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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito O INSTITUTO DA LESÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Andressa Silmara Alves Carvalho Rios BELO HORIZONTE 2009 Andressa Silmara Alves Carvalho Rios O INSTITUTO DA LESÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Leonardo Macedo Poli BELO HORIZONTE 2009 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Rios, Andressa Silmara Alves Carvalho R586i O instituto da lesão à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República / Andressa Silmara Alves Carvalho Rios. Belo Horizonte, 2009. 115f. Orientador: Leonardo Macedo Poli Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Lesão (Direito). 2. Negócio jurídico. 3. Contratos. 4. Código Civil (2002). 5. Constituição (1988). 6. Rescisão. I. Poli, Leonardo Macedo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 347.449 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Dissertação intitulada: “O instituto da lesão à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República”, de autoria de Andressa Silmara Alves Carvalho Rios, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: __________________________________________________________________ Leonardo Macedo Poli (Orientador) – PUC Minas ___________________________________________________________________ Walsir Edson Rodrigues Júnior – PUC Minas ___________________________________________________________________ Giordano Bruno Soares Roberto - UFMG ___________________________________________________________________ Bruno Torquato de Oliveira Naves - PUC Minas (Suplente) BELO HORIZONTE, 16 de JUNHO DE 2009. AGRADECIMENTOS Acima de tudo, agradeço a Deus por mais esta conquista e por se fazer presente em cada minuto dos meus dias. Sem fé, os obstáculos são maiores e mais difíceis de serem ultrapassados. Agradeço ao Rafael e aos meus pequenos, Lucca e Enzo, pelo amor e apoio incondicional e por compreenderem minha constante ausência, quando todas as forças se voltaram para a conclusão desta empreitada. Vocês são a razão da minha vida! A minha mãe e meus irmãos, Igor e Anelise, pelo carinho e presença constante. Aos meus sogros, Ângela e Fernando, por me acolherem como filha e por sempre acreditarem em meu potencial. Por fim, os meus sinceros agradecimentos a todos os professores e colegas da PUC, que me auxiliaram no crescimento profissional e pessoal, especialmente ao meu orientador Leonardo Poli, pelos ensinamentos, compreensão e palavras de incentivo. RESUMO O instituto da lesão, originário no Direito Romano e com previsão nas principais codificações civis em todo o mundo, não foi recepcionado pelo Código Civil de 1916, já que, à época de sua promulgação, as relações contratuais eram regidas por princípios rígidos como o da autonomia da vontade. Com a promulgação do novo Código Civil brasileiro, temos o retorno do instituto como defeito autônomo do negócio jurídico, capaz de provocar a sua anulação. Cabe agora analisar a forma pela qual a lesão foi positivada para interpretá-la e aplicá-la à luz da normativa constitucional, de modo a ampliar a efetivação dos princípios superiores que a inspiram. É fundamental afastar a perspectiva patrimonialista e individualista, tão cara ao direito civil tradicional. Foi este movimento humanizante que permitiu ao Direito retomar o antigo instituto, porém não sem uma imprescindível remodelagem. Portanto, o principal objetivo do presente trabalho, dentre outros mais específicos, foi discutir a lesão, diante das mudanças de paradigmas e de princípios que vêm ocorrendo desde a promulgação do Código Civil de 1916 até os nossos dias, proporcionando uma visão social do contrato. O estudo do instituto revela-se fascinante à medida que nos propomos a alcançar conclusões acerca dos mais variados e conturbados aspectos que o circundam, contribuindo para a formação das bases dogmáticas deste novo defeito do negócio jurídico. Pretendemos demonstrar, ainda, a viabilidade da revisão do contrato viciado por lesão além da hipótese restrita prevista no parágrafo 2° do artig o 157, tendo em vista o sistema do Código e, sobretudo, os princípios insculpidos na Constituição da República. LESÃO. NEGÓCIO JURÍDICO. CONTRATO. CÓDIGO CIVIL. CONSTITUIÇÃO. PRINCÍPIOS. EQUIVALÊNCIA. PRESTAÇÕES. DEFEITOS. REVISÃO. ABSTRACT The injury institute, originated in Roman law and included in the main civil codes all over the world, was not approved by the Civil Code of 1916, since, at the time of its promulgation, the contractual relations were ruled by rigid principles such as the autonomy of will. With the promulgation of the new Brazilian Civil Code, we have the return of the institute as a defect of the autonomous legal transaction, able to cause its cancellation. Now, it is necessary to exam the way in which injury was posited in order to interpret it and apply it in the light of constitutional norms, so it is possible to broaden the effects of the higher principles that inspired it. It is essential to avert the patrimonialistic and individualistic perspective, so dear to the civil law tradition. It was this humanizing movement that allowed to resume the old law institute, but not without a vital remodeling. Therefore, the main objective of this work, among other more specific, was to discuss the injury, given the changes in the paradigms and principles that have occurred since the enactment of the Civil Code of 1916 to this day, offering a vision of the social contract. The study of this institute appears to be fascinating as we propose to reach conclusions about the most diverse, troubled aspects about it, contributing to the formation of the dogmatic foundations of this new defect in the legal transaction. We also want to demonstrate the feasibility of amending the contract vitiated by injury beyond the narrow circumstances provided in paragraph 2 of Article 157, in view of the system code, and above all, of the principles in the Federal Constitution of the Republic. INJURY. LEGAL TRANSACTIONS. CONTRACT. CIVIL CODE. CONSTITUTION. PRINCIPLES. EQUIVALENCE. BENEFITS. DEFECTS. REVIEW. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................... 8 2 O DIREITO CIVIL SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL........................ 13 3 BREVE TRAJETÓRIA DO DIREITO CONTRATUAL........................................18 3.1 A concepção clássica do contrato e seus princípios tradicionais........................................................................................................... 18 3.2 A crise da concepção clássica: as transformações da realidade contratual.............................................................................................................. 20 3.3 A evolução do contrato: o surgimento de uma nova teoria contratual ............................................................................................................. 24 3.3.1 A função social do contrato...................................................................... 25 3.3.2 Boa-fé objetiva............................................................................................. 28 3.3.3 Justiça contratual........................................................................................ 