércio foi voluntário e sob o controle dos detentores de poderes locais, pois entre 
os africanos existia um comércio de escravos decorrente da dinâmica interna,3 o que 
o autor expõe é a autonomia de governantes e elites locais neste comércio,fato que 
contesta a percepção de passividade da África no processo histórico. Igualmente, 
aborda a autonomia dos escravos para participar da vida cultural nas regiões onde se 
estabeleceram, demonstrando ainda, que a dinâmica de troca cultural com os 
europeus já existia na África, portanto não era algo exclusivo da diáspora. 
Os africanos, ao chegarem ao continente americano, utilizaram a cultura para 
adaptar-se, sendo assim, “recriaram uma cultura africana na América, embora essa 
nunca fosse idêntica à que eles haviam deixado na África.”4 A adaptação envolve 
também a capacidade desses africanos e de seus descendentes de negociarem com 
seus senhores para as práticas de atividades culturais próprias. Logo, no contexto do 
cativeiro e em meio ao cumprimento de obrigações para com os seus senhores, os 
cativos desenvolveram uma dinâmica própria no mundo escravista. 
 
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História e espaço, UFRN. Bolsista capes. 
2 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-
1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 49. 
3 Ibidem, p. 182. 
4 Ibidem, p. 413. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-64-5 
2 
A historiografia recente da escravidão tem enfatizado o papel desempenhado por 
escravos, considerando-os pessoas ativas do processo histórico, capazes de realizar 
estratégias com a finalidade de conseguir melhores condições de vida. As estratégias 
poderiam ser de resistência ou mesmo de acomodação no intuito de obter algum 
benefício do senhor. 
Essa linha de pensamento tem uma base teórica nas concepções de Thompson 
sobre a consciência de classe. Este autor não considera a consciência de classe como 
efeito do modo de produção, mas sim como uma consciência construída pela classe 
no próprio processo histórico, ou seja, a classe se auto reconhece como classe.5 Essa 
percepção permite uma abordagem dos sujeitos enquanto atores sociais conscientes 
de suas condições na sociedade, diminuindo o peso das estruturas sobre as ações 
humanas. Embora Thompson reconheça a dificuldade do termo classe para as 
sociedades anteriores ao capitalismo industrial, do século XIX, ele observa que o uso 
dessa categoria deve-se ao sentido de luta de classes.6 Para este autor, o conceito 
universal é o de luta de classes, as relações sociais perpassam pelos antagonismos 
existentes nas sociedades. 
As concepções de Thompson sobre a consciência da própria condição de classe 
têm sido adequadas aos estudos sobre escravidão no Brasil, na medida em que o 
escravo é percebido enquanto sujeito, consciente de sua própria condição. Nessa 
linha de pensamento, Silvia Hunold Lara,7 bem como Sidney Chalhoub,8 procuraram 
observar na documentação analisada, tais como processos crime e ações civis de 
liberdade, a “voz” do escravo, de maneira que ambos opõem-se à ideia de 
coisificação do escravo enquanto ser incapaz de ação autônoma, muito difundida 
pelo que ficou conhecida como a Escola Sociológica Paulista.9 Na concepção 
daqueles autores, os escravos agiam de acordo com uma lógica própria e 
aproveitaram as oportunidades para agirem com mais autonomia. 
As vilas e cidades no período colonial, enquanto espaços públicos, favoreciam a 
sociabilidade dos escravos. A circulação pela cidade possibilitava o contato com 
homens livres e libertos nas mercearias, praças, mercados e outras áreas públicas. 
Igualmente, nas vilas e cidades havia maiores possibilidades de desempenhar 
atividades que permitissem ao escravo a formação de um pecúlio, uma vez que a 
existência de escravos de ganho nesses espaços era bastante comum. A atuação de 
 
5 SILVA, Sergio. Thompson, Marx, os marxistas e outros. In: THOMPSON. E. P; NEGRO, 
Antônio Luigi, SILVA, Sergio (org). A peculiaridade dos ingleses. Campinas: Ed da 
Unicamp, 2001. p. 66. 
6 Ibidem, p. 273. 
7 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 
8 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da 
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 
9 A Escola Sociológica Paulista tem entre seus representantes Florestan Fernandes; Fernando 
Henrique Cardoso; Otávio Ianni. 
A escravidão moderna 
ISBN 978-85-61586-64-5 
3 
negras vendendo doces, frutas e quitutes, as chamadas negras de tabuleiro é uma 
referência presente na historiografia. Outras atividades, como as artesanais, eram 
realizadas por escravos urbanos. Estes escravos de ganho trabalhavam ao longo do 
dia muitas vezes sem estar sob os olhos do senhor, mas tinham como obrigação 
pagar-lhe um jornal, uma parte do que era arrecadado com a realização do seu 
trabalho, o que ficava para si era, muitas vezes, acumulado para comprar a carta de 
liberdade. 
 
Existiam, mesmo, redes de comunicação e informação – no 
meio das quais, não raras vezes integravam-se indivíduos 
brancos – que se encarregavam de vulgarizar as maneiras mais 
usuais e eficazes de sensibilizar os senhores, bem como de 
negociar acordos de diferentes tipos com eles. Além disso, 
divulgavam as possibilidades tanto de existirem possíveis 
legados materiais, deixados pelos defuntos proprietários, quanto 
do escravo procurar a justiça para requerer seus direitos, por 
vezes negados por herdeiros, em alguns casos.10 
 
Outro aspecto favorável aos escravos nessa condição de ganho era a mobilidade 
pela cidade e maior autonomia que possuíam em relação aos demais escravos, pois 
com o pecúlio que acumulavam poderiam “viver sobre si”, o que significava uma 
certa liberdade de circular pela cidade, ou mesmo de morar em lugar distinto dos 
senhores, e se auto sustentar.11 Além disso, na cidade, muitos escravos fugidos 
poderiam se passar por livres, usar outros nomes o que lhes permitia fazer da cidade 
esconderijo, pois a própria dinâmica da cidade tornava difícil distinguir escravos de 
libertos.12 
Como se percebe, a rede de sociabilidades entre libertos e escravos se formava 
nos estabelecimentos comerciais, públicos, bem como nos espaços festivos. Apesar 
da desconfiança das autoridades, esses espaços, além de integrar o negro nas 
atividades das vilas e cidades, serviam também para a integração social entre libertos 
e escravos no sentido de cooperação para resolução de conflitos ou conquista de 
liberdade de cativos. Os proprietários e autoridades eram obrigados a reconhecer 
uma certa autonomia dos escravos, o que pode ser observado na permissão para que 
eles realizassem suas festas e praticassem seus cultos. “Instituições como essas são, 
claramente frutos de uma enorme negociação política por autonomia e 
 
10 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 
1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 35. 
11 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade… 
12 Ibidem. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-64-5 
4 
reconhecimento social. É nessa micropolítica que o escravo tenta fazer a vida e, 
portanto, a história.”13 
As concepções historiográficas recentes sobre as alforrias também procuram ver 
a atuação do escravo no processo de obtenção da carta de liberdade, logo, estas são 
vistas como conquistas dos escravos e não como concessão dos senhores. Por essa 
percepção, observa-se a ação centrada no escravo, de maneira a reconhecer o esforço 
realizado por eles para obter a sua carta de liberdade, ao contrário de uma concepção 
centrada no senhor, na qual a alforria é dada por um senhor benevolente. O que se 
enfatiza nessa historiografia recente é o papel do escravo como negociador de sua 
liberdade, o que muitas vezes era realizado com o auxílio de intermediários, daí a 
importância das redes de sociabilidadesestabelecidas por eles nas vilas e cidades. Os 
escravos procuravam aproveitar situações que lhes favorecessem conseguir a alforria. 
A obtenção da carta de alforria poderia ocorrer por meio da compra, por meio de 
realização de condições impostas ao escravo por um determinado tempo, ou ainda 
poderiam ser conseguidas gratuitamente. Assim, as alforrias poderiam ser onerosas, 
ou gratuitas. Contudo, conseguir uma carta de alforria gratuitamente era mais difícil. 
Na maioria das vezes, como os estudos sobre alforria têm demonstrado, os escravos 
para tornarem-se libertos teriam que pagar com dinheiro ou trabalho ao longo de 
vários anos ou obtinham a liberdade mediante cláusulas de prestação de serviços, em 
caso de cartas de alforria condicional. 
Autores como Stuart Schwartz14 e Mary Karasch15 deram grande contribuição ao 
estudo das alforrias ao percebê-las como uma conquista dos escravos, resultante do 
esforço dos cativos, com base em negociações muitas vezes difíceis, pois não havia 
lei que garantisse aos escravos a compra da liberdade, mesmo que estes possuíssem o 
recurso para o pagamento. No silêncio da lei, havia a prática da obtenção da alforria 
enquanto costume, contudo, a inexistência de uma garantia legal implicava 
necessariamente em uma negociação para a compra da alforria, pois somente em 
1871, com a Lei do Ventre Livre,16 o direito ao pecúlio e à compra da alforria 
mediante indenização de preço tornaram-se garantias legais. 
 
