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LE MONDE diplomatiqueBRASIL R$ 14,90ANO 12 / NÚMERO 134 DEZ ANOS DE CRISE LIBERAIS OU POPULISTAS: UMA FALSA OPÇÃO POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT EDUCAÇÃO A MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS POR RUDÁ RICCI 20 262 DOCUMENTÁRIO CENSURADO COMO ISRAEL ESPIONA NORTE-AMERICANOS POR ALAIN GRESH O PLANO CONSERVADOR 9 771981 752004 00134 2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 B udapeste, 23 de maio de 2018. De jaqueta escura e camisa ro- xa solta, aberta, sobre uma ca- miseta, Stephen Bannon se co- loca diante de uma plateia de intelectuais e notáveis húngaros. “O pavio que incendiou a Revolução Trump foi aceso em 15 de setembro, às 9 da manhã, quando o Lehman Bro- thers foi forçado à falência.” O ex-es- trategista da Casa Branca não ignora: ali, a crise foi particularmente violen- ta. “As elites salvaram a si próprias. Elas socializaram totalmente o risco”, continua o ex-vice-presidente do ban- co Goldman Sachs, cujas atividades políticas são financiadas por fundos especulativos. O cidadão comum foi socorrido? Esse “socialismo para os ri- cos” teria provocado em vários pontos do globo uma “verdadeira revolta po- pulista. Em 2010, Viktor Orbán voltou ao poder na Hungria”; ele foi o “Trump antes de Trump”. Uma década depois da tempestade financeira, o colapso econômico global e a crise da dívida pública na Europa de- sapareceram dos terminais da Bloom- berg, onde cintilam as curvas vitais do capitalismo. Mas sua onda de choque amplificou dois grandes distúrbios. Em primeiro lugar, o da ordem in- ternacional liberal da era pós-Guerra Fria, centrada na Organização do Tra- tado do Atlântico Norte (Otan), nas instituições financeiras ocidentais e na liberalização do comércio. Se, ao contrário do que prometia Mao Tsé- -tung, o vento do leste ainda não pre- valece sobre o vento do oeste, a recom- posição geopolítica começou: cerca de trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, o capitalismo de Estado chinês amplia sua influência; com ba- se na prosperidade de uma classe mé- dia em ascensão, a “economia socia- lista de mercado” liga seu futuro à contínua globalização do comércio, que está minando a indústria manufa- tureira da maioria dos países ociden- tais – incluindo a dos Estados Unidos, que o presidente Donald Trump pro- meteu, em seu primeiro discurso ofi- cial, salvar da “carnificina”. O abalo de 2008 e seus tremores se- cundários também sacudiram a or- dem política, que via na democracia LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA Dez anos de crise As respostas dadas à crise de 2008 desestabilizaram a ordem política e geopolítica. Há tempos vistas como a forma última de governo, as democracias liberais estão na defensiva. Perante as “elites” urbanas, as direitas nacionalistas encampam uma contrarrevolução cultural no campo da imigração e dos valores. Contudo, elas perseguem o mesmo projeto econômico de seus rivais. O peso excessivo jogado pela mídia nessa clivagem visa constranger a população a escolher entre esses dois males POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT* de mercado a forma acabada da histó- ria. O necrotério de uma tecnocracia untuosa, transferida para Nova York ou Bruxelas, impondo medidas impo- pulares em nome da expertise e da modernidade, abriu o caminho para governos falastrões e conservadores. De Washington a Varsóvia, passan- do por Budapeste, Trump, Jarosław Kaczynski e Orbán reivindicam tan- to capitalismo quanto Barack Oba- ma, Angela Merkel, Justin Trudeau e Emmanuel Macron; mas um capitalis- mo transmitido por outra cultura, “an- tiliberal”, nacional e autoritária, exal- tando o país profundo, e não os valores das grandes metrópoles. Uma fratura divide as classes do- minantes. Ela é encenada e amplifica- da pela mídia, que reduz o horizonte das possíveis escolhas políticas possí- veis a esses dois irmãos inimigos. Ora, os recém-chegados visam tanto quan- to os outros enriquecer os ricos, mas explorando o sentimento que o libera- lismo e a social-democracia inspiram a uma porção muitas vezes majoritária das classes populares: um desgosto misturado com raiva. “RECONSTRUÍMOS A CHINA” A resposta à crise de 2008 expôs, sem permitir a possibilidade de des- viar o olhar, três negações à ladainha sobre o bom governo que os líderes de centro-direita e de centro-esquerda alardeavam desde o colapso da União Soviética. Nem a globalização, nem a democracia, nem o liberalismo saí- ram ilesos. Primeiro, a internacionalização da economia não é boa para todos os paí- ses, nem mesmo para a maioria dos as- salariados do Ocidente. A eleição de Trump levou à Casa Branca um ho- mem há muito convencido de que, lon- ge de ser lucrativa para seu país, a glo- balização tinha precipitado seu declínio e assegurado a decolagem de seus concorrentes estratégicos. Com ele, a “América primeiro” tem prece- dência sobre o “ganha-ganha” dos de- fensores do livre-comércio. Por exem- plo, em 4 de agosto, em Ohio, um estado industrial geralmente disputa- do, mas onde ele atingiu mais de oito pontos à frente de Hillary Clinton, o presidente dos Estados Unidos recor- dou o déficit comercial fabuloso (e crescente) de seu país – “US$ 817 bi- lhões por ano!” –, antes de fornecer a explicação para ele: “Não quero mal aos chineses. Mas mesmo eles não conseguem acreditar que nós os dei- xamos agir tanto à nossa custa! Real- mente reconstruímos a China; é hora de reconstruir nosso país! Ohio per- deu 200 mil empregos industriais de- pois que a China [em 2001] entrou para a Organização Mundial do Comércio. A OMC, um desastre total! Por déca- das, nossos políticos permitiram que outros países roubassem nossos em- pregos, tirassem nossa riqueza e sa- queassem nossa economia”. No início do século passado, o pro- tecionismo impulsionou a decolagem industrial dos Estados Unidos, assim como a de muitas outras nações; os impostos alfandegários financiaram por muito tempo o poder público, já que o imposto de renda não existia an- tes da Primeira Guerra Mundial. Ci- tando William McKinley, presidente republicano de 1897 a 1901 (que foi as- sassinado por um anarquista), Trump insiste: “Ele entendeu a importância decisiva das tarifas alfandegárias para manter o poder de um país”. A Casa Branca agora recorre a elas sem hesitar – e sem se preocupar com a OMC. Tur- quia, Rússia, Irã, União Europeia, Ca- nadá, China: a cada semana, um lote de sanções comerciais contra Estados, amigos ou não, que Washington tem como alvo. A invocação da “segurança nacional” permite que o presidente Trump dispense a aprovação do Con- gresso, onde os parlamentares e os lo- bbies que financiam suas campanhas continuam comprometidos com o livre-comércio. Nos Estados Unidos, a China está obtendo mais consenso, mas contra ela. Não apenas por razões comerciais: Pequim também é percebida como a rival estratégica por excelência. Além de gerar desconfiança por sua força econômica, oito vezes maior que a da Rússia, e por suas tentações expansio- nistas na Ásia, seu modelo político au- toritário concorre com o de Washing- ton. Além disso, ainda que sustente que sua teoria de 1989 sobre o triunfo irreversível e universal do capitalismo liberal permanece válida, o cientista político norte-americano Francis Fu- kuyama a ela acrescenta um ponto es- sencial: “A China é de longe o maior desafio à narrativa do ‘fim da história’, uma vez que se modernizou economi- camente, permanecendo uma ditadu- ra. [...] Se, ao longo dos próximos anos, seu crescimento continuar e ela se mantiver como a maior potência eco- nômica do mundo, admitirei que mi- nha tese foi definitivamente refuta- da”.1 No final, Trump e seus adversários internos convergem pelo menos em um ponto: o primeiro considera que a ordem internacional liberalé muito cara para os Estados Unidos; os ou- tros, que o sucesso da China ameaça deitá-la por terra. Da geopolítica à política há apenas um passo. A globalização causou a destruição de empregos e a queda dos salários no Ocidente – sua participa- ção nos Estados Unidos passou de 64% para 58% do PIB apenas nos últimos dez anos, uma perda anual igual a US$ 7.500 por trabalhador!2 Ora, foi precisamente nas regiões industriais devastadas pela concor- rência chinesa que os trabalhadores norte-americanos se voltaram mais para a direita nos últimos anos. É claro © D an ie l K on do 3SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil que essa mudança eleitoral pode ser atribuída a uma série de fatores “cul- turais” (sexismo, racismo, apego a ar- mas de fogo, hostilidade ao aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo etc.). Mas devemos observar uma explicação econômica pelo menos igualmente convincente: enquanto o número de condados que concentram mais de 25% dos empregos norte-ame- ricanos do setor manufatureiro entrou em colapso de 1992 a 2016, passando de 862 para 323, o equilíbrio entre os votos dos democratas e dos republica- nos nesses locais se metamorfoseou. Há um quarto de século, eles estavam divididos quase igualmente entre os dois principais partidos (cerca de qua- trocentos cada); em 2016, 306 escolhe- ram Trump, e 17, Hillary Clinton.3 Pro- movida por um presidente democrata – Bill Clinton, precisamente –, a ade- são da China à OMC deveria acelerar a transformação desse país em uma so- ciedade capitalista liberal. Isso jogou os trabalhadores norte-americanos contra a globalização, o