32 3.3.4 Equilíbrio contratual.................................................................................... 34 3.3.5 Autonomia privada...................................................................................... 36 4 HISTÓRICO DA LESÃO.................................................................................... 38 4.1 A lesão no Direito Romano........................................................................... 39 4.2 O ressurgimento da lesão na Idade Média.................................................. 43 4.3 A lesão no Direito Estrangeiro..................................................................... 45 4.3.1 França.......................................................................................................... 45 4.3.2 Alemanha..................................................................................................... 46 4.3.3 Itália.............................................................................................................. 47 4.3.4 Portugal........................................................................................................ 48 4.3.5 Argentina...................................................................................................... 50 5 A LESÃO NO DIREITO PÁTRIO........................................................................ 52 5.1 As Ordenações do reino e o direito anterior ao Código Civil de 1916.......................................................................................................... 52 5.2 Promulgação do Código Civil de 1916 e a abolição da lesão.................... 54 5.3 A fragmentação: Legislação brasileira posterior ao Código..................... 55 5.4 O advento do Código Civil de 2002.............................................................. 64 6 ESBOÇO DE UMA TEORIA GERAL DA LESÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E DA CONSTITUIÇÃO................................................................. 66 6.1 Conceito......................................................................................................... 66 6.2 Elementos essenciais caracterizadores da lesão...................................... 68 6.2.1 Elemento objetivo para caracterização da lesão: manifesta desproporção patrimonial................................................................................... 69 6.2.2 Elemento subjetivo para caracterização da lesão: premente necessidade ou inexperiência do lesado......................................... 74 6.3 O dolo de aproveitamento: elemento necessário ou não à caracterização da lesão?.................................................................................... 78 6.4 Natureza jurídica do instituto....................................................................... 83 6.5 Momento de aferição da Lesão.................................................................... 86 6.6 O âmbito de aplicação da Lesão.................................................................. 88 6.6.1 A lesão nos contratos aleatórios.............................................................. 88 6.6.2 A lesão nas hastas públicas e nos leilões judiciais................................ 91 6.7 A anulabilidade do contrato pelo reconhecimento da existência de lesão e as consequências daí decorrentes................................................ 92 6.8 Renúncia antecipada à alegação de lesão................................................. 95 6.9 Ampliação da possibilidade de revisão dos contratos viciados por lesão para além de 2002............................................................................... 95 7 CONCLUSÃO................................................................................................... 100 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 104 1 INTRODUÇÃO O Código Civil de 2002 trouxe ao ordenamento jurídico pátrio o instituto da lesão. Não se trata de uma figura nova, uma vez que já existiu no Direito brasileiro. Apesar da incerteza quanto ao exato momento de seu surgimento, sabe-se, entretanto, que sua origem é romana. Segundo as pesquisas históricas já realizadas, o mais provável é que tenha se originado com o Corpus Júris Civilis de Justiniano, que fazia referência a dois fragmentos de Diocleciano e Maximiliano, conhecidos respectivamente como Leis Segunda e Oitava. Controverte-se, porém, sobre a autenticidade desses textos. Como instrumento de flexibilização do Direito Civil, a versão romana do instituto, difundida como laesio enormis, permitia ao vendedor pleitear o desfazimento do contrato de compra e venda, se recebera pelo bem menos da metade do justo preço. Admitia-se, dessa forma, que um contrato formalmente perfeito fosse desfeito em virtude de sua desconformidade com a justiça. Trata-se de um vício com conotação nitidamente objetiva, caracterizada pela desproporção entre o valor da coisa e o preço pago pelo adquirente, distanciando-se de requisitos subjetivos, não obstante seu objetivo fosse o de proteger o contratante mais fraco contra o poderio da contraparte. Adormecida durante longo período, a lesão renasce na Idade Média, pelos trabalhos realizados na Escola de Bolonha, integrando-se aos vícios de consentimento e ganhando uma nova subespécie, a laesio enormissima, caracterizada quando a desproporção atingisse dois terços do preço justo, acarretando a inexistência do pacto e não a sua rescisão. Tal evolução se deve, em grande parte, as ideias de Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, dentre outros. Além da moral e da equidade que deveriam nortear as avenças, agora se fazia presente o espírito cristão na forma de caridade. Foi desenvolvida a doutrina do justo preço, que proibia obter-se, em um contrato, proveito excessivo em prejuízo do outro contratante. A Idade Moderna foi marcada pelas ideias iluministas, muitas delas no sentido de privilegiar o ser humano, enaltecendo profundamente o espírito individualista dentro do Direito. Nessa época, o princípio da autonomia da vontade no contrato foi tido como dogma inafastável, bem como o princípio da igualdade entre as partes, não obstante, na maioria das vezes, esse se tratar de igualdade meramente formal. A lesão passou então a ser severamente criticada e vista como um instituto antipático e arcaico, uma vez que preconizava a proteção de uma das partes no contrato, o que, dentro das ideias da época, atacava a faculdade da livre disposição contratual. Além disso, os teóricos viam a lesão como um instituto que poderia abalar a segurança das relações jurídicas em geral, na medida em que poderia ocorrer a anulação do contrato, ainda querealizado sob a observância de todos os requisitos legais formais. No ordenamento jurídico brasileiro, a lesão encontrava previsão nas Ordenações do Reino, delimitando os conceitos de lesão enorme e enormíssima. Tais ordenações permaneceram em vigor durante muitos anos após a proclamação da independência, aplicáveis não só aos contratos de compra e venda, mas também a outros negócios, sendo revogadas aos poucos. Sucede que os ideais do liberalismo não demoraram a se instalar em solo pátrio. O individualismo se impregnava entre os juristas repelindo a lesão. No Código Comercial de 1850, a figura