Prévia do material em texto
OBJETOS DE ESTUDO DA PSICOLOGIA Geraldine Alves dos Santos Psicóloga (PUCRS), Formação em Método de Rorschach (ASBRo) e na Técnica de Zulliger (ASBRo), Formação em Psi- codrama, Especialista em Gerontologia Social, Mestre em Psicologia Clínica, Doutora em Psicologia, Pós-Doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUCRS, Professora titular do Curso de Psicologia da Universidade Feevale. Professora e Pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social. Líder do Grupo de Pesquisa Corpo, Movimento e Saúde. E-mail: geraldinesantos@feevale.br. A ciência da Psicologia tem um obje- to de estudo muito amplo: o ser humano. Ao mesmo tempo em que essa afirmação é simples, compreende uma complexidade di- fícil de ser expressa em um capítulo. Qualquer situação cotidiana de nos- sas vidas pode nos levar a obser- var vários aspectos que pode- rão ser objeto de estudo da Psicologia. Por exemplo: ao realizarmos a avalia- ção de uma disciplina da graduação, muitas questões estão envolvi- das. Podemos pensar na capacidade de aprendi- zagem, na atenção, no desejo de aprender, na au- toestima, na percepção de eficácia cognitiva, nas motivações etc. Uma única atividade pode evocar várias possi- bilidades de áreas de estudo da Psico- logia. E assim nosso dia a dia está per- meado por muitas situações que in- trigam os psicólo- gos a desvendar os mistérios da mente humana. A Psicolo- gia é uma ciên- cia que procura compreender o comportamento e os processos men- tais. Nesse sentido, vamos poder obser- var que os estudos desenvolvidos pelos psicólogos e por suas equipes disciplinares e interdisciplinares pro- curam ter como objeto de estudo o que o ser humano faz, ou seja, seu comporta- mento visível, e nesse momento podería- mos pensar no seu comportamento de estar lendo este livro; seus pensamentos, ao ler este texto, todas as ideias que apare- cerem em sua mente serão pen- samentos ligados ao texto ou não, motivados por questões conscientes ou inconscien- tes; suas emoções, como a alegria, a raiva, o medo; suas percepções; ao ler este texto, algumas pes- soas o considerarão mui- to bom, outras o acha- rão péssimo, porque, em função de experiências anteriores, ou mesmo das condições em que fo- ram estimuladas a realizar a leitu- ra, poderão alterar a percepção (um copo com metade da água, alguns po- derão percebê-lo como meio cheio e outros, como meio vazio); seus processos de ra- ciocínio; suas memórias; e, por fim, as ativi- dades biológicas que parecem não ter muito a ver com a Psicologia, mas que se tornam um dos elementos mais importantes, pois a mente huma- na está totalmente interligada ao orga- nismo físico (RENNER et al, 2012). Se pensarmos o ser humano como o objeto primeiro de estudo da Psicologia, devemos nos lembrar de nossa origem e de nossa história. Vamos começar pelas primeiras compre- ensões do ser humano sobre ele mesmo. Wong (2013) explana sobre o princípio de nossa história: Em alguma época entre 3 e 2 milhões de anos, talvez numa savana primitiva na África, nossos ancestrais se tornariam reconhecidamente humanos. Por mais de 1 milhão de anos seus antecessores australo- pitecinos – Lucy e os de sua espécie -, que caminhavam eretos mas ainda tinham pernas curtas, mãos para subir em árvores e cérebro pequeno de seus antepassados macacos, prosperavam dentro e em torno de florestas e bosques do continente. Mas seu mundo estava se transformando. A mudança climá- tica favoreceu a propagação de campos abertos e os primeiros australopitecinos deram origem a novas linhagens. Uma dessas ramificações evoluiu com pernas longas, mãos hábeis e um cérebro enorme. Era o gênero Homo, o primata que governaria o planeta (p. 12). Assim, a história desvela-nos os nossos primeiros passos. Remontamos ao momen- to em que nos demos conta de que podía- mos modificar o ambiente a nossa volta. Os homens da caverna, ao descobrirem, por exemplo, o fogo e, posteriormente, o seu uso, mudaram o seu comportamento em re- lação ao ambiente e assim foram dando sen- tido a sua existência a partir de cada nova descoberta. Evoluímos muito nessa sequên- cia, de século