 
13 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil 
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21. 
14 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes. 
Bauru: EDUSC, 2001. 
15 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-
1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 439-479. 
16 A lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, garantiu o 
direito do escravo acumular um pecúlio, transferível por herança aos filhos, garantiu o valor 
da alforria estabelecido pela justiça caso não houvesse acordo entre o senhor e o escravo, e 
ainda, limitou o tempo de prestação de serviços para sete anos nos casos das alforrias 
condicionais. 
A escravidão moderna 
ISBN 978-85-61586-64-5 
5 
Até pelo menos 1871, era preciso que o escravo não 
contrariasse o proprietário para que o seu reconhecimento 
viesse pela via espontânea. Mas isso não bastava. Era necessário 
ter meios de ganho, além de boas relações com os demais 
libertos, com outros escravos e, principalmente com alguém 
melhor relacionado junto à classe proprietária. Com sorte, este 
poderia indenizar o senhor, negociar sua liberdade, ou ainda 
orientá-lo na melhor estratégia para a alforria […]. O fato de as 
alforrias terem se restringido ao campo costumeiro até a década 
de 1870, baseada em acordos orais, obrigava que os escravos 
tivessem bom relacionamento com seus proprietários para 
intentarem a liberdade. Mostrar-se merecedor da carta de 
alforria era uma estratégia usada largamente pelos escravos.17 
 
O costume da prática da alforria sob indenização de preço nem sempre era 
reconhecido pelos herdeiros, como mencionou Bertin. Nesse caso pode-se perceber 
o costume como um lugar de conflito de interesses entre senhores e escravos.18 
Embora a constituição do pecúlio e a compra da alforria fosse uma prática existente 
na sociedade escravista antes de 1871, muitas vezes os escravos poderiam encontrar 
barreiras na realização da compra de sua liberdade, caso isso contrariasse os 
interesses dos senhores. O reconhecimento do costume pela lei de 1871 para 
Chalhoub representa o reconhecimento legal de direitos conquistados pelos 
escravos.19 
Percebe-se claramente na explanação de Bertin, anteriormente citada, o 
reconhecimento da ação consciente do escravo para que seu senhor o considere 
merecedor da alforria. Desse modo podemos supor que havia uma tensão velada 
entre ambas as partes envolvidas na negociação da liberdade. 
Embora a carta de alforria fosse uma prerrogativa do senhor, esse documento 
dependia do esforço do escravo. Nesse sentido, os estudos sobre a manumissão, 
tendo como fonte as cartas de alforria, buscam nas entrelinhas destes documentos 
identificar a participação do escravo no processo de obtenção da liberdade. Maria 
Helena Machado também aborda a carta de alforria como um elemento de 
negociação entre senhores e escravos, “sendo a aquisição da liberdade pelo cativo, 
resultado de um jogo de perdas e ganhos, a depender da cobiça, mesquinhez e 
 
17 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São 
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 105-106. 
18 A percepção do costume como lugar de conflito tem em Thompson um referencial teórico, 
uma vez que este historiador analisa os conflitos em torno de diferentes norma e valores. Ver 
THOMPSON, Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 
19 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade… p. 159. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-64-5 
6 
hipocrisia senhoriais.”20 Para essa autora, “as cartas denunciam situações muito 
menos enobrecedoras do comportamento senhorial, situações na qual a 
escravidão/alforria foi duramente negociada.”21 As relações entre senhores e 
escravos são então percebidas como fruto de uma complexa rede de relações em que 
“escravos e senhores manipulam e transigem no sentido de obter a colaboração um 
do outro.”22 Em meio a complexidade das relações entre senhores e escravos, a 
alforria pode representar tanto uma promessa, enquanto elemento de dominação do 
senhor, como a ação do escravo que busca por sua liberdade; tanto a afinidade como 
o controle presentes nas relações entre senhores e escravos se entrelaçam no jogo de 
palavras das cartas. 
A negociação é considerada por Sheila Faria23 um elemento importante mesmo 
nas cartas de alforria onerosas, e não apenas nas alforrias gratuitas. Aquelas também 
dependiam de uma negociação, pois não havia obrigação para o senhor aceitar a 
alforria mesmo sob indenização de preço. Silvia Hunold Lara interpreta essa 
negociação como forma de resistência. Não se trata de um conceito de resistência 
restrito a fugas, rebeliões e atos violentos. Para a autora, essa resistência não está 
moldada 
 
pelo binômio ação-reação, nem por uma classificação baseada 
na violência […], são ações de resistência e ao mesmo tempo de 
acomodação, recursos e estratégias variados de homens e 
mulheres que, em situações adversas, procuravam salvar suas 
vidas, criar alternativas, defender seus interesses.24 
 
A luta dos escravos pela liberdade não se configura apenas com revoltas ou fugas, 
mas também como uma luta travada diariamente por meio das atitudes, de modo que 
“no Brasil como em outras partes, os escravos negociaram mais do que lutaram 
abertamente sobre o sistema.”25 As negociações e outras formas de resistências 
cotidianas surgem como forma de melhorar a situação do escravo dentro do sistema 
e, ocorreu em diversas sociedades. Para John Thornton26 esse tipo de resistência é 
 
20 MACHADO, Maria Helena P. T. Sendo escravo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de 
São Paulo. In: PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 
2004, p. 43. 
21 Ibidem, p. 43. 
22 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 16. 
23 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna, família e cotidiano colonial. 
Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998, p. 110. 
24 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 345. 
25 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 14. 
26 THORNTON, John. A África e osafricanos na formação do mundo atlântico…, p. 
364. 
A escravidão moderna 
ISBN 978-85-61586-64-5 
7 
resultante de um sistema de exploração e não uma forma de resistência exclusiva da 
África. Não se trata pois, de uma “herança” africana, mas de uma atitude autônoma 
do sujeito em meio à exploração do cativeiro. 
É a partir das negociações estabelecidas com o senhor nessa complexa rede de 
relações que o escravo encontrava oportunidade de adquirir um pecúlio. A aquisição 
do pecúlio deixa clara a participação do escravo em atividades econômicas variadas e 
atesta que “a população cativa foi capaz de operar com êxito dentro da economia de 
mercado.”27 À custa do empenho pessoal, os escravos puderam juntar algum 
dinheiro e comprar sua alforria. Pelo menos é o que se pode perceber nos estudos 
aqui citados, seja nos de Kátia Mattoso28 e Stuart Schwartz29 para os séculos XVII e 
XVIII na Bahia, ou no de Mary Karasch30 para o século XIX no Rio de Janeiro. 
Estes historiadores têm demonstrado a existência de uma maior possibilidade de 
compra de alforria nas cidades, onde as atividades de ganho praticadas pelos escravos 
possibilitavam o acúmulo do pecúlio. Entre as principais atividades de ganho 
destacadas por estes autores encontram-se a venda de frutas e verduras pelas negras, 
conhecidas como negras de tabuleiro, além das lavagens de roupa. Entre os espaços 
ocupados por negros e mulatos, estavam as tabernas e lojas comerciais como 
mercearias que vendiam roupas, comidas, bebidas, utensílios domésticos além de 
ferramentas agrícolas e armas de fogo, e eram pontos de encontros de escravos e 
locais de circulação dos escravos de ganho. Além disso, serviam muitas vezes, nas 
vilas e cidades próximas aos quilombos, à atividades ilícitas como esconder escravos 
fugidos ou vender mercadorias para quilombos.31 Outras atividades, como as 
artesanais, também possibilitavam a formação de um pecúlio. Entretanto, a compra 
de alforria de um escravo artesão era mais cara, em razão dos rendimentos que estes 
proporcionavam ao senhor, mesmo assim, os estudos sobre alforria têm 
demonstrado um grande número de alforrias pagas. 
Embora a historiografia enfatize os aspectos urbanos favoráveis à obtenção de 
alforria mediante indenização de preço, pode-se observar que mesmo em vilas de 
pouca expressividade econômica que favorecesses atividades de ganho pelos 
escravos há também uma predominância pagamentos pela aquisição da carta de 
liberdade. Na pesquisa com base nas cartas de alforria da Vila de Arez, no período de 
 