liberalismo e o voto democrata... Pouco antes da queda do Lehman Brothers, o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, explicava tranquilamente: “Graças à globaliza- ção, as políticas públicas dos Estados Unidos foram amplamente substituí- das pelas forças globais do mercado. Fora as questões de segurança nacio- nal, a identidade do próximo presiden- te quase não tem mais importância”.4 Dez anos depois, ninguém retomaria tal diagnóstico. Nos países da Europa central, cuja expansão ainda é baseada nas expor- tações, o questionamento da globali- zação não diz respeito às trocas co- merciais. Mas os “homens fortes” no poder denunciam a imposição pela União Europeia de “valores ociden- tais” considerados fracos e decaden- tes, porque favoráveis à imigração, à homossexualidade, ao ateísmo, ao fe- minismo, à ecologia, à dissolução da família etc. Eles também contestam a natureza democrática do capitalismo liberal. Não sem fundamento, no últi- mo caso. Porque, em matéria de igual- dade de direitos políticos e civis, a questão de saber se as mesmas regras se aplicam a todos se viu mais uma vez desafiada após 2008: “Nenhuma acusação foi feita contra um agente fi- nanceiro de alto nível”, destaca o jor- nalista John Lanchester. Durante o es- cândalo das poupanças dos anos 1980, 1.100 pessoas tinham sido acu- sadas.5 Os detentos de uma peniten- ciária francesa já diziam de forma zombeteira no século passado: “Quem rouba um ovo vai preso; quem rouba um boi vai para o Palais Bourbon [As- sembleia Nacional francesa]”. O povo escolhe, mas o capital deci- de. Ao governarem no sentido contrá- rio de suas promessas, os líderes libe- rais, tanto de direita como de esquerda, reforçam essa suspeita em quase toda eleição. Para romper com as políticas conservadoras de seus antecessores, Obama reduziu os déficits públicos, comprimiu os gastos sociais e, em vez de instaurar um sistema público de saúde, impôs aos norte-americanos a compra de um seguro médico de um cartel privado. Na França, Nicolas Sar- kozy aumentou em dois anos a idade da aposentadoria que ele havia se com- prometido formalmente a não alterar; François Hollande fez votar um pacto de estabilidade europeu, que ele tinha prometido renegociar. No Reino Uni- do, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, para surpresa geral, ao Partido Conser- vador, e, em seguida, transformado em vice-primeiro-ministro, concordou em triplicar o valor das taxas universitá- rias que ele tinha jurado eliminar. Na década de 1970, alguns partidos comunistas da Europa ocidental suge- riram que seu eventual acesso ao po- der por meio das urnas seria um “bi- lhete de ida”, pois a construção do socialismo, uma vez lançada, não po- deria depender dos caprichos eleito- rais. A vitória do “mundo livre” sobre a hidra soviética acomodou esse princí- pio com mais astúcia: o direito de voto não está suspenso, mas ele vem com o dever de confirmar as preferências das classes dominantes. Caso contrário, pode ser preciso começar de novo. “Em 1992”, lembra o jornalista Jack Dion, “os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht: eles foram for- çados a retornar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de Nice: eles foram forçados a retornar às urnas. Em 2005, os franceses e os ho- landeses votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (TCE): este lhes foi imposto sob o nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses vota- ram contra o Tratado de Lisboa: foram obrigados a votar de novo. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram contra o pla- no de ajuste de Bruxelas – que ainda as- sim lhes foi impingido.”6 Exatamente naquele ano, falando a um governo de esquerda eleito poucos meses antes e forçado a administrar um tratamento de choque liberal à sua população, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu o escopo que confere ao circo demo- crático: “As eleições não devem permi- tir que se altere a política econômica”.7 Por sua vez, Pierre Moscovici, comissá- rio europeu para assuntos econômicos e monetários, explicaria depois: “Vinte e três pessoas, com seus auxiliares, to- mam – ou não – decisões fundamen- tais para milhões de outras – os gregos, no caso –, seguindo parâmetros ex- traordinariamente técnicos, decisões isentas de qualquer controle democrá- tico. O Eurogrupo não presta contas para nenhum governo, nenhum parla- mento, especialmente para o Parla- mento Europeu”.8 É a assembleia, no entanto, na qual Moscovici aspira a ocupar um lugar no próximo ano. Autoritário e “antiliberal” à sua maneira, esse desprezo pela soberania popular alimenta um dos mais pode- rosos argumentos de campanha dos líderes conservadores de ambos os la- dos do Atlântico. Ao contrário de par- tidos de centro-esquerda ou de centro- -direita, que se comprometem sem fornecer os meios para reanimar uma democracia moribunda, Trump e Or- bán, assim como Kaczynski na Polônia e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua agonia. Conservam apenas o voto ma- joritário e revertem as cartas: ao auto- ritarismo independente do Estado e especialista de Washington, Bruxelas ou Wall Street, eles opõem um autori- tarismo nacional e direto que apresen- tam como uma reconquista popular. INTERVENCIONISMO MACIÇO Depois daquelas relacionadas à glo- balização e à democracia, a terceira ne- gação feita pela crise no discurso domi- nante dos anos anteriores se refere à eliminação do papel econômico do po- der público. Tudo é possível, mas não para todo mundo: raramente a de- monstração desse princípio foi admi- nistrada com tanta clareza quanto na década passada. Criação maciça de di- nheiro, nacionalizações, desdém pelos tratados internacionais, ação discricio- nária dos eleitos etc.: para salvar sem contrapartida as instituições bancárias das quais dependia a sobrevivência do sistema, a maioria das operações de- cretadas impossíveis e impensáveis foi realizada sem um tiro em ambos os la- dos do Atlântico. Esse intervencionis- mo maciço revelou um Estado forte, ca- paz de aproveitar seu poder em uma área onde ele parecia ter deposto a si mesmo.9 Mas, se o Estado é forte,é em primeiro lugar para garantir um qua- dro estável para o capital. Inflexível quando se tratava de re- duzir os gastos sociais para levar o dé- ficit público para menos de 3% do PIB, Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu de 2003 a 2011, admitiu que os compromissos finan- ceiros assumidos no final de 2008 pelos chefes de Estado para salvar o sistema bancário representavam em meados de 2009 “27% do PIB da Europa e dos Estados Unidos”.10 Dezenas de milhões de desempregados, de expropriados e de doentes despejados em hospitais com falta de medicamentos, como na Grécia, nunca tiveram o privilégio de constituir um “risco sistêmico”. “Por meio de suas escolhas políticas, os go- vernos da zona do euro mergulharam dezenas de milhões de seus cidadãos nas profundezas de uma depressão se- melhante à da década de 1930. É um dos piores desastres econômicos au- toinfligidos já observados”, observa o historiador Adam Tooze.11 O descrédito da classe dirigente e a reabilitação do poder do Estado só po- diam abrir o caminho para um novo estilo de governo. Quando perguntado em 2010 se o fato de ascender ao poder em plena tempestade global o preocu- pava, o primeiro-ministro húngaro sorriu: “Não, eu amo o caos. Porque, com base nele, posso construir uma nova ordem. A ordem que eu quero”.12 Mas, em vez de garantir direitos so- ciais incompatíveis com as exigências dos proprietários, o poder público afirma-se fechando as fronteiras para os migrantes e proclamando-se um fiador da “identidade cultural” da na- ção. O arame farpado marca então o retorno do Estado. No momento, essa estratégia que recupera, desvia e distorce uma de- manda popular de proteção parece funcionar. Basta dizer que as causas da crise financeira que fez descarrilar o mundo permanecem intactas, mes- mo quando a vida política de países como a Itália, a Hungria ou regiões co- mo a Baviera parece assombrada pela questão dos refugiados. Alimentada pelas prioridades dos campi norte-a- mericanos, uma parte da esquerda ocidental, moderada demais ou radi- cal demais, adora afrontar a direita nesse terreno.13 Em resposta à grande recessão, os líderes de governo desvelaram, por- tanto, a farsa democrática, a força do Estado, a natureza bastante política da economia e a inclinação antissocial de sua estratégia geral. O ramo que os abrigava se viu fragilizado, como evi- denciado pela instabilidade eleitoral que refaz os mapas políticos. Desde 2014, a maior parte das eleições oci- dentais assinala uma decomposição ou um enfraquecimento das forças tradicionais e, simetricamente, a as- censão de personalidades ou de cor- rentes antes marginais que contestam as instituições dominantes, muitas ve- zes por razões opostas, como Trump e Bernie Sanders, ambos críticos de Wall Street e da mídia. O mesmo cenário do outro lado do Atlântico, onde os novos conservadores consideram a constru- ção europeia muito liberal nos planos social e migratório, enquanto as novas vozes de esquerda, como o Podemos na Espanha, A França Insubmissa e Je- remy Corbyn à frente do Partido Tra- balhista no Reino Unido, criticam suas políticas de austeridade. Como não pretendem virar a mesa, apenas mudar os jogadores, os “ho- mens fortes” podem obter o apoio de uma fração das classes dominantes. Em 26 de julho de 2014, na Romênia, Orbán