em século, até chegarmos a nossa configuração atual. Ainda desconhe- cemos o momento em que delimitamos o processo de autonomia sobre o ambiente e sobre o nosso comportamento. Essa caixa preta talvez fique lacrada para o resto da história, uma vez que os antropólogos e as ciências afins ainda mantêm dúvidas sobre essas explicações. Mas, esse comportamento Cada pulo representava uma oportunidade para a evolução. Poderosas forças seletivas estavam em jogo para produzir orga- nismos com graça e agilidade, visão binocular acurada, habilida- des manipulativas versáteis, soberba coordenação oculomanual e uma concepção intuitiva da gravitação newtoniana. Cada uma dessas habilidades, entretanto, exigia consideráveis avanços na evolução dos cérebros e particularmente do neocórtex de nos- sos ancestrais. A inteligência humana, fundamentalmente, deve muito aos milhões de anos em que nossos ancestrais pularam de galho em galho no alto das árvores (SAGAN, 1987, p. 59). de modificar o ambiente com nossas ações e darmos sentido a nossa existência se man- tém presente, certamente muito mais com- plexo com o advento do mundo virtual, mas tão rico de sentido quanto na descoberta do fogo ou da roda. Sagan (1987) discute interessantes ele- mentos sobre o desenvolvimento do ser humano. Ao comparar o ser humano com outros animais, identifica a sua fragilidade definida pelo seu tamanho e pelo risco de se machucar. Qualquer queda superior a dois metros pode configurar um ferimento ou mesmo a morte. Consequentemente, po- demos compreender que nosso peso é des- proporcional a nossa superfície corporal em função de nosso tamanho. Nesse sentido, cada pulo de um galho para outro pode re- presentar um grande perigo. Diante de toda essa evolução, Sagan (1987) traz interessantes reflexões sobre a origem de nossos comportamentos. Naturalmente, todas as nossas concepções atuais de compor- tamento, por mais diversas que possam se configurar, são permeadas pelos comportamen- tos aprendidos por nossos ancestrais. Nossos medos, nossas angústias e nossos prazeres possuem bases evolutivas. E depois que retornamos à savana e abandonamos as árvores, será que ansiamos por aqueles enormes saltos graciosos e aqueles momen- tos de êxtase da imponderabilidade nos raios de luz do topo das flo- restas? Será o reflexo do abraço das criancinhas hoje é uma tentativa de evitar a queda do alto das árvores? Seriam nossos sonhos notur- nos de voar a nossa paixão diurna pelo vôo, como exemplificaram as vidas de Leonardo da Vinci e Konstantin Tsiolkovskii, nostálgicas reminiscências daqueles dias passados nos galhos altos das flores- tas? (SAGAN, 1987, p. 59). Nesse processo de adaptação e de desen- volvimento de nosso cérebro, configura-se o comportamento humano e se estabelece a dicotomia entre o mundo interno e o mun- do externo. Na relação de sobrevivência que estabelecemos com o ambiente, surgem os sentimentos de medo ou alegria, mesclados com sensações de frio, dor, fome etc. Então, encontramos a associação de que, quando atendemos a nossas necessidades básicas, temos emoções agradáveis. Quanto mais pensamos no decorrer de nossa evolu- ção humana, mais complexos se tornaram os nossos pensamentos e, assim, nossas in- dagações se multiplicaram. Quem sou eu? Quem somos nós? Qual o sentido de nossas vidas? Muitas perguntas, poucas respostas? O vazio das explicações, muitas vezes, leva os seres humanos ao sentimento de angús- tia existencial. Quando nasce a Filosofia, nos deparamos com pensadores como Ta- les de Mileto(624 – 546 a.C.), Pitágoras (c. 569 – 495 a. C.), Confúcio (551 – 479 a. C.) e Sócrates (469 - 399 a. C.), que nos ensi- nam a buscar respostas baseadas na razão em lugar da convenção. Tales, nascido na cidade grega de Mileto, é considerado histo- ricamente como o primeiro filósofo, pois ele transmitiu aos seus seguidores um proces- so de pensar racionalmente. Portanto, Tales nunca deu respostas fechadas aos seus se- guidores, como se fossem verdades imutá- veis. A partir de sua indagação inicial - “Do que é feito o mundo?” -, os filósofos que o seguiram desenvolveram a Filosofia. Eles formaram, a partir