não encontrou lugar, não havendo a possibilidade de anulação por lesão nas compras e vendas entre comerciantes. Os projetos de Código Civil, em sua maioria, também não agasalharam a lesão ou quando o faziam eram em hipóteses bastante restritas. Dessa forma, a lesão, que era disciplinada pela codificação filipina, foi banida do Direito positivo pelo Código Civil de 1916, o qual, fiel às convicções do autor de seu anteprojeto, absorveu os ideais europeus e excluiu a figura do diploma oitocentista. Após o advento do Código Civil de 1916, nascido velho, a Europa convulsionou-se sob a primeira Grande Guerra, de cujo ventre surgiram profundas mudanças econômicas e sociais, com amplos reflexos nas concepções jurídicas. Com a evolução do capitalismo, da industrialização crescente e a criação de grandes grupos empresariais, agravou-se a desigualdade econômica. Consequentemente, o contrato, com as vestes de um ato emanado de vontades livres e iguais, continha muitas vezes uma desproporcionalidade de prestações ou defeitos em tal grau que ofendia gravemente aquele ideal de justiça que é a última ratio da própria ordem pública. As sucessivas crises que o mundo passou a sofrer acabaram por debilitar os outrora sólidos e rígidos princípios liberais. Com efeito, percebeu-se a necessidade de, ao menos em termos legislativos, garantir-se proteção às partes menos favorecidas economicamente nos contratos. Por isso mesmo, logo após a sua entrada em vigor a codificação começava a perder espaço para uma legislação especial que visava a responder exigências de cunho social que o texto de 1916 não estava apto a suprir. Com isso, iniciou-se a edição de uma legislação que procurava estabelecer tal proteção. Vários diplomas legislativos surgiram, destacando-se a Lei da Usura (Decreto n. 22.626⁄ 33), que limitou a cobrança de juros, e as Leis de Economia Popular. Quanto às últimas, a doutrina que admitia a existência da lesão no Direito brasileiro entendia que o instituto já se fazia presente novamente com essas normas, mais precisamente no artigo 4°, "b", da Lei n. 1521 ⁄ 51. Entretanto, não se tratava mais da lesão enorme, mas sim da lesão usurária. Após a ocorrência das duas guerras mundiais, o Código, gradativamente, perde lugar para legislações esparsas, deixando de exercer a posição centralizadora do ordenamento privado. A herança deixada pelos conflitos ocorridos na primeira metade do século XX, além das desigualdades geradas pelo liberalismo, reflete no surgimento de uma consciência mundial pela necessidade de respeito aos direitos humanos. Com a promulgação da Constituição da República de 1988, diploma de cunho solidarista, despatrimonializado e hábil a provocar uma reviravolta no Direito Civil, surge a concepção de que a pessoa deve prevalecer sobre interesses meramente patrimoniais. À luz da Carta Magna é buscada a funcionalização dos institutos do Direito Privado, os quais se tornaram instrumentos da realização do projeto constitucional, devendo ser aplicados após juízos de valor espelhados na tábua axiológica constitucional. Nesse contexto, modifica-se substancialmente a teoria contratual clássica, na qual imperavam princípios individualistas, como a liberdade contratual, obrigatoriedade dos efeitos e relatividade, surgindo novos pilares, reconhecidos como sociais, dos quais se destacam a função social do contrato, a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual, que mitigam e acabam por relativizar a influência daqueles. O indivíduo tem sua esfera de liberdade diminuída, através de uma autonomia que passa a ser privada, já que a ordem jurídica contemporânea não tutela atos contrários aos valores constitucionais. É nessa perspectiva, a partir de uma nova visão das relações contratuais, que ocorre o ressurgimento da lesão no ordenamento jurídico pátrio. Percebe-se que em todas as épocas e em todos os povos, o anseio pela realização da justiça, tem sido uma constante inspiradora da construção doutrinária e informativa do Direito Positivo. O Código Civil de 2002, ao reinserir na sistemática do Direito Privado, em caráter geral, o vício da lesão, inserido entre os defeitos do negócio jurídico, está sintonizado com os rumos claramente traçados pelo direito comparado e com a própria evolução sinalizada pelo direito brasileiro, em que a pessoa humana exsurge como valor fundamental. Diante disso, justifica-se o desenvolvimento do estudo da lesão, à luz do ordenamento civil-constitucional brasileiro, buscando prestar uma singela contribuição para a construção das bases dogmáticas do instituto, inserido como novo defeito do negócio jurídico. Compreendê-lo significa decifrar parte do enigma que circunda os paradigmas jurídicos contemporâneos, sobretudo no tocante à teoria dos contratos. Iniciamos o presente trabalho com uma breve abordagem acerca do Direito Civil na perspectiva constitucional, para em seguida traçar a evolução da Teoria Contratual, destacando os seus novos princípios informadores, que se reúnem aos princípios tradicionais, relativizando-os para tornar o contrato um instituto mais de acordo com a ordem civil-constitucional, fundada na dignidade da pessoa humana e numa visão despatrimonializada e solidarista. O histórico da lesão é abordado adiante, oportunidade em que se busca traçar a linha evolutiva do instituto, desde o Direito Romano, passando pela Idade Média, pelo Direito Comparado, bem como pelo seu ingresso no ordenamento brasileiro e o seu desaparecimento, com a edição do Código Civil de 1916. O ressurgimento da lesão também será abordado, refazendo-se de forma concisa e breve o trajeto percorrido a partir do Decreto-lei n°869 ⁄ 33 até o Código Civil de 2002, passando pelo Código de Defesa do Consumidor. O sexto capítulo volta-se a uma análise da lesão, à luz do Código Civil e da Constituição da República. Depois da tentativa conceitual, procuramos revelar os seus elementos essenciais, requisito objetivo e subjetivo para a sua caracterização, apresentando nossa posição de que o aproveitamento não integra o conteúdo do defeito na ordem jurídica vigente. Em seguida será examinada a natureza jurídica do instituto, o momento de aferição e o âmbito de aplicação do defeito, enfrentando-se a questão da sua incidência nos contratos aleatórios, nos leilões judiciais e nas hastas públicas. Este capítulo prolonga-se com a análise da sanção preferencial atribuída pelo texto legal ao negócio lesionário, qual seja, a invalidade, com o exame das consequências da anulabilidade e da renúncia antecipada à alegação de lesão. O derradeiro capítulo volta-se à defesa da tese de que o contrato viciado por lesão pode ser revisto, por iniciativa do prejudicado, superando-se a hipótese restrita e insuficiente de revisão prevista no § 2° do artig o 157 do Código Civil de 2002. 