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1 ANGÚSTIA E DOR NA MELANCOLIA Bruna Alvares Lunardelli Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto ANGÚSTIA E DOR NA MELANCOLIA Bruna Alvares Lunardelli 1 Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto 2 Resumo Trata-se de um estudo psicanalítico teórico, que tem por objetivo discutir, na teoria freudiana, a angústia e a dor presentes na melancolia. O trabalho do luto, presente na melancolia é patológico e incompleto, além de doloroso. A dor, como afeto desprazeroso decorrente de um excesso de excitação, é reação ante a perda do objeto, em que o psiquismo se empenha no trabalho de desmanchar os laços de ligação com esse objeto perdido, que foi transportado para dentro do ego, empobrecendo-o, em uma “hemorragia” psíquica. Tem-se a dor psíquica, que dispara a reação de angústia frente ao perigo da perda de objeto. No entanto, tal perigo caracteriza-se mais pelo perigo de morte do ego – por conta da identificação do ego com o objeto perdido –, do que apenas do objeto, como nos neuróticos. Trata-se da angústia de morte, no conflito entre ego e superego, aparecendo como angústia moral nos melancólicos. Palavras-chave: Melancolia. Luto. Dor. Angústia. Psicanálise. Abstract It is a psychoanalytic and theoretical study, which aims to discuss, in Freudian theory, the angst and pain present in the melancholy. The work of mourning, presente in melancholy is pathologic and incomplete, and also painful. Pain, unpleasant affect as a result of excess excitation, is reaction to the loss of the object, in which the psyche is engaged in the work of cutting up the bonds of connection with the lost object, which 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, na linha de pesquisa “Psicanálise e Civilização”; Especialista em Psicologia Clínica Psicanalítica, pela Universidade Estadual de Londrina. 2 Professor doutor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá. 2 was transported into the ego, impoverishing it, in a "bleeding" psychic. It is a psychic pain, which triggers the reaction of angst against the danger of loss of object. However, this danger is characterized more by the risk of ego’s death – because of the ego's identification with the lost object – than just of object’s death, as in neurotics. It is the fear of death, in a conflict between ego and superego, appearing as the melancholy moral angst. Keywords: Melancholy. Mourning. Pain. Angst. Psychoanalysis. 1. Introdução “Donde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?”. Julia Kristeva (1989, p.11) nos coloca, com suas indagações, frente ao sofrimento e a devastação que a melancolia traz consigo. Em seu livro, a respeito da depressão e melancolia, a autora caracteriza esses quadros como um sol negro, luz sem representação, instância sem presença, em que o abismo de tristeza e dor incomunicável que absorve o melancólico, o faz perder o gosto pelas palavras, pelos atos e pela própria vida. Qualquer golpe, derrota ou dificuldade funciona como gatilho de disparo melancólico para uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições, desespero e temores, às vezes incolor e vazia também. Tal acontecimento é, geralmente, desproporcional à catástrofe interna que ele dispara. Tanto na fase melancólica, de inibição e assimbolia, de acordo com Kristeva (1989), quanto na maníaca, de exaltação, que caracterizam essa patologia, o que está em jogo nesses pacientes é a dificuldade de elaboração das perdas, com as quais nos deparamos durante toda nossa vida, inúmeras vezes. Portanto, tais pessoas sofrem e fazem sofrer em todas as esferas de relacionamento, tanto social, familiar e amoroso, quanto profissional. Ao acompanhar pacientes melancólicos e maníacos e seus familiares, na minha experiência clínica e de atuação em saúde mental, deparei-me com intenso sofrimento e desespero, tanto por parte dos pacientes, familiares, quanto da equipe técnica que os atendia, sofrimento e desespero meu inclusive. Tais situações são aflitivas, extenuantes, mobilizam emoções intensas e levam todos os envolvidos ao limite de suas forças. Desde Aristóteles, a melancolia é vista como estado enigmático, de