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#Revista Le Monde Diplomatique Edição 134 (Setembro 2018)

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LE MONDE
diplomatiqueBRASIL
R$ 14,90ANO 12 / NÚMERO 134
DEZ ANOS DE CRISE
LIBERAIS OU POPULISTAS: 
UMA FALSA OPÇÃO
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT
EDUCAÇÃO
A MILITARIZAÇÃO DAS 
ESCOLAS PÚBLICAS
POR RUDÁ RICCI 20 262
DOCUMENTÁRIO CENSURADO
COMO ISRAEL ESPIONA 
NORTE-AMERICANOS
POR ALAIN GRESH
O PLANO 
CONSERVADOR
9 771981 752004
00134
2 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
B
udapeste, 23 de maio de 2018. 
De jaqueta escura e camisa ro-
xa solta, aberta, sobre uma ca-
miseta, Stephen Bannon se co-
loca diante de uma plateia de 
intelectuais e notáveis húngaros. “O 
pavio que incendiou a Revolução 
Trump foi aceso em 15 de setembro, às 
9 da manhã, quando o Lehman Bro-
thers foi forçado à falência.” O ex-es-
trategista da Casa Branca não ignora: 
ali, a crise foi particularmente violen-
ta. “As elites salvaram a si próprias. 
Elas socializaram totalmente o risco”, 
continua o ex-vice-presidente do ban-
co Goldman Sachs, cujas atividades 
políticas são financiadas por fundos 
especulativos. O cidadão comum foi 
socorrido? Esse “socialismo para os ri-
cos” teria provocado em vários pontos 
do globo uma “verdadeira revolta po-
pulista. Em 2010, Viktor Orbán voltou 
ao poder na Hungria”; ele foi o “Trump 
antes de Trump”.
Uma década depois da tempestade 
financeira, o colapso econômico global 
e a crise da dívida pública na Europa de-
sapareceram dos terminais da Bloom-
berg, onde cintilam as curvas vitais do 
capitalismo. Mas sua onda de choque 
amplificou dois grandes distúrbios.
Em primeiro lugar, o da ordem in-
ternacional liberal da era pós-Guerra 
Fria, centrada na Organização do Tra-
tado do Atlântico Norte (Otan), nas 
instituições financeiras ocidentais e 
na liberalização do comércio. Se, ao 
contrário do que prometia Mao Tsé-
-tung, o vento do leste ainda não pre-
valece sobre o vento do oeste, a recom-
posição geopolítica começou: cerca de 
trinta anos depois da queda do Muro
de Berlim, o capitalismo de Estado
chinês amplia sua influência; com ba-
se na prosperidade de uma classe mé-
dia em ascensão, a “economia socia-
lista de mercado” liga seu futuro à
contínua globalização do comércio,
que está minando a indústria manufa-
tureira da maioria dos países ociden-
tais – incluindo a dos Estados Unidos,
que o presidente Donald Trump pro-
meteu, em seu primeiro discurso ofi-
cial, salvar da “carnificina”.
O abalo de 2008 e seus tremores se-
cundários também sacudiram a or-
dem política, que via na democracia 
LIBERAIS VS. POPULISTAS, UMA DIVISÃO ENGANOSA
Dez anos de crise
As respostas dadas à crise de 2008 desestabilizaram a ordem política e geopolítica. Há tempos vistas como a forma última 
de governo, as democracias liberais estão na defensiva. Perante as “elites” urbanas, as direitas nacionalistas encampam uma 
contrarrevolução cultural no campo da imigração e dos valores. Contudo, elas perseguem o mesmo projeto econômico de seus 
rivais. O peso excessivo jogado pela mídia nessa clivagem visa constranger a população a escolher entre esses dois males
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*
de mercado a forma acabada da histó-
ria. O necrotério de uma tecnocracia 
untuosa, transferida para Nova York 
ou Bruxelas, impondo medidas impo-
pulares em nome da expertise e da 
modernidade, abriu o caminho para 
governos falastrões e conservadores. 
De Washington a Varsóvia, passan-
do por Budapeste, Trump, Jarosław 
Kaczynski e Orbán reivindicam tan-
to capitalismo quanto Barack Oba-
ma, Angela Merkel, Justin Trudeau e 
Emmanuel Macron; mas um capitalis-
mo transmitido por outra cultura, “an-
tiliberal”, nacional e autoritária, exal-
tando o país profundo, e não os valores 
das grandes metrópoles.
Uma fratura divide as classes do-
minantes. Ela é encenada e amplifica-
da pela mídia, que reduz o horizonte 
das possíveis escolhas políticas possí-
veis a esses dois irmãos inimigos. Ora, 
os recém-chegados visam tanto quan-
to os outros enriquecer os ricos, mas 
explorando o sentimento que o libera-
lismo e a social-democracia inspiram 
a uma porção muitas vezes majoritária 
das classes populares: um desgosto 
misturado com raiva.
“RECONSTRUÍMOS A CHINA”
A resposta à crise de 2008 expôs, 
sem permitir a possibilidade de des-
viar o olhar, três negações à ladainha 
sobre o bom governo que os líderes de 
centro-direita e de centro-esquerda 
alardeavam desde o colapso da União 
Soviética. Nem a globalização, nem a 
democracia, nem o liberalismo saí-
ram ilesos.
Primeiro, a internacionalização da 
economia não é boa para todos os paí-
ses, nem mesmo para a maioria dos as-
salariados do Ocidente. A eleição de 
Trump levou à Casa Branca um ho-
mem há muito convencido de que, lon-
ge de ser lucrativa para seu país, a glo-
balização tinha precipitado seu 
declínio e assegurado a decolagem de 
seus concorrentes estratégicos. Com 
ele, a “América primeiro” tem prece-
dência sobre o “ganha-ganha” dos de-
fensores do livre-comércio. Por exem-
plo, em 4 de agosto, em Ohio, um 
estado industrial geralmente disputa-
do, mas onde ele atingiu mais de oito 
pontos à frente de Hillary Clinton, o 
presidente dos Estados Unidos recor-
dou o déficit comercial fabuloso (e 
crescente) de seu país – “US$ 817 bi-
lhões por ano!” –, antes de fornecer a 
explicação para ele: “Não quero mal 
aos chineses. Mas mesmo eles não 
conseguem acreditar que nós os dei-
xamos agir tanto à nossa custa! Real-
mente reconstruímos a China; é hora 
de reconstruir nosso país! Ohio per-
deu 200 mil empregos industriais de-
pois que a China [em 2001] entrou para 
a Organização Mundial do Comércio. 
A OMC, um desastre total! Por déca-
das, nossos políticos permitiram que 
outros países roubassem nossos em-
pregos, tirassem nossa riqueza e sa-
queassem nossa economia”.
No início do século passado, o pro-
tecionismo impulsionou a decolagem 
industrial dos Estados Unidos, assim 
como a de muitas outras nações; os 
impostos alfandegários financiaram 
por muito tempo o poder público, já 
que o imposto de renda não existia an-
tes da Primeira Guerra Mundial. Ci-
tando William McKinley, presidente 
republicano de 1897 a 1901 (que foi as-
sassinado por um anarquista), Trump 
insiste: “Ele entendeu a importância 
decisiva das tarifas alfandegárias para 
manter o poder de um país”. A Casa 
Branca agora recorre a elas sem hesitar 
– e sem se preocupar com a OMC. Tur-
quia, Rússia, Irã, União Europeia, Ca-
nadá, China: a cada semana, um lote
de sanções comerciais contra Estados,
amigos ou não, que Washington tem
como alvo. A invocação da “segurança 
nacional” permite que o presidente
Trump dispense a aprovação do Con-
gresso, onde os parlamentares e os lo-
bbies que financiam suas campanhas
continuam comprometidos com o
livre-comércio.
Nos Estados Unidos, a China está 
obtendo mais consenso, mas contra 
ela. Não apenas por razões comerciais: 
Pequim também é percebida como a 
rival estratégica por excelência. Além 
de gerar desconfiança por sua força 
econômica, oito vezes maior que a da 
Rússia, e por suas tentações expansio-
nistas na Ásia, seu modelo político au-
toritário concorre com o de Washing-
ton. Além disso, ainda que sustente 
que sua teoria de 1989 sobre o triunfo 
irreversível e universal do capitalismo 
liberal permanece válida, o cientista 
político norte-americano Francis Fu-
kuyama a ela acrescenta um ponto es-
sencial: “A China é de longe o maior 
desafio à narrativa do ‘fim da história’, 
uma vez que se modernizou economi-
camente, permanecendo uma ditadu-
ra. [...] Se, ao longo dos próximos anos, 
seu crescimento continuar e ela se 
mantiver como a maior potência eco-
nômica do mundo, admitirei que mi-
nha tese foi definitivamente refuta-
da”.1 No final, Trump e seus adversários 
internos convergem pelo menos em 
um ponto: o primeiro considera que a 
ordem internacional liberalé muito 
cara para os Estados Unidos; os ou-
tros, que o sucesso da China ameaça 
deitá-la por terra.
Da geopolítica à política há apenas 
um passo. A globalização causou a 
destruição de empregos e a queda dos 
salários no Ocidente – sua participa-
ção nos Estados Unidos passou de 64% 
para 58% do PIB apenas nos últimos 
dez anos, uma perda anual igual a US$ 
7.500 por trabalhador!2
Ora, foi precisamente nas regiões 
industriais devastadas pela concor-
rência chinesa que os trabalhadores 
norte-americanos se voltaram mais 
para a direita nos últimos anos. É claro ©
 D
an
ie
l K
on
do
3SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
que essa mudança eleitoral pode ser 
atribuída a uma série de fatores “cul-
turais” (sexismo, racismo, apego a ar-
mas de fogo, hostilidade ao aborto e 
casamento entre pessoas do mesmo 
sexo etc.). Mas devemos observar uma 
explicação econômica pelo menos 
igualmente convincente: enquanto o 
número de condados que concentram 
mais de 25% dos empregos norte-ame-
ricanos do setor manufatureiro entrou 
em colapso de 1992 a 2016, passando 
de 862 para 323, o equilíbrio entre os 
votos dos democratas e dos republica-
nos nesses locais se metamorfoseou. 
Há um quarto de século, eles estavam 
divididos quase igualmente entre os 
dois principais partidos (cerca de qua-
trocentos cada); em 2016, 306 escolhe-
ram Trump, e 17, Hillary Clinton.3 Pro-
movida por um presidente democrata 
– Bill Clinton, precisamente –, a ade-
são da China à OMC deveria acelerar a
transformação desse país em uma so-
ciedade capitalista liberal. Isso jogou
os trabalhadores norte-americanos
contra a globalização, o liberalismo e o 
voto democrata...