27 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 17. 
28 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3 ed., 1990. 
29 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes… 
30 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-
1850…, p. 439-479. 
31 RUSSELL-WOOD. A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 2005, p. 89-90. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
ISBN 978-85-61586-64-5 
8 
1775-179632, no Rio Grande do Norte colonial, também foi encontrada uma maioria 
de manumissões onerosas, pagas em moeda. A despeito do esforço realizado pelos 
escravos para acumular um pecúlio em um lugar, possivelmente com poucas 
possibilidades para isso, os textos das cartas costumam trazer as expressões do tipo: 
“pelo amor que lhe tenho”, ou, “pelo haver cercado com amor de filho”. Em um dos 
documentos, de 1775, registrado no livro de notas por Dona Francisca Barbosa 
Leitão, a alforria do “cabrinha” Ponciano é concedida mediante o pagamento de 
cinquenta mil réis em dinheiro e “pelo haver cercado com amor de filho”.33 
A mesma senhora também liberta de forma onerosa a escrava Ana Maria, de 22 
anos, irmã de Ponciano, de 20 anos. Contudo, a dita senhora faz questão de declarar 
que aprecia os escravos como filhos e que lhes tem muito amor, enfatizando assim o 
aspecto da afetividade. 
Dona Tereza de Oliveira Freitas alforriou uma criança, o “mulatinho” Agostinho, 
com idade aproximada de dois anos. A carta menciona um pagamento de 25 mil reis, 
e expõem ainda que a criança é aleijada, mas o motivo alegado para a alforria é que a 
senhora o faz “por esmola, pelo amor de Deus, pelo haver criado e lhe ter amor”.34 
Nos exemplos acima, observa-se a ênfase dos proprietários no aspecto afetivo, 
muito embora as alforrias tenham sido pagas, o que corrobora com as afirmações de 
Enidelce Bertin,35 já mencionadas, sobre a necessidade do escravo manter um bom 
relacionamento com seu senhor. 
O maior número de manumissões pagas em Arez faz crer que nesta vila, os 
escravos também realizavam atividades que lhes garantissem um pecúlio, mas vale 
salientar que as alforrias são também de povoações do termo que se utilizavam do 
aparato jurídico. 
Além das possibilidades econômicas e das redes de sociabilidades existentes nas 
vilas e cidades, havia também nestes locais uma estrutura jurídica e administrativa, 
dotada de juiz ordinário, a quem os escravos poderiam recorrer para conseguir 
comprar a liberdade, tendo em vista que o senhor não tinha obrigação em fornecer a 
carta de alforria, ou ainda em situações em que a alforria obtida era contestada por 
herdeiros, ou em casos de excesso de maus tratos. “A alegação de crueldade do 
senhor, conforme previam Cartas Régias do final do século XVII, podia dar origem a 
uma troca de Senhor ou a uma ação de liberdade.”36 
 
32 O levantamento dos livros de notas da Vila de Arez identificou até o momento 43 cartas de 
alforrias, sendo 25 pagas; 13 condicionais e 5 gratuitas. IHGRN. Livro de notas de Arez, cx 
75 e 77. 
33 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 
34 Ibidem. 
35 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX… 
36 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 263. 
A escravidão moderna 
ISBN 978-85-61586-64-5 
9 
Estas são algumas situações diante das quais os escravos poderiam recorrer às 
autoridades locais. No caso da carta de alforria já conquistada, poderiam registrá-la 
no cartório, como forma de garantir a liberdade adquirida, pois o risco de perda ou 
extravio do documento, bem como a mesquinhez de herdeiros que não reconheciam 
a liberdade obtida podia por em risco uma aquisição que na maioria das vezes levava 
anos para se concretizar. Assim, o registro da carta de alforria em cartório era 
essencial para a comprovação da liberdade. 
 A historiografia demonstra que nas vilas e cidades havia mais oportunidades de 
trabalhos que garantissem o pecúlio, além do maior número de escravos domésticos 
e de pequenos planteis favoreceram a proximidade entre senhores e escravos, no 
sentido de concessão das alforrias.37 Deste modo, era mais provável que um escravo 
que vivesse próximo ao seu senhor recebesse a alforria em testamento. 
A escrava Antônia e seus quatro filhos, em Arez, no ano de 1793, obtiveram a 
liberdade em testamento, mas a cativa teve ainda que cumprir com a obrigação de 
mandar rezar missas para sua senhora falecida, D. Floriana Guedes de São Miguel.38 
Certamente a proximidade da escrava com sua senhora favoreceu a obtenção da 
alforria dela e dos filhos, impedindo que algum deles entrasse na partilha dos bens e 
gerasse uma desagregação da família, o que certamente era algo temido pelas famílias 
escravas. 
Chalhoub39 percebe a morte do senhor com uma possibilidade de mudança para 
o escravo, um momento de tensão, que pode representar uma esperança, mas 
também uma incerteza, pois o escravo poderia ser separado dos familiares ou ser 
obrigado a se adaptar a um novo senhor. Felizmente, para a escrava Antônia, foi 
possível conquistar a liberdade e manter a família. 
Tanto os testamentos como as cartasde liberdade revelam alguns aspectos das 
relações entre senhores e escravos. Muitas vezes essa relação se estendia para o pós- 
morte. Analisando testamentos do século XIX, Reis identificou uma acentuada 
encomenda de missas destinada a diversos beneficiários. Os ex-escravos 
testamenteiros também costumavam encomendar missas para familiares, padrinhos, 
parceiros comerciais e antigos senhores, o que demonstra os laços de sociabilidades 
estabelecidos pelos escravos. O autor observa que os libertos ofereciam mais missas 
para seus ex-senhores, chamados de patronos, do que para parentes e infere que isso 
“reflete um compromisso ideológico com o paternalismo senhorial e com novas 
regras (católicas) de descendência, impostas pela escravidão […]”.40 Acrescenta ainda 
que a historiadora Inês Oliveira considera que essas missas podem estar relacionadas 
 
37 EISENBERG, Peter. Homens esquecidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1989, p. 278. 
38 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77. 
39 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade…, p. 111. 
40 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século 
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 211-212. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
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10 
ao cumprimento de cláusulas de cartas de alforria41, mas para o autor a quantidade de 
missas encomendadas pelos libertos não equivalem ao valor da alforria e insiste na 
tese de que a encomenda de missas reflete a sujeição da ex-escrava ao ex-senhor. 
Embora uma razão não exclua necessariamente a outra, a hipótese de cumprimento 
de cláusula de carta de alforria é bem plausível, mesmo porque a encomenda de 
missas é acompanhada de outras condições que o escravo deve cumprir, portanto 
não são somente as encomendas de missas que pagam as alforrias e sim um conjunto 
de obrigações, as quais os escravos devem realizar enquanto o senhor estiver vivo, ou 
que também se estendem para além da vida do senhor. Quanto à hipótese da 
sujeição, pode-se concluir que esta se estende, do mesmo modo, para o pós-morte 
do senhor. 
Seja por meio de testamento ou de cláusulas condicionais de cartas de alforrias, 
muitos escravos viam-se obrigados a aliviar a possível passagem de seus senhores 
pelo purgatório. Dona Catharina Barbosa registrou no Livro de Notas de Arez, em 
1781, quatro cartas de alforria, todas sob condição: à crioula Maria do Rosário foi 
concedida a alforria: 
 
por criá-la em meus braços […] por lhe ter muito amor […] a 
forro de hoje para todo o sempre de toda escravidão e cativeiro 
como se do ventre de sua mãe forra nascesse porém com a 
obrigação de me acompanhar e me servir enquanto eu for viva e 
morrendo eu mandar-me dizer uma capela de missas pela minha 
alma e cumprindo com as tais obrigações poderá gozar de sua 
liberdade.42 
 
Percebem-se nas demais cartas, presentes na mesma nota, descrição semelhante. 
A crioula Maria Lourença foi liberta: 
 
por ter dado bom serviço e me ter acompanhado com fidelidade 
[…] como de fato forra tenho de hoje para todo o sempre de 
minha livre vontade sem constrangimento de pessoa alguma 
com obrigação porém de me servir e acompanhar […] e 
morrendo eu mandar rezar-me uma capela de missas.43 
 