anunciou a posição em um re- tumbante discurso: “O novo Estado que estamos construindo na Hungria 4 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 é um Estado antiliberal: um Estado não liberal”. Mas, ao contrário do que a mídia tradicional repisa desde então, seus objetivos não se limitavam à re- jeição do multiculturalismo e da “so- ciedade aberta” e à promoção dos va- lores familiares e cristãos. Ele também anunciava um projeto econômico, o de “construir uma nação competitiva na grande concorrência global das próximas décadas”. “Nós considera- mos”, ele disse, “que uma democracia não deve necessariamente ser liberal e que não é porque um Estado deixa de ser liberal que deixa de ser uma demo- cracia.” Tomando como exemplo a China, a Turquia e Cingapura, o pri- meiro-ministro húngaro devolveu ao remetente a frase “Não há alternativa”, de Margaret Thatcher: “As sociedades que têm uma democracia liberal como base provavelmente não conseguirão manter sua competitividade nas pró- ximas décadas”.14 Tal conformação atrai os líderes poloneses e tchecos, mas também os partidos de extrema direita francês e alemão. O LENGA-LENGA DO “CAPITALISMO INCLUSIVO” Diante do brilhante sucesso de seus concorrentes, os pensadores liberais perderam sua beleza e atratividade. “A contrarrevolução é alimentada pela polarização da política interna, com o antagonismo substituindo o compro- misso. E tem como alvo a revolução li- beral e os ganhos obtidos pelas mino- rias”, arrepia-se Michael Ignatieff, reitor da Universidade da Europa Cen- tral em Budapeste, instituição fundada por iniciativa do bilionário liberal George Soros. “Está claro”, acrescenta ele, “que o breve momento de domina- ção da sociedade aberta acabou.”15 Em sua opinião, os governantes autoritá- rios que tomam por alvo o estado de di- reito, o equilíbrio dos poderes, a liber- dade dos meios de comunicação privados e os direitos das minorias ata- cam na verdade os pilares essenciais das democracias. O semanário britânico The Econo- mist, que faz as vezes de boletim de liga- ção das elites liberais globais, concorda com essa visão. Quando, em 16 de ju- nho, ele entrou em pânico por causa de uma “deterioração alarmante da demo- cracia desde a crise financeira de 2007- 2008”, não incriminou as desigualdades abissais de fortuna, nem a destruição dos empregos industriais pelo livre-co- mércio, nem o desrespeito à vontade dos eleitores pelos líderes “democráti- cos”. Mas atacou “os homens fortes [que] minam a democracia”. Em rela- ção a eles, espera, “os juízes indepen- dentes e os jornalistas inquietos são a primeira linha de defesa” – um dique tão estreito quanto frágil. Durante muito tempo, as classes su- periores tiraram proveito do jogo elei- toral graças a três fatores convergentes: a crescente abstenção das classes po- pulares, o “voto útil” provocado pela re- pulsa que os “extremos” inspiravam e a pretensão dos partidos centrais de re- presentar os interesses combinados da burguesia e da classe média. Mas os de- magogos reacionários agora mobili- zam os abstencionistas; a grande reces- são enfraqueceu a classe média; e as arbitragens políticas dos “moderados” e seus brilhantes conselheiros desen- cadearam a crise do século... O desencanto em relação à utopia das novas tecnologias vem se juntar à amargura dos entusiastas da socieda- de aberta. Ontem celebrados como os profetas de uma civilização liberal li- bertária, os empresários democratas do Vale do Silício construíram uma máquina de vigilância e de controle social tão poderosa que o governo chi- nês a imita para manter a ordem. A es- perança de uma ágora global impul- sionada por uma conectividade universal entra em colapso, para des- gosto de alguns que outrora comunga- vam com ela: “A tecnologia, pelas ma- nipulações que permite, pelas fake news, mas ainda mais porque veicula emoção em vez de razão, reforça ainda mais os cínicos e os ditadores”, solu- çou um editorialista.16 À medida que se aproxima o trigé- simo aniversário da queda do Muro de Berlim, os arautos do “mundo livre” temem que a festa seja morosa. “A transição para as democracias liberais foi em grande parte impulsionada por uma elite educada, muito pró-ociden- tal”, Fukuyama admite. Infelizmente, as populações menos educadas “nun- ca foram seduzidas por esse liberalis- mo, pela ideia de que poderíamos ter uma sociedade multirracial,multiét- nica, em que todos os valores tradicio- nais se desvaneceriam diante do casa- mento gay, da imigração etc.”17 Mas a quem imputar a culpa por essa falta de efeito cascata da minoria esclarecida? À indolência de todos os jovens bur- gueses que, irrita-se Fukuyama, “se contentam em ficar em casa, para se congratularem por sua mente aberta, por sua falta de fanatismo. [...] E só se mobilizam contra o inimigo indo sen- tar-se no terraço de um café com um mojito na mão”.18 De fato, isso não é suficiente... E muito menos o fato de enquadrar a mí- dia ou inundar as redes sociais com comentários indignados direcionados a “amigos” igualmente indignados, sempre pelas mesmas coisas. Obama entendeu isso. Em 17 de julho, ele di- vulgou uma análise detalhada, muitas vezes lúcida, das últimas décadas. Mas não pôde deixar de retomar a ideia fixa da esquerda neoliberal desde que ela adotou o modelo capitalista. Em es- sência, como o ex-primeiro-ministro italiano de centro-esquerda Paolo Gentiloni lembrou a Trump em 24 de janeiro de 2018 em Davos, “podemos corrigir o quadro, mas não alterá-lo”. A globalização, Obama admite, foi acompanhada por erros e pilhagens. Ela enfraqueceu o poder dos sindica- tos. Ela “permitiu ao capital escapar dos impostos e das leis dos Estados mudando de lugar centenas de bilhões de dólares com um simples toque nu- ma tecla de computador”. Certo, mas e o remédio? Um “capitalismo inclusi- vo”, iluminado pela moralidade hu- manista dos capitalistas. Só esse cau- terizador em uma perna de madeira pode, segundo ele, corrigir alguns dos defeitos do sistema. Desde que ele não veja nenhum outro na loja e que, no fundo, aquele lhe sirva bem... O ex-presidente norte-americano não nega que a crise de 2008 e as más respostas que foram dadas a ela (inclu- sive por ele, diga-se) favoreceram o surgimento de uma “política do medo, do ressentimento e da contenção”, da “popularidade dos homens fortes”, de um “modelo chinês de controle autori- tário considerado preferível a uma de- mocracia percebida como desordena- da”. Mas ele atribui a responsabilidade essencial por esses distúrbios aos “po- pulistas” que recuperam as insegu- ranças e ameaçam o mundo com um retorno a uma “ordem antiga, mais pe- rigosa e mais brutal”, salvando de pas- sagem as elites sociais e intelectuais (seus pares...) que criaram as condi- ções da crise – e que muitas vezes se beneficiaram dela. Tal panorama tem muitas vanta- gens para elas. Em primeiro lugar, re- petir que a ditadura nos ameaça torna possível acreditar que a democracia impera, mesmo que ainda exija pe- quenos ajustes. Mais fundamental- mente, a ideia de Obama (ou aquela, idêntica, de Macron) de que “duas vi- sões muito diferentes do futuro da hu- manidade competem pelos corações e mentes dos cidadãos de todo o mun- do” permite esconder o que essas “duas visões” têm em comum: nada menos do que o modo de produção e de propriedade, ou, para retomar as mesmas palavras do ex-presidente norte-americano, “a desproporcional influência econômica, política e mi- diática dos que estão no topo”. A esse respeito, de fato, nada distingue Ma- cron de Trump, como aliás foi de- monstrado por sua ânsia comum de reduzir, assim que chegaram ao poder, a taxação da renda do capital. Resumir obstinadamente a vida política das próximas décadas ao en- frentamento entre democracia e po- pulismo, abertura e soberania, não trará nenhum alívio para essa porção crescente das categorias populares de- siludida com uma “democracia” que a abandonou e com uma esquerda que se metamorfoseou em partido da bur- guesia graduada. Dez anos após a eclosão da crise financeira, a luta vito- riosa contra a “ordem brutal e perigo- sa” que está surgindo exige algo bem diferente – de início, o desenvolvimen- to de uma força política capaz de com- bater simultaneamente os “tecnocra- tas esclarecidos” e os “bilionários enraivecidos”,19 recusando, assim, o papel da força de apoio de um dos dois blocos que, cada um a seu modo, colo- cam a humanidade em perigo. *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é membro da direção do Le Monde Diplomatique. 1 Francis Fukuyama, “Retour sur ‘La fin de l’histoi- re?’” [Retorno sobre “O fim da história”?], Com- mentaire, n.161, Paris, primavera 2018. 2 William Galston, “Wage stagnation is everyone’s problem” [A estagnação salarial é problema de to- dos], The Wall Street Journal, Nova York, 14 ago. 2018. Sobre a destruição de empregos em razão da globalização, cf. Daron Acemo’ler et al., “Import competition and the great US employment sag of the 2000s” [Importar a concorrência e a grande queda do emprego dos Estados Unidos nos anos 2000], Journal of Labor Economics, v.34, n.S1, Chicago, jan. 2016. 3 Bob Davis e Dante Chinni, “America’s factory towns, once solidly blue, are now a GOP haven” [As cidades industriais norte-americanas, outrora solidamente azuis, são agora um refúgio do Partido Republicano], e Bob Davis e Jon Hilsenrath, “How the China shock, deep and swift, spurred the rise of Trump” [Como o choque da China, profundo e rápido, estimulou a as- censão de Trump], The Wall Street Journal, 19 jul. 2018 e 11 ago. 2016, respectivamente. 