intensa tristeza e medo, como um quadro obscuro de doença da alma, desenvolvido a partir de distúrbio somático, que afeta os indivíduos excepcionais, de caráter e conduta excelente, 3 com um tipo específico de temperamento ou índole natural. Na Idade Média, em meio a tantas questões religiosas, a melancolia passou a ser considerada uma atitude pervertida e pecaminosa, sinônimo de abatimento e tristeza por indolência, preguiça, desleixo (Berlinck, 2008). Foi com Freud, segundo Berlinck (2008), que a melancolia passou a ocupar o lugar de acontecimento inteiramente psíquico, como perda irreparável, escondida nas profundezas do inconsciente. Foi a partir dos estudos freudianos que a compreensão da melancolia e da mania começou a ser elucidada. Esse trabalho visa abordar a melancolia do ponto de vista freudiano, com o objetivo de iniciar uma discussão a respeito da angústia e da dor presente nesses quadros. Quando um paciente melancólico relata dor, de que dor se trata? E a angústia? Trata-se de angústia como a que está presente nas neuroses? Como se mostra a angústia em um paciente calado, triste, vazio, apático, que por vezes fica falante, eufórico, agitado, cheio de energia? Para isso, iniciaremos pelas definições. 2. A melancolia Para Freud (1917/1996), a melancolia consiste em um desânimo, com perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, diminuição ou inibição de toda e qualquer atividade e uma diminuição da autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminações. Em concomitância, estão presentes os sintomas de anorexia, insônia, e um marcante sentimento de culpa, bem como a possibilidade de suicídio. A melancolia possui outra fase, com a qual pode geralmente se alternar, com traços opostos aos seus, a mania. Esta fase é caracterizada por sentimentos de alegria, triunfo ou exultação, de autossatisfação, maior disposição para qualquer tipo de ação devido à maior quantidade de energia, desinibição, humor jocoso, busca voraz por novas catexias objetais que se traduz em maior sociabilidade, perda de autocrítica, de sentimentos de consideração pelos outros e de autocensuras. Laplanche (1980/1993) nos lembra de que Freud toma a melancolia em um sentido muito preciso, psicopatológico, de psicose. Além disso, considera a alternância com a mania o aspecto mais notável da melancolia, e que permite, segundo Laplanche, confirmar hipóteses referentes justamente à melancolia. Em relação aos processos psíquicos descritos por Freud (1917/1996), em Luto e Melancolia e envolvidos na melancolia, encontra-se, em um primeiro momento, uma perda objetal que engendra no ego trabalho psíquico semelhante ao do luto. 4 Por meio da conhecida analogia que faz do luto com a melancolia, de acordo com Laplanche (1980/1993), Freud – ao esclarecer um estado patológico através de um estado normal que guarda relação com o primeiro – dá destaque à noção de objeto, à questão de sua escolha e ao problema de sua perda, que será o ponto de partidapara o estudo da melancolia. O luto remete a considerações a respeito da solidez do vínculo com o objeto e ao que acontece quando esse vínculo é posto à prova, indicando que o processo, ou trabalho do luto, como designa Freud, é vagaroso, não se constituindo em um desprendimento imediato do objeto perdido. O quadro da melancolia é em grande parte idêntico ao do luto, diferenciando por ser mais acentuado e por apresentar um aspecto a mais: a característica da autoacusação, “um delírio moral, um delírio centrado na questão da culpabilidade” (Laplanche, 1980/1993, p. 298). Uma perda objetal irá despertar um estado melancólico, e não de luto, se o indivíduo apresentar as três precondições da melancolia apontadas por Freud (1917/1996): (1) perda do objeto, com o qual o relacionamento foi marcado por intensas (2) ambivalências, ainda que inconscientes, e um conseqüente recolhimento da libido objetal, que por meio da regressão, retorna ao ego, isto é, ao (3) narcisismo. Tal perda é mais complexa e bem menos evidente do que no quadro patológico do luto, e pode ser desencadeada pelo luto de uma perda efetiva de um objeto amado, ou não, apenas uma perda no campo do ideal. Pode ocorrer, também, a partir