 
41A carta de alforria condicional concede a liberdade ao escravo mediante o prestação de 
serviço, ou outras obrigações por um tempo determinado. É muito comum encontrarmos 
documentos em que o escravo recebe a alforria desde que acompanhe o senhor até a sua 
morte. Ou seja, o escravo permanece trabalhando para o senhor e fica livre de fato quando o 
senhor falece. 
42 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 
43 Ibidem. 
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11 
Já o escravo Antônio “crioulinho” foi liberto, “por lhe ter amor e ter criado em 
meus braços”, com a obrigação de 
 
me servir e acompanhar enquanto eu for viva e depois de eu 
morta poderá o dito crioulinho tratar de sua vida e usar de sua 
liberdade como as mais pessoas forras e libertas como se do 
ventre de sua mãe forro nascesse porém com a obrigação de 
mandar dizer por minha alma uma capela de missas.44 
 
Finalmente, as mesmas obrigações de servir e acompanhar até a morte da senhora 
também foram impostas à “crioulinha” Januária, afilhada da senhora e filha de Maria 
Lourença, a mesma também foi liberta condicionalmente. A afilhada foi a única que 
não recebeu a obrigação de mandar rezar as missas. 
Pode-se notar então, que nas cartas de alforria os senhores demonstravam uma 
preocupação com o lugar da sua alma, com isso, atribui aos escravos a tarefa de 
mandar rezar as missas como condição de liberdade. Pela somatória das missas 
mencionadas nas cartas supracitadas, uma vez que uma capela de missas equivale a 
50 missas,45 somente nessas cartas, D. Catharina garantiu 150 missas para sua alma, 
uma quantia razoável, supondo-se que as missas em favor dessa senhora não tenham 
ficado à cargo apenas dos escravos. 
João José Reis46 menciona também testadores que, na primeira década do século 
XIX, beneficiaram escravos falecidos com missas. Embora isso fosse mais raro, tais 
atitudes eram reflexos do discurso religioso. Segundo o autor, “os religiosos 
ensinavam aos senhores que beneficiar as almas de seus finados escravos era não só 
um dever cristão, mas até uma tática de salvação”.47 Logo, as missas cumpriam um 
relevante papel na economia da salvação, tendo em vista que eram pagas, também 
cumpriam um importante papel na economia da Igreja. 
 Ao citar o caso de um africano que, em 1790, inclui em seu testamento as almas 
do purgatório, João José Reis supõe ser possível “uma associação entre a experiência 
do purgatório e da escravidão na mente dessa gente que um dia fora escravizada.”48 
Se for possível uma associação entre o purgatório e a escravidão, essa associação 
pode ser mais amiúde em se tratando das cartas de alforria condicionais. 
Compreendendo o purgatório como um lugar intermediário, um misto de sofrimento 
e esperança de salvação, é possível uma analogia com a liberdade condicional. As 
cartas de alforrias condicionais possuem cláusulas a serem cumpridas pelos escravos. 
São imposições determinadas pelo senhor por um tempo estipulado. Muitas vezes a 
 
44 Ibidem. 
45 REIS, João José. A morte é uma festa…, p. 212. 
46 Ibidem, p. 214. 
47 Ibidem, p. 213. 
48 Ibidem, p. 217. 
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12 
condição referia-se a cuidar do senhor ou senhora até sua morte, o que significa que 
a conquista da alforria plena poderia demorar muito tempo. 
Sob esse olhar, pode-se entender que, se a alforria condicionada ao exercício de 
funções até a morte do senhor não representava a liberdade plena, significava pelo 
menos, a possibilidade de liberdade, uma promessa de liberdade, assim como o 
purgatório é uma promessa de salvação. 
As redes de sociabilidade estabelecidas pelos escravos contribuíam para que 
alguns conseguissem comprar ou adquirir a alforria por meio das relações de 
parentesco e compadrio. Sendo assim, as cartas de alforria também evidenciam 
aspectos das famílias escravas. Cacilda Machado49 observou na historiografia sobre 
escravidão, a respeito das relações de compadrio, que são poucos os casos em que os 
escravos procuram como padrinho os seus próprios senhores; análise reforçada pelos 
casos estudados pela autora, nos quais, em alguns casos os escravos estabelecem 
compadrio com membros da elite, mas que não eram seus senhores e, em outros 
casos, com membros da comunidade, livres e pobres. Dessa maneira, segundo 
Cacilda Machado50, os escravos procuram garantir uma proteção material ou de 
estreitamento dos laços com a comunidadelivre de cor. Vale lembrar que esse 
estreitamento era favorecido pelas comunicações que mencionadas anteriormente, 
por Eduardo França Paiva.51 
Sobre aspectos como esses, Andréa Lisly Gonçalves52 lembra que os laços de 
parentesco e compadrio exercem influência sobre as manumissões em outros 
momentos além do batismo, pois um padrinho poderia comprar a alforria de seu 
afilhado posteriormente ao batismo, já na idade adulta. Kátia Mattoso também 
destaca a importância dos vínculos familiares e não consanguíneos na obtenção da 
liberdade, sobretudo para a contribuição no pagamento da alforria, considerando que 
esta 
 
nunca é uma aventura solitária. Resulta de todo um tecido de 
solidariedades múltiplas e entrelaçadas, de mil confabulações, 
processos de compensações, promessas feitas e mantidas, 
preceitos, até mesmo de conveniência.53 
 
 
49 MACHADO. Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 180-181. 
50 Ibidem. 
51 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia… 
52 GONÇALVES, Andréa Lisly. Práticas de alforria nas Américas: dois estudos de caso em 
perspectiva comparada. In: PAIVA, Eduardo França (org.). Escravidão, mestiçagem e 
histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da 
conquista: Edições UESB, 2008. 
53 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil…, p. 194. 
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13 
Foi justamente a ligação familiar que garantiu a liberdade do pardo Bento 
Estevão, cuja alforria foi comprada pelo seu irmão Silvestre.54 A mulata Thereza, por 
sua vez teve a liberdade paga na pia batismal pelo Capitão Francisco Tavares, 
provavelmente seu padrinho, visto que proporcionou sua liberdade no momento do 
batismo.55 
José Mulatinho,56 de 11 meses, foi alforriado pela senhora Francisca Barbosa de 
Freitas pelo valor de 28 mil reis, pagos pelo pai, o capitão Antônio Lopes Galvão, 
apesar do pagamento, a senhora menciona, como em outras cartas, a liberdade 
concedia como esmola, contudo, podemos perceber aqui dois fatores importantes na 
obtenção da alforria: a relação de parentesco e o pagamento. 
Os estudos sobre alforrias aqui já citados concordam que as alforrias gratuitas são 
mais raras, como já foi afirmado. Nos livros de notas de Arez somente cinco alforrias 
eram gratuitas, de um total de quarenta e três para o período de 1775-1796. Embora 
seja denominada de gratuita, por não implicar em ônus para o cativo, Silvia Hunold 
Lara57 considera que essa alforria finalizava a relação formal entre senhor e escravo, 
porém o escravo não recebia nenhuma compensação justa, dessa forma, a alforria 
gratuita, assim como a onerosa, constituía um tipo de exploração. Ou seja, nada 
havia de gratuito nessa modalidade de manumissão, pois o escravo muitas vezes, já 
havia trabalhado anos e investido todo um esforço pessoal para livrar-se do cativeiro, 
“é necessário considerar nesses casos todo o trabalho e todo o rendimento 
previamente auferidos do próprio forro ou de seus parentes mais próximos, quando 
o beneficiado era, por exemplo, muito jovem.”58 
O esforço que a historiografia tem feito em mostrar o escravo como agente social 
é uma forma de atribuir humanidade a quem durante muito tempo foi visto apenas 
como mercadoria e mão de obra. Muito mais que isso, os africanos e seus 
descendentes criaram e recriaram identidades próprias. Em se tratando das alforrias, 
o que era visto como concessão de um senhor benevolente passou a ser visto como 
uma conquista, resultante de anos de trabalho, de empenho pessoal para que a 
alforria fosse aceita, mesmo sendo paga com dinheiro ou prestação de serviço. 
Fossem nas pequenas vilas, como a de Arez, ou nas cidades maiores, os cativos 
constituíram famílias e redes de sociabilidade, souberam aproveitar as oportunidades 
para constituir um pecúlio e adquirir a alforria, investindo diariamente em 
negociações com os seus senhores. 
 