4 Citado por Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World [Quebra- do: como uma década de crise financeira mudou o mundo], Penguin Books, Nova York, 2018. 5 John Lanchester, “After the fall” [Depois da queda], London Review of Books, v.40, n.13, 5 jul. 2018. 6 Jack Dion, “Les marchés contre les peuples” [Os mer- cados contra o povo], Marianne, Paris, 1º jun. 2018. 7 Yanis Varoufakis, Adults in the Room. My Battle Against Europe’s Deep Establishment [Adultos na sala. Minha batalha contra o establishment profun- do da Europa], The Bodley Head, Londres, 2017. 8 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent les monstres. Choses vues au cœur du pouvoir [Nesse claro-escuro surgem monstros. Coisas vis- tas no coração do poder], Plon, Paris, 2018. 9 Ler Frédéric Lordon, “Le jour où Wall Street est de- venu socialiste” [O dia em que Wall Street se tornou socialista], Le Monde Diplomatique, out. 2008. 10 Jean-Claude Trichet, “Nous sommes encore dans une situation dangereuse” [Ainda estamos em uma situação perigosa], Le Monde, 14 set. 2013. 11 Adam Tooze, op. cit. 12 Drew Hinshaw e Marcus Walker, “In Orban’s Hun- gary, a glimpse of Europe’s demise” [Na Hungria de Orbán, um vislumbre da morte da Europa], The Wall Street Journal, 9 ago. 2018 13 Ler Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “La nouvelle vulgate planétaire” [A nova vulgata mundial], Le Monde Diplomatique, maio 2000. 14 “Discurso do primeiro-ministro Viktor Orbán no 25º Acampamento de Estudantes e Universidade Livre de Verão de Bálványos”, 30 jul. 2014. Disponível em: <http://2010-2015.miniszterelnok.hu>. 15 Michael Ignatieff e Stefan Roch (orgs.), Rethinking Open Society: New Adversaries and New Oppor- tunities [Repensando a sociedade aberta: novos adversários e novas oportunidades], CEU Press Budapeste, 2018. 16 Éric Le Boucher, “Le salut par l’éthique, la démo- cratie, l’Europe” [A salvação pela ética, pela demo- cracia, pela Europa], L’Opinion, Paris, 9 jul. 2018. 17 Citado por Michael Steinberger, “George Soros bet big on liberal democracy. Now he fears he is losing” [George Soros apostou alto na democracia liberal. Agora teme que esteja perdendo], The New York Times Magazine, 17 jul. 2018. 18 Alexandre Devecchio, “Francis Fukuyama: ‘Il y a un risque de défaite de la démocratie’” [Francis Fuku- yama: “Há um risco de derrota da democracia”], Le Figaro Magazine, Paris, 6 abr. 2018. 19 Thomas Frank, “Four more years” [Mais quatro anos], Harper’s, abr. 2018. 5SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil EDITORIALNa linguagem do povo POR SILVIO CACCIA BAVA A s eleições deste ano buscam sensibilizar um eleitorado no qual 49% dos que têm mais de 25 anos ainda não completaram o ciclo do Ensino Fundamental (IB- GE); no qual 95 milhões de brasileiros têm renda de até R$ 14 por dia (46%) e 41 milhões, renda entre R$ 14 e R$ 21 por dia (20%); no qual 13,7 milhões de desempregados se somam aos mi- lhões que perderam as esperanças de encontrar uma vaga. Buscar mantê-los na ignorância, doutriná-los por meio da televisão, controlá-los pela violência parece ser a alternativa adotada pelos do- nos do poder para tentar submetê- -los à sua vontade. Segundo eles, as questões sociais não cabem no orça- mento público e os pobres têm de fi- car no seu lugar. O ciclo de eleições da primeira dé- cada do século XXI na América Latina mostrou que os pobres não são igno- rantes, não estão sujeitos a todo tipo de manipulações e não querem ficar no lugar subalterno destinado a eles pelas elites. Eles querem superar o fos- so da desigualdade. As manifestações populares dizem hoje que eles também não querem as políticas de austeridade que lhes são impostas para garantir os ganhos do 1% mais rico. Mas, na atualidade, uma parte desses mesmos pobres pende para defender seus algozes, iludida por uma santa campanha contra a corrup- ção que é extremamente seletiva e se concentra em atacar o PT, sobretudo Lula, que lidera com folga todas as pes- quisas eleitorais. O golpe de 2016, que derrubou a presidenta Dilma, os péssimos resulta- dos do governo Temer, a espoliação das maiorias promovida por iniciativas de entidades empresariais como a Fiesp e a CNI (especialmente a reforma traba- lhista e a Emenda Constitucional n. 95, que congela por vinte anos os gastos sociais), o desrespeito aos direitos con- sagrados em nossa Constituição, tudo isso gera o descrédito com a política e com os políticos, colocando perigosa- mente todos no mesmo saco. Para estudiosos dos processos elei- torais, a abstenção, somada aos votos brancos e nulos, pode superar os 40% do eleitorado nestas eleições1, sinal de que esse sistema político já não dá conta de processar os conflitos de inte- resse em nossa sociedade. Some-se a isso o impedimento legal, que contra- diz a Constituição da República, de um candidato com mais de 39% da preferência eleitoral, e temos uma si- tuação inédita.2 Nesse cenário, o conjunto dos par- tidos da direita abraça um programa único: o da implantação do ultralibe- ralismo econômico. Todos defendem o corte nas políticas sociais, o rebaixa- mento dos salários, a precarização do trabalho, a violência como solução pa- ra a criminalidade, as privatizações, entre outras coisas. E encobrem seus propósitos com discursos em prol de uma falsa retomada do desenvolvi- mento e de um Estado mais eficiente, como se não tivéssemos um registro histórico de que a desigualdade avan- ça com o baixo crescimento da econo- mia e a extinção do Estado social. Já aqueles que se organizam para a defesa da democracia e dos direitos que estão sendo suprimidos não encontram uma linguagem capaz de sensibilizar a maioria do povo e são ignorados pelos grandes meios de comunicação. O que significa, para aqueles que suam a camisa no dia a dia para garan- tir seu sustento e o de sua família, a discussão sobre desenvolvimento sus- tentável, taxa de câmbio, juros, refor- ma tributária etc.? Buscar o engajamento da popula- ção em um processo eleitoral significa mobilizar suas expectativas e deman- das e estabelecer compromissos que venham abordar os problemas do coti- diano e propor como enfrentá-los. O sucesso da campanha de Bernie Sanders para a presidência dos Estados Unidos se deveu à sua linguagem clara e direta e ao seu compromisso com os interesses das maiorias. Sua platafor- ma tinha como carro-chefe dobrar o salário mínimo e garantir educação pública, gratuita e de qualidade, em to- dos os níveis. Tais propostas atendem a todos. Embora não tenha ganho a dis- puta pela candidatura do Partido De- mocrata, Sanders conseguiu encantar uma parcela importante do eleitorado, especialmente a juventude. Forma e conteúdo se combinam numa estratégia eleitoral. As propos- tas claras e objetivas precisam ser apresentadas na linguagem do povo. E aqui está um desafio para as organiza- ções de esquerda, melhor dizendo, pa- ra as organizações que defendem a de- mocracia e os direitos humanos, o que abarca um arco mais amplo de organi- zações, seja do sistema político, seja da sociedade civil. Mas se falar a linguagem do povo já é um passo gigantesco de aproxima- ção com as maiorias, é importante lembrar que a ação e as identidades políticas se constroem graças aos cole- tivos que se mobilizam e, assim, criam seus afetos políticos3. Casos recentes exemplares foram as caravanas pro- movidas por Lula pelo país e os comí- cios realizados ao longo da caravana; as marchas e ocupações do MST; a Marcha das Mulheres Negras; as inú- meras manifestações e passeatas em defesa de direitos; os acampamentos do Levante Popular da Juventude. Para as grandes maiorias empobre- cidas, o que interessa são suas condi- ções de vida e a possibilidade de sonhar com uma vida melhor. Garantir seu em- prego e seus direitos trabalhistas; au- mentar o salário mínimo; garantir saú- de e educação pública, gratuita e de qualidade para todos; garantir a quali- dade de vida dos aposentados pela via da Previdência; baixar o preço do boti- jão de gás. Esses são alguns elementos centrais para atender e mobilizar as maiorias. Tudo ao contrário do que reza a cartilha da austeridade e do liberalis- mo arcaico preconizada no programa único da direita. 1 Lejeune Mirhan, sociólogo, escritor, pesquisador, professor e analista internacional. Presidiu o Sindi- cato dos Sociólogos do Estado de São Paulo e a Federação Nacional dos Sociólogos. 2 Pesquisa Datafolha, divulgada em 22 ago. 2018. 