desses questionamentos, a base do pensamento científico e estabele- ceram uma forte relação entre a ciência e a Filosofia (ATKINSON et al., 2011). Sócrates, com sua célebre frase “Só sei que nada sei”, marcou para sempre o sen- timento de ignorância da humanidade. To- dos os seus ensinamentos demonstram o longo processo de conhecimento humano para encontrar respostas. O método dialéti- co de Sócrates desenvolveu na humanidade um espírito questionador. Ao ser definido pelo Oráculo de Delfos como o homem mais sábio do mundo, Sócrates, indignado, de- senvolveu o método dialético, partindo do princípio de quem nada sabia. Ele simples- mente estava fazendo perguntas. Assim, ele foi, aos poucos, expondo as contradições, a partir das argumentações, e levando ao par- to de ideias, a partir de insights. A preocupação central de Sócrates foi a investigação sobre a vida. Seu implacável questionamento sobre as crenças mais estimadas (e, em grande parte, sobre as próprias pessoas crentes) lhe rendeu ini- migos, mas ele permaneceu comprometido com sua empreitada até o fim. De acordo com o relato de defesa em seu julgamento, regis- trado por Platão, Sócrates preferiu a morte a ter de encarar uma vida de ignorância: ‘A vida irrefletida não vale a pena ser vivida’ (ATKINSON et al., 2011, p. 48). A partir do desenvolvimento da Filosofia e da Fisiologia, surge na história da Psicologia o delineamento de seu objeto de estudo, ou seja, uma definição mais clara dessas três áre- as de conhecimento. Nesse sentido, Atkinson, Tomley e colaboradores (2012) demonstram que Enquanto a fisiologia descreve e explica a conformação física do cérebro e do sistema nervoso, a psicologia examina os processos mentais que nele acontecem e como se manifestam no nosso pen- samento, discurso e pensamento. Enquanto a filosofia se preocupa com raciocínios e ideias, à psicologia interessa como eles nos ocor- rem e o que nos dizem sobre o funcionamento da mente (p.10). No caminho dessa construção, encontramos o pensamento de Vigotski (1929/2000) so- bre o ser humano, que é visualizado com base nos seguintes pressupostos: Pensa não o pensamento, pensa a pessoa. Este é o ponto de parti- da da visão [...] O que é o homem? Para Hegel é o sujeito lógico. Para Pavlov é o soma, organismo. Para nós é a personalidade social = o conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo (funções psi- cológicas, construídas pela estrutura social). O homem é para Hegel sempre a consciência ou auto-consciência (p. 33). Ao descrever as categorias fundamentais da na- tureza humana, Hacker (2010) desenvolve um tra- tado sobre o significado de ser humano. Nesse sentido, ele descreve a pessoa sobre vários pontos de vista, desde o biológico até o espiritual, pas- sando inclusive pelas definições de máscaras que se utilizava para o teatro, descrevendo os diversos personagens interpretados pe- los atores. Essa distinção é exatamente a razão que nos diferencia dos animais e nos coloca em uma posição de relativa superioridade. Por sermos racionais, podemos raciocinar e agir por razões. Assim, temos intenções, planos e projetos que perseguimos. Por ter uma lin- guagem, nossos poderes cognitivos nos dotam da habilidade de reter formas complexas de conhecimento que podemos adquirir e que de fato adquirimos. Isso inclui memória pessoal ou da experiência. As- sim, possuímos como se fosse uma autobiografia – podemos narrar nossa vida tal como a recordamos (HACKER, 2010, p. 310). As histórias de vida dos seres humanos os tornam únicos e, através delas, vamos desco- brindo como evoluímos cognitiva, emocional, social e espiritualmente. Os elementos que dão sentido à existência humana são descobertos nas entrelinhas das histórias humanas individuais. Assim, as histórias de vida configuram a história mundial, ou seja, dão sen- tido à formação de outras histórias ao longo da jornada humana. Hacker (2010) continua desenvolvendo sua compreensão sobre o humano e suas autobiografias, referindo que Cada ser humano traça uma rota única através do mundo, e a combinação de dotes genéticos, aptidões variáveis de reagir à experiência individual e memória dão a cada