desse luto, um estado maníaco e não melancólico, fato muito comum e passível de ser observado em clínicas psiquiátricas, confirmando a relação da mania e da melancolia com a perda de objeto. No entanto, na melancolia o sujeito não se dá conta inteiramente de sua perda, no sentido de que ele sabe quem perdeu, mas não o que perdeu nessa pessoa. Laplanche (1980/1993) esclarece que o sujeito ignora qual era seu tipo de vínculo com o objeto perdido, e o que ele realmente deplora na ruptura desse vínculo, apontando dois aspectos desconhecidos, pelo sujeito, do vínculo: um aspecto ambivalente e outro narcísico. Laplanche destaca que é nesse ponto de vínculo narcísico que Freud insistirá para a caracterização da melancolia, ao perceber que, na verdade, as autoacusações do melancólico não se dirigem a ele, mas sim ao objeto perdido com o qual se encontra narcisicamente identificado, uma vez que, segundo Freud (1917/1996), o objeto perdido foi eleito pela escolha objetal narcísica. 5 Nesses indivíduos, ocorrerá, inicialmente, uma fase de melancolia, na qual a catexia do objeto externo será abandonada, já que possui baixo poder de resistência devido ao narcisismo aumentado do indivíduo, tornando frágeis e instáveis suas relações objetais. Essa libido retirada do objeto será voltada ao interior do psiquismo mediante a introjeção desse objeto abandonado no mundo externo, a fim de que esta relação não seja definitivamente terminada, em uma negação da perda dolorida. O retorno da libido é possibilitado por uma regressão da pulsão, que volta ao estado narcísico elegendo seu ego como objeto. A organização libidinal correspondente ao narcisismo é a fase oral, à qual o indivíduo é remetido durante o processo de regressão. A partir dessa fase, o indivíduo vai introjetar o objeto pela incorporação, modo libidinal de relação objetal pertencente à fase oral em que se encontra, mais especificamente, à fase oral canibalista, com predomínio da fantasia de devorar o objeto. Tal devoramento, com liberação das tendências sádicas sobre o objeto, e a ambivalência pré-existente, aumenta os sentimentos de culpa do ego. Laplanche (1980/1993) ressalta que Freud destaca que há uma perda de objeto no luto, já na melancolia há uma perda do ego, que ocorre devido a uma identificação com o objeto perdido, possibilitada pelos vínculos narcísicos e ambivalentes que estabeleceu com ele. Quando a retirada de investimentos sobre esse objeto é impulsionada pela sua perda, fica evidente a fragilidade do vínculo com tal objeto, porém mostra-se a fixação característica da escolha narcísica, em que o amor pelo objeto é deixado de lado, mas o próprio objeto não é, sendo então carregado, no momento da retirada, para o interior do ego do próprio indivíduo. Isso é possível uma vez que há uma identificação, que passa da escolha narcísica para uma identificação narcísica; e da perda do objeto para uma identificação com o objeto perdido. Quando o ego introjeta o objeto por meio da incorporação, identifica-se narcisicamente com ele, alterando-se à forma do objeto. Porém o ego, sendo um desenvolvimento a partir do id, conforme Freud (1917/1996) descreveu, possui também dentro de si estruturas que dele se originaram, como o superego e o ideal do ego, que é, por sua vez, subestrutura do superego. O ego, ao se alterar após a identificação ocorrida, desperta todas as objeções do superego e do ideal de ego, objeções essas que se dirigiam originalmente ao objeto, mas não foram feitas por medo de perder tal objeto ou de provocar a raiva do mesmo, levando ao abandono por parte deste. Esse é o retorno ao próprio ego dos impulsos hostis inicialmente dirigidos ao objeto, constituindo-se, 6 também, em uma utilização defensiva de uma vicissitude pulsional normal (Laplanche & Pontalis, 1967/2001). É possível que a identificação, com a subsequente sublimação e dessexualização características, ocasione a desfusão das pulsões de vida e de morte no interior do aparelho psíquico, e reabasteça o superego de pulsão de morte. Esta instância já é o lugar por essência da destrutividade, uma vez que ela mesma foi formada a partir da introjeção e identificação com os pais, e possui toda a agressividade