3 Antonio Negri e Michael Hardt, Declaração: isto não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo, 2014, p.31. © C la ud iu s 6 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 DIMINUIR TRIBUTOS OU REFORMAR A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS O que interessa ao povo brasileiro? Para resolver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação, principalmente sobre o 1% mais rico da população? POR ODILON GUEDES* A eleição para presidente coloca um tema fundamental para o debate: a reforma tributária. O Brasil possui uma das estrutu- ras tributárias mais injustas, em que a população de baixa renda e a classe média pagam, proporcionalmente, mais tributos que o 1% mais rico. Isso ocorre porque a maior parte dos tri- butos é indireta e recai sobre o con- sumo, atingindo da mesma forma quem ganha dois, trinta ou trezentos salários mínimos. Apesar disso, as forças conservado- ras que disputam a eleição afirmam que um dos principais problemas do Brasil é o alto percentual da carga tributária em relação ao PIB; e que a solução é abaixá- -lo. Pelos dados que apresentamos a se- guir ficará evidente que o Estado brasi- leiro arrecada por cidadão muito menos que os demais países analisados. De- monstraremos também que o Brasil vi- ve uma situação social muito pior que esses países, o que significa que são ne- cessários muito mais recursos para in- vestir em educação, saúde, segurança pública e outras áreas. Em resumo, a questão a ser analisada não é o percen- tual da carga tributária em relação ao PIB, e sim quanto o governo dispõe para investir por cidadão. Pelos dados da Tabela 1 observamos que, apesar de a carga tributária dos países, com exceçãoda Alemanha, ser menor que a nossa, todos têm muito mais recursos para investir. Apesar de a carga tributária norte-americana ser 25,4% do PIB, e a nossa, 33,7%, os Esta- dos Unidos têm US$ 14.422 por habitan- te, enquanto o Brasil tem US$ 2.928. A situação social do Brasil, comprovada pelos indicadores a seguir, é muitas ve- zes pior do que a desses países. Isso sig- nifica que precisamos de muito mais investimentos para melhorar a qualida- de de vida de nossa população. ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO A classificação dos países citados em relação ao Índice de Desenvolvi- mento Humano (IDH) é a seguinte: Estados Unidos, 8º colocado; Alema- nha, 6º; Japão, 20º; Chile, 42º; Coreia do Sul, 12º; e Brasil, 72º. Esse índice é uma medida impor- tante concebida pela ONU para ava- liar a qualidade de vida e o desenvolvi- mento econômico de uma população com base em três critérios: saúde (ex- pectativa de vida ao nascer), educação (média de anos de estudo dos adultos e anos esperados de escolaridade das crianças) e renda, medida pela Renda Nacional Bruta (RNB). Estamos bem atrás de todos, o que evidencia a necessidade de muito in- vestimento público, sobretudo na área de saúde, uma vez que 160 milhões de brasileiros não têm plano privado, por- tanto dependem diretamente do SUS. PISA 2015 O Programa Internacional de Ava- liação de Alunos (Pisa) mede o nível educacional de jovens de 15 anos por meio de provas de Leitura, Matemáti- ca e Ciências. O exame é realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esses dados, expostos na Tabela 2, falam por si e demonstram uma situa- ção calamitosa. Com base nesse con- texto, destacamos que 83% dos estu- dantes, antes de ingressarem na universidade, estudam em escolas pú- blicas. Portanto, se não houver inves- timentos em educação por parte do Estado, essa situação não mudará, comprometendo o presente e o futuro das crianças e jovens de nosso país. SEGURANÇA PÚBLICA Comparar o número de homicídios permite que tenhamos uma noção de que atualmente enfrentamos uma ver- dadeira guerra civil, à qual, infeliz- mente, muitos já se acostumaram. Ve- jamos o número de homicídios por 100 mil habitantes: Estados Unidos, 5,3 (2016); Alemanha, 0,7 (2015); Japão, 0,73 (2015); Coreia do Sul, 0,8 (2014); Chile, 3,3 (2017); e Brasil, 30,5 (2016) (fontes: FBI; UN Office on Drugs and Crime; InSight Crime; Ipea). * Esses números comprovam que vi- vemos aqui no Brasil uma situação caótica. Essa realidade nos traz uma pergunta a ser respondida: para resol- ver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação, principalmente sobre o 1% mais rico da população? De um lado, a proposta que defen- demos é de uma reforma tributária que seja pautada pela redução dos tributos indiretos, favorecendo principalmente os cidadãos de baixa renda. Isso ocorre- rá porque as empresas, diante da redu- ção dos tributos que pagam ao Estado, terão como consequência a diminui- ção de custos, o que as levará a abaixar os preços de seus produtos. Do outro lado propomos o aumento dos tributos diretos da seguinte forma: • Imposto de Renda: isenção para quem ganha o equivalente ao salário mínimo definido pelo Dieese (art. 7º, item IV, da CF), que, em junho de 2018, estava em R$ 3.804,06. A partir desse patamar, aumentar as alíquotas em 8% até chegar ao limite de 40%. Outra medida importante é passar a cobrar Imposto de Renda sobre a distribuição de lucros e dividendos. • Imposto sobre herança: imposto progressivo até o limite de 30% e que seja federalizado. Hoje, esse imposto é estadual e, segundo a Resolução 09/92 do Senado, a alíquota máxima que po- de ser cobrada é de 8%. • Imposto sobre a propriedade: au- mentar a progressividade do Imposto Territorial Rural (ITR) e que o Estado passe a fazer uma fiscalização tão ri- gorosa como a do Imposto de Renda. Salientamos que a atual arrecadação do ITR, durante todo o ano de 2017, em todo o Brasil, foi menor que dois meses de arrecadação do IPTU na cidade de São Paulo. • Imposto sobre as grandes fortu- nas: regulamentação do artigo 153, item VII, da CF, por meio de lei comple- mentar, que a Receita Federal passe a informar o valor do patrimônio das pessoas por faixa de renda e que as alí- quotas aplicadas sejam progressivas. Uma reforma tributária com essas características, além de fazer justiça tributária, dará muito mais condições ao Estado para investir em políticas públicas. *Odilon Guedes é economista, mestre em Economia pela PUC-SP, professor do curso de pós-graduação Gerente de Cidades e do cur- so de Economia da Fundação Armando Álva- res Penteado (Faap) e do curso de Economia das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, vereador e subprefeito da cidade de São Paulo. Autor do livro Orçamento públi- co e cidadania (Ed. Livraria da Física, 2012). País Leitura Matemática Ciências Estados Unidos 24º 41º 25º Alemanha 11º 16º 16º Japão 8º 5º 2º Coreia do Sul 7º 7º 11º Chile 43º 51º 46º Brasil 59º 69º 67º País População em milhões/ hab. 2016 PIB em US$ bilhões 2016 % da carga tributária em relação ao PIB Total da carga tributária em US$ bilhões Capacidade de investimento do governo (per capita) em US$ EUA 327 18.570 25,4 4.716 14.422 Brasil 207 1.799 33,7 606 2.928 Alemanha 81 3.467 36,7 1.272 15.703 Japão 128 4.139 29,5 1.221 9.539 Coreia do Sul 51 1.411 24,3 343 6.725 Chile 18 277 20,2 56 3.111 TABELA 1 – CARGAS TRIBUTÁRIAS EM PERSPECTIVA Fonte: FMI/IBGE. Fonte: OCDE. TABELA 2 – RESULTADOS DO PISA (EM UM TOTAL DE SETENTA PAÍSES) 7SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil CAI A MÁSCARA DA REFORMA TRABALHISTA Desemprego e precarização vêm à tona Os argumentos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas POR EUZÉBIO JORGE SILVEIRA DE SOUZA, ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA E BARBARA VALLEJOS VAZQUEZ* A reforma trabalhista completou em agosto nove meses de vigên- cia e já é evidente seu fracasso na missão de criar mais empregos formais de qualidade e contribuir na retomada do crescimento econômico. Com o aprofundamento da crise econômica a partir de 2015, o Brasil acompanhou os malabarismos teóri- cos de economistas ortodoxos para es- tabelecer uma relação causal entre a superação da crise econômica e a des- truição do aparato político e institu- cional que promovia seguridade ao trabalhador e mitigava a assimetria no mercado de trabalho. A reforma traba- lhista, mal debatida e aprovada em tempo recorde pelo Congresso em ju- lho de 2017, foi apresentada como me- dida imprescindível para a “moderni- zação” das relações de trabalho no país e para a superação da crise econô- mica. Os mesmos defensores da auste- ridade1 que transformou uma desace- leração em recessão econômica em 2015 defendiam a reforma trabalhista como saída para a crise. A reforma, ao flexibilizar as rela- ções de trabalho, reduzir direitos tra- balhistas, permitir a livre negociação entre trabalhadores e empresários e deixar que o próprio mercado defina níveis de remunerações e condições de trabalho, contribuiria para a reto- mada do crescimento econômico, se- gundo seus defensores. Tal pensa- mento é baseado na ideia de que o mercado de trabalho brasileiro não era flexível e que o desemprego e a queda da atividade econômica são res- ponsabilidades dos trabalhadores. Em primeiro lugar, o Brasil possui um mercado detrabalho historicamente marcado por informalidade, alta rota- tividade, baixos salários e desrespeito à regulação do trabalho. Ademais, a pressuposição de que os trabalhado- res são responsáveis pelo desemprego está fundada na ideia de que estes pre- ferem o desemprego a trabalhar por baixos salários – o que justificaria reti- rar direitos trabalhistas como seguro- -desemprego, com o propósito de combater o “corpo mole”. Por outro la- do, o nível de emprego depende do vo- lume de gastos e investimentos na economia como um todo: buscar en- tender o nível de desemprego obser- vando apenas o mercado de trabalho é como tentar apreender o funciona- mento do motor de um carro olhando para suas rodas. Até poucos anos atrás, as estatísti- cas oficiais acerca do trabalho não ha- viam sido capazes de incorporar espe- cificidades brasileiras e ao mesmo tempo adequar-se a padrões interna- cionais de medição das situações de emprego e desemprego. No entanto, com a Pnad Contínua (PnadC), houve uma tentativa de medição mais com- plexa de fenômenos que impactam os mercados de trabalho periféricos co- mo o Brasil (ao contrário da Europa): subemprego, desalento, entre outros, consolidados no indicador “Subutili- zação da força de trabalho”. Sobre esse indicador, do segundo trimestre de 2017 para o segundo tri- mestre de 2018, cresceu de 26,3 mi- lhões para 