Pouco antes da queda do Lehman 
Brothers, o ex-presidente do Federal 
Reserve, Alan Greenspan, explicava 
tranquilamente: “Graças à globaliza-
ção, as políticas públicas dos Estados 
Unidos foram amplamente substituí-
das pelas forças globais do mercado. 
Fora as questões de segurança nacio-
nal, a identidade do próximo presiden-
te quase não tem mais importância”.4 
Dez anos depois, ninguém retomaria 
tal diagnóstico.
Nos países da Europa central, cuja 
expansão ainda é baseada nas expor-
tações, o questionamento da globali-
zação não diz respeito às trocas co-
merciais. Mas os “homens fortes” no 
poder denunciam a imposição pela 
União Europeia de “valores ociden-
tais” considerados fracos e decaden-
tes, porque favoráveis à imigração, à 
homossexualidade, ao ateísmo, ao fe-
minismo, à ecologia, à dissolução da 
família etc. Eles também contestam a 
natureza democrática do capitalismo 
liberal. Não sem fundamento, no últi-
mo caso. Porque, em matéria de igual-
dade de direitos políticos e civis, a 
questão de saber se as mesmas regras 
se aplicam a todos se viu mais uma 
vez desafiada após 2008: “Nenhuma 
acusação foi feita contra um agente fi-
nanceiro de alto nível”, destaca o jor-
nalista John Lanchester. Durante o es-
cândalo das poupanças dos anos 
1980, 1.100 pessoas tinham sido acu-
sadas.5 Os detentos de uma peniten-
ciária francesa já diziam de forma 
zombeteira no século passado: “Quem 
rouba um ovo vai preso; quem rouba 
um boi vai para o Palais Bourbon [As-
sembleia Nacional francesa]”.
O povo escolhe, mas o capital deci-
de. Ao governarem no sentido contrá-
rio de suas promessas, os líderes libe-
rais, tanto de direita como de esquerda, 
reforçam essa suspeita em quase toda 
eleição. Para romper com as políticas 
conservadoras de seus antecessores, 
Obama reduziu os déficits públicos, 
comprimiu os gastos sociais e, em vez 
de instaurar um sistema público de 
saúde, impôs aos norte-americanos a 
compra de um seguro médico de um 
cartel privado. Na França, Nicolas Sar-
kozy aumentou em dois anos a idade 
da aposentadoria que ele havia se com-
prometido formalmente a não alterar; 
François Hollande fez votar um pacto 
de estabilidade europeu, que ele tinha 
prometido renegociar. No Reino Uni-
do, o líder liberal Nick Clegg juntou-se, 
para surpresa geral, ao Partido Conser-
vador, e, em seguida, transformado em 
vice-primeiro-ministro, concordou em 
triplicar o valor das taxas universitá-
rias que ele tinha jurado eliminar.
Na década de 1970, alguns partidos 
comunistas da Europa ocidental suge-
riram que seu eventual acesso ao po-
der por meio das urnas seria um “bi-
lhete de ida”, pois a construção do 
socialismo, uma vez lançada, não po-
deria depender dos caprichos eleito-
rais. A vitória do “mundo livre” sobre a 
hidra soviética acomodou esse princí-
pio com mais astúcia: o direito de voto 
não está suspenso, mas ele vem com o 
dever de confirmar as preferências das 
classes dominantes. Caso contrário, 
pode ser preciso começar de novo. “Em 
1992”, lembra o jornalista Jack Dion, 
“os dinamarqueses votaram contra o 
Tratado de Maastricht: eles foram for-
çados a retornar às urnas. Em 2001, os 
irlandeses votaram contra o Tratado de 
Nice: eles foram forçados a retornar às 
urnas. Em 2005, os franceses e os ho-
landeses votaram contra o Tratado 
Constitucional Europeu (TCE): este 
lhes foi imposto sob o nome de Tratado 
de Lisboa. Em 2008, os irlandeses vota-
ram contra o Tratado de Lisboa: foram 
obrigados a votar de novo. Em 2015, 
61,3% dos gregos votaram contra o pla-
no de ajuste de Bruxelas – que ainda as-
sim lhes foi impingido.”6
Exatamente naquele ano, falando a 
um governo de esquerda eleito poucos 
meses antes e forçado a administrar 
um tratamento de choque liberal à sua 
população, o ministro das Finanças 
alemão, Wolfgang Schäuble, resumiu 
o escopo que confere ao circo demo-
crático: “As eleições não devem permi-
tir que se altere a política econômica”.7
Por sua vez, Pierre Moscovici, comissá-
rio europeu para assuntos econômicos 
e monetários, explicaria depois: “Vinte 
e três pessoas, com seus auxiliares, to-
mam – ou não – decisões fundamen-
tais para milhões de outras – os gregos, 
no caso –, seguindo parâmetros ex-
traordinariamente técnicos, decisões
isentas de qualquer controle democrá-
tico. O Eurogrupo não presta contas
para nenhum governo, nenhum parla-
mento, especialmente para o Parla-
mento Europeu”.8 É a assembleia, no 
entanto, na qual Moscovici aspira a 
ocupar um lugar no próximo ano.
Autoritário e “antiliberal” à sua 
maneira, esse desprezo pela soberania 
popular alimenta um dos mais pode-
rosos argumentos de campanha dos 
líderes conservadores de ambos os la-
dos do Atlântico. Ao contrário de par-
tidos de centro-esquerda ou de centro-
-direita, que se comprometem sem
fornecer os meios para reanimar uma
democracia moribunda, Trump e Or-
bán, assim como Kaczynski na Polônia 
e Matteo Salvini na Itália, apoiam sua
agonia. Conservam apenas o voto ma-
joritário e revertem as cartas: ao auto-
ritarismo independente do Estado e
especialista de Washington, Bruxelas
ou Wall Street, eles opõem um autori-
tarismo nacional e direto que apresen-
tam como uma reconquista popular.
INTERVENCIONISMO MACIÇO
Depois daquelas relacionadas à glo-
balização e à democracia, a terceira ne-
gação feita pela crise no discurso domi-
nante dos anos anteriores se refere à 
eliminação do papel econômico do po-
der público. Tudo é possível, mas não 
para todo mundo: raramente a de-
monstração desse princípio foi admi-
nistrada com tanta clareza quanto na 
década passada. Criação maciça de di-
nheiro, nacionalizações, desdém pelos 
tratados internacionais, ação discricio-
nária dos eleitos etc.: para salvar sem 
contrapartida as instituições bancárias 
das quais dependia a sobrevivência do 
sistema, a maioria das operações de-
cretadas impossíveis e impensáveis foi 
realizada sem um tiro em ambos os la-
dos do Atlântico. Esse intervencionis-
mo maciço revelou um Estado forte, ca-
paz de aproveitar seu poder em uma 
área onde ele parecia ter deposto a si 
mesmo.9 Mas, se o Estado é forte,é em 
primeiro lugar para garantir um qua-
dro estável para o capital.
Inflexível quando se tratava de re-
duzir os gastos sociais para levar o dé-
ficit público para menos de 3% do PIB, 
Jean-Claude Trichet, presidente do 
Banco Central Europeu de 2003 a 2011, 
admitiu que os compromissos finan-
ceiros assumidos no final de 2008 pelos 
chefes de Estado para salvar o sistema 
bancário representavam em meados 
de 2009 “27% do PIB da Europa e dos 
Estados Unidos”.10 Dezenas de milhões 
de desempregados, de expropriados e 
de doentes despejados em hospitais 
com falta de medicamentos, como na 
Grécia, nunca tiveram o privilégio de 
constituir um “risco sistêmico”. “Por 
meio de suas escolhas políticas, os go-
vernos da zona do euro mergulharam 
dezenas de milhões de seus cidadãos 
nas profundezas de uma depressão se-
melhante à da década de 1930. É um 
dos piores desastres econômicos au-
toinfligidos já observados”, observa o 
historiador Adam Tooze.11
O descrédito da classe dirigente e a 
reabilitação do poder do Estado só po-
diam abrir o caminho para um novo 
estilo de governo. Quando perguntado 
em 2010 se o fato de ascender ao poder 
em plena tempestade global o preocu-
pava, o primeiro-ministro húngaro 
sorriu: “Não, eu amo o caos. Porque, 
com base nele, posso construir uma 
nova ordem. A ordem que eu quero”.12 
Mas, em vez de garantir direitos so-
ciais incompatíveis com as exigências 
dos proprietários, o poder público 
afirma-se fechando as fronteiras para 
os migrantes e proclamando-se um 
fiador da “identidade cultural” da na-
ção. O arame farpado marca então o 
retorno do Estado.
No momento, essa estratégia que 
recupera, desvia e distorce uma de-
manda popular de proteção parece 
funcionar. Basta dizer que as causas 
da crise financeira que fez descarrilar 
o mundo permanecem intactas, mes-
mo quando a vida política de países
como a Itália, a Hungria ou regiões co-
mo a Baviera parece assombrada pela
questão dos refugiados. Alimentada
pelas prioridades dos campi norte-a-
mericanos, uma parte da esquerda
ocidental, moderada demais ou radi-
cal demais, adora afrontar a direita
nesse terreno.13
Em resposta à grande recessão, os 
líderes de governo desvelaram, por-
tanto, a farsa democrática, a força do 
Estado, a natureza bastante política da 
economia e a inclinação antissocial de 
sua estratégia geral. O ramo que os 
abrigava se viu fragilizado, como evi-
denciado pela instabilidade eleitoral 
que refaz os mapas políticos. Desde 
2014, a maior parte das eleições oci-
dentais assinala uma decomposição 
ou um enfraquecimento das forças 
tradicionais e, simetricamente, a as-
censão de personalidades ou de cor-
rentes antes marginais que contestam 
as instituições dominantes, muitas ve-
zes por razões opostas, como Trump e 
Bernie Sanders, ambos críticos de Wall 
Street e da mídia. O mesmo cenário do 
outro lado do Atlântico, onde os novos 
conservadores consideram a constru-
ção europeia muito liberal nos planos 
social e migratório, enquanto as novas 
vozes de esquerda, como o Podemos 
na Espanha, A França Insubmissa e Je-
remy Corbyn à frente do Partido Tra-
balhista no Reino Unido, criticam suas 
políticas de austeridade.
Como não pretendem virar a mesa, 
apenas mudar os jogadores, os “ho-
mens fortes” podem obter o apoio de 
uma fração das classes dominantes. 
