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#Revista Le Monde Diplomatique   Edição 134   (Setembro 2018)

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é muito 
cara para os Estados Unidos; os ou-
tros, que o sucesso da China ameaça 
deitá-la por terra.
Da geopolítica à política há apenas 
um passo. A globalização causou a 
destruição de empregos e a queda dos 
salários no Ocidente – sua participa-
ção nos Estados Unidos passou de 64% 
para 58% do PIB apenas nos últimos 
dez anos, uma perda anual igual a US$ 
7.500 por trabalhador!2
Ora, foi precisamente nas regiões 
industriais devastadas pela concor-
rência chinesa que os trabalhadores 
norte-americanos se voltaram mais 
para a direita nos últimos anos. É claro ©
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3SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
que essa mudança eleitoral pode ser 
atribuída a uma série de fatores “cul-
turais” (sexismo, racismo, apego a ar-
mas de fogo, hostilidade ao aborto e 
casamento entre pessoas do mesmo 
sexo etc.). Mas devemos observar uma 
explicação econômica pelo menos 
igualmente convincente: enquanto o 
número de condados que concentram 
mais de 25% dos empregos norte-ame-
ricanos do setor manufatureiro entrou 
em colapso de 1992 a 2016, passando 
de 862 para 323, o equilíbrio entre os 
votos dos democratas e dos republica-
nos nesses locais se metamorfoseou. 
Há um quarto de século, eles estavam 
divididos quase igualmente entre os 
dois principais partidos (cerca de qua-
trocentos cada); em 2016, 306 escolhe-
ram Trump, e 17, Hillary Clinton.3 Pro-
movida por um presidente democrata 
– Bill Clinton, precisamente –, a ade-
são da China à OMC deveria acelerar a
transformação desse país em uma so-
ciedade capitalista liberal. Isso jogou
os trabalhadores norte-americanos
contra a globalização, o liberalismo e o 
voto democrata...
Pouco antes da queda do Lehman 
Brothers, o ex-presidente do Federal 
Reserve, Alan Greenspan, explicava 
tranquilamente: “Graças à globaliza-
ção, as políticas públicas dos Estados 
Unidos foram amplamente substituí-
das pelas forças globais do mercado. 
Fora as questões de segurança nacio-
nal, a identidade do próximo presiden-
te quase não tem mais importância”.4 
Dez anos depois, ninguém retomaria 
tal diagnóstico.
Nos países da Europa central, cuja 
expansão ainda é baseada nas expor-
tações, o questionamento da globali-
zação não diz respeito às trocas co-
merciais. Mas os “homens fortes” no 
poder denunciam a imposição pela 
União Europeia de “valores ociden-
tais” considerados fracos e decaden-
tes, porque favoráveis à imigração, à 
homossexualidade, ao ateísmo, ao fe-
minismo, à ecologia, à dissolução da 
família etc. Eles também contestam a 
natureza democrática do capitalismo 
liberal. Não sem fundamento, no últi-
mo caso. Porque, em matéria de igual-
dade de direitos políticos e civis, a 
questão de saber se as mesmas regras 
se aplicam a todos se viu mais uma 
vez desafiada após 2008: “Nenhuma 
acusação foi feita contra um agente fi-
nanceiro de alto nível”, destaca o jor-
nalista John Lanchester. Durante o es-
cândalo das poupanças dos anos 
1980, 1.100 pessoas tinham sido acu-
sadas.5 Os detentos de uma peniten-
ciária francesa já diziam de forma 
zombeteira no século passado: “Quem 
rouba um ovo vai preso; quem rouba 
um boi vai para o Palais Bourbon [As-
sembleia Nacional francesa]”.
O povo escolhe, mas o capital deci-
de. Ao governarem no sentido contrá-
rio de suas promessas, os líderes libe-
rais, tanto de direita como de esquerda, 
reforçam essa suspeita em quase toda 
eleição. Para romper com as políticas 
conservadoras de seus antecessores, 
Obama reduziu os déficits públicos, 
comprimiu os gastos sociais e, em vez 
de instaurar um sistema público de 
saúde, impôs aos norte-americanos a 
compra de um seguro médico de um 
cartel privado. Na França, Nicolas Sar-
kozy aumentou em dois anos a idade 
da aposentadoria que ele havia se com-
prometido formalmente a não alterar; 
François Hollande fez votar um pacto 
de estabilidade europeu, que ele tinha 
prometido renegociar. No Reino Uni-
do, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, 
para surpresa geral, ao Partido Conser-
vador, e, em seguida, transformado em 
vice-primeiro-ministro, concordou em 
triplicar o valor das taxas universitá-
rias que ele tinha jurado eliminar.