27,6 milhões a quantidade de pessoas subutilizadas, isto é, os subocupados por insuficiência de ho- ras trabalhadas, os desocupados e a força de trabalho potencial. Para comparação, antes da adoção das po- líticas de austeridade no Brasil (o que ocorreu a partir de 2015), havia no país 15,3 milhões de subutilizados no segundo trimestre de 2014, quase a metade do número hoje. A análise desse indicador compos- to revela que, à dessemelhança do que se observa em mercados estruturados, no Brasil existe uma ampla gama de si- tuações que não podem ser adequada- mente mensuradas pelo binômio em- prego/desemprego. Aliás, o grande aumento do total de desocupados (+101%) no Brasil desde 2015, início da crise econômica – 6,4 milhões de pes- soas em dezembro de 2014 para 12,9 milhões em junho de 2018 –, foi acom- panhado pelo aumento do subempre- go e do desalento, sintomas dos tem- pos presentes. O desalento chegou a 4,8 milhões no segundo trimestre de 2018, ponto mais alto da série histórica. De dezembro de 2014 a junho de 2018, o número de trabalhadores em situa- ção de subemprego aumentou 38%, e a força de trabalho potencial, 91%. Entretanto, a reforma prometia, além de reduzir a desocupação e o de- salento, gerar novos postos de traba- lho. Segundo o Cadastro Geral de Em- pregados e Desempregados (Caged), o saldo de emprego formal entre novem- bro de 2017 e junho de 2018, período de vigência da reforma, é de 3.226 postos. Já o saldo de geração de empregos in- termitentes é de 22.901, e de postos em tempo parcial, de 12.507. A PnadC re- vela também uma degradação do mer- cado de trabalho, expressa na redução em 10,1% do total do emprego com carteira assinada no Brasil, passando de 36,5 milhões para 32,8 milhões en- tre outubro, novembro e dezembro de 2014 e abril, maio e junho de 2018, pon- to mais baixo da série histórica. Entre o quarto trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2018, houve recuo da ocu- pação, que passou de 92,9 milhões pa- ra 91,2, representando uma queda de 1,8% no período e aumento no total de empregadores (10,1%), dos trabalha- dores por conta própria (6,0%), do em- prego sem carteira (4,8%) e do traba- lho doméstico (4,8%). E é bom lembrar que os argumen- tos de “modernização” do trabalho para retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, que geraram sociedades pauperizadas e violentas. Na mesma linha, a reforma agrava problemas históricos brasileiros, co- mo alto desemprego e informalidade, degradação da qualidade dos postos de trabalho formais, grande peso do desemprego oculto por situações de trabalhos precários ou desalento, que acabam empurrando os desemprega- dos para a inatividade. A partir da reforma tem ocorrido uma substituição de ocupações mais estáveis, como emprego por tempo in- determinado, por ocupações em tem- po parcial e contratos intermitentes, PJs, terceirizados etc. Em suma, o im- pacto real da reforma trabalhista não se deu sobre o desemprego, que persis- te, e sim nos postos de trabalho for- mais, que estão sendo paulatinamente substituídos por contratos precários. *Euzébio Jorge Silveira de Souza é mes- tre em Economia Política pela PUC-SP, dou- torando em Desenvolvimento Econômico na Unicamp, presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ) e conselheiro do Conselho Nacional de Juventude (Conju- ve); Ana Luíza Matos de Oliveira é profes- sora visitante da Flacso-Brasil e economista pela UFMG, mestra e doutoranda em Desen- volvimento Econômico na Unicamp; e Bar- bara Vallejos Vazquez é mestre em Desen- volvimento Econômico pela Unicamp, graduada em Ciências Sociais pela USP, téc- nica do Dieese e professora da Escola Diee- se de Ciências do Trabalho. 1 Essa política de austeridade teve e tem profundos impactos no mercado de trabalho e nos gastos so- ciais, e é analisada no estudo “Austeridade e retro- cesso: impactos sociais da política fiscal no Bra- sil”, Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, São Paulo, ago. 2018. Disponível em: <http://brasilde- bate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTE- RIDADE_doc3-_L9.pdf>. © C ai o B or ge s 8 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 O discurso da privatização As tragédias de Mariana e da Ponte Morandi, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo POR ADHEMAR MINEIRO, CLOVIOMAR CARARINE, FERNANDO AMORIM TEIXEIRA, GUSTAVO TEIXEIRA, IDERLEY COLOMBINI NETO E PAULO JÄGER* EM FACE DOS OBJETIVOS DAS ESTATAIS A discussão sobre a privatização das empresas estatais brasilei- ras, de forma geral, tem sido rea- lizada de forma maniqueísta: um lado argumenta que o setor público é eficiente, e o outro, que é ineficiente; uma parte afirma que as empresas dão lucro, a outra, que causam prejuízo ao Estado; uma parcela diz que a venda de ativos públicos resolve o problema de déficit nas contas públicas, enquanto a outra proclama o contrário. O discurso da superioridade do de- sempenho do setor privado em relação ao público e dos prejuízos causados pe- las estatais tem carga ideológica pesada e desconsidera o que essas empresas re- presentam para o país. As estatais de- sempenham papel fundamental no de- senvolvimento da sociedade e são, ao mesmo tempo, mecanismo de política econômica e externa, já que podem de- senvolver funções importantes na geo- política internacional. E isso porque são essas empresas que viabilizam grandes investimentos de longo prazo; ofere- cem serviços essenciais à vida; assegu- ram um nível de concorrência adequa- do (oferta e preço) em mercados concentrados; investem em ciência, tecnologia e inovação; atuam como instrumento de políticas anticíclicas; asseguram o controle de bens escassos que são elementos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva; atuam em nome do interesse e da sobe- rania nacionais; e tomam decisões em- presariais orientadas pelo interesse co- letivo, e não só pelo lucro. Muitos setores de atividade econô- mica, em função de características in- trínsecas, precisam de altos investi- mentos com longo prazo de maturação, como ocorre com a construção de es- tradas e ferrovias. Em muitas situa- ções, o investimento não interessa à iniciativaprivada, mas é fundamental para o desenvolvimento econômico e social de uma região e, por isso, a so- ciedade decide arcar com os custos. Existem ainda serviços essenciais à vida – como captação, tratamento e distribuição da água e geração, trans- missão e distribuição de energia elétri- ca – que, sob pena de colocarem em ris- co a economia do país e a sobrevivência da população, não podem ser tratados como uma mercadoria qualquer. A Constituição brasileira define o fornecimento de uma série de bens e serviços como propriedade/competên- cia do Estado – União, estados e muni- cípios. Entre eles, estão as jazidas e de- mais recursos minerais; potenciais de energia elétrica; tratamento e distribui- ção de água e coleta de esgoto; gestão dos recursos hídricos; infraestrutura aeroportuária; serviços e instalações nucleares; serviços de transporte; e ser- viços postais. Para assegurar a oferta e preços ade- quados, é preciso considerar que alguns setores têm estrutura de mercado mui- to concentrada: quando não são mono- pólios naturais, são segmentos em que há poucos participantes com expressi- vo poder de mercado (oligopólios), principalmente em função de barreiras à entrada de novos atores. Essa é uma razão adicional para que o Estado tenha participação nesses mercados. Empresas e centros de pesquisa estatais são fundamentais para eco- nomias modernas, pois realizam in- vestimentos em projetos de ciência, tecnologia e inovação, pouco atrativos à iniciativa privada, uma vez que re- querem longos períodos para pesqui- sa e desenvolvimento e se caracteri- zam por elevada incerteza. Assim, os recursos destinados por empresas es- tatais são decisivos em qualquer pro- jeto de desenvolvimento que almeje a redução da dependência tecnológica de outros países. A atuação e os investimentos esta- tais também podem ser fatores de es- tabilização econômica, do nível de emprego e da renda, à medida que, por não obedecerem apenas à lógica de mercado e lucro, asseguram um míni- mo de expansão da demanda agrega- da, atuando como instrumento de po- líticas anticíclicas. Além disso, bens escassos e que são insumos essenciais para o conjunto da estrutura produtiva, em especial pe- tróleo, gás e derivados, são estratégicos para o desenvolvimento econômico e social. Os poucos países que detêm grandes reservas e competência para explorá-las procuram protegê-las e uti- lizá-las da melhor maneira possível. Importante lembrar que as estatais diferem das empresas privadas na me- dida em que, pela própria natureza, devem tomar decisões orientadas pelo interesse coletivo, e não apenas por critérios econômico-financeiros. No debate sobre privatização, a questão do lucro diante do interesse coletivo merece muita atenção. As tragédias de Mariana, com o rompimento da Bar- ragem de Fundão, erguida pela Samar- co, subsidiária da Vale (Vale do Rio Do- ce, enquanto era estatal), empresa privatizada nos anos 1990, e da Ponte Morandi, também sob controle priva- do, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, ex- põem as diferenças de prioridades en- tre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo. Não à toa, hoje duas tendências são observadas no mundo: 1) em nome do interesse e da soberania nacionais, vários países têm adotado medidas de restrição ao investimento