entrincheirada em si. Também, a introjeção da ambivalência se impõe ao ego por meio das pulsões sádicas agora dirigidas a ele. Um vínculo ambivalente é uma relação feita de amor e ódio ao outro, coexistindo essas pulsões antagônicas em toda relação com o objeto. O protótipo mais primitivo de relação ambivalente é a noção de canibalismo. Um modo de relação oral, que consiste em um movimento único de amor e destruição do objeto para ingeri-lo. Em termos psíquicos, “e, no movimento em que ele é ingerido, é ao mesmo tempo conservação do objeto no interior de si; é o que chamamos incorporação. É ainda apropriação das qualidades do objeto, ou introjeção dessas qualidades” (Laplanche, 1980/1993, p. 303). Laplanche (1980/1993) complementa ainda Freud, ao concluir que na melancolia o objeto perdido é introjetado como um objeto mau, uma vez que nesse processo de introjeção é clivado e introjetado sob a sua forma má, devido à influência da relação ambivalente com ele. Por meio da identificação narcísica, o objeto introjetado na sua parte má passa a fazer parte do ego. Pelas pulsões ambivalentes de amor e ódio, o ego torna-se alvo das pulsões sádicas, que tenta fazer sofrer essa parte má. Assim, a tendência ao suicídio seria um modo do indivíduo de separar-se do outro mau que está dentro de si, sendo um assassinato do outro e não de si próprio. Desta situação resultam os sentimentos de culpa do melancólico, bem como os delírios de inferioridade e as autorrecriminações, pois agora é o superego que abertamente hostiliza o ego, fato que o ego mantinha inconsciente em relação ao objeto. Percebe-se, com isso, uma luta dentro do sujeito entre um acusado e um acusador. Conforme Laplanche (1980/1993), essa oposição é descrita por Freud como uma clivagem no ego, que agora modificado pelo objeto identificado a ele, entra em um embate contra o superego. Tem-se, então, que na melancolia, “o superego persegue o ego, um ego que está identificado com um objeto mau” (Laplanche, 1980/1993, p. 312). Ainda, de acordo com o autor, o discurso ou as palavras dos pacientes melancólicos 7 provêm da posição subjetiva do superego perseguidor: “o melancólico não está apenas empoleirado na posiçãodo superego; ele é autoperseguidor mas também parcialmente perseguido.” (p. 314). Sujeito autoperseguidor pela posição subjetiva do superego, perseguido a partir da posição do ego. A respeito do superego, Laplanche expõe que, na época das formulações de Freud sobre luto e melancolia, ele ainda não era denominado como tal, mas já ocupava um lugar de instância de censura ou consciência moral. Sua realidade é atestada em fenômenos patológicos e de regressão – psicóticos como a melancolia, na qual desempenha relevante papel –, que isolam a instância da consciência, individuando-se como uma voz que exprime, alucinatoriamente, descrições e comentários dos atos e pensamentos do doente. É, portanto, uma instância que observa e se posiciona com uma tonalidade crítica, medindo o desempenho do sujeito, em comparação com um ideal a ser alcançado, do qual ele é guardião. Laplanche (1993) aponta que o fato de se tratar de uma voz revela a gênese dessa instância, tal como sugere Freud: trata-se da voz dos pais, que incitaram com seu narcisismo a formar o ideal do ego da criança. “O próprio ideal narcísico da criança é o reflexo – ou a projeção – do ideal de onipotência (debilitado) que os pais projetam nela” (Laplanche, 1993, p.289). Com isso, a ênfase do psiquismo, mediante um rearranjo econômico, é retirada do ego e transferida para o superego. No conflito que se estabelece entre essas duas instâncias, o ego fragilizado pode ser até levado ao suicídio pela tirania do superego e por toda a pulsão de destrutividade dirigida a ele. Nesse ponto, Freud explica que pode ser que o trabalho interno da melancolia abandone de vez o objeto internalizado, ou que a fúria contra o mesmo se dissipe, e a crise vá embora do mesmo jeito que se iniciou. Pode-se afirmar que outro desfecho seria inevitavelmente o suicídio, enquanto outra possibilidade seria a negação, novamente, da realidade interna desagradável da melancolia, resultando em um quadro de mania, totalmente oposto ao da melancolia, e