2 O DIREITO CIVIL SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL O direito civil construído sob as bases de um individualismo exacerbado, baseado em princípios que se pretendiam completos e imutáveis não resistiu às mudanças sociais que gradativamente se operaram mundialmente a partir do final do século XIX e início do século XX. Verificou-se que a manutenção de um sistema jurídico centrado emconceituações e em valores fechados seria incapaz de solucionar satisfatoriamente as questões que lhe eram postas. O perfil individualista contido nos códigos oitocentistas fundado nos princípios orientadores do Estado Liberal acabou enfraquecido ante a nova realidade surgida no início do século XX. Diante de tal contexto, as Constituições passaram a contemplar em seu texto disposições que objetivavam edificar novos paradigmas jurídicos afetos à sociedade contemporânea. Daí o surgimento de conteúdos constitucionais alusivos a direitos fundamentais, à função social da propriedade, à dignidade humana, à formação de uma sociedade justa e solidária calcada na igualdade real ou substancial, à pacífica convivência entre a prática de estratégias que buscam a erradicação da pobreza e os valores da livre iniciativa, estes últimos tão caros aos pressupostos liberais. (GOMES, 2004, p.91) No Brasil, a promulgação da Constituição de 1988 vem representar a consolidação de uma profunda mudança no que tange aos fundamentos e princípios que orientavam o Direito Privado até então vigente. Institutos jurídicos clássicos como o contrato, a propriedade e família passam a ser interpretados e valorados de acordo com um texto constitucional que tem como epicentro a pessoa humana e a preservação de sua dignidade. Conforme bem pontuado pelo professor Gustavo Tepedino, altera-se a ordem jurídica vigente, o que demonstra, pelo menos em tese, efetivo abandono ao modelo liberal em favor de um modelo de Estado Social intervencionista. (TEPEDINO, 1999, p. 203). A passagem do liberalismo para a construção de um Estado Social traz consigo diversas e significativas mudanças na realidade social e consequentemente na ciência jurídica como um todo. O interesse individual antes preservado a qualquer custo, instituído como verdade universal, perde espaço para a valorização do interesse coletivo, através de uma ótica solidarista e humanizante. É diante dessa perspectiva que vem a lume uma nova ordem jurídica, preocupada e direcionada à valorização de interesses existenciais, onde o Estado intervêm para assegurar que as relações intersubjetivas se pautem por uma igualdade material e não meramente formal. Esse desiderato não poderia ser alcançado através da aplicação estanque de postulados afeitos ao Direito Privado, mas sim através da conjugação, do diálogo e da interação entre o público e o privado. A interpretação do direito público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre o cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instâncias de controle social instituídas em uma sociedade cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinindo os espaços do público e do privado, a tudo isso devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos vindos a lume com a sociedade tecnológica. Daí a inevitável alteração dos confins entre o direito público e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território do direito privado. (TEPEDINO, 2004, p.19). O Código Civil brasileiro então vigente, elaborado sob os auspícios de ideais liberais, de cunho eminentemente individualista e patrimonialista, acaba perdendo espaço como diploma centralizador de todos os temas relacionados ao Direito Privado. A segurança que se almejava com a positivação de um Código unificador apto a solucionar todas as questões privadas sucumbe à realidade social e às inúmeras transformações operadas em uma nova ordem mundial globalizada. Surgem, assim, diversas leis especiais1 destinadas a regular matérias não contempladas pelo sistema codificado. “O grande código, até então auto-suficiente, já não tinha todas as respostas, tornando decisiva a tarefa do intérprete e a busca de normas alternativas de orientação do ordenamento”. (EHRHARDT JUNIOR, 2008, p.23). Com o abandono da antiga dicotomia entre a esfera normativa pública e privada surge o fenômeno que ficou conhecido como a “constitucionalização do direito privado” 2, caracterizado primordialmente pela alteração do centro das relações privadas para o interior do corpo constitucional. Verifica-se que, gradativamente, temas e institutos antes contemplados apenas pelo Código Civil passam a ser objeto de princípios constitucionais e a integrar o cenário constitucional. Seguindo a mesma linha evolutiva “o próprio direito civil, através da legislação extracodificada, desloca sua preocupação central, que já não se volta 1 Segundo explica o professor Gustavo Tepedino, as novas leis que surgem no Brasil a partir dos anos 30, são chamadas de leis especiais em razão de sua técnica, objeto e finalidade de especialização, em relação ao corpo codificado. (2006, p.29) 2 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 1. O texto que primeiro utilizou-se desta expressão, no Brasil, é de Gustavo Tepedino - “Premissas Metodológicas para aConstitucionalização do Direito Civil” (12/03/1992). tanto para o indivíduo, senão para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos dela decorrentes”. (TEPEDINO, 2006, p.29) As relações de Direito Privado passam a ser iluminadas por feixes luminosos que despontam do texto constitucional e dos princípios por ele açambarcados, seja explicita ou implicitamente. De acordo com a percuciente análise de Vicente Ráo, tal fenômeno se consolida em razão da necessidade de que indivíduos menos favorecidos fossem protegidos da concentração progressiva de homens de capitais, culminando em problemas patrimoniais e sociais de crescente interesse coletivo, onde a ascendente padronização dos meios materiais de vida transformou um problema individual em problema coletivo. (RÁO, 1999, p.226). A compreensão da necessidade de uma mudança que coibisse a violência perpetrada ao longo das duas grandes guerras foi essencial para que as Constituições nascidas ao longo do século XX apreendessem a tutela dos direitos fundamentais. A pessoa humana passa a ocupar a posição de valor supremo e a receber um tratamento especial nos diplomas constitucionais classificados como “analíticos”, por disciplinarem matérias que outrora seriam tratadas apenas pelo legislador ordinário. (CAVALIERI FILHO, 2002, p.197-203). A reconstrução do direito privado à luz de regras e princípios constitucionais dá azo à superação do individualismo e do patrimonialismo antes reinantes. Nas objetivas e lúcidas palavras de Pietro Perlingieri a “pessoa prevalece sobre qualquer valor patrimonial” 3, dando vida a um direito civil contemporâneo personalizado e ao mesmo tempo despatrimonializado. (PERLINGIERI, 2002, p.33). Nesse sentido é a lição de Francisco Amaral, ao apontar a personalização como um dos fenômenos que caracteriza o Direito Privado atual: ...personalização do direito civil, no sentido da crescente importância da vida e da dignidade humana, elevados à categoria de direitos e de princípio fundamental da Constituição, donde o reconhecimento de um novo e importante ramo jurídico, o dos direitos da personalidade, direitos fundamentais ou humanos, que 'constituem o núcleo das Constituições dos sistemas jurídicos contemporâneos'. (AMARAL, 2006, p.76). 