ser humano uma personalidade com uma combinação única de traços de caráter, tendências comportamentais, uma consciência de um passado singular (atinente tanto à vida interior como à vida exterior) e de projetos. Nossa consci- ência do passado incorpora tipicamente uma consciência de nosso grupo social e familiar e da forma de vida que contribui para a geração de nossa identidade social, desempenhando um papel crucial na concepção de nós mesmos. Temos assim, uma percepção (mais fraca ou mais forte) de nossa própria identidade, que pode ser mais ou menos individualista ou mais ou menos tribal (p. 310-311). Podemos pensar que não é uma exclusividade da Psicologia o homem ser o objeto de estudo central. Várias áreas da ciência tam- bém mantêm esse foco de estudo, mas a Psicologia lhe atribui o conceito de subjetividade, assim o transformamos em um objeto de uso exclusivo. A subjetividade dos comportamentos humanos, consequentemente, acaba sendo o principal objeto de estudo da Psicologia. Isso a dife- rencia de outras áreas do conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a Política etc. Podemos considerar que existem muitas áreas dentro das ciências sociais e humanas que ajudam a compreender o ser humano, mas em nenhuma delas vamos encon- trar o estudo da subjetividade do comportamento humano. Todas elas são essenciais para ajudar a Psicologia a compreender a subjetividade. Mas, como objeto específico de estudo, encontraremos ape- nas na Psicologia, independentemente da linha teórica que adotemos. O grande problema, nesse momento em que aborda- mos a subjetividade, é o fato de que os psicólogos estu- dam a si mesmos, ou aos grupos em que também estão inseridos. Portanto, acabam sendo presos, influenciados e absorvidos por suas histórias, por seus amores e de- safetos. O psicólogo estuda a ele mesmo, através dos outros seres humanos. Seria impossível dizer que não estão envolvidos com seu objeto de estudo, quando são seus próprios objetivos de estudo. Talvez, nesse ponto, encontramos o fator mais intri- gante e estimulante da história da Psicologia. Por que o objeto de estudo da Psicologia fascina tanto a socieda- de? Porque o ser humano em essência tem curiosidade. A curiosidade sobre nós mesmos é o maior mistério que tentamos desvendar desde a concepção até a morte. As- sim, no dia em que descobrirmos todos os meandros de nossa existência, a vida não terá mais graça, acabarão o mistério e a energia que nos movem, a libido que nos propulsiona a acordar de manhã, a criar e viver. O papel do senso comum nas indagações científicas da psicologia A sociedade, em algumas situações, con- funde o objeto de estudo da Psicologia com o senso comum. Esse equívoco ocorre por- que, muitas vezes, imagina-se que a Psico- logia surge espontaneamente da mente dos psicólogos sem nenhum rigor científico. O senso comum poderia ser entendi- do como uma hipótese de pesquisa para o pensamento humano. O senso comum, por- tanto, é testado cientificamente e, então, a Psicologiapoderá descobrir se é verdadeiro ou não. Muitas vezes, o senso comum está certo, mas, se a Psicologia confiar apenas no senso comum, poderá incorrer em erros que prejudiquem a vida das pessoas. Todas as pessoas possuem histórias em suas famílias que eventualmente podem se perpetuar em seus comportamentos atuais. Esses comportamentos partem de conse- lhos, histórias, manias, enfim, modelos pas- sados de geração para geração. O que fazer quando alguém está com soluço? Existem muitas crendices: colocar um pedaço de li- nha enrolado no centro da testa da pessoa, beber água, prender a respiração, erguer os braços, dar um susto... Podemos enunciar muitos tipos de crendices que representam o senso comum. Não podemos afirmar que todos estão errados, mas precisamos testá- -los. Esse é o papel da ciência. Esse, portan- to, também é o papel da Psicologia em re- lação ao comportamento humano e às suas subjetividades. Naturalmente, a subjetividade do compor- tamento humano torna essa tarefa de pes- quisa muito mais complicada, pois a grande variedade de variáveis intervenientes pode prejudicar o resultado final dos estudos da