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Quando a censura veste a toga1 Daniel Sarmento2 As liberdades de expressão e de imprensa foram protegidas de forma reforçada pela Constituição de 88, que as consagrou como cláusulas pétreas. O poder constituinte quis exorcizar definitivamente o risco de que se repetisse, após a promulgação da Constituição, o cenário do regime militar, em que a censura aos artistas e meios de comunicação era prática corriqueira. Diante deste quadro constitucional, causa perplexidade constatar que, no Brasil contemporâneo, a censura tem vindo de onde menos se poderia esperar: do Poder Judiciário. O fenômeno não é novo – basta recordar as diversas biografias de personalidades públicas cuja publicação foi impedida pela Justiça -, mas ganhou novas tintas no atual período eleitoral. Nestes últimos dias de campanha, multiplicaram-se as decisões da Justiça Eleitoral impondo algum tipo de censura aos candidatos ou aos veículos de comunicação. O Corregedor do TRE de Tocantins, em decisão posteriormente reformada pelo próprio Tribunal, proibiu a imprensa de noticiar supostos ilícitos penais em que estaria envolvido o Governador e candidato à reeleição pelo PMDB, Carlos Gaguin. O TRE do Paraná, a pedido do candidato do PSDB ao governo do Estado, Beto Richa, vedou a divulgação de pesquisas eleitorais. O TRE do Rio de Janeiro determinou a retirada da internet de vídeos caseiros que ridicularizavam o candidato a governador, Fernando Gabeira. Não se pretende aqui discutir o mérito de nenhuma destas decisões – todas devidamente fundamentadas em argumentos jurídicos -, mas apenas destacar que elas revelam um padrão jurisprudencial que não atribui o devido peso à liberdade de expressão. A mesma crítica não pode ser dirigida ao Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, a nossa Suprema Corte proferiu, nos últimos tempos, decisões extremamente importantes em defesa da liberdade de expressão, como a que declarou a inconstitucionalidade de normas que restringiam a faculdade dos veículos de telecomunicação de fazerem humor com candidatos durante o período eleitoral. Entretanto, as instâncias judiciais inferiores, sobretudo da Justiça Eleitoral, ainda não compreenderam essas lições do STF, e continuam tratando a liberdade de expressão 1 Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 02/10/2010. 2 Daniel Sarmento é Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ, com pós-doutorado feito na Yale Law School/EUA, Professor de Direito Constitucional da UERJ e Procurador Regional da República. É autor de diversas obras, dentre as quais o livro “Por um Constitucionalismo Inclusivo”, da Editora Lumen Juris. com um certo descaso, como se fosse um direito menor, que devesse ceder passagem a qualquer outro direito ou interesse, em casos de conflito. É verdade que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Como afirmou o Juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes, em célebre passagem, ela não protege aquele que grita “fogo” em um teatro lotado. Contudo, contra o seu exercício abusivo, os remédios prescritos pela Constituição são o direito de resposta e a responsabilização posterior daquele que tenha violado injustamente direitos de terceiro; não a censura. Até se admite, em hipóteses absolutamente extremas e com grande cautela, a imposição judicial de restrições prévias à liberdade de imprensa, visando à tutela de outros direitos fundamentais. Imagine-se o caso de um canal de televisão aberta que anunciasse a transmissão de um filme pornográfico, durante o dia, para um público composto majoritariamente por crianças. Contudo, o que vem acontecendo atualmente é fenômeno muito mais grave: uma verdadeira banalização da censura imposta pela Justiça Eleitoral. A censura não ofende apenas o direito dos titulares dos veículos de comunicação, ou daqueles que são impedidos de se manifestar. Ela agride sobretudo o direito do público, que se vê privado do acesso a opiniões, idéias e informações diversificadas, necessárias para que cada um possa formar livremente as suas próprias convicções e fazer as suas escolhas. Ainda quando bem-intencionada, a censura é anti- democrática, pois infantiliza o cidadão, ao presumir que ele não tem capacidade de julgamento, e que por isso deve ser impedido de conhecer certas opiniões ou informações, tidas como erradas ou “perigosas”. Quando estão em jogo pessoas públicas ou temas de interesse social - o que ocorre invariavelmente no contexto eleitoral – as liberdade de expressão e de imprensa ganham a sua máxima proteção. Por isso, a proteção da honra e reputação dos políticos e candidatos tem, neste cenário, de ceder algum espaço, de forma a não asfixiar os debates travados na esfera pública, que devem manter-se abertos e robustos, para o bem da democracia. Tem se tornado cada vez mais frequente a crítica dirigida ao excesso de judicialização da política brasileira. Alega-se que o fenômeno comprometeria a democracia, ao permitir que juizes não-eleitos decidam questões extremamente controvertidas, substituindo os representantes do povo. Uma das respostas a esta crítica afirma que o ativismo judicial muitas vezes protege a democracia, ao invés de violá-la, ao garantir direitos que são pressupostos para o seu funcionamento. Contudo, quando o Judiciário se torna ativista contra a liberdade de expressão – logo, ativista contra a democracia – aí sim, é hora para grande preocupação.
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