3 “Se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade fim a sim mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, comvalores)”. A reconstrução do Direito Privado é coroada com a promulgação da Carta Magna de 1988, que estabelece como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, além de fixar como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, através da erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais4. Confiram-se alguns comentários de Antonia Espíndola Longoni Klee: O texto constitucional empreendeu radical transformação no direito civil, elegendo a dignidade da pessoa humana como valor central do ordenamento, que funcionalizou as relações jurídicas patrimoniais. A Constituição, elemento unificador do sistema, está situada no vértice do ordenamento jurídico e, portanto, às suas normas devem se subsumir as demais, num movimento harmonizador, que espelha o fundamento de validade da legislação infraconstitucional. Nas palavras de Tepedino ''é urgente procurar soluções interpretativas que ampliem a proteção da pessoa humana, atribuindo-se a máxima efetividade social aos princípios constitucionais e aos Tratados internacionais que ampliam o leque de garantias fundamentais da pessoa humana'. (KLEE, 2008, p.85) Conforme alerta o professor Gustavo Tepedino, é importante ficar claro que a sistemática de um direito civil constitucionalizado não pode ser analisada como “um mero deslocamento topográfico”. Outros panoramas ou efeitos diretos desta constitucionalização devem ser pontuados, quais sejam: a “eficácia horizontal dos direitos e garantias individuais” estabelecidos na Lei Maior, que demandam do legislador ordinário “produção legislativa compatível com o projeto constitucional”. O referido autor também assevera a necessidade do reconhecimento de “efeitos no plano interpretativo, reclamando uma leitura civil constitucional conforme o texto constitucional”. (TEPEDINO, 2000, p.5-21). Uma das mais importantes conseqüências advindas do processo de constitucionalização do Direito Privado é a incorporação dos direitos e garantias fundamentais como ponto crucial a ser observado pelos particulares nas relações mantidas entre si, nas quais, em certa medida, não haveria espaço de interferência do Estado. (BARATA, 2009, p.187). Percebe-se uma clara mudança de rumos quanto a lógica do sistema. Definitivamente, não há mais como se falar em Direito Civil sem que se busque 4 CF/88. “Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos: III. A dignidade da pessoa humana.; Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade livre, justa e solidária; III. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. amparo na Constituição Federal e em seus princípios. "Ao menos momentaneamente parece inexistir outro caminho a ser trilhado que não o da aferição constitucional das regras civis". (NALIN, 1998, p. 181). A integração entre as esferas do direito público e do direito privado parece, cada vez mais, indissociável. É um caminho sem volta a ser trilhado pelos operadores do direito. A leitura constitucional e principiológica dos contratos e dos negócios jurídicos como um todo, afastada do voluntarismo jurídico e voltada para o solidarismo, faz parte de um esforço para mudar o foco das atenções do direito privado, do patrimônio em direção à pessoa, sua dignidade e seu desenvolvimento. Nutrindo-se desta força normativa atribuída aos princípios constitucionais, a adoção da perspectiva civil-constitucional impõe ao interprete a tarefa de reordenar valorativamente o direito civil, preenchendo as formas conceituais e as categorias lógicas desta área do Direito com o conteúdo axiológico estampado na Constituição. (NEGREIROS, 2002, p.56). Este é o campo fértil em que vem a lume o Código Civil de 2002 e que fornecerá as bases para o desenvolvimento e estruturação do presente trabalho, através do qual se pretende desenvolver uma releitura do instituto da lesão sob a perspectiva civil-constitucional, a fim de adequá-lo à nova ordem instituída. 3 BREVE TRAJETÓRIA DO DIREITO CONTRATUAL Dentre as espécies de negócios jurídicos, o contrato sobressai como a mais importante, por ser aquela cujo uso é de longe o mais difundido, além de ser a que constitui instrumento para promover a circulação de riquezas. O contrato é, sem dúvida, o negócio que mais de perto interessa ao objeto desta dissertação, uma vez que é precisamente nele, ─ o negócio bilateral por excelência – que se poderá notar a lesão. Sobram razões, portanto, para que nos detenhamos um pouco no seu estudo, notadamente na breve abordagem de sua concepção tradicional, para em seguida desenvolver a identificação de suas transformações, da sua conformação atual e dos novos princípios que o informam, de conotação nitidamente social. 3.1 A concepção clássica do contrato e seus princípios tradicionais Desnecessária a afirmação de que o contrato é um dos institutos jurídicos mais importantes da sociedade contemporânea. Não obstante seja presença constante no atual cenário jurídico-social, o contrato não é filho da modernidade. O fenômeno contratual vem sendo analisado ao longo dos tempos, muito embora não seja possível afirmar, com certeza, o exato momento de seu surgimento. Os estudos relativos aos contratos sugerem que a elaboração de seu conceito se deu ao longo dos tempos, lastreado na expectativa social. Por razões de ordem meramente práticas, lastreadas na efetiva influência exercida sobre a forma ocidental de pensar o direito, o presente estudo terá início pelo Direito Romano, ordenamento que deu início à estruturação do instituto. Apesar de não existir entre os romanos um instituto jurídico que englobasse as diversas operações econômicas, já se mostrava presente a idéia de convenção, da qual eram espécies os pactos e os contratos. Em matéria de contratos o ordenamento jurídico romano exigia que as formas fossem obedecidas ainda que não retratassem exatamente a vontade das partes, fato que distancia o contrato romano de sua atual concepção na contemporaneidade. (VENOSA, 2003, p.329). Entendia o romano não ser possível contrato sem a existência de elemento material, uma exteriorização da forma, fundamental na gênese da própria obligatio. Primitivamente, eram as categorias de contratos verbis, re ou litteris, conforme o elemento forma se ostentasse por palavras sacramentadas, ou pela entrega efetiva do objeto ou pela inscrição no codex. Somente mais tarde, com a atribuição de ação a quatro pactos de utilização freqüente (venda, locação, mandato e sociedade), surgiu a categoria dos contratos que se celebravam consensu, isto é, pelo acordo puro das vontades. Somente aqueles quatro contratos consensuais eram reconhecidos como tais. Nos demais, prevalecia sobre a vontade materialidade de sua declaração, que haveria de obedecer rigidamente ao ritual sagrado: a inscrição material no livro do credor (contratos litteris), a traditio efetiva da coisa (contratos re), a troca de expressões estritamente obrigatórias (contratos verbis) de que a policitatio era o mais freqüente exemplo. (PEREIRA, 2000, p.51). Consoante destacado por Caio Mário em suas Instituições de Direito Civil, característica típica dos contratos no direito romano era a rigidez no que toca à observância das formas. O abrandamento quanto ao formalismo só ocorre na história dos romanos justamente quando se passa a admitir alguns contratos consensuais, como a compra e venda. Registre-se, por oportuno, que foi nos idosda Idade Média que se firmou a conceituação de contrato como acordo de vontades desapegado ao formalismo tão caro ao direito romano. A postura de valorização do consenso em prejuízo da forma foi, sem dúvida, influenciada pelo direito canônico, o qual se abeberava da teologia cristã para buscar fundamentos que justificassem a imperiosidade de se dar cumprimento à promessa firmada, sob pena de incorrer na prática de um pecado. Interessante notar que, a teoria da vontade baseada na razão, não atrelada ou subordinada a uma imperiosa vontade superior, só vem a ser realmente desenvolvida pelo trabalho dos enciclopedistas5, que precederam a Revolução Francesa. Foi através do pensamento de tais filósofos que a autonomia da vontade foi agregada à obrigatoriedade das convenções. (WALD, 2002, p.182). Esses enciclopedistas lutavam exatamente contra um regime histórico antiquado, e, para tanto, usaram armas como o Iluminismo, que representou uma ruptura com os rígidos padrões morais ou religiosos, no sentido de influenciar uma 5 Denominação dada aos filósofos do século XVIII, como Montesquieu, Diderot, Voltaire etc. (SIDOU, J.M. Othon). Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.312. nova atitude perante a vida. O racionalismo iluminista, no seu apogeu, acabou com uma tradição de injustiças, desmascarando a superstição das bruxas, abolindo a tortura e erguendo bem alto o estandarte da humanidade. (SANTIAGO, 2006, p.110). Foi com o advento do Estado liberal, individualista e intolerante às intervenções estatais que o regime absolutista instaurado pelas monarquias declina vertiginosamente. Consolidado o liberalismo, o século XIX apresenta-se como o momento mais propício para o desenvolvimento da clássica e tradicional teoria contratual, que tem a autonomia da vontade como dogma supremo. (SANTIAGO, 2006, p. 110). O Código de Napoleão, nascido em 1804, foi filho legítimo da Revolução Francesa de 1789, trazendo em sua gênese as marcas e traços dos ideais filosóficos, políticos e econômicos que nortearam o aludido movimento. Os sustentáculos do Code podem ser referenciados como a intangibilidade dos contratos e o poder absoluto da propriedade privada. (SANTOS, 2002, p.28). Em razão de ser o primeiro diploma a servir de modelo para a codificação da modernidade, o Código Civil Francês exerceu grande influência sobre os diplomas civilísticos que vieram a ser editados nos países do ocidente. A ampla liberdade de atuação negocial abre caminho para o surgimento do regime capitalista de produção, onde o contrato, em sua concepção mais clássica, ocupa a posição de principal mecanismo de circulação de riquezas, não podendo ser alvo da ingerência do Estado. Consagra-se assim, o princípio da autonomia da vontade, e, também os postulados da obrigatoriedade, conhecido como pacta sunt servanda, da relatividade dos efeitos dos contratos e do consensualismo, todos integrando o cerne da teoria contratual clássica, como pilares máximos de sua estrutura. 3.2 A crise da concepção clássica: as transformações da realidade contratual Nessa etapa do presente trabalho será estudado o processo de crise da concepção tradicional e de renovação da teoria contratual. Cabe indagar: como se caracteriza a crise da concepção clássica? Quais os principais fatores que influenciaram a transformação da teoria contratual? Os fatos sociais, os institutos jurídicos, as pessoas e o próprio Direito não conseguem se manter imunes ao transcurso do tempo e à constante mutação dos fenômenos sociais que se instauram na vida em coletividade. Os contratos não escaparam dos efeitos destas alterações sociais ocorridas principalmente a partir do século XX. A multiplicidade de relações jurídicas advindas da concentração populacional nos centros urbanos e a inviabilidade prática em se manter um rito contratual individualizado sinalizam a necessidade de serem readequados os fundamentos basilares que sustentavam a teoria contratual clássica. O rápido avanço do capitalismo, que buscava o lucro a qualquer custo, demonstrou que o sistema até então vigente era incapaz de proteger e tutelar os indivíduos. Nesse diapasão, o contrato, que no sistema liberal era considerado expressão de liberdade e de cidadania, se transformou em mecanismo de opressão, de injustiças e de desigualdade, culminando com um sentimento geral de insatisfação pelas classes menos favorecidas da sociedade. O aludido contexto social e as mazelas dele decorrentes, onde não eram garantidas sequer condições mínimas de uma vida com dignidade, denunciam a falência do modelo liberal de Estado, com reflexos diretos e incontestáveis nas relações contratuais que se firmavam. Chama-se a atenção para o fato de que vários países europeus encontravam-se destruídos após o término da primeira grande Guerra, o que também contribuiu para uma reflexão acerca da efetividade dos institutos jurídicos e dos modelos políticos apregoados pelo liberalismo. O início da ascensão do modelo de Estado Contemporâneo, disposto a intervir nos campos político, econômico e social é marcado pelo surgimento de duas Constituições referenciadas como marco histórico. A primeira delas no México, no ano de 1917 e a segunda, conhecida mundialmente como Constituição de Weimar, no ano de 1919. A crença de que a igualdade formal entre os indivíduos assegurava o equilíbrio entre as partes contratantes acabou desacreditada, fazendo com que o Estado interviesse para limitar a liberdade de contratar e, sobretudo a liberdade de determinar o conteúdo da relação contratual. Nesse cenário é que o contrato assiste ao declínio de seus fundamentos antes basilares, quais sejam: a autonomia da vontade e a ampla e irrestrita liberdade contratual. Diante desse contexto é possível afirmar que as idéias e valores proclamados pela burguesia não conseguiram preservar as vestes com as quais desfilaram durante o transcorrer do século XIX. Não só o capitalismo foi alvo de mudanças, como também o foi à sociedade como um todo. Os negócios jurídicos entabulados por indivíduos livres e formalmente iguais são substituídos por uma sociedade de consumo, com técnicas contratuais de massa, que suprimem a liberdade contratual deixando ao consumidor apenas a alternativa de adquirir ou não os bens, produtos e serviços a que são expostos. A rapidez na celebração dos contratos, exigida pela economia de consumo, e a necessidade de criar negócios homogêneos a serem celebrados com grande número de pessoas fazem com que não haja tempo para uma discussão detalhada das cláusulas contratuais, e consequentemente a parte mais forte no negócio acaba por impor à outra parte as condições consideradas essenciais para a contratação. Isso gera a padronização das cláusulas contratuais. Por outro lado, o hipossuficiente econômico permanece anônimo nesses negócios, pois não há interesse na identificação do indivíduo senão nos casos de inadimplemento. Toda a estratégia dos negócios é dirigida para uma massa de pessoas e não para o indivíduo em si. Como ressalta Enzo Roppo, para servir o sistema da produção e da distribuição de massa, o contrato deve tornar-se autônomo da esfera psicológica e subjetiva do seu autor. Essa circunstância é responsável pelo fenômeno da despersonalização dos contratantes. (SANTIAGO, 2006, p. 43). Como observa o professor César Fiúza, o surgimento dos contratos de massa, dos