Psicologia. Por outro lado, a dificuldade tor- na essa área da ciência instigante e apaixo- nante para os profissionais que nela atuam. Diversidade e riqueza de objetos de estudo da psico- logia A Psicologia, no início de sua história, quando Wundt e Titchner realizavam os seus primeiros experimentos que dariam sentido à existência da Psicologia como ci- ência, focava-se nas sensações internas, nas imagens e nos sentimentos. Posteriormente, James estudou a avaliação introspectiva do fluxo de consciência e de emoção. Quando Freud assumiu relevância na história da Psi- cologia, demonstrou que o objeto de seus estudos era focado também nos comporta- mentos. Freud buscou um avanço na com- preensão desses comportamentos e obser- vou que são influenciados pelas respostas emocionais produzidas pelas vivências in- fantis e pelos processos de pensamentos in- conscientes. Como demonstra Myers (2012), em sua retrospectiva histórica da Psicologia, até a década de 1920, a definição mais clara que tínhamos da Psicologia era de uma ci- ência da vida mental. Essa definição era es- truturada de acordo com os seus objetos de estudo estabelecidos. Rosenbaum (2007) relata, de maneira sin- gela, uma ideia complexa sobre como vá- rios grandes filósofos e psicólogos tentam esclarecer o espaço que existe entre o real e a percepção individual. O mundo interno e a realidade externa possuem uma relação interessante. Segundo o autor, três palavras podem resumir o que a Psicologia estuda: “mundo interno”, “mundo mental” e “mun- do subjetivo”. Esse objeto de estudo nasceu na Grécia Antiga, quando se passou a pensar e deline- ar os meandros da alma humana. O estudo da alma é em si o alicerce básico historica- mente definido para a ciência da Psicologia: Psyché = alma e Logos = razão. Bock, Furtado e Teixeira (2001) conseguem transmitir a dificuldade de identificar o ob- jeto de estudo da Psicologia pela voz das diferentes correntes da Psicologia: Se dermos a palavra a um psicólogo comportamentalista, ele dirá: ‘O objeto de estudo da Psicologia é o comportamento humano’. Se a palavra for dada a um psicólogo psicanalista, ele dirá: ‘O objeto de estudo da Psicologia é o inconsciente’. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, ainda, a personalidade (p. 25). Mas, todas as correntes concordarão que o comportamento, o inconsciente e a perso- nalidade, assim como a cognição, o pensa- mento, as emoções, a motivação, etc. per- tencem ao homem, nosso principal objeto de estudo. Atkinson, Tomley e colaboradores (2012) corroboram esse entendimento demons- trando que, desde o seu início, a Psicologia foi vista de maneiras diversas de acordo com os seus atores. Inicialmente, nos Esta- dos Unidos, a Psicologia apresentava raízes clássicas na Filosofia. Assim, sua aborda- gem era originalmente especulativa e teóri- ca, sem uma base científica, baseada apenas nos conceitos conscientes. Posteriormente, na Europa, encontra-se um quadro ba- seado no espírito científico que agregava a observa- ção em laboratórios dos processos men- tais, como a percep- ção sensorial e a me- mória. A estrutura científica que tentava se consolidar na Psicolo- gia era barrada ainda pela na- tureza introspectiva de seus mé- todos, uma vez que os estudiosos baseavam seus trabalhos em ob- jetos representados por eles mes- mos, restringindo assim a possi- bilidade de expansão. A Psicologia ainda não havia atingido o ponto ideal de construção científica e foi só na década de 1890 que o fisio- logista russo Ivan Pavlov conseguiu dar um salto na definição dos experi- mentos e, consequentemente, no estabeleci- mento dos objetos de estudo da Psicologia. Seus estudos levaram ao desenvolvimento do Behaviorismo, que tinha como objeto de estudo os processos mentais de forma ob- jetiva e controlada, medindo assim os com- portamentos. Entretanto, entraria em cena, em Viena, um jovem neurologista que mudaria o rumo da história e traria os estudos subjetivos novamente à cena. Assim, temos uma nova reviravolta no entendimento do objeto de estudo da Psicologia. Sigmund Freud retirou o enfoque dos estudos controlados e pas- sou novamente a dar valor