54 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77. 
55 Ibidem, cx 75. 
56 Ibidem. 
57 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência… 
58 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia…, p. 173. 
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14 
Práticas de micro economia de escravos e 
quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850 
 
Alex Andrade Costa1 
 
Diversos estudos, já há muito tempo2, vêm mostrando a existência de uma 
economia própria por parte dos escravos, também chamada de microeconomia 
escrava, formada por um campesinato negro - para usar um termo muito utilizado 
por Flávio Gomes3 - seja em roças ou em quilombos. Também, diversos autores, 
entre eles João J. Reis4, Stuart Schwartz5, Ciro Cardoso6 e o próprio Flavio Gomes7 
já mostraram que esta economia escrava era formada com grande participação de 
outros segmentos da sociedade, inclusive brancos, que compravam ou negociavam 
produtos das roças escravas ou acoitavam fugidos para usar da mão-de-obra. 
Esta pesquisa vai se amparar na ideia de que a microeconomia escrava não se 
resumiu à roça, mas se estendeu a uma série de ações praticadas pelos escravos, de 
forma legal ou não, da qual resultava algum de tipo de ganho financeiro, procurando 
conhecer os principais destinos destes ganhos, analisando como se deu a formação 
dessa microeconomia nas comarcas de Valença e Ilhéus, entre 1800 e 1850, onde 
predominavam pequenas e médias propriedades e onde muitos dos senhores 
disputavam com os escravos a sobrevivência diária. 
Utilizando documentos judiciais como processos crimes; documentos cíveis 
como testamentos, inventários e ações de liberdade, correspondências e outros 
documentos do governo e da polícia pretende-se compreender a origem étnica de 
alguns escravos que atuavam no mercado local, a estrutura familiar e as condições de 
vida no cativeiro, bem como a condição social e econômica dos senhores com o 
 
1 Doutorando em História – UFBA. 
2 São da década de 1970 os dois principais estudos sobre economia própria de escravos 
fugidos nas Américas. MINTZ, Sidney. Caribbean Transformations. New York: Columbia 
University Press, 1974; PRICE, Richard. Maroon Societies. Rebel Slave Communities in the 
Americas. Baltimore: The Johns Hopkins university Press, 1979. No Brasil, um dos primeiros 
a abordar o tema através de uma importante fonte foi REIS, João J. Resistência Escrava em 
Ilhéus: Um documento inédito. Anais da APEB, n. 44, p. 285-291, 1979. 
3 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de 
senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 
4 REIS, João José. Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro-Bahia, 1806. In: REIS, 
João J. e GOMES, Flávio (org). Liberdade Por Um Fio: história dos quilombos no Brasil. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 
5 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. 
6 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês – o protocampesinato negro nas 
américas. São Paulo: Brasiliense, 1987. 
7 GOMES, Flavio dos Santos. A hidra e os pântanos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 
A escravidão moderna 
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15 
objetivo de se entender a formação de uma microeconomia escrava a partir das 
fugas, saques, roubos, formação de roças e outras atividades, bem como a relação 
com seus senhores. 
Obter melhores condições de vida implicava, em alguns casos, em disputar, entre 
os seus, os recursos que pudessem melhorar a sua vida. É o caso do processo 
movido pelo crioulo liberto Manuel José do Espírito Santo, que teve a sua casa, 
localizada no município de Valença, arrombada e saqueada, supostamente por dois 
escravos da vizinhança, os quais teriam sido vistoscarregando uma “trouxa de 
roupas e uma arquinha contendo moedas”8 que alcançaria trezentos mil réis. Os 
acusados, Hanibal e Gaspar, escravos de uma fazenda da região, apesar de, a 
princípio, negarem participação em tal crime, foram reconhecidos por diversas 
testemunhas que, acorrendo até a senzala onde os acusados moravam encontraram 
os “mulambos” que foram roubados da casa de Manuel José do Espírito Santo, mas 
não encontraram o dinheiro. Antes de levar o caso à justiça, o escravo Hanibal teria 
sido pressionado a entregar o dinheiro, ao que parece numa tentativa de Manuel José 
do Espírito Santo resolver a situação entre eles mesmos, “mas este longe de fazer 
nem dizer onde se achava declarou que não dizia nem entregava, porque tanto havia 
sofrer entregando, como não”.9 
Este suposto caso de furto perpetrado pelos escravos Hanibal e Gaspar, traz uma 
gama de informações importantes que vão além do crime em si. Na qualificação dos 
acusados, ambos declararam que além do trabalho na lavoura exerciam uma segunda 
atividade, no caso eram mestres de lancha, o que faziam por conta própria. 
Exercendo uma segunda atividade a possibilidade de amealhar recursos era maior, 
inclusive pelo motivo de ampliar as redes de sociabilidades e atuarem com uma 
relativa autonomia diante de seu senhor. 
Já a situação de Manuel José, a vítima, talvez não fosse muito diferente da 
situação dos escravos Hanibal e Gaspar, com exceção do primeiro ter a posse real da 
liberdade. Pelos depoimentos das testemunhas e da própria vítima, “a morada era 
velha e desprovida de cousa alguma”10 a não ser as roupas, chamadas pelo próprio 
Manuel José de mulambos e da qual não fazia questão, ao contrário dos escravos que 
lhes tinha roubado. Para esses, os mulambos de Manuel José certamente seriam de 
grande utilidade. Como eram os únicos escravos de seu senhor, pobre, eles talvez 
não fossem vestidos e nem alimentados pelo mesmo, daí o fato dos escravos terem 
uma outra atividade onde pudessem obter pecúlio por conta própria. 
A precariedade das condições de vida não estava restrita aos escravos. Muitos 
libertos e muitos senhores viviam nas margens da pobreza e vivam situações 
semelhantes de vida. Ao mesmo tempo em que as condições materiais de vida dos 
 
8 APEB – Seção Judiciária: Processo Crime: 22/778/7. 
9 Ibidem. 
10 APEB – Seção Judiciária: Processo Crime: 22/778/7. 
IV Encontro Internacional de História Colonial 
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16 
escravos permitem conhecer mais da escravidão e entendê-la, cada vez mais como 
uma instituição plural e com muitas variantes, elas também nos falam da liberdade 
não como ponto de chegada, mas como partida para o enfrentamento de novas lutas. 
O que aqui tratamos por economia própria dos escravos, ou microeconomia 
escrava, é chamado também de “brecha camponesa” ou “economia autônoma do 
cativo”. De fato todos os termos se referem às atividades econômicas que driblavam 
os limites da plantation, no entanto, possuem divergências conceituais que ainda 
perduram. 
A expressão “brecha camponesa”, ao que parece, foi utilizada pela primeira vez 
por Tadeusz Lepkowski na década de 1960, para tratar das atividades econômicas 
dos escravos no Haiti onde ele percebeu dois tipos de brechas: uma originária dos 
quilombos e outra de terras concedidas pelos senhores. Posteriormente, Sidney 
Mintz que muito se dedicou aos estudos sobre economia rural nas Antilhas teve 
como objeto questões parecidas com as de Lepkowski mas aprofundando-as, 
procurou entender a comercialização dessa produção como um protocampesinato 
escravo.11 
Para Mintz, os cativos com o sistema de roças e os quilombolas organizados em 
comunidades, ao desenvolverem variadas práticas e relações econômicas (inclusive 
com acesso aos mercados locais), conquistaram margens de autonomia e acabaram 
por se transformar em protocamponeses.12 
No Brasil o termo “brecha camponesa” foi utilizado por Ciro Cardoso para 
discutir a economia autônoma do cativo e mostrar como a mesma funcionou na 
reprodução do sistema escravista.13 Para Cardoso a “brecha” – o tempo e a terra para 
o trabalho - tinha como objetivo minimizar o custo de manutenção e reprodução da 
força de trabalho, e poderia ser “usurpada” pelo senhor em momentos que a 
sazonalidade das culturas exigisse. Gorender foi o maior crítico desta posição de 
Cardoso. Para ele Cardoso atribui à economia do cativo uma generalidade e 
estabilidade que ela não teve. Em suma, Gorender nega a existência de uma 
“brecha”, pois a considera parte integrante do modo de produção escravista 
colonial.14 
Mesmo não discordando de Cardoso, Robert Slenes encontrou incoerências no 
pensamento do autor. Slenes observou que aquilo que Cardoso tratou “não é mais 
nem brecha nem, a rigor camponesa”, aproximando-se mais do que os historiadores 
norte-americanos chamam de “economia interna dos escravos”, isto é, “um termo 
que abrange todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para aumentarem seus 
 
