LE MONDE diplomatiqueBRASIL R$ 14,90ANO 12 / NÚMERO 134 DEZ ANOS DE CRISE LIBERAIS OU POPULISTAS: UMA FALSA OPÇÃO POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT EDUCAÇÃO A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS POR RUDÁ RICCI 20 262 DOCUMENTÁRIO CENSURADO COMO ISRAEL ESPIONA NORTE-AMERICANOS POR ALAIN GRESH O PLANO CONSERVADOR 9 771981 752004 00134 2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 B udapeste, 23 de maio de 2018. De jaqueta escura e camisa ro- xa solta, aberta, sobre uma ca- miseta, Stephen Bannon se co- loca diante de uma plateia de intelectuais e notáveis húngaros. “O pavio que incendiou a Revolução Trump foi aceso em 15 de setembro, às 9 da manhã, quando o Lehman Bro- thers foi forçado à falência.” O ex-es- trategista da Casa Branca não ignora: ali, a crise foi particularmente violen- ta. “As elites salvaram a si próprias. Elas socializaram totalmente o risco”, continua o ex-vice-presidente do ban- co Goldman Sachs, cujas atividades políticas são financiadas por fundos especulativos. O cidadão comum foi socorrido? Esse “socialismo para os ri- cos” teria provocado em vários pontos do globo uma “verdadeira revolta po- pulista. Em 2010, Viktor Orbán voltou ao poder na Hungria”; ele foi o “Trump antes de Trump”. Uma década depois da tempestade financeira, o colapso econômico global e a crise da dívida pública na Europa de- sapareceram dos terminais da Bloom- berg, onde cintilam as curvas vitais do capitalismo. Mas sua onda de choque amplificou dois grandes distúrbios. Em primeiro lugar, o da ordem in- ternacional liberal da era pós-Guerra Fria, centrada na Organização do Tra- tado do Atlântico Norte (Otan), nas instituições financeiras ocidentais e na liberalização do comércio. Se, ao contrário do que prometia Mao Tsé- -tung, o vento do leste ainda não pre- valece sobre o vento do oeste, a recom- posição geopolítica começou: cerca de trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, o capitalismo de Estado chinês amplia sua influência; com ba- se na prosperidade de uma classe mé- dia em ascensão, a “economia socia- lista de mercado” liga seu futuro à contínua globalização do comércio, que está minando a indústria manufa- tureira da maioria dos países ociden- tais – incluindo a dos Estados Unidos, que o presidente Donald Trump pro- meteu, em seu primeiro discurso ofi- cial, salvar da “carnificina”. O abalo de 2008 e seus tremores se- cundários também sacudiram a or- dem política, que via na democracia LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA Dez anos de crise As respostas dadas à crise de 2008 desestabilizaram a ordem política e geopolítica. Há tempos vistas como a forma última de governo, as democracias liberais estão na defensiva. Perante as “elites” urbanas, as direitas nacionalistas encampam uma contrarrevolução cultural no campo da imigração e dos valores. Contudo, elas perseguem o mesmo projeto econômico de seus rivais. O peso excessivo jogado pela mídia nessa clivagem visa constranger a população a escolher entre esses dois males POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT* de mercado a forma acabada da histó- ria. O necrotério de uma tecnocracia untuosa, transferida para Nova York ou Bruxelas, impondo medidas impo- pulares em nome da expertise e da modernidade, abriu o caminho para governos falastrões e conservadores. De Washington a Varsóvia, passan- do por Budapeste, Trump, Jarosław Kaczynski e Orbán reivindicam tan- to capitalismo quanto Barack Oba- ma, Angela Merkel, Justin Trudeau e Emmanuel Macron; mas um capitalis- mo transmitido por outra cultura, “an- tiliberal”, nacional e autoritária, exal- tando o país profundo, e não os valores das grandes metrópoles. Uma fratura divide as classes do- minantes. Ela é encenada e amplifica- da pela mídia, que reduz o horizonte das possíveis escolhas políticas possí- veis a esses dois irmãos