à observação e às histórias de vida dos sujeitos. “Freud estava interessado em memórias, desen- volvimento na infância e relações interpessoais, e destacava a influência do inconsciente para determinar o comportamento” (ATKINSON; TOMLEY et al., 2012, p. 11-12). A tarefa da Psicologia é compreendida por Vigotski (1929/2000) como o estudo das reações da personalidade. “A toda ideologia (social) corresponde uma estrutura psicológica de tipo definido – mas no sentido da assimilação subjetiva e portadora da ideologia, mas no sentido da construção das ca- madas, de estratos e funções da personalidade” (p. 33). Pode-se compreender, a partir das ponderações sociais, econômicas e culturais desenvolvidas por Figueiredo (2012), que a Psicologia teve que se colocar diante de duas situações opostas: por um lado, temos o estudo do sujeito considerado pré ou anticientífico pelo seu caráter de observação individual, assim como a concepção antissocial do estudo do sujeito pri- vado. Por outro lado, a Psicologia defronta-se com a imposição de “submeter a vida interior do indivíduo a leis, descobrindo nela regularidades que possibilitem o controle e a coloquem a serviço do domínio técnico da natureza e da reprodução so- cial” (p.23). Diante dessas posições antagônicas, a ciência psicológica defronta-se com um dilema que, de acordo com Figueiredo (2012), remete a simultaneamente ter que “reconhecer e des- conhecer seu objeto” (p. 23). A Psicologia precisa reconhecer- -se como uma ciência independente, mas a Psicologia também precisa se desconhecer para conseguir se submeter aos proce- dimentos metodológicos científicos para a “formulação de leis gerais com caráter preditivo” (p. 23), ou seja, com característi- cas científicas. Abre-se então um campo de divergências e oposições que não tem nada de acidental nem parece que possa vir a ser unificado através de um processo de eliminação de alternativas que não suportem o teste empírico ou de pa- radigmatização em torno de uma alternativa particular- mente bem-sucedida. As divergências parecem, antes refletir as contradi- ções do próprio projeto que, por sua vez, enraízam-se na ambiguidade da posição do sujeito e do indivíduo na cultura ocidental contemporânea (FIGUEIREDO, 2012, p. 23). Canguilhem (2012), em sua conferência no Collège Philosophique, em 18 de dezembro de 1956, trouxe à tona a questão sobre o que é a Psicologia e qual o seu objeto de estudo. Essa é umasituação que para ele não é “nem impertinente e nem fútil”. Para o autor: Durante muito tempo, procurou-se a unidade característica do conceito de uma ciência na direção do seu objeto. O objeto ditaria o método utili- zado para o estudo de suas propriedades. Mas era, no fundo, limitar a ci- ência à investigação de um lado, à exploração de um domínio. Quando se evidenciou que toda ciência se dá mais ou menos seu dado e se apropria, por este fato, do que se chama seu domínio, o conceito de uma ciência, progressivamente teve mais em conta seu método do que seu objeto. Ou mais exatamente, a expressão ‘objeto de ciência’ recebeu um sentido novo. O objeto da ciência não é mais somente o domínio específico dos problemas, dos obstáculos a resolver, é também a intenção e o desígnio do sujeito da ciência, é o projeto específico que consti- tui como tal uma consciência teórica (p. 402). Ao se referir à história da Psicologia e, consequentemente, ao desenvolvimento de seus objetos de estudo, Myers (2012) define a Psicologia como a “ciência do comportamento e dos processos mentais”. Para essa afirmação, o autor baseia-se no fato de a Psicologia se focar na observação do comportamento humano, considerando naturalmente também os sentimentos e os pensamentos internos. Ao utilizar as palavras “comportamento” e “processos mentais”, muitas possibilidades de explicação podem ser colocadas. Afinal, em função da interdisciplinaridade, esses cons- tructos podem ser entendidos, observados, estudados e interpretados de maneiras bas- tante diversas, mesmo que complementares. Por isso, cabe neste ponto do capítulo uma definição de termos para nortear a compreensão. Vamos começar apresentando o conceito de