Na década de 1970, alguns partidos 
comunistas da Europa ocidental suge-
riram que seu eventual acesso ao po-
der por meio das urnas seria um “bi-
lhete de ida”, pois a construção do 
socialismo, uma vez lançada, não po-
deria depender dos caprichos eleito-
rais. A vitória do “mundo livre” sobre a 
hidra soviética acomodou esse princí-
pio com mais astúcia: o direito de voto 
não está suspenso, mas ele vem com o 
dever de confirmar as preferências das 
classes dominantes. Caso contrário, 
pode ser preciso começar de novo. “Em 
1992”, lembra o jornalista Jack Dion, 
“os dinamarqueses votaram contra o 
Tratado de Maastricht: eles foram for-
çados a retornar às urnas. Em 2001, os 
irlandeses votaram contra o Tratado de 
Nice: eles foram forçados a retornar às 
urnas. Em 2005, os franceses e os ho-
landeses votaram contra o Tratado 
Constitucional Europeu (TCE): este 
lhes foi imposto sob o nome de Tratado 
de Lisboa. Em 2008, os irlandeses vota-
ram contra o Tratado de Lisboa: foram 
obrigados a votar de novo. Em 2015, 
61,3% dos gregos votaram contra o pla-
no de ajuste de Bruxelas – que ainda as-
sim lhes foi impingido.”6
Exatamente naquele ano, falando a 
um governo de esquerda eleito poucos 
meses antes e forçado a administrar 
um tratamento de choque liberal à sua 
população, o ministro das Finanças 
alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu 
o escopo que confere ao circo demo-
crático: “As eleições não devem permi-
tir que se altere a política econômica”.7
Por sua vez, Pierre Moscovici, comissá-
rio europeu para assuntos econômicos 
e monetários, explicaria depois: “Vinte 
e três pessoas, com seus auxiliares, to-
mam – ou não – decisões fundamen-
tais para milhões de outras – os gregos, 
no caso –, seguindo parâmetros ex-
traordinariamente técnicos, decisões
isentas de qualquer controle democrá-
tico. O Eurogrupo não presta contas
para nenhum governo, nenhum parla-
mento, especialmente para o Parla-
mento Europeu”.8 É a assembleia, no 
entanto, na qual Moscovici aspira a 
ocupar um lugar no próximo ano.
Autoritário e “antiliberal” à sua 
maneira, esse desprezo pela soberania 
popular alimenta um dos mais pode-
rosos argumentos de campanha dos 
líderes conservadores de ambos os la-
dos do Atlântico. Ao contrário de par-
tidos de centro-esquerda ou de centro-
-direita, que se comprometem sem
fornecer os meios para reanimar uma
democracia moribunda, Trump e Or-
bán, assim como Kaczynski na Polônia 
e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua
agonia. Conservam apenas o voto ma-
joritário e revertem as cartas: ao auto-
ritarismo independente do Estado e
especialista de Washington, Bruxelas
ou Wall Street, eles opõem um autori-
tarismo nacional e direto que apresen-
tam como uma reconquista popular.
INTERVENCIONISMO MACIÇO
Depois daquelas relacionadas à glo-
balização e à democracia, a terceira ne-
gação feita pela crise no discurso domi-
nante dos anos anteriores se refere à 
eliminação do papel econômico do po-
der público. Tudo é possível, mas não 
para todo mundo: raramente a de-
monstração desse princípio foi admi-
nistrada com tanta clareza quanto na 
década passada. Criação maciça de di-
nheiro, nacionalizações, desdém pelos 
tratados internacionais, ação discricio-
nária dos eleitos etc.: para salvar sem 
contrapartida as instituições bancárias 
das quais dependia a sobrevivência do 
sistema, a maioria das operações de-
cretadas impossíveis e impensáveis foi 
realizada sem um tiro em ambos os la-
dos do Atlântico. Esse intervencionis-
mo maciço revelou um Estado forte, ca-
paz de aproveitar seu poder em uma 
área onde ele parecia ter deposto a si 
mesmo.9 Mas, se o Estado é forte,
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