contratos de adesão, dos contratos de comércio eletrônico e das cláusulas gerais levam os juristas à um estado de perplexidade. As contratações não ocorrem como antes. "O modelo tradicional de contrato estava morrendo para ceder lugar às novas". (FIUZA, 2003, p.26). A antigaliberdade contratual e liberdade de contratar são mitigadas na medida em que a intensa globalização e a velocidade das relações não permitem discussões, negociações e ponderações envolvendo o conteúdo das disposições contratuais. Os sujeitos, especialmente os consumidores, se quiserem desfrutar dos bens e serviços existentes no mercado devem aderir a contratos e a cláusulas uniformes, unilateralmente predeterminadas, que coloca os contratantes em clara posição de inferioridade. Diante desse quadro, em função da diversidade de relações jurídicas surgidas da concentração de pessoas nas cidades e, especialmente pela impossibilidade de contratação, quanto ao conteúdo, na sua forma individualizada, verifica-se a imperiosa necessidade de revisão dos principais fundamentos e postulados da Teoria Contratual Clássica que não poderiam permanecer acorrentados aos ideais e dogmas liberais. Exatamente por isso, os princípios da autonomia da vontade e obrigatoriedade dos pactos perdem parte do seu prestígio, atingidos que foram em suas bases. Vários princípios clássicos, tidos como intocáveis, foram relativizados, revistos, relidos, para que pudessem se adequar à nova realidade econômica e social já instaurada no mundo dos fatos. Como se pode concluir, a mesma Revolução Industrial que gerou a principiologia clássica, que aprisionou o fenômeno contratual nas fronteiras da vontade, este mesma Revolução trouxe a massificação, a concentração e, como conseqüência, as novas formas de contratar, o que gerou, junto com o surgimento do Estado Social, também subproduto da Revolução Industrial, uma checagem integral na principiologia do Direito dos Contratos. Estes passam a ser encarados não mais sob o prisma do liberalismo, como fenômenos da vontade, mas antes como fenômenos econômico-sociais, oriundos das mais diversas necessidades humanas. A vontade, que era fonte, passou a ser veio condutor. (FIÚZA, 2003, p. 27). Vale notar que os interesses egoísticos das partes não se afiguram mais como os únicos relevantes para a ordem jurídica, a qual passa a exigir que certos aspectos de interesse social e econômico sejam observados, em conformidade com as imposições que advêm de um Estado que intervêm nas relações entre os particulares. Nas claras palavras de César Fiuza "nasce a teoria preceptiva" através da qual "as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes as assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas conseqüências econômicas e sociais". (FIUZA, 2003, p. 27). Portanto, dentro dessa nova perspectiva, poder-se-ia afirmar que no Estado Democrático de Direito, a segurança jurídica se funda nos princípios e garantias constitucionais, como a dignidade da pessoa humana. A autonomia da vontade, antigo sustentáculo do direito contratual, cede lugar à autonomia privada, limitada por normas que visam proteger o ser humano, este sim, verdadeiro pilar de sustentação da ordem jurídica e para onde se voltam todas as atenções. . 3.3 A evolução do contrato: o surgimento de uma nova teoria contratual Foi a partir da crise enfrentada no final do século XIX e das transformações econômicas instauradas durante o século XX que se construiu a real convicção de que os princípios contratuais clássicos, com sua conotação absoluta, seriam incapazes de solucionar as mazelas e conflitos instaurados pelo liberalismo voraz. Conforme bem pontuado por Junqueira Azevedo, podemos verificar a ocorrência de uma"acomodação das camadas fundamentais do direito contratual", numa "época de hipercomplexidade", em que novos elementos são incorporados sem eliminar totalmente os anteriores. O mesmo doutrinador ainda pontua que foram herdados do século XIX três princípios do direito dos contratos, todos baseados no dogma da autonomia da vontade, quais sejam, o da liberdade contratual, o da obrigatoriedade dos efeitos do contrato (pacta sunt servanda) e do da relatividade dos efeitos contratuais. A estes postulados clássicos se unem três outros princípios, frutos dos tempos modernos, quais sejam, o equilíbrio econômico do contrato, a função social e a boa-fé objetiva. (AZEVEDO, 1998, p. 115-115). Sobreleva destacar que esta nova matriz principiológica não suprime os antigos princípios liberais, cuidando apenas de impor limitações claras a seu conteúdo e alcance. A professora Teresa Negreiros ensina que na concepção civil-constitucional, a liberdade contratual assume novos traçados, segundo os quais a livre determinação do conteúdo do contrato submete-se à observância das regras e dos princípios constitucionais, fato que, em última análise, leva a "conceber o contrato como um instrumento a serviço da pessoa", tendo em vista que "o direito dos contratos não está à parte do projeto social" contemplado pelo Texto Constitucional. Trata-se de "dar um sentido constitucional [...] à evolução histórica do conceito de contrato", que vai de encontro à concepção tradicional. (NEGREIROS, 2002, p.106-109). A alteração quanto ao sentido e alcance dos princípios contratuais clássicos é reflexo direto e imediato de uma nova visão que se instaura acerca do Direito Privado. Abandona-se uma interpretação fechada e nitidamente patrimonial dos institutos que o compõem, passando a imperar uma conotação mais socializante. Reconhece-se que os bens que integram o mundo material não podem ser superiores e nem mais importantes que a dignidade e a proteção da pessoa humana. É dentro desse contexto que surgem os princípios da Função Social do contrato, da Boa-fé objetiva, do Equilíbrio Contratual (equivalência material), da Justiça Contratual e da Autonomia Privada. O contrato, negócio jurídico bilateral por excelência, deve ser revisto à luz desta nova principiologia civil-constitucional que se apresenta. Também é imperioso que o atual interprete do Direito Privado tenha em mente que os princípios contratuais devem ser utilizados como verdadeira fonte do direito e não como mero comando integrativo ou supletivo. O antigo sistema fechado, largamente utilizado pelas codificações oitocentistas encontra-se ultrapassado. Foi substituído por um sistema aberto, dotado de mobilidade e que adota conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais no objetivo de atingir uma operabilidade. 