inimigos. Ora, os recém-chegados visam tanto quan- to os outros enriquecer os ricos, mas explorando o sentimento que o libera- lismo e a social-democracia inspiram a uma porção muitas vezes majoritária das classes populares: um desgosto misturado com raiva. “RECONSTRUÍMOS A CHINA” A resposta à crise de 2008 expôs, sem permitir a possibilidade de des- viar o olhar, três negações à ladainha sobre o bom governo que os líderes de centro-direita e de centro-esquerda alardeavam desde o colapso da União Soviética. Nem a globalização, nem a democracia, nem o liberalismo saí- ram ilesos. Primeiro, a internacionalização da economia não é boa para todos os paí- ses, nem mesmo para a maioria dos as- salariados do Ocidente. A eleição de Trump levou à Casa Branca um ho- mem há muito convencido de que, lon- ge de ser lucrativa para seu país, a glo- balização tinha precipitado seu declínio e assegurado a decolagem de seus concorrentes estratégicos. Com ele, a “América primeiro” tem prece- dência sobre o “ganha-ganha” dos de- fensores do livre-comércio. Por exem- plo, em 4 de agosto, em Ohio, um estado industrial geralmente disputa- do, mas onde ele atingiu mais de oito pontos à frente de Hillary Clinton, o presidente dos Estados Unidos recor- dou o déficit comercial fabuloso (e crescente) de seu país – “US$ 817 bi- lhões por ano!” –, antes de fornecer a explicação para ele: “Não quero mal aos chineses. Mas mesmo eles não conseguem acreditar que nós os dei- xamos agir tanto à nossa custa! Real- mente reconstruímos a China; é hora de reconstruir nosso país! Ohio per- deu 200 mil empregos industriais de- pois que a China [em 2001] entrou para a Organização Mundial do Comércio. A OMC, um desastre total! Por déca- das, nossos políticos permitiram que outros países roubassem nossos em- pregos, tirassem nossa riqueza e sa- queassem nossa economia”. No início do século passado, o pro- tecionismo impulsionou a decolagem industrial dos Estados Unidos, assim como a de muitas outras nações; os impostos alfandegários financiaram por muito tempo o poder público, já que o imposto de renda não existia an- tes da Primeira Guerra Mundial. Ci- tando William McKinley, presidente republicano de 1897 a 1901 (que foi as- sassinado por um anarquista), Trump insiste: “Ele entendeu a importância decisiva das tarifas alfandegárias para manter o poder de um país”. A Casa Branca agora recorre a elas sem hesitar – e sem se preocupar com a OMC. Tur- quia, Rússia, Irã, União Europeia, Ca- nadá, China: a cada semana, um lote de sanções comerciais contra Estados, amigos ou não, que Washington tem como alvo. A invocação da “segurança nacional” permite que o presidente Trump dispense a aprovação do Con- gresso, onde os parlamentares e os lo- bbies que financiam suas campanhas continuam comprometidos com o livre-comércio. Nos Estados Unidos, a China está obtendo mais consenso, mas contra ela. Não apenas por razões comerciais: Pequim também é percebida como a rival estratégica por excelência. Além de gerar desconfiança por sua força econômica, oito vezes maior que a da Rússia, e por suas tentações expansio- nistas na Ásia, seu modelo político au- toritário concorre com o de Washing- ton. Além disso, ainda que sustente que sua teoria de 1989 sobre o triunfo irreversível e universal do capitalismo liberal permanece válida, o cientista político norte-americano Francis Fu- kuyama a ela acrescenta um ponto es- sencial: “A China é de longe o maior desafio à narrativa do ‘fim da história’, uma vez que se modernizou economi- camente, permanecendo uma ditadu- ra. [...] Se, ao longo dos próximos anos, seu crescimento continuar e ela se mantiver como a maior potência eco- nômica do mundo, admitirei que mi- nha tese foi definitivamente refuta- da”.1 No final, Trump e seus adversários internos convergem pelo menos em um ponto: o primeiro considera que a ordem internacional liberal