11 MINTZ. Caribbean Transformations…, p. 146-179. 
12 Ibidem. 
13 Ver mais em CARDOSO, Ciro. Escravo ou Camponês… 
14 GORENDER, Jacob. Questionamento sobre a teoria econômica do escravo. Estudos 
Económicos. Vol. 13, núm. 1, janeiro/abril de 1983. 
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17 
recursos, desde o cultivo de roças à caça e, inclusive, ao furto”.15 Nesse trabalho 
seguimos a dica de Slenes no esforço de compreender a microeconomia escrava a 
partir das roças, roubos, ganhos, e outras ações variadas que davam ao escravo 
acesso à condições de sobrevivência um pouco melhores. Não é possível, também, 
concordar inteiramente com Cardoso ou com Gorender, pois as práticas de 
microeconomia não eram todas pura conquista dos escravos, visto que havia 
interesse de senhores em algumas das práticas dos escravos, nem simplesmente 
derivavam do sistema escravista, pois se assim fosse não haveria rebeldias ou 
rebeliões. Como a bibliografia mais recente, em especial a de Reis e Gomes tem 
apontado isso consistia num jogo de lutas, interesses, acomodações e resistências de 
ambos os lados.16 
A primeira metade do século XIX é marcada por dois movimentos 
contraditórios: de um lado a pressão inglesa para que o Brasil adotasse 
procedimentos para o fim do tráfico atlântico de escravos e, por outro, a 
intensificação deste negócio que já foi chamado por um importante intelectual da 
diáspora africana (W. Du Bois) como “o maior drama da história humana nos 
últimos 2.000 anos”. Nesse período os traficantes do Rio de Janeiro concentraram 
suas operações na costa oriental, na região que abrange o que são hoje o sul da 
Tanzânia, o norte de Moçambique, Malauí e o nordeste de Zâmbia. Os escravos da 
costa oriental da África eram aqui conhecidos como “moçambiques”. Já os 
traficantes envolvidos no comércio baiano, responsáveis pelo suprimento de 
escravos para várias regiões nordestinas a partir de meados do século XVIII e até o 
fim do tráfico em 1850, se concentraram sobretudo no comércio com a região do 
Golfo do Benim (sudoeste da atual Nigéria). Através do Golfo do Benim, os 
traficantes baianos importaram escravos aqui denominados dagomés, jejes, haussás, 
bornus, tapas e nagôs, entre outros. Estes grupos eram embarcados principalmente 
nos portos de Jaquin, Ajudá, Popo e Apá, e mais tarde Onim (Lagos). Assim, estima-
se que dos cerca de 4 milhões de escravos desembarcados no Brasil ao longo do 
tempo, cerca de 1 milhão teria chegado nos últimos 20 anos de execução do tráfico. 
Mesmo a Bahia estando em declínio econômico ela ainda recebia número 
considerável de escravos que vinham para cá ou para serem redistribuídos para 
outras províncias. Desta forma temos uma grande população negra, escrava e15 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da 
família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 199. 
16 Ver, entre outros, os textos de: SILVA, Eduardo e REIS, João J. Negociação e Conflito - 
a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; 
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão 
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas 
e rupturas do escravismo, Recife, 1822- 1850. Recife: Editora da UFPE, 1998; 
BARICKMAN, Bert. Até a véspera: O trabalho escravo e a produção de açúcar nos 
engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881). Afro-Ásia, n. 21-22, 1998-99. 
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18 
africana, circulando pela província que causava medo e, por que não dizer pânico, em 
parte da população, especialmente por conta das constantes notícias de insurreições e 
revoltas que pipocavam por todos os cantos da província. A grande maioria destas 
notícias não passava de boatos e outra parte em tentativas frustradas, reprimidas 
pelas autoridades. Apenas uma pequena parte dessas revoltas realmente frutificaram 
na Bahia – em engenhos e localidades específicas. O grande medo, mesmo, vinha 
daquilo que os escravos conseguiram fazer fora da província da Bahia, em especial 
no Haiti, isso sim causava medo e arrepios em grandes proprietários de escravos e 
nas autoridades civis. 
Em 1831 o Juiz da Comarca de Valença enviou ofício ao presidente da Província 
da Bahia solicitando armas, munição e guardas para combater os escravos fugidos 
que roubavam na região e que se encontravam refugiados em mais de 50 
quilombos.17 Esta não foi a primeira vez que tal pleito foi feito. Havia quatro anos, 
desde 1827, que o pedido era reiterado, ao menos uma vez por ano, apontando para 
uma situação que já se prolongava há algum tempo. Creio que o espantoso número 
de quilombos citados pelo juiz, situados em duas localidades: Galeão e Tororó, seja o 
conjunto de pequenas aglomerações de escravos, fato que pode ser possível por 
conta de que quando alguns quilombos de Valença foram destruídos o número de 
escravos presos ou mortos era relativamente pequeno, geralmente entre 10 e 20. 
Porém o interesse dessa pesquisa sobre os quilombos está na utilidade mais 
pragmática que o escravo deu a esse instrumento de resistência. Vejamos: no mesmo 
ofício enviado pelo juiz de Valença ao presidente da Província ele justifica o pedido 
como forma de impedir os roubos perpetrados pelos aquilombados. Segundo o juiz 
os fugidos “vagam nas noites de sábado e domingo amedrontando a população”18, 
roubando gado e “seduzindo escravos pacíficos”.19 Antes disso, em 1830, o Juiz de 
Paz de Camamu, localizada próximo de Valença, também já havia noticiado ao 
Presidente da Província que ali existiam escravos fugidos “que se acham 
aquilombados nas mattas deste termo, roubando e insultando os lavradores”20 e, 
mais tarde, em 1835, o mesmo juiz em ofício, mostrando-se insatisfeito com a falta 
de posição tomada pelas autoridades da província disse que “já tendo levado por 
duas vezes ao [conhecimento do] antecessor […] os sucessivos assassínios, roubos e 
ataques causados pelos escravos fugidos , aquilombados nas matas desta vila […] 
motivando que muitos lavradores abandonem suas lavouras a fim de escaparem de 
 
17 APEB, maço 2626. 
18 Ibidem. 
19 Ibidem. 
20 APEB, maço 2298. 
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tão raivoso bando”21 pedindo providências para acabarem com os quilombos de “lá 
onde existe toda sorte de crimes”.22 
Os dois ofícios dos Juízes de Valença e Camamu apontam para a questão da 
existência de uma prática econômica por parte dos aquilombados. Os roubos, 
fossem de gado ou de outros bens sugerem práticas organizadas e que estavam 
destinadas não apenas à sobrevivência interna do grupo, ou seja, não se roubava 
apenas para comer, mas, outros destinos se dava aos roubos, como por exemplo a 
venda para pequenos lavradores do entorno dos quilombos com quem esses se 
relacionavam cotidianamente e eram, até mesmo, protegidos pelos mesmos. O juiz 
de Valença chegou a dizer que tais praticas se davam de forma preponderante aos 
finais de semana, sábados e domingos o que aponta para o fato de que nos outros 
dias da semana eles se dedicavam às suas roças e plantações. Este fato aponta para 
um alto nível de planejamento das ações por parte dos quilombolas. 
Com a destruição de um importante quilombo, o do borrachudo, localizado na 
comarca de Ilhéus, vizinha a Valença, acontecido no mesmo ano de 1835 é possível 
perceber outros traços da economia quilombola. 
O quilombo Colégio Novo, um dos que pertenciam ao conjunto do Borrachudo, 
por exemplo, contabilizava roçado de mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, 
canteiros de alface, de cebolas, de alhos, carás, mangaritos, quiçares, inhames; já o 
quilombo Colégio Velho apresentava roças de mandioca, bananeiras, cinco mil covas 
de cana, limoeiros, jaqueiras, laranjeiras, carás, mangaritos, quicares; o quilombo 
Santo Antonio do Bom Viver tinha sacos de farinha de mandioca, beijus, roçado de 
mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, limoeiros, laranjeiras, jaqueiras, carás, 
quiçares, inhame da Costa, gengibre, batatas; outro, o quilombo Corisco, tinha roças 
de mandioca, cinco mil covas de cana, pés de algodoeiros, limoeiros, laranjeiras, 
limeiras, jaqueiras, pés de café e de cacau, plantações de fumo, gengibre e várias 
qualidades de inhames.23 
Percebemos que nenhum quilombo que fazia parte do conglomerado do 
Borrachudo possuía gado entre os bens levantados pelas tropas, observando que o 
gado roubado deve ter servido de alimento, mas também deve ter sido utilizado, 
sobretudo, para a realização de negócios fora dos quilombos; percebemos, também, 
que todos, além de produzirem alimento destinado à sobrevivência interna do grupo 
como inhame, batata, mandioca e seus derivados e outras frutas, possuíam um 
significativo número de pés de cana de açúcar que, comparando com a quantidade de 
moradores do quilombo produziria um grande excesso, entendo que tal produção, 
também, era destinada ao mercado externo dos quilombos. A sobrevivência era o 
 