estrangeiro em setores estratégicos. A China é um exemplo. Por meio das grandes em- presas estatais, o país tem aplicado uma política de investimento em nível mundial; 2) é enorme o número de ca- sos de reestatização dos serviços pú- blicos (835 casos) para resolver os pro- blemas de ineficiência da gestão privada no fornecimento dos serviços à população.1 A análise de experiências em paí- ses desenvolvidos mostra a viabilidade de diferentes tipos de gestão no setor público, com controle social, que re- duziram acentuadamente problemas relacionados à corrupção e à apropria- ção indevida por interesses privados. É possível gerir empresas estatais de for- ma eficiente, sob a perspectiva do inte- resse público. Por fim, dado o caráter público, as empresas estatais estão sujeitas à in- fluência dos grupos políticos que ocu- pam diferentes esferas de poder, o que torna imprescindível o desenvolvi- mento de mecanismos que aprimo- rem gestão, controle e participação social, e, consequentemente, garan- tam maior engajamento da sociedade civil organizada. *Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, Fernando Amorim Teixeira, Gustavo Teixei- ra, Iderley Colombini Neto e Paulo Jäger são técnicos do Dieese e componentes do grupo de estudos da entidade que analisa a questão das estatais. Texto produzido com base na Nota Técnica 189 do Dieese, “Em- presas estatais e desenvolvimento: conside- rações sobre a atual política de desestatiza- ção”, disponível em: <www.dieese.org.br>. 1 Ver Transnational Institute (TNI), Reclaiming Public Services: How cities and citizens are turning back privatization, 2016. Disponível em: <www.tni.org/ en/publication/reclaiming-public-services>. © C ai o B or ge s 9SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil SUS pós-2018: a caravana passa? Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam, sem mediação, das páginas de documentos de grandes grupos econômicos setoriais para as de partidos políticos. O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade POR LIGIA BAHIA* SAÚDE S istemas universais de países eu- ropeus, que inspiraram a for- mulação do Sistema Único de Saúde (SUS), estão sendo ques- tionados, mas não desmontados. A cri- se econômica de 2008, políticas de austeridade e a vitória eleitoral de coalizões de centro-direita e direita em países europeus e nos Estados Unidos abalaram, mas não erodiram, os alicerces da concepção de garantia de direito independente da contri- buição pecuniária de indivíduos e fa- mílias. Por lá, houve mudanças, mas também resistência. Talvez, a conse- quência mais dramática da reedição das críticas aos sistemas universais tenha sido a absorção de concepções conservadoras por instituições polí- ticas e políticos influenciados por agências como o Banco Mundial, em nações como o Brasil. A comemoração dos setenta anos do sistema nacional de saúde inglês (NHS), criado em 1948, tem sido mar- cada por polêmicas que chegam aqui atrasadas e deturpadas. O centro de gravitação do debate internacional é a sustentabilidade de sistemas públi- cos de países de renda alta em tem- pos de inovações terapêuticas e crise econômica. A interrogação concen- tra-se em torno dos limites da distri- buição, da natureza e da carga dos impostos necessários para financiar o acesso universal, inclusive para tra- tamentos muito caros. Há consenso sobre a necessidade de aumentar o fi- nanciamento. Parlamentares ingle- ses usam o símbolo do NHS na lapela e Theresa May anunciou um aporte de mais 20 bilhões de libras esterlinas por ano até 2023. No Brasil, os trinta anos de SUS não motivaram declarações ou even- tos oficiais. Pairam no ar acepções ideológicas sobre as virtudes do mer- cado para alocar eficientemente re- cursos para atenção à saúde. A aten- ção à saúde pode ser mercadoria, é óbvio, contanto que não seja social, política e moralmente mediada. Tal como em outros mercados, para um dado preço, a oferta pode aumentar ou diminuir e inovações tecnológicas tendem a deslocar a curva para a di- reita, ainda que seja importante res- salvar casos de doenças para as quais o aumento da assistência e dos custos será inócuo. Ocorre que não foi assimque as sociedades ocidentais organi- zaram suas instituições. Na maioria das nações, a saúde, ao lado de outras políticas sociais, compõe um espaço “desmercantilizado”. Ações de saúde têm custos, mas não são necessaria- mente mercadorias. Uma mercadoria para ser adquirida requer renda e de- pende do preço. A oferta pública de serviços de saú- de permite que pessoas os utilizem de acordo com necessidades, e não com a capacidade de pagamento. Existem duas dimensões envolvidas com polí- ticas de saúde. A primeira é normativa e ideológica; diz respeito à distribui- ção (quanto e de que poder, renda, ri- queza). Igualdade, eficiência e liberda- de são fundamentos gerais, mas seus pesos variam de acordo com distintos posicionamentos. Liberais valorizam a liberdade, e socialistas, a igualdade. O segundo enfoque é técnico. A aloca- ção realizada pelo mercado não é certa ou errada, boa ou má. Similarmente, a intervenção governamental pode ser muito eficiente ou não. Uma ambulância da prefeitura não é mercadoria e, se atende muitos ca- sos, tenderá a ser mais eficiente do que um veículo semelhante restrito ao chamado de pessoas que podem pa- gar. Obviamente, o argumento esti- mula comentários: depende do salário do motorista, da equipe de saúde. A resposta é: depende dos custos, mas também dos objetivos do sistema de saúde. Os resultados em termos de melhoria de condições de saúde serão diferentes se o transporte de pacientes for organizado mediante critérios de gravidade clínica ou maior capacidade de pagamento. No primeiro caso, a maioria da população terá direito a au- mentar as chances de sobrevida. In- versamente, o impacto das ambulân- cias privadas nos indicadores populacionais tenderá a ser inexpres- sivo. Em sistemas de saúde universais, os impostos distribuem rendimentos ao longo da vida dos indivíduos, e não apenas entre ricos e pobres. Servem também como um “cofrinho” para sustentar necessidades de saúde ao longo do ciclo de vida, que são mal ou não supridas por mercados, caracteri- zados por informações assimétricas e elevados custos de transação. Infelizmente, não são esses os ter- mos que predominam no debate atual sobre o SUS. Sob um suposto e disse- minado pragmatismo teríamos dois sistemas: o SUS e outro para “os que podem pagar”. O SUS propiciaria co- bertura para 65% da população pelas unidades de saúde da família, e os pla- nos de saúde e assistência ambulato- rial e hospitalar, para cerca de 27%. O passo seguinte seria a integração do público com o privado: o público fica com a atenção básica; o privado, com a “média complexidade”; e a “alta” seria dividida entre os dois. Essa proposta de integração, apresentada em 2015 por entidades empresariais como agenda inovadora, influencia políticas governamentais e diversas platafor- mas eleitorais em 2018. Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam, sem mediação, das páginas de documentos de gran- des grupos econômicos setoriais pa- ra as de partidos políticos. O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade. A cobertura para 95% dos brasileiros seria aprimorada. Contudo, não teríamos um sistema de saúde capaz de responder efetiva- mente às epidemias de obesidade, prematuridade, aumento de cânce- res, altas de taxas de homicídios e arboviroses. Simplificadamente, te- ríamos cobertura e não necessaria- mente políticas para reduzir, con- trolar, eliminar riscos ou sequer realizar diagnósticos precoces. Saúde é muito mais que médico, remédio, hospital e ambulância. É tra- balho digno, salário mínimo genero- so, emancipação e também redes as- sistenciais. Os povos indígenas são quem adoecem e morrem mais preco- cemente. Sem a demarcação das terras indígenas, essa brutal e secular injus- tiça será preservada e reproduzida. Agrotóxicos e transgênicos não dizem respeito apenas ao “que está na nossa, na minha mesa”, e sim à alavancagem do agrobusiness e ao extermínio de in- dígenas em pleno século XXI. Quando o conceito ampliado de saúde e o SUS foram incluídos na Constituição de 1988, sabíamos que éramos um país não rico em PIB, em renda; exatamen- te por isso precisávamos lutar por di- reitos sociais universais. Considera- mos que ser pobre não era destino, que a desigualdade deve ser combatida, re- duzida. As grandes conquistas do SUS estão relacionadas com políticas uni- versais que ousaram questionar pa- drões conservadores, injustos e discri- minatórios de sociabilidade. Não conseguiremos controlar ou reduzir as violências, a obesidade, sob o ideário errôneo segundo o qual os gordos são preguiçosos, “mal-edu- cados” nutricionais e que “bandido bom é bandido morto”, ou ainda a versão “soft”, a de que é necessário “pacificar” os supostos espaços-po- pulação que guerreiam entre si, por- que neles habitam seres irracionais que precisam que as forças policiais os civilizem. O sentido (significado e direção) do SUS constitucional é o de projeto democrático. Foi a reinter- pretação das forças econômicas e po- líticas conservadoras que reduziu o sistema universal para o convênio entre governo e setor privado. Por- tanto, o equacionamento das políti- cas públicas para o setor público e para o privado não é trivial; requer reconhecimento sobre a existência de grandes grupos econômicos seto- riais e seus movimentos, não apenas de concentração de capitais, mas também de influência na agenda po- lítica. Narrativas para serem real- mente disputadas não podem ser len- das, discursos laudatórios; devem condensar valores, posicionamentos políticos e, sobretudo, práticas. *Ligia Bahia é professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). 