uma reação defensiva a esse. O estado maníaco é possibilitado, à luz da psicanálise, pela regressão da libido ao narcisismo, uma vez que encerrado o conflito da melancolia, a energia utilizada ligada ao conflito conflui livre para o ego inundando-o, resultando na excessiva energia que caracteriza os processos de mente maníacos. O conflito da melancolia, quando se transforma em mania, pode decorrer do fato de o ego dominar ou ignorar os conflitos intrapsíquicos, em atitude de negação, e derivar daí sua sensação de triunfo sobre o superego. Pode, também, ser resultante da abolição temporária e necessária descrita por 8 Freud das tensões entre as instâncias psíquicas, dissolvendo o superego e ideal do ego novamente no ego, situação que faria o ego coincidir com seus modelos e obter satisfação narcísica, como na infância, recuperando toda a onipotência perdida. 3. Luto, angústia e dor e os quadros melancólicos Sabemos que a melancolia é um quadro psicopatológico que engloba aspectos do trabalho do luto, vivências de angústia e dor. O estado de luto caracteriza-se, segundo Freud (1917/1996), por um conjunto de reações à perda de um ente querido ou a alguma abstração substituta a esse ente, como, por exemplo, o país, a liberdade, o ideal de alguém, entre outras. Isso normalmente faz irromper a situação de luto normal, entretanto, em alguns casos de pessoas com uma predisposição patológica, manifesta-se a melancolia no lugar do luto normal. A comparação que Freud faz entre a melancolia e o luto é justificada também pelo fato de que as características da melancolia coincidem com estado de luto, exceto uma delas, a alteração na autoestima, presente apenas na melancolia. A reação de luto desperta sentimentos penosos como perda de interesse pelo mundo externo – já que o objeto não se encontra mais lá – perda da capacidade de amar, pois adotar um novo objeto significa substituir o antigo, e o afastamento de atividades que não estejam ligadas a pensamentos a respeito do mesmo. Essa inibição e diminuição de atividades expressa a exclusiva devoção do ego ao trabalho do luto, que o consome por um determinado tempo, sem sobrar energia a outros objetivos e interesses (Freud, 1917/1996). Embora o luto seja um grave afastamento do que constitui atitude normal e esperada no tocante a vida, não é considerado condição patológica que necessite de tratamento médico, uma vez que será superado após um certo tempo, sendo inútil ou prejudicial qualquer interferência no que concerne a esse processo normal e necessário (Freud, 1917/1996), ao contrário da melancolia, uma condição notavelmente patológica. O trabalho psíquico realizado no luto ocorre por meio do teste da realidade, que revela ao psiquismo que o objeto amado não existe mais, passando a retirar toda a libido das ligações com este objeto. Tal retirada encontra intensa oposição, já que, segundo Freud (1917/1996), as pessoas nunca abandonam de maneira fácil uma posição ou objeto libidinal, nem quando já possuem um substituto em vista. Essa oposição faz com que haja um desvio/negação da realidade e um apego ao objeto perdido, por uma transitória “psicose alucinatória carregada de desejo” (p.250), porém, a realidade 9 prevalece no final do processo. Vagarosa e lentamente, com elevado dispêndio de energia catexial, cada uma das lembranças e expectativas por intermédio das quais a libido estava ligada ao objeto é evocada, hipercatexizada, e desligada, cada uma a sua vez, prolongando psiquicamente nesse tempo a existência do objeto que se perdeu. Ao final dessa tarefa penosa, o ego fica outra vez livre e desinibido para investir em outros objetos da realidade. O trabalho do luto é doloroso. Freud define a dor de maneiras diferentes ao longo de sua obra. De modo geral, segundo Berlinck (1999 citado por Silva, 2007), a psicanálise permite concluir que a dor é uma manifestação da vida da espécie humana e se refere a um excesso próprio da pulsão. Silva (2007) refere que Freud pensava a dor, em um primeiro momento, como a face aparente da excitação não assimilada no passado e, posteriormente, como parte da natureza pulsional do homem. A dor, afeto desprazível com tendência à descarga, é descrita por