21 Ibidem. 
22 Ibidem. 
23 APEB, maço 2246. 
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20 
objetivo imediato dos aquilombados, porém, pensavam também na sobrevivência à 
longo prazo. 
A vida nos quilombos estava longe de ser uma vida sem um programa definida, 
ou marcada exclusivamente pela fuga e pela necessidade de se esconder. Os 
quilombos estavam longe de serem espaços únicos de refúgio, mas eles se 
caracterizavam como locais para o exercício de uma economia própria e os 
quilombolas contavam com objetivos muito claros ao passarem a viver nos 
quilombos. Quando o Juiz de Valença falou que os escravos roubavam aos sábados e 
domingos certamente não era por acaso: sendo aquilombados eles poderiam efetuar 
os roubos a qualquer tempo, mas não era isso que acontecia, segundo o juiz. Os 
roubos , preferencialmente se davam nas noites dos finais de semana o que talvez 
tenha a ver com a rotina destes aquilombados no decorrer dos dias de semana, para 
dar conta das plantações das roças e do beneficiamento da mandioca.24 
Esta produção seja fruto de roubos ou do trabalho dos escravos no interior dos 
quilombos tinha como destino, muitas vezes, os moradores da redondeza com quem 
os aquilombados se relacionavam, ao que parece, muito bem, visto a crítica que o 
Juiz de Camamú faz dizendo que “as matas contiguas a esta vila estão há muito 
contaminadas de negros fugidos e aquilombados que de diaem dia tem aumentado 
pela comunicação com alguns habitantes que inconsideravelmente lhes dão apoio”.25 
Certamente está se referindo a pessoas que se beneficiavam da produção dos 
quilombos para adquirir produtos por um preço mais baixo, ou mesmo melhor 
qualidade. 
É preciso entender o quilombo dentro do contexto social e econômico onde se 
situa e mais, entender o quilombo como uma possibilidade do escravo constituir uma 
economia própria. Assim a noção de resistência escrava se amplia não se 
concentrando apenas na luta pela liberdade através das fugas para os quilombos, mas 
na prática do escravo constituir uma economia que garanta o seu sustento ou, quem 
sabe, a liberdade. 
Em 08 de janeiro de 1827 o Juiz de Paz de Valença, João Ferreira Durão 
encaminhou correspondência ao Presidente da Província da Bahia, Manuel Inácio da 
Cunha e Meneses, futuro Visconde do Rio Vermelho, no qual o deixa a par da 
situação em que se encontrava aquela vila. Segundo o juiz, os proprietários de terras 
estavam impossibilitados de administrarem com suas assistências pessoais os serviços 
de suas lavouras por hum grande número de negros fugidos que unidos em bandos a 
outros malvados tem acontecido a cometer nos pacíficos lavradores pelas estradas 
por onde costumam transitar tomando-lhes suas cargas e alguns dinheiros.26 
 
24 APEB, maço 2298. 
25 Ibidem. 
26 Ibidem. 
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21 
Com tal correspondência o juiz procurava receber do Presidente uma autorização 
para pôr em execução as medidas que reestabelecessem o sossego para os lavradores 
e para os viajantes. Tais medidas, segundo o juiz, seriam as mesmas indicadas 
anteriormente pelo Conselho Interino do Governo da Província quando dos 
combates com os portugueses por conta da guerra da Independência ocorrida quatro 
anos antes. 
Observa-se que a exposição de motivos do juiz, apesar de muito sucinta, deixa 
perceber uma série de questões. A primeira delas o fato de que estes negros fugidos, 
mesmo não especificando o número, aparentemente representarem uma quantidade 
substancial que por si só já causava temor à população, em especial aos proprietários 
de terras e escravos da região, porém, outro fator que chama mais atenção é que eles 
não faziam as investidas sozinhos, ao contrário, é citado pelo juiz a existência de 
outras pessoas que os acompanhavam, identificados por “malvados”. Esta 
generalização pode esconder um grupo extremamente multifacetado, composto de 
libertos, crioulos, brancos e até mesmo índios, cujas ocupações poderiam incluir 
desde viajantes, aventureiros, ladrões e salteadores. Enfim, pessoas que uniam 
esforços de forma frequente ou esporádica em torno de um objetivo comum: a 
sobrevivência diária. 
Muito provavelmente estes escravos denunciados pelo juiz de Valença fossem 
aquilombados, e como tais, mantinham uma estreita relação com gente de todo o 
tipo que vivia nas proximidades dos quilombos e deles também tirava proveito. 
Assim se justifica a heterogeneidade desse grupo que espalhava medo nos arredores 
de Valença. 
Região de Valença, entrecortada por diversos rios e ilhas também possuíam 
muitas matas. Região litorânea, estava relativamente próxima de Salvador e de outros 
centros econômicos importantes como Nazaré e Cachoeira, que poderiam servir ao 
mesmo tempo para o desembarque de escravos fugidos ou traficados ilegalmente, 
quanto para transportar mercadorias ali produzidas para outros centros. Assim, 
Valença era um espaço ideal para a formação de quilombos que, ao mesmo tempo 
em que estavam protegidos dava ampla condição de comércio e comunicação. 
Em abril de 1829 o Juiz de Paz de Valença, Manoel Joaquim do Espírito Santo, 
encaminhou correspondência ao Visconde de Camamú, então Presidente da 
Província da Bahia, comunicado da existência de um grande número de escravos 
fugidos e que se encontravam aquilombados na localidade do Galeão, naquela 
Comarca. Ao tempo em que solicitava reforço militar para o combate disse que, 
mesmo tendo capturado alguns escravos fugidos ainda não pudera destruir o 
quilombo por completo. Nessa correspondência o juiz aponta entre os fatores que 
estavam dificultando a tomada de posições mais eficazes contra os quilombolas à 
precariedade de armas, munições e guardas na vila. Essa precariedade de condições 
para combater os quilombos ou, ao menos, assegurar a mínima proteção para os 
habitantes das vilas é uma constante nas reclamações apresentadas pelos juízes de 
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22 
diversas vilas da região como Nazaré, Camamú e Cairú no transcorrer da primeira 
metade do século XIX. 
Em 1831 o Juiz de Paz de Valença é surpreendido com uma correspondência do 
Presidente da Província suspendendo as rondas policiais nas localidades do Galeão e 
Tororó. Tal suspensão foi em atendimento à solicitação do guarda João José de 
Souza Macieira que alegou não serem mais necessárias as mesmas, a não ser em caso 
de manutenção da ordem. Estranho como um guarda encaminha solicitação 
diretamente ao Presidente da Província e é atendido pelo mesmo sem, sequer, 
consultar as autoridades locais.27 
A localidade do Galeão, cercada de matas e manguezais, era situada na ilha de 
Tinharé, bem em frente à cidade de Valença no continente, de onde pode ser 
facilmente alcançada. Ali, habitavam cerca de 20 proprietários, muitos agregados e 
jornaleiros trabalhadores das onze embarcações utilizadas para a navegação e na 
construção de outras tantas, provavelmente saveiros responsáveis pelo transporte de 
mercadorias para os portos vizinhos e o de Salvador. Ainda é citada a existência de 
120 escravos destes mesmos proprietários e que ali viviam trabalhando na extração 
de coquilho, piaçava e madeira.28 
Segundo o juiz, em ofício de resposta ao presidente da província, o trabalho 
realizado pelas patrulhas nas duas localidades, em especial nas noites de sábado e 
domingo, é que tinham feito arrefecer a atuação dos quilombolas que antes vinham 
não só negociarem como também roubarem gados e toda criação; violentarem a 
cidadãos nos caminhos e tomarem armas, estuprarem e como tem sucedido 
conduzirem as mulheres e crianças para os ranchos e a escravos pacíficos para segui-
los, principalmente as fêmeas; e finalmente assassinarem e espancarem aqueles que 
com eles não capitulam, como aconteceu a um Raimundo Muniz que morreu de um 
tiro dentro da própria casa na fazenda de seu senhor e outro de dona Maria da 
Conceição que foi esfaqueado e morreu. 
Sem dúvidas essa localidade era uma área de forte atuação de escravos fugidos, 
nos cálculos do juiz cerca de cinquenta, que se agrupavam em diversos quilombos se 
utilizando de diferentes estratégias para prover a sobrevivência, entre elas a realização 
de negócios com habitantes daquelas localidades. 
O juiz aponta que, entre os beneficiários das estratégias econômicas dos 
quilombolas estava o guarda, João José de Souza Macieira, autor do curioso pedido 
ao Presidente da Província. Segundo acusação do juiz, o guarda seria um dos que 
tinha escravos que vendiam e compravam produtos dos quilombolas e por isso, 
muitas vezes, se omitia em cumprir com as suas obrigações de realizar rondas. O que 
o juiz está querendo dizer, em sínteses, é que o guarda fechava os olhos diante das 
 