10 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018 EDUCAÇÃO Entre histéricos, demagogos e financistas Escola sem Partido, militarização dos colégios estaduais e entrada do grande capital na rede privada. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres estejam sujeitados à disciplina mais restrita, aquela necessária a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna POR JOSÉ RUY LOZANO* O conhecimento não só amplia como multiplica nossos dese- jos. Portanto, o bem-estar e a fe- licidade de todo Estado ou Rei- no requerem que o conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda [...] além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que lhe é alheio ao seu traba- lho e emprego, menos capaz será de su- portar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento.” Esse trecho foi extraído de um famoso compêndio de filosofia moral do século XVIII: A fábula das abelhas: vícios priva- dos, benefícios públicos, de Bernard de Mandeville (1670-1733). A lição de Mandeville volta a fazer sentido no mo- mento atual da educação brasileira, cuja herança de inovação se depara com diversas ameaças. Inventariamos algumas no texto que se segue. ESCOLA SEM PARTIDO Boletim de ocorrência. Esse é um dos links presentes no site do movimen- to Escola sem Partido, e o nome já anun- cia, ou denuncia, como seus integrantes veem a educação. Caso de polícia. Acessando a página, o leitor é con- vidado a apontar episódios de pretensa doutrinação ideológica perpetrada por docentes de escolas e universidades, ou até mesmo fora de sala de aula, em opiniões nas redes sociais, por exem- plo. O discurso persecutório éeviden- te, e as “acusações” abundam, num linguajar grotesco que denuncia desde a defesa dos direitos humanos básicos, inscritos na Constituição, até a análise das condições de trabalho na Revolu- “ ção Industrial, presente em livros de História, como opiniões de esquerda. Nada mais partidarizado que o Es- cola sem Partido. A pretexto de expur- gar um suposto viés político à esquerda dos professores, seus militantes que- rem extirpar da escola sua institucio- nalidade pública, de espaço de debate e formação acima e além das crenças familiares e valores religiosos de cará- ter privado. O verdadeiro pavor do Es- cola sem Partido é a inserção das crian- ças no mundo fora da família, que começa na escola. O que o movimento combate é a ideia de escola como espa- ço público, onde crianças e jovens vão necessariamente ao encontro da dife- rença, transcendendo a vida privada. MILITARIZAÇÃO NAS REDES ESTADUAIS A publicação do último Atlas da vio- lência no Brasil expõe a situação dra- mática na segurança pública. As séries estatísticas, incluindo a impressionan- te cifra de homicídios, não escondem a principal vítima dos crimes contra a vi- da: o jovem pobre, morador das perife- rias dos grandes centros urbanos. Fa- mílias assustadas são alvo fácil da mais recente solução simples – e errada – pa- ra o complexo problema da violência juvenil, correlato da evasão escolar: a militarização dos colégios estaduais. A ideia consiste em colocar, na dire- ção e nas coordenações dos colégios es- taduais, oficiais da Polícia Militar. Com sua autoridade, restaurariam a disci- plina, eliminariam os desvios e melho- rariam o rendimento dos alunos. Os indicadores dos colégios militares bra- sileiros seriam a prova da eficiência. Enquanto os países com os me- lhores indicadores de educação (e os mais caros colégios particulares bra- sileiros) adotam metodologias ativas e investem fortemente na formação de professores, para que as aulas se- jam dialogadas, baseadas em proble- mas e desenvolvedoras do raciocínio e do pensamento crítico, nos colégios militarizados nada disso tem vez. O professor fala, o aluno limita-se a ou- vir e anotar. Evidente que o milagre dos colé- gios militares tradicionais não vai se repetir. Neles, há seleção prévia e os alunos têm vocação para a carreira castrense. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres estejam sujeita- dos à disciplina mais restrita, aquela necessária a quem vai se inserir na so- ciedade em posição subalterna. A ARTICULAÇÃO DO GRANDE CAPITAL O Ministério da Educação é hoje campo de atuação de fundações de di- reito privado, alimentadas pelo finan- ciamento de grandes grupos econômi- cos. Fundação Lehman, Instituto Península (Abílio Diniz), Itaú Cultural e Todos pela Educação são alguns dos braços que articulam políticas públicas educacionais dentro do governo. A re- forma do ensino médio e a Base Nacio- nal Comum Curricular (BNCC) nasce- ram das demandas dessas entidades. Não se nega a situação precaríssi- ma do segmento médio da educação básica, cuja evasão chega à metade dos alunos matriculados, tampouco a ne- cessidade de um mínimo curricular nacional, importante fator de equida- de. A condução de tais temas, no en- tanto, tem por objetivo mais a adequa- ção da escolaridade a parâmetros supostamente objetivos de quantifica- ção e preparação de mão de obra do que às condições de produção autôno- ma do conhecimento. Simultaneamente, grupos educa- cionais gigantescos, como a Kroton, controladora de dezenas de faculda- des e grande vitoriosa na expansão das matrículas no ensino superior privado via Fies, avança no nicho de mercado da educação básica. Recentemente, a Kroton adquiriu a Somos Educação, que agrega colégios, cursos pré-vesti- bulares como o Anglo e as editoras Sa- raiva, Ática e Scipione, que têm como principal fonte de receita a venda de livros didáticos para o governo. Empresas privadas sustentadas pelos fundos públicos: na educação, essa constante brasileira se repete. Para uma empresa como a Kroton, tanto a BNCC como a reforma do ensi- no médio podem representar verda- deiras minas de ouro. Seus técnicos já estão elaborando as “soluções” neces- sárias, com livros adequados às novas normas e programas de ensino a dis- tância para a parte flexível do nível médio, vendidos a preço módico às escolas de todo o país. A histeria aparece na mídia, a de- magogia ganha o noticiário, mas o ca- pital trabalha mais discretamente. En- quanto os palhaços ocupam o palco e distraem o público, os diretores do es- petáculo fazem seu trabalho discreta e minuciosamente. Como diria Mande- ville, nada de desejos: apenas o neces- sário ao trabalho... e ao lucro. *José Ruy Lozano é sociólogo, autor de li- vros didáticos, conselheiro da Comunidade Reinventando a Educação (Core – www.co- reduc.org) e coordenador pedagógico geral do Colégio Nossa Senhora do Morumbi – Rede Alix. © C ai o B or ge s 11SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil SEGURANÇA Violência, subjetividades e projetos de vida e cidadania no Brasil Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar POR BRUNO PAES MANSO, RENATO SÉRGIO DE LIMA E SAMIRA BUENO* N as salas de aula do ensino mé- dio da rede pública, professo- res costumam reclamar dos desafios para prender a aten- ção dos jovens. Numa mistura de ceti- cismo e fatalismo, muitos alunos pre- ferem abandonar a escola para ganhar dinheiro e se sustentar, como se sou- bessem dos obstáculos que teriam pa- ra escapar do futuro insosso que os es- pera. É como se as escolas não fossem capazes de despertar em muitos jo- vens a capacidade de sonhar; não fos- sem capazes de interagir com múlti- plas moralidades e estimular um novo padrão ético pautado na cidadania e na vida como valor público supremo. Escolas que poderiam servir como portas de entrada da rede de acolhi- mento, atendimento social e cidadania isolam-se em seus edifícios cada vez mais vilipendiados e ameaçados pelo crime, que parece seduzir principal- mente as subjetividades masculinas em formação, oferecendo a possibilida- de de uma vida de aventura, insubmis- são, consumo, satisfação desenfreada das pulsões e desejos, e luta contra um sistema que oprime e humilha, mesmo que ao preço de morrer jovem ou de perder a liberdade numa prisão lotada. Como convencer os adolescentes a duvidar das ilusões e promessas da vi- da no crime? Como despertar nesses jovens sonhos de contribuir para o bem-estar coletivo do mundo em que vivem? Como gerar empatia diante de tantas injustiças e desigualdades? Co- mo fazer frente ao imaginário social que divide a sociedade entre “cidadãos de bem” e “bandidos” e aceita que es- tes últimos sejam matáveis? Em vez de despertarem sonhos e vocações, as instituições passaram a agir como se estivessem em conflito aberto contra os jovens pobres. Em 1990, o país tinha 90 mil presos, total que passou para 726 mil em 2016. Mes- mo com a escalada vertiginosa de en- carceramento, que dependeu também de investimentos crescentes no policia- mento ostensivo militarizado nos bair- ros pobres, a situação degringolou. A prisão passou a ser uma das pou- cas políticas públicas universais para os jovens brasileiros pobres e negros, independentemente de ela ser hoje o principal celeiro do crime e da violên- cia no país. Vivemos em um transe, em que se acredita que o veneno que nos sufoca como nação democrática é o remédio para nossos males. Em 2005, no primeiro levantamen-
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