é muito cara para os Estados Unidos; os ou- tros, que o sucesso da China ameaça deitá-la por terra. Da geopolítica à política há apenas um passo. A globalização causou a destruição de empregos e a queda dos salários no Ocidente – sua participa- ção nos Estados Unidos passou de 64% para 58% do PIB apenas nos últimos dez anos, uma perda anual igual a US$ 7.500 por trabalhador!2 Ora, foi precisamente nas regiões industriais devastadas pela concor- rência chinesa que os trabalhadores norte-americanos se voltaram mais para a direita nos últimos anos. É claro © D an ie l K on do 3SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil que essa mudança eleitoral pode ser atribuída a uma série de fatores “cul- turais” (sexismo, racismo, apego a ar- mas de fogo, hostilidade ao aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo etc.). Mas devemos observar uma explicação econômica pelo menos igualmente convincente: enquanto o número de condados que concentram mais de 25% dos empregos norte-ame- ricanos do setor manufatureiro entrou em colapso de 1992 a 2016, passando de 862 para 323, o equilíbrio entre os votos dos democratas e dos republica- nos nesses locais se metamorfoseou. Há um quarto de século, eles estavam divididos quase igualmente entre os dois principais partidos (cerca de qua- trocentos cada); em 2016, 306 escolhe- ram Trump, e 17, Hillary Clinton.3 Pro- movida por um presidente democrata – Bill Clinton, precisamente –, a ade- são da China à OMC deveria acelerar a transformação desse país em uma so- ciedade capitalista liberal. Isso jogou os trabalhadores norte-americanos contra a globalização, o liberalismo e o voto democrata... Pouco antes da queda do Lehman Brothers, o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, explicava tranquilamente: “Graças à globaliza- ção, as políticas públicas dos Estados Unidos foram amplamente substituí- das pelas forças globais do mercado. Fora as questões de segurança nacio- nal, a identidade do próximo presiden- te quase não tem mais importância”.4 Dez anos depois, ninguém retomaria tal diagnóstico. Nos países da Europa central, cuja expansão ainda é baseada nas expor- tações, o questionamento da globali- zação não diz respeito às trocas co- merciais. Mas os “homens fortes” no poder denunciam a imposição pela União Europeia de “valores ociden- tais” considerados fracos e decaden- tes, porque favoráveis à imigração, à homossexualidade, ao ateísmo, ao fe- minismo, à ecologia, à dissolução da família etc. Eles também contestam a natureza democrática do capitalismo liberal. Não sem fundamento, no últi- mo caso. Porque, em matéria de igual- dade de direitos políticos e civis, a questão de saber se as mesmas regras se aplicam a todos se viu mais uma vez desafiada após 2008: “Nenhuma acusação foi feita contra um agente fi- nanceiro de alto nível”, destaca o jor- nalista John Lanchester. Durante o es- cândalo das poupanças dos anos 1980, 1.100 pessoas tinham sido acu- sadas.5 Os detentos de uma peniten- ciária francesa já diziam de forma zombeteira no século passado: “Quem rouba um ovo vai preso; quem rouba um boi vai para o Palais Bourbon [As- sembleia Nacional francesa]”. O povo escolhe, mas o capital deci- de. Ao governarem no sentido contrá- rio de suas promessas, os líderes libe- rais, tanto de direita como de esquerda, reforçam essa suspeita em quase toda eleição. Para romper com as políticas conservadoras de seus antecessores, Obama reduziu os déficits públicos, comprimiu os gastos sociais e, em vez de instaurar um sistema público de saúde, impôs aos norte-americanos a compra de um seguro médico de um cartel privado. Na França, Nicolas Sar- kozy aumentou em dois anos a idade da aposentadoria que ele havia se com- prometido formalmente a não alterar; François Hollande fez votar um pacto de estabilidade europeu, que ele tinha prometido renegociar. No Reino Uni- do, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, para surpresa geral, ao Partido Conser- vador, e, em seguida, transformado em vice-primeiro-ministro, concordou em triplicar o valor das taxas universitá- rias que ele tinha jurado eliminar. Na década de 1970, alguns partidos comunistas da Europa ocidental suge- riram que seu eventual acesso ao po- der por meio das urnas seria um “bi- lhete de ida”, pois a construção do socialismo, uma vez lançada, não po- deria depender dos caprichos eleito- rais. A vitória do “mundo livre” sobre a hidra soviética acomodou esse princí- pio com mais astúcia: o direito de voto não está suspenso, mas ele vem com o dever de confirmar as preferências das classes dominantes. Caso contrário, pode ser preciso começar de novo. “Em 1992”, lembra o jornalista Jack Dion, “os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht: eles foram for- çados a retornar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de Nice: eles foram forçados a retornar às urnas. Em 2005, os franceses e os ho- landeses votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (TCE): este lhes foi imposto sob o nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses vota- ram contra o Tratado de Lisboa: foram obrigados a votar de novo. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram contra o pla- no de ajuste de Bruxelas – que ainda as- sim lhes foi impingido.”6 Exatamente naquele ano, falando a um governo de esquerda eleito poucos meses antes e forçado a administrar um tratamento de choque liberal à sua população, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu o escopo que confere ao circo demo- crático: “As eleições não devem permi- tir que se altere a política econômica”.7 Por sua vez, Pierre Moscovici, comissá- rio europeu para assuntos econômicos e monetários, explicaria depois: “Vinte e três pessoas, com seus auxiliares, to- mam – ou não – decisões fundamen- tais para milhões de outras – os gregos, no caso –, seguindo parâmetros ex- traordinariamente técnicos, decisões isentas de qualquer controle democrá- tico. O Eurogrupo não presta contas para nenhum governo, nenhum parla- mento, especialmente para o Parla- mento Europeu”.8 É a assembleia, no entanto, na qual Moscovici aspira a ocupar um lugar no próximo ano. Autoritário e “antiliberal” à sua maneira, esse desprezo pela soberania popular alimenta um dos mais pode- rosos argumentos de campanha dos líderes conservadores de ambos os la- dos do Atlântico. Ao contrário de par- tidos de centro-esquerda ou de centro- -direita, que se comprometem sem fornecer os meios para reanimar uma democracia moribunda, Trump e Or- bán, assim como Kaczynski na Polônia e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua agonia. Conservam apenas o voto ma- joritário e revertem as cartas: ao auto- ritarismo independente do Estado e especialista de Washington, Bruxelas ou Wall Street, eles opõem um autori- tarismo nacional e direto que apresen- tam como uma reconquista popular. INTERVENCIONISMO MACIÇO Depois daquelas relacionadas à glo- balização e à democracia, a terceira ne- gação feita pela crise no discurso domi- nante dos anos anteriores se refere à eliminação do papel econômico do po- der público. Tudo é possível, mas não para todo mundo: raramente a de- monstração desse princípio foi admi- nistrada com tanta clareza quanto na década passada. Criação maciça de di- nheiro, nacionalizações, desdém pelos tratados internacionais, ação discricio- nária dos eleitos etc.: para salvar sem contrapartida as instituições bancárias das quais dependia a sobrevivência do sistema, a maioria das operações de- cretadas impossíveis e impensáveis foi realizada sem um tiro em ambos os la- dos do Atlântico. Esse intervencionis- mo maciço revelou um Estado forte, ca- paz de aproveitar seu poder em uma área onde ele parecia ter deposto a si mesmo.9 Mas, se o Estado é forte,