Em 26 de julho de 2014, na Romênia, 
Orbán anunciou a posição em um re-
tumbante discurso: “O novo Estado 
que estamos construindo na Hungria 
4 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
é um Estado antiliberal: um Estado 
não liberal”. Mas, ao contrário do que a 
mídia tradicional repisa desde então, 
seus objetivos não se limitavam à re-
jeição do multiculturalismo e da “so-
ciedade aberta” e à promoção dos va-
lores familiares e cristãos. Ele também 
anunciava um projeto econômico, o 
de “construir uma nação competitiva 
na grande concorrência global das 
próximas décadas”. “Nós considera-
mos”, ele disse, “que uma democracia 
não deve necessariamente ser liberal e 
que não é porque um Estado deixa de 
ser liberal que deixa de ser uma demo-
cracia.” Tomando como exemplo a 
China, a Turquia e Cingapura, o pri-
meiro-ministro húngaro devolveu ao 
remetente a frase “Não há alternativa”, 
de Margaret Thatcher: “As sociedades 
que têm uma democracia liberal como 
base provavelmente não conseguirão 
manter sua competitividade nas pró-
ximas décadas”.14 Tal conformação 
atrai os líderes poloneses e tchecos, 
mas também os partidos de extrema 
direita francês e alemão.
O LENGA-LENGA DO “CAPITALISMO INCLUSIVO”
Diante do brilhante sucesso de seus 
concorrentes, os pensadores liberais 
perderam sua beleza e atratividade. “A 
contrarrevolução é alimentada pela 
polarização da política interna, com o 
antagonismo substituindo o compro-
misso. E tem como alvo a revolução li-
beral e os ganhos obtidos pelas mino-
rias”, arrepia-se Michael Ignatieff, 
reitor da Universidade da Europa Cen-
tral em Budapeste, instituição fundada 
por iniciativa do bilionário liberal 
George Soros. “Está claro”, acrescenta 
ele, “que o breve momento de domina-
ção da sociedade aberta acabou.”15 Em 
sua opinião, os governantes autoritá-
rios que tomam por alvo o estado de di-
reito, o equilíbrio dos poderes, a liber-
dade dos meios de comunicação 
privados e os direitos das minorias ata-
cam na verdade os pilares essenciais 
das democracias.
O semanário britânico The Econo-
mist, que faz as vezes de boletim de liga-
ção das elites liberais globais, concorda 
com essa visão. Quando, em 16 de ju-
nho, ele entrou em pânico por causa de 
uma “deterioração alarmante da demo-
cracia desde a crise financeira de 2007-
2008”, não incriminou as desigualdades 
abissais de fortuna, nem a destruição 
dos empregos industriais pelo livre-co-
mércio, nem o desrespeito à vontade 
dos eleitores pelos líderes “democráti-
cos”. Mas atacou “os homens fortes 
[que] minam a democracia”. Em rela-
ção a eles, espera, “os juízes indepen-
dentes e os jornalistas inquietos são a 
primeira linha de defesa” – um dique 
tão estreito quanto frágil.
Durante muito tempo, as classes su-
periores tiraram proveito do jogo elei-
toral graças a três fatores convergentes: 
a crescente abstenção das classes po-
pulares, o “voto útil” provocado pela re-
pulsa que os “extremos” inspiravam e a 
pretensão dos partidos centrais de re-
presentar os interesses combinados da 
burguesia e da classe média. Mas os de-
magogos reacionários agora mobili-
zam os abstencionistas; a grande reces-
são enfraqueceu a classe média; e as 
arbitragens políticas dos “moderados” 
e seus brilhantes conselheiros desen-
cadearam a crise do século...
O desencanto em relação à utopia 
das novas tecnologias vem se juntar à 
amargura dos entusiastas da socieda-
de aberta. Ontem celebrados como os 
profetas de uma civilização liberal li-
bertária, os empresários democratas 
do Vale do Silício construíram uma 
máquina de vigilância e de controle 
social tão poderosa que o governo chi-
nês a imita para manter a ordem. A es-
perança de uma ágora global impul-
sionada por uma conectividade 
universal entra em colapso, para des-
gosto de alguns que outrora comunga-
vam com ela: “A tecnologia, pelas ma-
nipulações que permite, pelas fake 
news, mas ainda mais porque veicula 
emoção em vez de razão, reforça ainda 
mais os cínicos e os ditadores”, solu-
çou um editorialista.16
À medida que se aproxima o trigé-
simo aniversário da queda do Muro de 
Berlim, os arautos do “mundo livre” 
temem que a festa seja morosa. “A 
transição para as democracias liberais 
foi em grande parte impulsionada por 
uma elite educada, muito pró-ociden-
tal”, Fukuyama admite. Infelizmente, 
as populações menos educadas “nun-
ca foram seduzidas por esse liberalis-
mo, pela ideia de que poderíamos ter 
uma sociedade multirracial,multiét-
nica, em que todos os valores tradicio-
nais se desvaneceriam diante do casa-
mento gay, da imigração etc.”17 Mas a 
quem imputar a culpa por essa falta de 
efeito cascata da minoria esclarecida? 
À indolência de todos os jovens bur-
gueses que, irrita-se Fukuyama, “se 
contentam em ficar em casa, para se 
congratularem por sua mente aberta, 
por sua falta de fanatismo. [...] E só se 
mobilizam contra o inimigo indo sen-
tar-se no terraço de um café com um 
mojito na mão”.18
De fato, isso não é suficiente... E 
muito menos o fato de enquadrar a mí-
dia ou inundar as redes sociais com 
comentários indignados direcionados 
a “amigos” igualmente indignados, 
sempre pelas mesmas coisas. Obama 
entendeu isso. Em 17 de julho, ele di-
vulgou uma análise detalhada, muitas 
vezes lúcida, das últimas décadas. Mas 
não pôde deixar de retomar a ideia fixa 
da esquerda neoliberal desde que ela 
adotou o modelo capitalista. Em es-
sência, como o ex-primeiro-ministro 
italiano de centro-esquerda Paolo 
Gentiloni lembrou a Trump em 24 de 
janeiro de 2018 em Davos, “podemos 
corrigir o quadro, mas não alterá-lo”.
A globalização, Obama admite, foi 
acompanhada por erros e pilhagens. 
Ela enfraqueceu o poder dos sindica-
tos. Ela “permitiu ao capital escapar 
dos impostos e das leis dos Estados 
mudando de lugar centenas de bilhões 
de dólares com um simples toque nu-
ma tecla de computador”. Certo, mas e 
o remédio? Um “capitalismo inclusi-
vo”, iluminado pela moralidade hu-
manista dos capitalistas. Só esse cau-
terizador em uma perna de madeira 
pode, segundo ele, corrigir alguns dos 
defeitos do sistema. Desde que ele não 
veja nenhum outro na loja e que, no 
fundo, aquele lhe sirva bem...
O ex-presidente norte-americano 
não nega que a crise de 2008 e as más 
respostas que foram dadas a ela (inclu-
sive por ele, diga-se) favoreceram o 
surgimento de uma “política do medo, 
do ressentimento e da contenção”, da 
“popularidade dos homens fortes”, de 
um “modelo chinês de controle autori-
tário considerado preferível a uma de-
mocracia percebida como desordena-
da”. Mas ele atribui a responsabilidade 
essencial por esses distúrbios aos “po-
pulistas” que recuperam as insegu-
ranças e ameaçam o mundo com um 
retorno a uma “ordem antiga, mais pe-
rigosa e mais brutal”, salvando de pas-
sagem as elites sociais e intelectuais 
(seus pares...) que criaram as condi-
ções da crise – e que muitas vezes se 
beneficiaram dela.
Tal panorama tem muitas vanta-
gens para elas. Em primeiro lugar, re-
petir que a ditadura nos ameaça torna 
possível acreditar que a democracia 
impera, mesmo que ainda exija pe-
quenos ajustes. Mais fundamental-
mente, a ideia de Obama (ou aquela, 
idêntica, de Macron) de que “duas vi-
sões muito diferentes do futuro da hu-
manidade competem pelos corações e 
mentes dos cidadãos de todo o mun-
do” permite esconder o que essas 
“duas visões” têm em comum: nada 
menos do que o modo de produção e 
de propriedade, ou, para retomar as 
mesmas palavras do ex-presidente 
norte-americano, “a desproporcional 
influência econômica, política e mi-
diática dos que estão no topo”. A esse 
respeito, de fato, nada distingue Ma-
cron de Trump, como aliás foi de-
monstrado por sua ânsia comum de 
reduzir, assim que chegaram ao poder, 
a taxação da renda do capital.
Resumir obstinadamente a vida 
política das próximas décadas ao en-
frentamento entre democracia e po-
pulismo, abertura e soberania, não 
trará nenhum alívio para essa porção 
crescente das categorias populares de-
siludida com uma “democracia” que a 
abandonou e com uma esquerda que 
se metamorfoseou em partido da bur-
guesia graduada. Dez anos após a 
eclosão da crise financeira, a luta vito-
riosa contra a “ordem brutal e perigo-
sa” que está surgindo exige algo bem 
diferente – de início, o desenvolvimen-
to de uma força política capaz de com-
bater simultaneamente os “tecnocra-
tas esclarecidos” e os “bilionários 
enraivecidos”,19 recusando, assim, o 
papel da força de apoio de um dos dois 
blocos que, cada um a seu modo, colo-
cam a humanidade em perigo. 
*Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é 
membro da direção do Le Monde Diplomatique.
1 Francis Fukuyama, “Retour sur ‘La fin de l’histoi-
re?’” [Retorno sobre “O fim da história”?], Com-
mentaire, n.161, Paris, primavera 2018.
2 William Galston, “Wage stagnation is everyone’s 
problem” [A estagnação salarial é problema de to-
dos], The Wall Street Journal, Nova York, 14 ago. 
2018. Sobre a destruição de empregos em razão 
da globalização, cf. Daron Acemo’ler et al., “Import 
competition and the great US employment sag of 
the 2000s” [Importar a concorrência e a grande 
queda do emprego dos Estados Unidos nos anos 
2000], Journal of Labor Economics, v.34, n.S1, 
Chicago, jan. 2016.
3 Bob Davis e Dante Chinni, “America’s factory towns, 
once solidly blue, are now a GOP haven” [As cidades 
industriais norte-americanas, outrora solidamente 
azuis, são agora um refúgio do Partido Republicano], 
e Bob Davis e Jon Hilsenrath, “How the China shock, 
deep and swift, spurred the rise of Trump” [Como o 
choque da China, profundo e rápido, estimulou a as-
censão de Trump], The Wall Street Journal, 19 jul. 
2018 e 11 ago. 2016, respectivamente.
4 Citado por Adam Tooze, Crashed: How a Decade 
of Financial Crises Changed the World [Quebra-
do: como uma década de crise financeira mudou o 
mundo], Penguin Books, Nova York, 2018.
5 John Lanchester, “After the fall” [Depois da queda], 
London Review of Books, v.40, n.13, 5 jul. 2018.