comportamento: “é qualquer coisa que um organismo faz – qualquer ação que podemos observar ou registrar. Gritar, sorrir, piscar, suar, falar e responder a um questionário são todos comportamentos observáveis” (MYERS, 2012, p. 4). Os processos mentais apresen- tam uma maior complexidade, pois são, segundo Myers (2012), “as experiências internas e subjetivas que inferimos a partir do comportamento – sensações, percepções, sonhos, pensamentos, crenças e sentimentos” (p. 4). Com base nesses conceitos, podemos entender como Mlodinow (2013) aborda muitos aspectos da subjetividade do humano através do inconsciente e de uma expressão muito instigante: “sentidos + mente = realidade”. Muitas das percepções humanas são fruto das articulações estabelecidas na mente. Quando ouvimos uma mesma frase sendo proferida por uma pessoa amada ou por uma pessoa que detestamos, temos duas leituras diferen- ciadas, ou seja, as predefinições construídas ao longo da vida pelo sujeito é que determi- nam a leitura/percepção que fazemos/estabelecemos da realidade. A subjetividade é analisada por Prado Filho e Martins (2007) como um exercício de transgressão do discurso, ou seja, os autores procuram desconstruir algumas afirmações clássicas da Psicologia e de áreas afins. Os autores propõem tentar compreender, com cer- to distanciamento e maior clareza, as implicações da estruturação da subjetividade para a análise desta como objeto de estudo da Psicologia. Segundo os autores, o saber psicológico é visto como [ . . . ] bastante político, presta-se a uma aplicação política e implica fortes decorrências políticas, até porque contemporaneamente os poderes encontram-se bastante sutiliza- dos, aplicando uma instrumentalização psicológica. Então – o que não é novidade – um posicionamento teórico no campo das psicologias implica posição política, as práticas psicológicas são imediatamente políticas, e é necessário caminhar no sentido de uma psicologia descentrada do sujeito e para além de uma problematização da subjetivi- dade (pelo menos no sentido mais tradicional do termo), que busque dar conta da singularização, porque, se os modos de subjetivação assujeitam, a singularização apresentasse como estetização de si visando resis- tir a esta maquinaria moderna de produção da subjetividade e das identidades individuais, construindo novas formas de vida e de ser. Se ao longo do século XX as psicologias têm se caracterizado como ‘disciplinas científicas de aplicação da norma’, é também necessá- rio que elas superem estas práticas passando a se dedicar à pro- moção de novas estéticas da existência (p. 18). O pensamento de Crochik (1998, p. 70) remete a outra crítica importante sobre a subje- tividade, pois aponta contradições, ao dizer que O objeto por excelência da psicologia é o indivíduo, a sua subjetivida- de, mas ela não age em seu favor, pois oculta a gênese de seu sofrimento, substituindo-a por outra gênese, ao considerar que o indivíduo tem uma verdade, uma lógica própria, independente da cultura. Quan- do isso ocorre, a psicologia não auxilia o esclarecimento, ou seja, não aponta o que impede o indivíduo de ser senhor de si mesmo, mas em vez disso colabora com a sua alie- nação. As vivências humanas são extraordinaria- mente ricas, complexas e instigantes pela variabilidade intra e interindividual. Ao pensarmos que a cada minuto as vivências do ser humano podem ser modificadas, ao longo de anos, ele é exposto a muitos even- tos estressores positivos e negativos que se lhe modificam e exigem respostas de estra- tégias de enfrentamento. A dinâmica psico- lógica do ser humano permite que os mes- mos comportamentos, as emoções ou os mecanismos de defesa utilizados por “João” sejam eficientes, adaptativos e promovam amadurecimento. Mas, quando esses ele- mentos psicológicos são utilizados pelo seu irmão gêmeo, “Antônio”, eles se apresen- tam, pelas mudanças na dinâmica psicoló- gica, como patológicos. Apesar do radicalis- mo do exemplo, ele permite constatar que a subjetividade humana impede o estabeleci- mento de fórmulas e teorias simplistas. O paradigma dialético consegue explicar, ou não, o fenômeno da