27 Ibidem. 
28 Ibidem. 
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23 
ações dos quilombolas pois, ele próprio era beneficiário do comércio existente entre 
os fugidos e seus escravos.29 
Além disso, o juiz sempre aponta para o fato dos quilombolas seduzirem os 
“escravos pacíficos”30, chegando ao ponto de um proprietário perder todos os seus 
oito escravos de uma só vez para os quilombolas. Se levarmos em contaque a 
sedução se dá pelo convencimento, é plausível que o principal argumento destes 
tenha se dado no plano econômico, ou seja, com os fugidos apontando as vantagens 
da vida de quilombola para os escravos, em especial a oportunidade deles obterem 
ganhos com a venda de produtos que, muito provavelmente, deveriam ser aqueles 
mesmos que eram encontrados em abundancia na ilha e que tinham grande procura 
no continente: a piaçava e o coquilho . 
Há cerca de 60 km ao sul de Valença estava a vila de Camamú, pertencente à 
comarca de Ilhéus era a mais populosa daquela região, possuía no início do século 
XIX cerca de 5.148 almas. Mesmo em comarcas diferentes a curta distância, os rios e 
o próprio mar que banhava as duas vilas facilitava a comunicação e o contato entre 
os habitantes das duas localidades e que envolvia também os quilombolas e demais 
fugidos ampliando de forma substancial as possibilidades de sobrevivência desses 
grupos. 
Em 1825 a câmara de Camamú deu ciência ao presidente da província de que 
escravos fugidos de Nazaré acompanhados de “uma tropa de infames criminosos” , 
inclusive com a participação de um cigano, estaria a causar distúrbios naquela vila o 
que aponta para essa circulação de escravos num espaço geográfico para além das 
fronteiras da comarca a qual eram originários e, também, para a presença de pessoas 
“estranhas” ao mundo do cativeiro. O que as uniam? A sobrevivência diária. Porém 
não podemos desconsiderar que dentro de um grupo tão heterogêneo existissem 
projetos distintos que iam além da sobrevivência imediata, assim, uma real 
possibilidade é que os escravos fugidos estivessem arregimentados em torno de uma 
ideia de liberdade, embora essa, talvez, não fosse associada à alforria imediata.31 
Ainda no ano de 1825, no mês de abril, o juiz de Camamú encaminhou outra 
correspondência relatando os diversos ataques que os escravos fugidos e 
aquilombados estavam fazendo nas matas daquela vila. Segundo o juiz Manoel José 
dos Santos os quilombolas invadiram o sítio do Capitão Arcangelo Ferreira Borges, 
que conseguiu fugir com sua família, roubando diversos bens e causando a morte de 
Dionísio de tal e ferindo gravemente o seu filho, os quais teriam saído em socorro do 
dito capitão.32 O mesmo grupo de quilombolas ainda teria atentado contra a vida de 
Manoel Marques da Silva, na povoação de Igrapiúna, que teria sido alvejado com 
 
29 Ibidem. 
30 Ibidem. 
31 Ibidem. 
32 Ibidem. 
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24 
tiros de espingarda, porém permanecendo com vida. Até aqui a documentação 
analisada dá conta de que as ações dos quilombolas se davam de forma 
predominante nas matas onde, creio, as possibilidades de sucesso nos ataques seriam 
maiores por conta dos proprietários viverem ali de forma mais isolada uns dos 
outros e da facilidade em fugir e se esconder propiciadas pelas condições 
geográfica.33 
Longe dos centros urbanos o pânico se instaurou entre diversos proprietários da 
região que, segundo o juiz, abandonaram suas casas e lavouras nas matas procurando 
abrigo na vila. A lentidão na atuação do poder central da província fez com que os 
próprios moradores daquela localidade lançassem mão de “medidas que julgamos 
mais apropriadas para destruir aquela peste da sociedade que nos pode vir a ser 
muito perniciosa”.34 Desta forma, os próprios moradores contribuíram com dinheiro 
necessário para formar as tropas que se engajariam na luta contra os quilombolas, 
inclusive pagando o Tentente Coronel João Tavares de Melo, comandante do 
batalhão daquela vila, para auxiliar na expedição que contou com 50 milicianos. 
O documento se encerra com um alerta: de que foi ordenado à tropa todo o 
cuidado para se manter as vidas dos escravos fugidos. Mais do que destruir os 
quilombos, era a captura, com vida dos fugidos que interessava às autoridades. Isso 
por vários motivos: em primeiro lugar pelo fato de que o escravo era um bem, que 
pertencia ao seu senhor – provavelmente um dos financiadores daquela jornada – e 
que precisavam recolocar o escravo no serviço; também, pelo fato de que ao traze-
los com vida até a vila, ali provavelmente aconteceria um julgamento do mesmo e as 
condenações, fossem de punições como chicotadas ou a deportação, deveriam servir 
de exemplo para os demais escravos. Assim, antes de ser uma atitude humanitária, 
traze-los com vida para a vila era parte do jogo senhorial. 
Esta não foi a primeira tentativa de se formar uma tropa para destruir aquele 
quilombo. Ao menos um ano antes, em 1824, já teria acontecido uma mobilização 
com esse fim. Naquele ano, “movida pelos roubos, insultos e mortes que faziam os 
escravos fugidos”35 foi pedido ao presidente da província, Visconde de Jaguaripe, 
que mandasse um grupo de índios de Pedra Branca para destruir aquele quilombo, 
ato que não foi atendido pelo presidente da província alegando grande distância 
entre a aldeia daqueles e a vila de Camamú, de sorte de não restou outra alternativa 
para o vilarejo a não ser organizar uma tropa com homens da própria localidade. 
Mesmo contando com mais de sessenta milicianos os resultados do ataque não 
foram satisfatórios: o encarregado da expedição mandou fazer fogo a alguma 
distância do quilombo; os fugitivos puderam evadir-se e concentra-se e poucos se 
 
33 Ibidem. 
34 Ibidem. 
35 Ibidem. 
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prenderam; contudo atemorizados deste assalto alguns procuraram a casa de seus 
senhores e por algum tempo cessaram os roubos e mortes. 
A atuação aparentemente desastrada do grupo pode ter sido planejada 
cuidadosamente. O fato de disparar as armas de fogo a longa distância, deve ter 
servido justamente para assustar os quilombolas vez que os milicianos raramente 
tinham informações precisas sobre o número destes e o armamento que possuíam. 
Com uma fama de alta periculosidade, enfrentar os quilombolas era enfrentar o 
desconhecido de tal forma que, quanto menor fosse esse enfrentamento direto 
melhor. Em todo caso, além das prisões o retorno de alguns escravos para seus 
respectivos senhores acabou por dar um ar de vitória aos milicianos, ainda que 
momentâneo.36 
Todas essas ações não passavam de paliativos, pois a “hidra” recuperava-se em 
pouco tempo e com mais força. A presença dos quilombos nessa região era 
endêmica e crônica e crescia a cada dia com a chegada de mais escravos fugidos das 
propriedades de perto e de longe. Em um rápido relato o Juiz ressaltou que “de 
Manoel Ferreira Borges de Santana fugiram 14; de João Jozé Tárcio, 12; de outros 
tem fugido três, quatro e mais”37, apontando para uma fuga que podemos considerar 
como em massa, em vista do que o próprio juiz afirmou que muitos proprietários 
ficaram sem nenhum escravo após a fuga. Posteriormente o juiz vai dizer que “os 
fugitivos tem se feito formidáveis pelo grande número dos que, todos os dias fogem 
para aquela guarida [ilegível] pelo amor à ociosidade”38 . 
Aparentemente a situação chegou a tal ponto que muitos proprietários deixaram 
de castigar seus escravos pelo medo das fugas que começavam a prejudicar a 
produção da lavoura, especialmente a farinha e o arroz que dali eram exportados. 
Outro fator que pode ter colaborado para o aumento das fugas e consequentemente 
dos quilombos é o fato de que muitos proprietários moravam nas vilas, enquanto 
suas terras ficavam cuidadas por terceiros, o que aumentava muito o descontrole da 
escravaria. Outros eram pequenos proprietários que não tinha quem controlasse os 
poucos escravos a não ser ele próprio do qual dependia muito. Provavelmente esse 
tipo de proprietário tenha sido os que, com mais frequência recebiam seus escravos 
de volta após tentativas de invasões aos quilombos.

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