6 Jack Dion, “Les marchés contre les peuples” [Os mer-
cados contra o povo], Marianne, Paris, 1º jun. 2018.
7 Yanis Varoufakis, Adults in the Room. My Battle 
Against Europe’s Deep Establishment [Adultos na 
sala. Minha batalha contra o establishment profun-
do da Europa], The Bodley Head, Londres, 2017.
8 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent 
les monstres. Choses vues au cœur du pouvoir 
[Nesse claro-escuro surgem monstros. Coisas vis-
tas no coração do poder], Plon, Paris, 2018.
9 Ler Frédéric Lordon, “Le jour où Wall Street est de-
venu socialiste” [O dia em que Wall Street se tornou 
socialista], Le Monde Diplomatique, out. 2008.
10 Jean-Claude Trichet, “Nous sommes encore dans 
une situation dangereuse” [Ainda estamos em uma 
situação perigosa], Le Monde, 14 set. 2013.
11 Adam Tooze, op. cit.
12 Drew Hinshaw e Marcus Walker, “In Orban’s Hun-
gary, a glimpse of Europe’s demise” [Na Hungria 
de Orbán, um vislumbre da morte da Europa], The 
Wall Street Journal, 9 ago. 2018
13 Ler Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, “La nouvelle 
vulgate planétaire” [A nova vulgata mundial], Le 
Monde Diplomatique, maio 2000.
14 “Discurso do primeiro-ministro Viktor Orbán no 25º 
Acampamento de Estudantes e Universidade Livre 
de Verão de Bálványos”, 30 jul. 2014. Disponível 
em: <http://2010-2015.miniszterelnok.hu>.
15 Michael Ignatieff e Stefan Roch (orgs.), Rethinking 
Open Society: New Adversaries and New Oppor-
tunities [Repensando a sociedade aberta: novos 
adversários e novas oportunidades], CEU Press 
Budapeste, 2018.
16 Éric Le Boucher, “Le salut par l’éthique, la démo-
cratie, l’Europe” [A salvação pela ética, pela demo-
cracia, pela Europa], L’Opinion, Paris, 9 jul. 2018.
17 Citado por Michael Steinberger, “George Soros 
bet big on liberal democracy. Now he fears he is 
losing” [George Soros apostou alto na democracia 
liberal. Agora teme que esteja perdendo], The New 
York Times Magazine, 17 jul. 2018.
18 Alexandre Devecchio, “Francis Fukuyama: ‘Il y a un 
risque de défaite de la démocratie’” [Francis Fuku-
yama: “Há um risco de derrota da democracia”], Le 
Figaro Magazine, Paris, 6 abr. 2018.
19 Thomas Frank, “Four more years” [Mais quatro 
anos], Harper’s, abr. 2018.
5SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
EDITORIALNa linguagem do povo
POR SILVIO CACCIA BAVA
A
s eleições deste ano buscam 
sensibilizar um eleitorado no 
qual 49% dos que têm mais de 
25 anos ainda não completaram 
o ciclo do Ensino Fundamental (IB-
GE); no qual 95 milhões de brasileiros 
têm renda de até R$ 14 por dia (46%) e 
41 milhões, renda entre R$ 14 e R$ 21 
por dia (20%); no qual 13,7 milhões de 
desempregados se somam aos mi-
lhões que perderam as esperanças de 
encontrar uma vaga. 
Buscar mantê-los na ignorância, 
doutriná-los por meio da televisão, 
controlá-los pela violência parece 
ser a alternativa adotada pelos do-
nos do poder para tentar submetê-
-los à sua vontade. Segundo eles, as 
questões sociais não cabem no orça-
mento público e os pobres têm de fi-
car no seu lugar. 
O ciclo de eleições da primeira dé-
cada do século XXI na América Latina 
mostrou que os pobres não são igno-
rantes, não estão sujeitos a todo tipo 
de manipulações e não querem ficar 
no lugar subalterno destinado a eles 
pelas elites. Eles querem superar o fos-
so da desigualdade. 
As manifestações populares dizem 
hoje que eles também não querem as 
políticas de austeridade que lhes são 
impostas para garantir os ganhos do 
1% mais rico. Mas, na atualidade, uma 
parte desses mesmos pobres pende 
para defender seus algozes, iludida por 
uma santa campanha contra a corrup-
ção que é extremamente seletiva e se 
concentra em atacar o PT, sobretudo 
Lula, que lidera com folga todas as pes-
quisas eleitorais. 
O golpe de 2016, que derrubou a 
presidenta Dilma, os péssimos resulta-
dos do governo Temer, a espoliação das 
maiorias promovida por iniciativas de 
entidades empresariais como a Fiesp e 
a CNI (especialmente a reforma traba-
lhista e a Emenda Constitucional n. 95, 
que congela por vinte anos os gastos 
sociais), o desrespeito aos direitos con-
sagrados em nossa Constituição, tudo 
isso gera o descrédito com a política e 
com os políticos, colocando perigosa-
mente todos no mesmo saco.
Para estudiosos dos processos elei-
torais, a abstenção, somada aos votos 
brancos e nulos, pode superar os 40% 
do eleitorado nestas eleições1, sinal de 
que esse sistema político já não dá 
conta de processar os conflitos de inte-
resse em nossa sociedade. Some-se a 
isso o impedimento legal, que contra-
diz a Constituição da República, de 
um candidato com mais de 39% da 
preferência eleitoral, e temos uma si-
tuação inédita.2 
Nesse cenário, o conjunto dos par-
tidos da direita abraça um programa 
único: o da implantação do ultralibe-
ralismo econômico. Todos defendem o 
corte nas políticas sociais, o rebaixa-
mento dos salários, a precarização do 
trabalho, a violência como solução pa-
ra a criminalidade, as privatizações, 
entre outras coisas. E encobrem seus 
propósitos com discursos em prol de 
uma falsa retomada do desenvolvi-
mento e de um Estado mais eficiente, 
como se não tivéssemos um registro 
histórico de que a desigualdade avan-
ça com o baixo crescimento da econo-
mia e a extinção do Estado social.
Já aqueles que se organizam para a 
defesa da democracia e dos direitos que 
estão sendo suprimidos não encontram 
uma linguagem capaz de sensibilizar a 
maioria do povo e são ignorados pelos 
grandes meios de comunicação. 
O que significa, para aqueles que 
suam a camisa no dia a dia para garan-
tir seu sustento e o de sua família, a 
discussão sobre desenvolvimento sus-
tentável, taxa de câmbio, juros, refor-
ma tributária etc.? 
Buscar o engajamento da popula-
ção em um processo eleitoral significa 
mobilizar suas expectativas e deman-
das e estabelecer compromissos que 
venham abordar os problemas do coti-
diano e propor como enfrentá-los. 
O sucesso da campanha de Bernie 
Sanders para a presidência dos Estados 
Unidos se deveu à sua linguagem clara 
e direta e ao seu compromisso com os 
interesses das maiorias. Sua platafor-
ma tinha como carro-chefe dobrar o 
salário mínimo e garantir educação 
pública, gratuita e de qualidade, em to-
dos os níveis. Tais propostas atendem a 
todos. Embora não tenha ganho a dis-
puta pela candidatura do Partido De-
mocrata, Sanders conseguiu encantar 
uma parcela importante do eleitorado, 
especialmente a juventude.
Forma e conteúdo se combinam 
numa estratégia eleitoral. As propos-
tas claras e objetivas precisam ser 
apresentadas na linguagem do povo. E 
aqui está um desafio para as organiza-
ções de esquerda, melhor dizendo, pa-
ra as organizações que defendem a de-
mocracia e os direitos humanos, o que 
abarca um arco mais amplo de organi-
zações, seja do sistema político, seja da 
sociedade civil. 
Mas se falar a linguagem do povo já 
é um passo gigantesco de aproxima-
ção com as maiorias, é importante 
lembrar que a ação e as identidades 
políticas se constroem graças aos cole-
tivos que se mobilizam e, assim, criam 
seus afetos políticos3. Casos recentes 
exemplares foram as caravanas pro-
movidas por Lula pelo país e os comí-
cios realizados ao longo da caravana; 
as marchas e ocupações do MST; a 
Marcha das Mulheres Negras; as inú-
meras manifestações e passeatas em 
defesa de direitos; os acampamentos 
do Levante Popular da Juventude. 
Para as grandes maiorias empobre-
cidas, o que interessa são suas condi-
ções de vida e a possibilidade de sonhar 
com uma vida melhor. Garantir seu em-
prego e seus direitos trabalhistas; au-
mentar o salário mínimo; garantir saú-
de e educação pública, gratuita e de 
qualidade para todos; garantir a quali-
dade de vida dos aposentados pela via 
da Previdência; baixar o preço do boti-
jão de gás. Esses são alguns elementos 
centrais para atender e mobilizar as 
maiorias. Tudo ao contrário do que reza 
a cartilha da austeridade e do liberalis-
mo arcaico preconizada no programa 
único da direita. 
1 Lejeune Mirhan, sociólogo, escritor, pesquisador, 
professor e analista internacional. Presidiu o Sindi-
cato dos Sociólogos do Estado de São Paulo e a 
Federação Nacional dos Sociólogos. 
2 Pesquisa Datafolha, divulgada em 22 ago. 2018.
3 Antonio Negri e Michael Hardt, Declaração: isto 
não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo, 
2014, p.31.
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 C
la
ud
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s
6 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
DIMINUIR TRIBUTOS OU REFORMAR A DISTRIBUIÇÃO DOS IMPOSTOS
O que interessa ao povo brasileiro?
Para resolver os problemas do país devem-se cortar tributos e diminuir ainda mais os investimentos 
estatais ou fazer uma reforma tributária estrutural que leve o Estado a aumentar a arrecadação, 
principalmente sobre o 1% mais rico da população?
POR ODILON GUEDES*
A 
eleição para presidente coloca 
um tema fundamental para o 
debate: a reforma tributária. O 
Brasil possui uma das estrutu-
ras tributárias mais injustas, em que 
a população de baixa renda e a classe 
média pagam, proporcionalmente, 
mais tributos que o 1% mais rico. Isso 
ocorre porque a maior parte dos tri-
butos é indireta e recai sobre o con-
sumo, atingindo da mesma forma 
quem ganha dois, trinta ou trezentos 
salários mínimos.
Apesar disso, as forças conservado-
ras que disputam a eleição afirmam que 
um dos principais problemas do Brasil é 
o alto percentual da carga tributária em 
relação ao PIB; e que a solução é abaixá-
-lo. Pelos dados que apresentamos a se-
guir ficará evidente que o Estado brasi-
leiro arrecada por cidadão muito menos 
que os demais países analisados. De-
monstraremos também que o Brasil vi-
ve uma situação social muito pior que 
esses países, o que significa que são ne-
cessários muito mais recursos para in-
vestir em educação, saúde, segurança 
pública e outras áreas. Em resumo, a 
questão a ser analisada não é o percen-
tual da carga tributária em relação ao 
PIB, e sim quanto o governo dispõe para 
investir por cidadão.