Freud (1895b/1996) como uma invasão, ruptura, dos protetores ou para-excitações que protegem o organismo da excitação externa. Esse acréscimo de excitação é sentido como desprazer, que precisa ser descarregado, percorrendo um caminho que se torna facilitado, isto é, memorizado sem resistências, criando um elo entre descarga e imagem-recordação do objeto provocador de dor, cuja vivência pode ser posteriormente reproduzida na ausência do objeto que a provocou. Segundo Ramos (2003) a dor, nessa ocasião é explicada como uma ruptura de barreiras, uma implosão, que serve de modelo e também impulsiona o recalcamento. Após 1926, em que Freud reformula a teoria da angústia, Ramos (2003) afirma que a explicação dada a dor será basicamente a mesma, porém o estado afetivo de desprazer envolvido no recalcamento será a angústia, tornando a diferenciação entre esses dois estados – dor e angústia – pouco satisfatória. A angústia, por sua vez, também apresenta modificações no desenvolvimento da teoria freudiana. Freud a define, nos anos 1890, como um impulso libidinoso com caráter de desprazer, sendo subproduto indesejável da sexualidade, alheio ao psíquico, portanto, não representável, não simbolizável pelo indivíduo (Ramos, 2003). A primeira teoria coloca a angústia como angústia tóxica ou de pulsão, conforme Ramos (2003), na qual a angústia seria a libido não ligada, inutilizada, transformada por e resultantedo recalcamento. Novamente vê-se a questão econômica do desprazer ligada ao excesso, excesso de libido transformada e não ligada, a pulsão com sua própria energia causando o afeto de angústia. Já a segunda teoria coloca a angústia 10 como reação ao perigo – perigo interno pulsional e externo – como sinal para o eu desencadear mecanismos defensivos de proteção, como o recalcamento, e não resultante dele, como na primeira formulação. O perigo a que se refere a teoria freudiana é a possibilidade de perda do objeto amado, sendo a situação do nascimento, exemplo de separação primeira, o protótipo de situações de angústia. Tais definições não são totalmente esclarecedoras, há que se diferenciar entre os estados de luto, dor e angústia para compreendê-los melhor. Para Freud (1926/1996), esses três estados são decorrentes e reativos a uma perda - separação do objeto, ou à expectativa dela. Porém, o que os diferencia? “A dor é assim a reação real à perda de objeto, enquanto a ansiedade [angústia] é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto.” (Freud, 1926/1996, p.165). Segundo Ramos (2003), na angústia, a perda acarreta um desvalimento físico e psíquico, devido à expectativa de desamparo e trauma que a acompanha. Porém, ainda para o autor, dor e angústia, ambas como resposta ao trauma, continuam indiferenciadas do ponto de vista econômico. Já o luto, como dito anteriormente, ocorre sob influência do teste de realidade, que força a pessoa desolada separar-se do objeto, uma vez que esse não mais existe. No trabalho de luto, efetua-se a retirada de catexias dirigidas ao objeto perdido, trabalho esse doloroso por conta da necessidade de desfazer todos os laços anteriormente ligados ao objeto. Que qualidade de dor é essa? 4. Dor psíquica e angústia moral no sofrimento melancólico A dor presente na melancolia, bem como no luto, é uma dor psíquica, em contraposição à dor física. Freud (1895a/1996) discorre sobre a dor ao explicar os principais efeitos da melancolia: inibição psíquica, com empobrecimento pulsional, portanto dor e o respectivo sofrimento. Isso ocorre devido ao fato do psiquismo se deparar com uma grande perda da quantidade de sua excitação, podendo ocorrer uma “retração para dentro” (p.252) na esfera psíquica, que produz juntamente sucção das excitações adjacentes a essas. Os neurônios associados são obrigados, portanto, a desfazer-se de sua excitação. Desfazer associações, segundo Freud, é doloroso, então tal situação produz sofrimento, como no trabalho de luto. Com isso, há um empobrecimento de excitação, uma “hemorragia interna”, nas palavras do autor (p.252), que se manifesta em outras pulsões e funções, de forma inibidora, como uma “ferida”. 