subjetividade ao questionar os comportamentos humanos sobre diferentes enfoques. Nesse sentido, é imprescindível a visão interdisciplinar dos fenômenos humanos. Para podermos esca- par do senso comum, dos “pré-conceitos” e do determinismo, precisamos avaliar todo o comportamento do ser humano por diferen- tes vertentes, para assim construir a ciência psicológica e consistentemente evoluirmos no conhecimento psicológico. Naturalmente, para que todo esse proces- so ocorra, precisamos relativizar as variá- veis psicológicas e correlacioná-las às variá- veis culturais, biológicas e até espirituais. O ser humano é biopsicossocial e espiritual e, portanto, não pode ser subdividido, rotulado e classificado em gavetas do conhecimento acadêmico. Esse processo de categorização em nichos nosológicos apenas leva o nosso objeto de estudo - o ser humano – a uma fragmentação que retira a sua identidade e a sua subjetividade. Esse encadeamento de situações leva posteriormente a um processo de do- ença pela falta de coerência e identificação com as vivências do indivíduo. A interdisciplinaridade, portanto, entra como um elemento que marca a qualidade do entendimento da Psicologia sobre o seu objeto de estudo: o ser humano. Chaves (2000), em sua discussão sobre o papel das diferentes áreas do conhecimento no comportamento humano, demostra a sua complementaridade para o trabalho da Psicologia. Diante desse entendimento, a pesquisa psicológica deveria ser norteada por uma abordagem episte- mológica que recorresse ao entendimento de outras áreas da ciência, como a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia etc., que auxiliariam o esclarecimento do seu objeto específico de estudo. Na compreensão do pesquisador, a subjetividade humana é construída em um contexto cultural, político, social e econômico e, para ser estudado como um objeto cientí- fico, pressupõe a sua reconstrução histórica. Referências ATKINSON, Sam, et al. O livro da filosofia. SãoPaulo: Globo, 2011. ATKINSON, Sam; TOMLEY, Sarah et al. O livro da psicologia. São Paulo: Globo, 2012. BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi Teixeira. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. São Paulo: Saraiva, 2001. CANGUILHEM, Georges. O que é a psicologia? CANGUILHEM, G. (Org.). Estudos de histó- ria e de filosofia das ciências: concernentes aos vivos e à vida. p. 401-418. Rio de Janeiro: Editora Gen, 2012. CHAVES, Antonio Marcos. O fenômeno psicológico como objeto de estudo transdiscipli- nar. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 13, n. 1, 2000 . Disponível em: <http://www.scie- lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722000000100016&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 06 set 2012. CROCHIK, José Leon. Os desafios atuais do estudo da subjetividade na psicologia. Psicol. USP, v. 9, n. 2, p. 69-85, 1998. FIGUEIREDO, Luís Cláudio Mendonça. Matrizes do pensamento psicológico. Rio de Janei- ro: Vozes, 2012. HACKER, P.M.S. Natureza humana: categorias fundamentais. Porto Alegre: Artmed, 2010. MLODINOW, Leonard. Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. MYERS, David G. Psicologia. 9 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012. PRADO FILHO, Kleber; MARTINS, Simone. A subjetividade como objeto da(s) psicolo- gia(s). Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 19, n. 3, dez. 2007. Disponível em: <http://www.scie- lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 set. 2012. RENNER, Tanya; MORRISSEY, Joe; MAE, Lynda; FELDMAN, Robert S.; MAJORS, Mike. Psi- co. Porto Alegre: Editora Mcgraw Hill, 2012. ROSENBAUM, Yudith. O livro do psicólogo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SAGAN, Carl. Os Dragões do Éden: especulações sobre a evolução da inteligência huma- na. Rio de Janeiro: F. Alves, 1987. VIGOTSKI, Lev S. Manuscrito de 1929. Educ. Soc., Campinas, v. 21, n. 71, jul. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0101-73302000000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 set 2012. WONG, Kate. O primeiro da nossa espécie. Scientific American Brasil, Edição especial antropologia 1, n. 52, p.12-21, 2013.