Pelos dados da Tabela 1 observamos 
que, apesar de a carga tributária dos 
países, com exceçãoda Alemanha, ser 
menor que a nossa, todos têm muito 
mais recursos para investir. Apesar de a 
carga tributária norte-americana ser 
25,4% do PIB, e a nossa, 33,7%, os Esta-
dos Unidos têm US$ 14.422 por habitan-
te, enquanto o Brasil tem US$ 2.928. A 
situação social do Brasil, comprovada 
pelos indicadores a seguir, é muitas ve-
zes pior do que a desses países. Isso sig-
nifica que precisamos de muito mais 
investimentos para melhorar a qualida-
de de vida de nossa população.
ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
A classificação dos países citados 
em relação ao Índice de Desenvolvi-
mento Humano (IDH) é a seguinte: 
Estados Unidos, 8º colocado; Alema-
nha, 6º; Japão, 20º; Chile, 42º; Coreia 
do Sul, 12º; e Brasil, 72º.
Esse índice é uma medida impor-
tante concebida pela ONU para ava-
liar a qualidade de vida e o desenvolvi-
mento econômico de uma população 
com base em três critérios: saúde (ex-
pectativa de vida ao nascer), educação 
(média de anos de estudo dos adultos e 
anos esperados de escolaridade das 
crianças) e renda, medida pela Renda 
Nacional Bruta (RNB).
Estamos bem atrás de todos, o que 
evidencia a necessidade de muito in-
vestimento público, sobretudo na área 
de saúde, uma vez que 160 milhões de 
brasileiros não têm plano privado, por-
tanto dependem diretamente do SUS.
PISA 2015
O Programa Internacional de Ava-
liação de Alunos (Pisa) mede o nível 
educacional de jovens de 15 anos por 
meio de provas de Leitura, Matemáti-
ca e Ciências. O exame é realizado a 
cada três anos pela Organização para 
a Cooperação e o Desenvolvimento 
Econômico (OCDE).
Esses dados, expostos na Tabela 2, 
falam por si e demonstram uma situa-
ção calamitosa. Com base nesse con-
texto, destacamos que 83% dos estu-
dantes, antes de ingressarem na 
universidade, estudam em escolas pú-
blicas. Portanto, se não houver inves-
timentos em educação por parte do 
Estado, essa situação não mudará, 
comprometendo o presente e o futuro 
das crianças e jovens de nosso país.
SEGURANÇA PÚBLICA
Comparar o número de homicídios 
permite que tenhamos uma noção de 
que atualmente enfrentamos uma ver-
dadeira guerra civil, à qual, infeliz-
mente, muitos já se acostumaram. Ve-
jamos o número de homicídios por 100 
mil habitantes: Estados Unidos, 5,3 
(2016); Alemanha, 0,7 (2015); Japão, 
0,73 (2015); Coreia do Sul, 0,8 (2014); 
Chile, 3,3 (2017); e Brasil, 30,5 (2016) 
(fontes: FBI; UN Office on Drugs and 
Crime; InSight Crime; Ipea).
*
Esses números comprovam que vi-
vemos aqui no Brasil uma situação 
caótica. Essa realidade nos traz uma 
pergunta a ser respondida: para resol-
ver os problemas do país devem-se 
cortar tributos e diminuir ainda mais 
os investimentos estatais ou fazer uma 
reforma tributária estrutural que leve 
o Estado a aumentar a arrecadação, 
principalmente sobre o 1% mais rico 
da população?
De um lado, a proposta que defen-
demos é de uma reforma tributária que 
seja pautada pela redução dos tributos 
indiretos, favorecendo principalmente 
os cidadãos de baixa renda. Isso ocorre-
rá porque as empresas, diante da redu-
ção dos tributos que pagam ao Estado, 
terão como consequência a diminui-
ção de custos, o que as levará a abaixar 
os preços de seus produtos. 
Do outro lado propomos o aumento 
dos tributos diretos da seguinte forma:
• Imposto de Renda: isenção para 
quem ganha o equivalente ao salário 
mínimo definido pelo Dieese (art. 7º, 
item IV, da CF), que, em junho de 2018, 
estava em R$ 3.804,06. A partir desse 
patamar, aumentar as alíquotas em 
8% até chegar ao limite de 40%. Outra 
medida importante é passar a cobrar 
Imposto de Renda sobre a distribuição 
de lucros e dividendos.
• Imposto sobre herança: imposto 
progressivo até o limite de 30% e que 
seja federalizado. Hoje, esse imposto é 
estadual e, segundo a Resolução 09/92 
do Senado, a alíquota máxima que po-
de ser cobrada é de 8%. 
• Imposto sobre a propriedade: au-
mentar a progressividade do Imposto 
Territorial Rural (ITR) e que o Estado 
passe a fazer uma fiscalização tão ri-
gorosa como a do Imposto de Renda. 
Salientamos que a atual arrecadação 
do ITR, durante todo o ano de 2017, em 
todo o Brasil, foi menor que dois meses 
de arrecadação do IPTU na cidade de 
São Paulo.
• Imposto sobre as grandes fortu-
nas: regulamentação do artigo 153, 
item VII, da CF, por meio de lei comple-
mentar, que a Receita Federal passe a 
informar o valor do patrimônio das 
pessoas por faixa de renda e que as alí-
quotas aplicadas sejam progressivas.
Uma reforma tributária com essas 
características, além de fazer justiça 
tributária, dará muito mais condições 
ao Estado para investir em políticas 
públicas. 
*Odilon Guedes é economista, mestre em 
Economia pela PUC-SP, professor do curso de 
pós-graduação Gerente de Cidades e do cur-
so de Economia da Fundação Armando Álva-
res Penteado (Faap) e do curso de Economia 
das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente 
do Sindicato dos Economistas no Estado de 
São Paulo, vereador e subprefeito da cidade 
de São Paulo. Autor do livro Orçamento públi-
co e cidadania (Ed. Livraria da Física, 2012).
País Leitura Matemática Ciências
Estados Unidos 24º 41º 25º
Alemanha 11º 16º 16º
Japão 8º 5º 2º
Coreia do Sul 7º 7º 11º
Chile 43º 51º 46º 
Brasil 59º 69º 67º
País
População 
em milhões/
hab. 2016
PIB em 
US$ 
bilhões 
2016
% da carga 
tributária em 
relação ao 
PIB
Total da 
carga 
tributária em 
US$ bilhões
Capacidade de 
investimento 
do governo (per 
capita) em US$
EUA 327 18.570 25,4 4.716 14.422
Brasil 207 1.799 33,7 606 2.928
Alemanha 81 3.467 36,7 1.272 15.703
Japão 128 4.139 29,5 1.221 9.539
Coreia do Sul 51 1.411 24,3 343 6.725
Chile 18 277 20,2 56 3.111
TABELA 1 – CARGAS TRIBUTÁRIAS EM PERSPECTIVA
Fonte: FMI/IBGE.
Fonte: OCDE.
TABELA 2 – RESULTADOS DO PISA (EM UM TOTAL DE SETENTA PAÍSES)
7SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
CAI A MÁSCARA DA REFORMA TRABALHISTA
Desemprego e 
precarização vêm 
à tona
Os argumentos de “modernização” do trabalho para 
retirar direitos são os mesmos utilizados no século XIX, 
que geraram sociedades pauperizadas e violentas
POR EUZÉBIO JORGE SILVEIRA DE SOUZA, ANA LUÍZA MATOS DE OLIVEIRA 
E BARBARA VALLEJOS VAZQUEZ*
A 
reforma trabalhista completou 
em agosto nove meses de vigên-
cia e já é evidente seu fracasso na 
missão de criar mais empregos 
formais de qualidade e contribuir na 
retomada do crescimento econômico.
Com o aprofundamento da crise 
econômica a partir de 2015, o Brasil 
acompanhou os malabarismos teóri-
cos de economistas ortodoxos para es-
tabelecer uma relação causal entre a 
superação da crise econômica e a des-
truição do aparato político e institu-
cional que promovia seguridade ao 
trabalhador e mitigava a assimetria no 
mercado de trabalho. A reforma traba-
lhista, mal debatida e aprovada em 
tempo recorde pelo Congresso em ju-
lho de 2017, foi apresentada como me-
dida imprescindível para a “moderni-
zação” das relações de trabalho no 
país e para a superação da crise econô-
mica. Os mesmos defensores da auste-
ridade1 que transformou uma desace-
leração em recessão econômica em 
2015 defendiam a reforma trabalhista 
como saída para a crise.
A reforma, ao flexibilizar as rela-
ções de trabalho, reduzir direitos tra-
balhistas, permitir a livre negociação 
entre trabalhadores e empresários e 
deixar que o próprio mercado defina 
níveis de remunerações e condições 
de trabalho, contribuiria para a reto-
mada do crescimento econômico, se-
gundo seus defensores. Tal pensa-
mento é baseado na ideia de que o 
mercado de trabalho brasileiro não 
era flexível e que o desemprego e a 
queda da atividade econômica são res-
ponsabilidades dos trabalhadores. Em 
primeiro lugar, o Brasil possui um 
mercado detrabalho historicamente 
marcado por informalidade, alta rota-
tividade, baixos salários e desrespeito 
à regulação do trabalho. Ademais, a 
pressuposição de que os trabalhado-
res são responsáveis pelo desemprego 
está fundada na ideia de que estes pre-
ferem o desemprego a trabalhar por 
baixos salários – o que justificaria reti-
rar direitos trabalhistas como seguro-
-desemprego, com o propósito de 
combater o “corpo mole”. Por outro la-
do, o nível de emprego depende do vo-
lume de gastos e investimentos na 
economia como um todo: buscar en-
tender o nível de desemprego obser-
vando apenas o mercado de trabalho é 
como tentar apreender o funciona-
mento do motor de um carro olhando 
para suas rodas. 
Até poucos anos atrás, as estatísti-
cas oficiais acerca do trabalho não ha-
viam sido capazes de incorporar espe-
cificidades brasileiras e ao mesmo 
tempo adequar-se a padrões interna-
cionais de medição das situações de 
emprego e desemprego. No entanto, 
com a Pnad Contínua (PnadC), houve 
uma tentativa de medição mais com-
plexa de fenômenos que impactam os 
mercados de trabalho periféricos co-
mo o Brasil (ao contrário da Europa): 
subemprego, desalento, entre outros, 
consolidados no indicador “Subutili-
zação da força de trabalho”.