11 A contrapartida deste estado é a mania, na qual o excesso de excitação se expande até os neurônios associados. Em 1926, Freud (1926/1996) retorna a uma explicação da dor, utilizando, de certa forma, esta descrita acima, ao afirmar que na dor física ocorre uma catexização narcísica do ponto doloroso. Essa catexização esvazia o ego, por consequência. Nas sensações de dor mental ou psíquica ocorre o mesmo processo, porém no lugar de catexia narcísica, tem-se a catexia objetal: o objeto do qual se sente falta ou foi perdido é altamente catexizado e cria as mesmas condições de dor que se acha concentrada na parte machucada do corpo. O alto nível de catexia e ligação que acontece nesse processo conduz a um sentimento de desprazer, ao mesmo tempo que retira do ego boa parte de sua energia. Podemos complementar, a partir da explicação de 1895 acima descrita, que a dor envolvida no luto se relaciona a essa elevada catexia do objeto perdido e sua posterior retirada, desmanchando os laços de ligação objetal, o que também ocorre na melancolia, exceto o fato de que tais ligações são transportadas pra dentro do psiquismo juntamente com o objeto, porém empobrecem e desamparam o ego, escapam como em uma hemorragia, concentrando-se de maneira crescente e contínua em torno do objeto. Tanto desamparo dispara a reação de angústia frente ao perigo da perda de objeto. No entanto, tal perigo caracteriza-se, na melancolia, muito mais pelo perigo de morte do ego e consequente perda do objeto, do que apenas pelo objeto, como nos conflitos neuróticos. Trata-se da angústia de morte descrita por Freud (citado por Ramos, 2003), como “uma situação em que o eu sofre um intenso rebaixamento de investimento libidinal, abandonando-se a si mesmo do mesmo modo que abandona um objeto, desinvestindo-o.” (p. 105). Tal angústia se dá entre ego e superego, pois o ego se sente odiado pelo superego e se abandona, como no conflito melancólico explicitado por Freud. Segundo Ramos (2003), a angústia de morte pode ser compreendida no mesmo plano da angústia moral: como um processamento da angústia de castração, pela ameaça de perda e separação do pai e da mãe protetora, na luta entre ego e superego. A ameaça de castração advinda do complexo ideal de ego – superego, que fundamenta a aquisição da consciência moral, deriva, nesse conflito, a angústia moral presente nos quadros melancólicos e tão esbravejadas por eles em seus discursos e delírios autorrecriminatórios. 12 Referências Berlinck, L. C. (2008). Melancolia: Rastros de Dor e de Perda. São Paulo: Humanitas. Freud, S. (1895a/1996). Extratos dos Documentos Dirigidos a Fliess – Rascunho G: Melancolia. Em Freud, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (J. Salomão, Trad.; v.1, pp. 246-253). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1895). Freud, S. (1895b/1996). Projeto para uma Psicologia Científica. Em Freud, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (J. Salomão, Trad.; v.1, pp. 335-399). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1895). Freud, S. (1917/1996). Luto e Melancolia. Em Freud, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (J. Salomão, Trad.; v.14, pp. 245-263). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1917). Freud, S. (1926/1996). Inibições, Sintomas e Ansiedade. Em Freud, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira (J. Salomão, Trad.; v.20, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1926). Kristeva, J. (1989). Sol Negro: Depressão e Melancolia (2 ed.). (C. Gomes, Trad.). Rio de Janeiro: Rocco. Laplanche, J. (1980/1993). Problemáticas I: A Angústia (2 ed.). (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1980). Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da Psicanálise (4 ed.). (P. Tamen, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1967). Ramos, G. A. (2003). Angústia e Sociedade na obra de Sigmund Freud. Campinas: UNICAMP. Silva, P. J. C. (2007). Uma história da noção de dor em Freud. Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology on Line, ano VII, n. 1, pp. 70-83. Recuperado em 14 de dezembro, 2010, de http://132.248.9.1:8991/hevila/Latinamerican journaloffundamentalpsychopathology/2007/vol4/no1/6.pdf
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