Sobre esse indicador, do segundo 
trimestre de 2017 para o segundo tri-
mestre de 2018, cresceu de 26,3 mi-
lhões para 27,6 milhões a quantidade 
de pessoas subutilizadas, isto é, os 
subocupados por insuficiência de ho-
ras trabalhadas, os desocupados e a 
força de trabalho potencial. Para 
comparação, antes da adoção das po-
líticas de austeridade no Brasil (o que 
ocorreu a partir de 2015), havia no 
país 15,3 milhões de subutilizados no 
segundo trimestre de 2014, quase a 
metade do número hoje. 
A análise desse indicador compos-
to revela que, à dessemelhança do que 
se observa em mercados estruturados, 
no Brasil existe uma ampla gama de si-
tuações que não podem ser adequada-
mente mensuradas pelo binômio em-
prego/desemprego. Aliás, o grande 
aumento do total de desocupados 
(+101%) no Brasil desde 2015, início da 
crise econômica – 6,4 milhões de pes-
soas em dezembro de 2014 para 12,9 
milhões em junho de 2018 –, foi acom-
panhado pelo aumento do subempre-
go e do desalento, sintomas dos tem-
pos presentes. O desalento chegou a 
4,8 milhões no segundo trimestre de 
2018, ponto mais alto da série histórica. 
De dezembro de 2014 a junho de 2018, 
o número de trabalhadores em situa-
ção de subemprego aumentou 38%, e a 
força de trabalho potencial, 91%.
Entretanto, a reforma prometia, 
além de reduzir a desocupação e o de-
salento, gerar novos postos de traba-
lho. Segundo o Cadastro Geral de Em-
pregados e Desempregados (Caged), o 
saldo de emprego formal entre novem-
bro de 2017 e junho de 2018, período de 
vigência da reforma, é de 3.226 postos. 
Já o saldo de geração de empregos in-
termitentes é de 22.901, e de postos em 
tempo parcial, de 12.507. A PnadC re-
vela também uma degradação do mer-
cado de trabalho, expressa na redução 
em 10,1% do total do emprego com 
carteira assinada no Brasil, passando 
de 36,5 milhões para 32,8 milhões en-
tre outubro, novembro e dezembro de 
2014 e abril, maio e junho de 2018, pon-
to mais baixo da série histórica. Entre o 
quarto trimestre de 2014 e o segundo 
trimestre de 2018, houve recuo da ocu-
pação, que passou de 92,9 milhões pa-
ra 91,2, representando uma queda de 
1,8% no período e aumento no total de 
empregadores (10,1%), dos trabalha-
dores por conta própria (6,0%), do em-
prego sem carteira (4,8%) e do traba-
lho doméstico (4,8%).
E é bom lembrar que os argumen-
tos de “modernização” do trabalho 
para retirar direitos são os mesmos 
utilizados no século XIX, que geraram 
sociedades pauperizadas e violentas. 
Na mesma linha, a reforma agrava 
problemas históricos brasileiros, co-
mo alto desemprego e informalidade, 
degradação da qualidade dos postos 
de trabalho formais, grande peso do 
desemprego oculto por situações de 
trabalhos precários ou desalento, que 
acabam empurrando os desemprega-
dos para a inatividade. 
A partir da reforma tem ocorrido 
uma substituição de ocupações mais 
estáveis, como emprego por tempo in-
determinado, por ocupações em tem-
po parcial e contratos intermitentes, 
PJs, terceirizados etc. Em suma, o im-
pacto real da reforma trabalhista não 
se deu sobre o desemprego, que persis-
te, e sim nos postos de trabalho for-
mais, que estão sendo paulatinamente 
substituídos por contratos precários. 
*Euzébio Jorge Silveira de Souza é mes-
tre em Economia Política pela PUC-SP, dou-
torando em Desenvolvimento Econômico na 
Unicamp, presidente do Centro de Estudos e 
Memória da Juventude (CEMJ) e conselheiro 
do Conselho Nacional de Juventude (Conju-
ve); Ana Luíza Matos de Oliveira é profes-
sora visitante da Flacso-Brasil e economista 
pela UFMG, mestra e doutoranda em Desen-
volvimento Econômico na Unicamp; e Bar-
bara Vallejos Vazquez é mestre em Desen-
volvimento Econômico pela Unicamp, 
graduada em Ciências Sociais pela USP, téc-
nica do Dieese e professora da Escola Diee-
se de Ciências do Trabalho.
1 Essa política de austeridade teve e tem profundos 
impactos no mercado de trabalho e nos gastos so-
ciais, e é analisada no estudo “Austeridade e retro-
cesso: impactos sociais da política fiscal no Bra-
sil”, Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, São 
Paulo, ago. 2018. Disponível em: <http://brasilde-
bate.com.br/wp-content/uploads/DOC-AUSTE-
RIDADE_doc3-_L9.pdf>.
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8 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
O discurso da privatização
As tragédias de Mariana e da Ponte Morandi, que desmoronou recentemente na Itália, para citar apenas dois casos, 
expõem as diferenças de prioridades entre os distintos modelos de gestão. São calamidades que poderiam ter sido 
evitadas se a segurança tivesse sido considerada mais importante do que o lucro a curto prazo
POR ADHEMAR MINEIRO, CLOVIOMAR CARARINE, FERNANDO AMORIM TEIXEIRA, GUSTAVO TEIXEIRA, IDERLEY COLOMBINI NETO E PAULO JÄGER*
EM FACE DOS OBJETIVOS DAS ESTATAIS
A 
discussão sobre a privatização 
das empresas estatais brasilei-
ras, de forma geral, tem sido rea-
lizada de forma maniqueísta: 
um lado argumenta que o setor público 
é eficiente, e o outro, que é ineficiente; 
uma parte afirma que as empresas dão 
lucro, a outra, que causam prejuízo ao 
Estado; uma parcela diz que a venda de 
ativos públicos resolve o problema de 
déficit nas contas públicas, enquanto a 
outra proclama o contrário.
O discurso da superioridade do de-
sempenho do setor privado em relação 
ao público e dos prejuízos causados pe-
las estatais tem carga ideológica pesada 
e desconsidera o que essas empresas re-
presentam para o país. As estatais de-
sempenham papel fundamental no de-
senvolvimento da sociedade e são, ao 
mesmo tempo, mecanismo de política 
econômica e externa, já que podem de-
senvolver funções importantes na geo-
política internacional. E isso porque são 
essas empresas que viabilizam grandes 
investimentos de longo prazo; ofere-
cem serviços essenciais à vida; assegu-
ram um nível de concorrência adequa-
do (oferta e preço) em mercados 
concentrados; investem em ciência, 
tecnologia e inovação; atuam como 
instrumento de políticas anticíclicas; 
asseguram o controle de bens escassos 
que são elementos essenciais para o 
conjunto da estrutura produtiva; 
atuam em nome do interesse e da sobe-
rania nacionais; e tomam decisões em-
presariais orientadas pelo interesse co-
letivo, e não só pelo lucro.
Muitos setores de atividade econô-
mica, em função de características in-
trínsecas, precisam de altos investi-
mentos com longo prazo de maturação, 
como ocorre com a construção de es-
tradas e ferrovias. Em muitas situa-
ções, o investimento não interessa à 
iniciativaprivada, mas é fundamental 
para o desenvolvimento econômico e 
social de uma região e, por isso, a so-
ciedade decide arcar com os custos.
Existem ainda serviços essenciais à 
vida – como captação, tratamento e 
distribuição da água e geração, trans-
missão e distribuição de energia elétri-
ca – que, sob pena de colocarem em ris-
co a economia do país e a sobrevivência 
da população, não podem ser tratados 
como uma mercadoria qualquer. 
A Constituição brasileira define o 
fornecimento de uma série de bens e 
serviços como propriedade/competên-
cia do Estado – União, estados e muni-
cípios. Entre eles, estão as jazidas e de-
mais recursos minerais; potenciais de 
energia elétrica; tratamento e distribui-
ção de água e coleta de esgoto; gestão 
dos recursos hídricos; infraestrutura 
aeroportuária; serviços e instalações 
nucleares; serviços de transporte; e ser-
viços postais.
Para assegurar a oferta e preços ade-
quados, é preciso considerar que alguns 
setores têm estrutura de mercado mui-
to concentrada: quando não são mono-
pólios naturais, são segmentos em que 
há poucos participantes com expressi-
vo poder de mercado (oligopólios), 
principalmente em função de barreiras 
à entrada de novos atores. Essa é uma 
razão adicional para que o Estado tenha 
participação nesses mercados.
Empresas e centros de pesquisa 
estatais são fundamentais para eco-
nomias modernas, pois realizam in-
vestimentos em projetos de ciência, 
tecnologia e inovação, pouco atrativos 
à iniciativa privada, uma vez que re-
querem longos períodos para pesqui-
sa e desenvolvimento e se caracteri-
zam por elevada incerteza. Assim, os 
recursos destinados por empresas es-
tatais são decisivos em qualquer pro-
jeto de desenvolvimento que almeje a 
redução da dependência tecnológica 
de outros países.
A atuação e os investimentos esta-
tais também podem ser fatores de es-
tabilização econômica, do nível de 
emprego e da renda, à medida que, por 
não obedecerem apenas à lógica de 
mercado e lucro, asseguram um míni-
mo de expansão da demanda agrega-
da, atuando como instrumento de po-
líticas anticíclicas.
Além disso, bens escassos e que são 
insumos essenciais para o conjunto da 
estrutura produtiva, em especial pe-
tróleo, gás e derivados, são estratégicos 
para o desenvolvimento econômico e 
social. Os poucos países que detêm 
grandes reservas e competência para 
explorá-las procuram protegê-las e uti-
lizá-las da melhor maneira possível.
Importante lembrar que as estatais 
diferem das empresas privadas na me-
dida em que, pela própria natureza, 
devem tomar decisões orientadas pelo 
interesse coletivo, e não apenas por 
critérios econômico-financeiros. No 
debate sobre privatização, a questão 
do lucro diante do interesse coletivo 
merece muita atenção. As tragédias de 
Mariana, com o rompimento da Bar-
ragem de Fundão, erguida pela Samar-
co, subsidiária da Vale (Vale do Rio Do-
ce, enquanto era estatal), empresa 
privatizada nos anos 1990, e da Ponte 
Morandi, também sob controle priva-
do, que desmoronou recentemente na 
Itália, para citar apenas dois casos, ex-
põem as diferenças de prioridades en-
tre os distintos modelos de gestão. São 
calamidades que poderiam ter sido 
evitadas se a segurança tivesse sido 
considerada mais importante do que o 
lucro a curto prazo. 
Não à toa, hoje duas tendências são 
observadas no mundo: 1) em nome do 
interesse e da soberania nacionais, 
vários países têm adotado medidas de 
restrição ao investimento estrangeiro 
em setores estratégicos. A China é um 
exemplo. Por meio das grandes em-
presas estatais, o país tem aplicado 
uma política de investimento em nível 
mundial; 2) é enorme o número de ca-
sos de reestatização dos serviços pú-
blicos (835 casos) para resolver os pro-
blemas de ineficiência da gestão 
privada no fornecimento dos serviços 
à população.1
A análise de experiências em paí-
ses desenvolvidos mostra a viabilidade 
de diferentes tipos de gestão no setor 
público, com controle social, que re-
duziram acentuadamente problemas 
relacionados à corrupção e à apropria-
ção indevida por interesses privados. É 
possível gerir empresas estatais de for-
ma eficiente, sob a perspectiva do inte-
resse público.
Por fim, dado o caráter público, as 
empresas estatais estão sujeitas à in-
fluência dos grupos políticos que ocu-
pam diferentes esferas de poder, o que 
torna imprescindível o desenvolvi-
mento de mecanismos que aprimo-
rem gestão, controle e participação 
social, e, consequentemente, garan-
tam maior engajamento da sociedade 
civil organizada. 
*Adhemar Mineiro, Cloviomar Cararine, 
Fernando Amorim Teixeira, Gustavo Teixei-
ra, Iderley Colombini Neto e Paulo Jäger 
são técnicos do Dieese e componentes do 
grupo de estudos da entidade que analisa a 
questão das estatais. Texto produzido com 
base na Nota Técnica 189 do Dieese, “Em-
presas estatais e desenvolvimento: conside-
rações sobre a atual política de desestatiza-
ção”, disponível em: <www.dieese.org.br>.
1 Ver Transnational Institute (TNI), Reclaiming Public 
Services: How cities and citizens are turning back 
privatization, 2016. Disponível em: <www.tni.org/
en/publication/reclaiming-public-services>.
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9SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
SUS pós-2018: a caravana passa?
Demandas empresariais como prontuário único, organização de regiões de saúde e coordenação do cuidado pularam, 
sem mediação, das páginas de documentos de grandes grupos econômicos setoriais para as de partidos políticos. 
O que não entrou na agenda empresarial foram as associações causais entre saúde e desigualdade
POR LIGIA BAHIA*
SAÚDE
S
istemas universais de países eu-
ropeus, que inspiraram a for-
mulação do Sistema Único de 
Saúde (SUS), estão sendo ques-
tionados, mas não desmontados. A cri-
se econômica de 2008, políticas de 
austeridade e a vitória eleitoral de 
coalizões de centro-direita e direita 
em países europeus e nos Estados 
Unidos abalaram, mas não erodiram, 
os alicerces da concepção de garantia 
de direito independente da contri-
buição pecuniária de indivíduos e fa-
mílias. Por lá, houve mudanças, mas 
também resistência. Talvez, a conse-
quência mais dramática da reedição 
das críticas aos sistemas universais 
tenha sido a absorção de concepções 
conservadoras por instituições polí-
ticas e políticos influenciados por 
agências como o Banco Mundial, em 
nações como o Brasil. 
A comemoração dos setenta anos 
do sistema nacional de saúde inglês 
(NHS), criado em 1948, tem sido mar-
cada por polêmicas que chegam aqui 
atrasadas e deturpadas. O centro de 
gravitação do debate internacional é 
a sustentabilidade de sistemas públi-
cos de países de renda alta em tem-
pos de inovações terapêuticas e crise 
econômica. A interrogação concen-
tra-se em torno dos limites da distri-
buição, da natureza e da carga dos 
impostos necessários para financiar 
o acesso universal, inclusive para tra-
tamentos muito caros. Há consenso 
sobre a necessidade de aumentar o fi-
nanciamento. Parlamentares ingle-
ses usam o símbolo do NHS na lapela 
e Theresa May anunciou um aporte 
de mais 20 bilhões de libras esterlinas 
por ano até 2023. 
No Brasil, os trinta anos de SUS 
não motivaram declarações ou even-
tos oficiais. Pairam no ar acepções 
ideológicas sobre as virtudes do mer-
cado para alocar eficientemente re-
cursos para atenção à saúde. A aten-
ção à saúde pode ser mercadoria, é 
óbvio, contanto que não seja social, 
política e moralmente mediada. Tal 
como em outros mercados, para um 
dado preço, a oferta pode aumentar 
ou diminuir e inovações tecnológicas 
tendem a deslocar a curva para a di-
reita, ainda que seja importante res-
salvar casos de doenças para as quais 
o aumento da assistência e dos custos 
será inócuo. Ocorre que não foi assimque as sociedades ocidentais organi-
zaram suas instituições. Na maioria 
das nações, a saúde, ao lado de outras 
políticas sociais, compõe um espaço 
“desmercantilizado”. Ações de saúde 
têm custos, mas não são necessaria-
mente mercadorias. Uma mercadoria 
para ser adquirida requer renda e de-
pende do preço. 
A oferta pública de serviços de saú-
de permite que pessoas os utilizem de 
acordo com necessidades, e não com a 
capacidade de pagamento. Existem 
duas dimensões envolvidas com polí-
ticas de saúde. A primeira é normativa 
e ideológica; diz respeito à distribui-
ção (quanto e de que poder, renda, ri-
queza). Igualdade, eficiência e liberda-
de são fundamentos gerais, mas seus 
pesos variam de acordo com distintos 
posicionamentos. Liberais valorizam 
a liberdade, e socialistas, a igualdade. 
O segundo enfoque é técnico. A aloca-
ção realizada pelo mercado não é certa 
ou errada, boa ou má. Similarmente, a 
intervenção governamental pode ser 
muito eficiente ou não. 
Uma ambulância da prefeitura não 
é mercadoria e, se atende muitos ca-
sos, tenderá a ser mais eficiente do que 
um veículo semelhante restrito ao 
chamado de pessoas que podem pa-
gar. Obviamente, o argumento esti-
mula comentários: depende do salário 
do motorista, da equipe de saúde. A 
resposta é: depende dos custos, mas 
também dos objetivos do sistema de 
saúde. Os resultados em termos de 
melhoria de condições de saúde serão 
diferentes se o transporte de pacientes 
for organizado mediante critérios de 
gravidade clínica ou maior capacidade 
de pagamento. No primeiro caso, a 
maioria da população terá direito a au-
mentar as chances de sobrevida. In-
versamente, o impacto das ambulân-
cias privadas nos indicadores 
populacionais tenderá a ser inexpres-
sivo. Em sistemas de saúde universais, 
os impostos distribuem rendimentos 
ao longo da vida dos indivíduos, e não 
apenas entre ricos e pobres. Servem 
também como um “cofrinho” para 
sustentar necessidades de saúde ao 
longo do ciclo de vida, que são mal ou 
não supridas por mercados, caracteri-
zados por informações assimétricas e 
elevados custos de transação.
Infelizmente, não são esses os ter-
mos que predominam no debate atual 
sobre o SUS. Sob um suposto e disse-
minado pragmatismo teríamos dois 
sistemas: o SUS e outro para “os que 
podem pagar”. O SUS propiciaria co-
bertura para 65% da população pelas 
unidades de saúde da família, e os pla-
nos de saúde e assistência ambulato-
rial e hospitalar, para cerca de 27%. O 
passo seguinte seria a integração do 
público com o privado: o público fica 
com a atenção básica; o privado, com a 
“média complexidade”; e a “alta” seria 
dividida entre os dois. Essa proposta 
de integração, apresentada em 2015 
por entidades empresariais como 
agenda inovadora, influencia políticas 
governamentais e diversas platafor-
mas eleitorais em 2018. 
Demandas empresariais como 
prontuário único, organização de 
regiões de saúde e coordenação do 
cuidado pularam, sem mediação, 
das páginas de documentos de gran-
des grupos econômicos setoriais pa-
ra as de partidos políticos. O que não 
entrou na agenda empresarial foram 
as associações causais entre saúde e 
desigualdade. A cobertura para 95% 
dos brasileiros seria aprimorada. 
Contudo, não teríamos um sistema 
de saúde capaz de responder efetiva-
mente às epidemias de obesidade, 
prematuridade, aumento de cânce-
res, altas de taxas de homicídios e 
arboviroses. Simplificadamente, te-
ríamos cobertura e não necessaria-
mente políticas para reduzir, con-
trolar, eliminar riscos ou sequer 
realizar diagnósticos precoces.
Saúde é muito mais que médico, 
remédio, hospital e ambulância. É tra-
balho digno, salário mínimo genero-
so, emancipação e também redes as-
sistenciais. Os povos indígenas são 
quem adoecem e morrem mais preco-
cemente. Sem a demarcação das terras 
indígenas, essa brutal e secular injus-
tiça será preservada e reproduzida. 
Agrotóxicos e transgênicos não dizem 
respeito apenas ao “que está na nossa, 
na minha mesa”, e sim à alavancagem 
do agrobusiness e ao extermínio de in-
dígenas em pleno século XXI. Quando 
o conceito ampliado de saúde e o SUS 
foram incluídos na Constituição de 
1988, sabíamos que éramos um país 
não rico em PIB, em renda; exatamen-
te por isso precisávamos lutar por di-
reitos sociais universais. Considera-
mos que ser pobre não era destino, que 
a desigualdade deve ser combatida, re-
duzida. As grandes conquistas do SUS 
estão relacionadas com políticas uni-
versais que ousaram questionar pa-
drões conservadores, injustos e discri-
minatórios de sociabilidade. 
Não conseguiremos controlar ou 
reduzir as violências, a obesidade, 
sob o ideário errôneo segundo o qual 
os gordos são preguiçosos, “mal-edu-
cados” nutricionais e que “bandido 
bom é bandido morto”, ou ainda a 
versão “soft”, a de que é necessário 
“pacificar” os supostos espaços-po-
pulação que guerreiam entre si, por-
que neles habitam seres irracionais 
que precisam que as forças policiais 
os civilizem. O sentido (significado e 
direção) do SUS constitucional é o de 
projeto democrático. Foi a reinter-
pretação das forças econômicas e po-
líticas conservadoras que reduziu o 
sistema universal para o convênio 
entre governo e setor privado. Por-
tanto, o equacionamento das políti-
cas públicas para o setor público e 
para o privado não é trivial; requer 
reconhecimento sobre a existência 
de grandes grupos econômicos seto-
riais e seus movimentos, não apenas 
de concentração de capitais, mas 
também de influência na agenda po-
lítica. Narrativas para serem real-
mente disputadas não podem ser len-
das, discursos laudatórios; devem 
condensar valores, posicionamentos 
políticos e, sobretudo, práticas. 
*Ligia Bahia é professora da Faculdade de 
Medicina da Universidade Federal do Rio de 
Janeiro (UFRJ) e integrante da Comissão de 
Política, Planejamento e Gestão em Saúde 
da Associação Brasileira de Saúde Coletiva 
(Abrasco).
10 Le Monde Diplomatique Brasil SETEMBRO 2018
EDUCAÇÃO
Entre histéricos, 
demagogos 
e financistas
Escola sem Partido, militarização dos colégios estaduais e 
entrada do grande capital na rede privada. O que importa é que, 
ao contrário dos filhos das famílias mais ricas, os jovens pobres 
estejam sujeitados à disciplina mais restrita, aquela necessária 
a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna
POR JOSÉ RUY LOZANO*
O 
conhecimento não só amplia 
como multiplica nossos dese-
jos. Portanto, o bem-estar e a fe-
licidade de todo Estado ou Rei-
no requerem que o conhecimento dos 
trabalhadores pobres fique confinado 
dentro dos limites de suas ocupações e 
jamais se estenda [...] além daquilo que 
se relaciona com sua missão. Quanto 
mais um pastor, um arador ou qualquer 
outro camponês souber sobre o mundo 
e sobre o que lhe é alheio ao seu traba-
lho e emprego, menos capaz será de su-
portar as fadigas e as dificuldades de 
sua vida com alegria e contentamento.” 
Esse trecho foi extraído de um famoso 
compêndio de filosofia moral do século 
XVIII: A fábula das abelhas: vícios priva-
dos, benefícios públicos, de Bernard de 
Mandeville (1670-1733). A lição de 
Mandeville volta a fazer sentido no mo-
mento atual da educação brasileira, 
cuja herança de inovação se depara 
com diversas ameaças. Inventariamos 
algumas no texto que se segue.
ESCOLA SEM PARTIDO
Boletim de ocorrência. Esse é um 
dos links presentes no site do movimen-
to Escola sem Partido, e o nome já anun-
cia, ou denuncia, como seus integrantes 
veem a educação. Caso de polícia.
Acessando a página, o leitor é con-
vidado a apontar episódios de pretensa 
doutrinação ideológica perpetrada por 
docentes de escolas e universidades, 
ou até mesmo fora de sala de aula, em 
opiniões nas redes sociais, por exem-
plo. O discurso persecutório éeviden-
te, e as “acusações” abundam, num 
linguajar grotesco que denuncia desde 
a defesa dos direitos humanos básicos, 
inscritos na Constituição, até a análise 
das condições de trabalho na Revolu-
“
ção Industrial, presente em livros de 
História, como opiniões de esquerda.
Nada mais partidarizado que o Es-
cola sem Partido. A pretexto de expur-
gar um suposto viés político à esquerda 
dos professores, seus militantes que-
rem extirpar da escola sua institucio-
nalidade pública, de espaço de debate 
e formação acima e além das crenças 
familiares e valores religiosos de cará-
ter privado. O verdadeiro pavor do Es-
cola sem Partido é a inserção das crian-
ças no mundo fora da família, que 
começa na escola. O que o movimento 
combate é a ideia de escola como espa-
ço público, onde crianças e jovens vão 
necessariamente ao encontro da dife-
rença, transcendendo a vida privada.
MILITARIZAÇÃO NAS REDES ESTADUAIS
A publicação do último Atlas da vio-
lência no Brasil expõe a situação dra-
mática na segurança pública. As séries 
estatísticas, incluindo a impressionan-
te cifra de homicídios, não escondem a 
principal vítima dos crimes contra a vi-
da: o jovem pobre, morador das perife-
rias dos grandes centros urbanos. Fa-
mílias assustadas são alvo fácil da mais 
recente solução simples – e errada – pa-
ra o complexo problema da violência 
juvenil, correlato da evasão escolar: a 
militarização dos colégios estaduais.
A ideia consiste em colocar, na dire-
ção e nas coordenações dos colégios es-
taduais, oficiais da Polícia Militar. Com 
sua autoridade, restaurariam a disci-
plina, eliminariam os desvios e melho-
rariam o rendimento dos alunos. Os 
indicadores dos colégios militares bra-
sileiros seriam a prova da eficiência.
Enquanto os países com os me-
lhores indicadores de educação (e os 
mais caros colégios particulares bra-
sileiros) adotam metodologias ativas 
e investem fortemente na formação 
de professores, para que as aulas se-
jam dialogadas, baseadas em proble-
mas e desenvolvedoras do raciocínio 
e do pensamento crítico, nos colégios 
militarizados nada disso tem vez. O 
professor fala, o aluno limita-se a ou-
vir e anotar. 
Evidente que o milagre dos colé-
gios militares tradicionais não vai se 
repetir. Neles, há seleção prévia e os 
alunos têm vocação para a carreira 
castrense. O que importa é que, ao 
contrário dos filhos das famílias mais 
ricas, os jovens pobres estejam sujeita-
dos à disciplina mais restrita, aquela 
necessária a quem vai se inserir na so-
ciedade em posição subalterna.
A ARTICULAÇÃO DO GRANDE CAPITAL
O Ministério da Educação é hoje 
campo de atuação de fundações de di-
reito privado, alimentadas pelo finan-
ciamento de grandes grupos econômi-
cos. Fundação Lehman, Instituto 
Península (Abílio Diniz), Itaú Cultural e 
Todos pela Educação são alguns dos 
braços que articulam políticas públicas 
educacionais dentro do governo. A re-
forma do ensino médio e a Base Nacio-
nal Comum Curricular (BNCC) nasce-
ram das demandas dessas entidades.
Não se nega a situação precaríssi-
ma do segmento médio da educação 
básica, cuja evasão chega à metade dos 
alunos matriculados, tampouco a ne-
cessidade de um mínimo curricular 
nacional, importante fator de equida-
de. A condução de tais temas, no en-
tanto, tem por objetivo mais a adequa-
ção da escolaridade a parâmetros 
supostamente objetivos de quantifica-
ção e preparação de mão de obra do 
que às condições de produção autôno-
ma do conhecimento.
Simultaneamente, grupos educa-
cionais gigantescos, como a Kroton, 
controladora de dezenas de faculda-
des e grande vitoriosa na expansão das 
matrículas no ensino superior privado 
via Fies, avança no nicho de mercado 
da educação básica. Recentemente, a 
Kroton adquiriu a Somos Educação, 
que agrega colégios, cursos pré-vesti-
bulares como o Anglo e as editoras Sa-
raiva, Ática e Scipione, que têm como 
principal fonte de receita a venda de 
livros didáticos para o governo.
Empresas privadas sustentadas 
pelos fundos públicos: na educação, 
essa constante brasileira se repete. 
Para uma empresa como a Kroton, 
tanto a BNCC como a reforma do ensi-
no médio podem representar verda-
deiras minas de ouro. Seus técnicos já 
estão elaborando as “soluções” neces-
sárias, com livros adequados às novas 
normas e programas de ensino a dis-
tância para a parte flexível do nível 
médio, vendidos a preço módico às 
escolas de todo o país.
A histeria aparece na mídia, a de-
magogia ganha o noticiário, mas o ca-
pital trabalha mais discretamente. En-
quanto os palhaços ocupam o palco e 
distraem o público, os diretores do es-
petáculo fazem seu trabalho discreta e 
minuciosamente. Como diria Mande-
ville, nada de desejos: apenas o neces-
sário ao trabalho... e ao lucro. 
*José Ruy Lozano é sociólogo, autor de li-
vros didáticos, conselheiro da Comunidade 
Reinventando a Educação (Core – www.co-
reduc.org) e coordenador pedagógico geral 
do Colégio Nossa Senhora do Morumbi – 
Rede Alix.
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11SETEMBRO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil
SEGURANÇA
Violência, subjetividades e projetos 
de vida e cidadania no Brasil
Mesmo diante das evidências dos limites dessa política, alguns candidatos seguem prometendo mais 
do mesmo remédio-veneno. Defendem só construir prisões e endurecer as penas; defendem e louvam 
a violência como resposta à violência, em uma vendeta que parece longe de acabar
POR BRUNO PAES MANSO, RENATO SÉRGIO DE LIMA E SAMIRA BUENO*
N
as salas de aula do ensino mé-
dio da rede pública, professo-
res costumam reclamar dos 
desafios para prender a aten-
ção dos jovens. Numa mistura de ceti-
cismo e fatalismo, muitos alunos pre-
ferem abandonar a escola para ganhar 
dinheiro e se sustentar, como se sou-
bessem dos obstáculos que teriam pa-
ra escapar do futuro insosso que os es-
pera. É como se as escolas não fossem 
capazes de despertar em muitos jo-
vens a capacidade de sonhar; não fos-
sem capazes de interagir com múlti-
plas moralidades e estimular um novo 
padrão ético pautado na cidadania e 
na vida como valor público supremo. 
Escolas que poderiam servir como 
portas de entrada da rede de acolhi-
mento, atendimento social e cidadania 
isolam-se em seus edifícios cada vez 
mais vilipendiados e ameaçados pelo 
crime, que parece seduzir principal-
mente as subjetividades masculinas 
em formação, oferecendo a possibilida-
de de uma vida de aventura, insubmis-
são, consumo, satisfação desenfreada 
das pulsões e desejos, e luta contra um 
sistema que oprime e humilha, mesmo 
que ao preço de morrer jovem ou de 
perder a liberdade numa prisão lotada. 
Como convencer os adolescentes a 
duvidar das ilusões e promessas da vi-
da no crime? Como despertar nesses 
jovens sonhos de contribuir para o 
bem-estar coletivo do mundo em que 
vivem? Como gerar empatia diante de 
tantas injustiças e desigualdades? Co-
mo fazer frente ao imaginário social 
que divide a sociedade entre “cidadãos 
de bem” e “bandidos” e aceita que es-
tes últimos sejam matáveis?
Em vez de despertarem sonhos e 
vocações, as instituições passaram a 
agir como se estivessem em conflito 
aberto contra os jovens pobres. Em 
1990, o país tinha 90 mil presos, total 
que passou para 726 mil em 2016. Mes-
mo com a escalada vertiginosa de en-
carceramento, que dependeu também 
de investimentos crescentes no policia-
mento ostensivo militarizado nos bair-
ros pobres, a situação degringolou.
A prisão passou a ser uma das pou-
cas políticas públicas universais para 
os jovens brasileiros pobres e negros, 
independentemente de ela ser hoje o 
principal celeiro do crime e da violên-
cia no país. Vivemos em um transe, em 
que se acredita que o veneno que nos 
sufoca como nação democrática é o 
remédio para nossos males.
Em 2005, no primeiro levantamen-

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