3.3.1 A função social do contrato Pretendendo-se traçar os rumos da aplicação do instituto da lesão conforme a ordem constitucional e os novos princípios contratuais abraçados pelo Código Civil de 2002, faz-se imprescindível delinear os contornos da chamada função social do contrato, definindo as conseqüências de sua efetivação no campo negocial. Encontrando fundamento nos princípios constitucionais da solidariedade, da dignidade da pessoa humana, função social da propriedade6 e livre iniciativa, o princípio em comento é um dos responsáveis pela necessária releitura que se impõe aos princípios contratuais clássicos como o da força obrigatória e o da autonomia da vontade, visando a preservação dos interesses coletivos e não apenas dos interesses meramente individualistas e egoísticos dos contratantes. A liberdade 6 Segundo os ensinamentos da professora paulista Giselda Hironaka, apesar da Carta Magna de 1988 não ter previsto de forma expressa o princípio da função social dos contratos, cuidou o legislador constituinte de posicionar-se taxativamente acerca da função social da propriedade, sendo que a primeira decorre justamente da segunda. São as palavras da professora: "a qualidade de função social, não a possui apenas a propriedade, senão também projeta-se ela sobre outros institutos do Direito Privado". (HIRONAKA, 1988, p. 145).antes ampla e irrestrita cede lugar a uma autonomia que deve adequar-se aos parâmetros constitucionais, aos direitos fundamentais, ao equilíbrio contratual e à justiça contratual. A aparente dicotomia existente entre a função social e a liberdade de contratar é pontuada por Teresa Negreiros, para quem o princípio em estudo redefine os alcances dos antigos postulados contratuais, "constituindo-se em um condicionamento adicional imposto à liberdade contratual" e, na mesma esteira, em "elemento de qualificação que varia conforme a concreta correlação de interesses em causa", tornando o contrato um "instrumento de realização do projeto constitucional". (NEGREIROS, 2002, p.207-209). Segundo as lições de Antonio Junqueira Azevedo, a função social do contrato "é preceito destinado a integrar os contratos numa ordem social harmônica, visando impedir tanto àqueles que prejudiquem a coletividade quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas". (AZEVEDO, 1998, p. 117). Flávio Tartuce oferta o seu conceito do princípio nos seguintes moldes: (...) entendemos ser a função social dos contratos verdadeiro princípio geral do ordenamento jurídico, abstraído das normas, do trabalho doutrinário, da jurisprudência, dos aspectos sociais, políticos e econômicos da sociedade. A função social do contrato é um preceito básico, explícito no Código atual, verdadeira fonte secundária do direito pátrio, pelo qual o art. 4°, do LICC prevê. Em reforço, a função social do contrato é princípio que interessa à coletividade, constituindo tanto o art. 421 quanto o 2.035, parágrafo único, ambos do novo CC, normas de ordem pública, inafastáveis por convenções ou disposição contratual. (TARTUCE, 2005, p.138). De acordo com a sistemática jurídica em vigor, não se pode admitir a existência de uma faculdade jurídica desprovida de uma respectiva função social. Os direitos possuem funções sociais a serem materializadas7. Os interesses do contratante credor em que haja o cumprimento da prestação assumida pelo devedor não podem legitimar uma contratação que seja prejudicial ao bem comum. Nesse ângulo, "além dos interesses do credor, e transcendendo mesmo os interesses conjuntos do credor e do devedor, estão valores maiores na sociedade, que não podem ser afetados". (NORONHA, 2003, p. 27). 7 Nesse sentido, veja-se Fernando Noronha. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 83. Assim como ocorre com a função social da propriedade, a atribuição de uma função social ao contrato insere-se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos: atualmente admite-se que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função. (...) Portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto concedido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, podendo atingir também a esfera dos interesses alheios. (MARTINS-COSTA, 2002, p. 158). No esteio da Constituição Federal e do Código Civil, Tepedino acentua que "a função social torna-se razão determinante e elemento diferenciador da liberdade de contratar, na medida em que esta só se justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da República". Daí, conclui, a nota essencial do princípio em estudo recai sobre a imposição aos particulares de atender, em suas relações privadas, "a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionem com o contrato ou são por ele atingidos", tais como aqueles referentes ao meio ambiente, aos consumidores, à livre concorrência etc. (TEPEDINO, 2002, p. 122). Nessa perspectiva, a proteção jurídica outorgada pelo Direito se efetivará se a liberdade de contratar não se compatibilizar aos limites impostos pelo princípio da função social do contrato. A positivação do princípio da função social em território brasileiro denota clara preocupação de que os institutos antes açambarcados apenas pelo Direito Privado, como é o caso do contrato, além de promover a circulação de riquezas, sejam mecanismos de concretização da dignidade da pessoa humana, prestando-se à árdua tarefa de contribuir para a redução das desigualdades existentes em nossa sociedade. A função social do contrato, real elo entre o direito contratual e os princípios constitucionais, garantindo a humanização dos pactos e a estabilidade das relações contratuais está em perfeita consonância com o instituto da lesão, previsto como um mecanismo de imposição da consciência social, em benefício de um equilíbrio entre a distribuição das riquezas acumuladas pelos seres humanos. "Em uma avença não aleatória, na qual uma parte se expõe ao risco de sofrer perdas irreparáveis ou ao enriquecimento sem trabalho, há manifesta inutilidade social" (RIPERT, 2002, p.65), contrária aos ditames da justiça social. 3.3.2 Boa-fé objetiva Antes mesmo da aprovação do Código Civil de 2002, a doutrina brasileira já se posicionava favorável à adoção do princípio da boa-fé objetiva como postulado integrante do ordenamento jurídico pátrio. Após a edição do atual Código, vários estudiosos voltaram-se à pesquisa acerca dos meandros que envolvem o princípio em questão, o qual encontra previsão expressa no artigo 422, com o seguinte comando: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé." Interessante observar que antes mesmo do advento do Código Civil de 2002, o ordenamento jurídico pátrio já fazia referência a boa-fé como critério interpretativo, especificamente contemplada nas letras do artigo 131, Código Comercial brasileiro. Sucede que o referido dispositivo permaneceu sem emprego prático "por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação pelos tribunais". (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p. 21). Foi com o advento da legislação consumerista que a boa-fé conquistou a atenção dos juristas pátrios. O Código de Defesa do Consumidor, salienta Cláudia Lima Marques, "trouxe como grande contribuição a exegese das relações contratuais no Brasil a positivação do princípio da boa-fé objetiva". (MARQUES, 1999, p.185). Contudo, alguns doutrinadores, como Martins Costa, defendem que, mesmo antes do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da boa-fé já encontrava abrigo no campo legislativo brasileiro, assumindo a condição de princípio positivado, decorrente do princípio maior da solidariedade social. (2000, p. 409). Conceituar a boa-fé8 em seus diversos significados é tarefa árdua e complexa que escapa aos objetivos do presente trabalho, onde será traçado o perfil geral do 8 Boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva são fenômenos distintos que não se confundem. A boa-fé subjetiva "diz respeito a estado psíquico, anímico, relacionado com o conhecimento de certa circunstância, a consciência de certo fato ou a convicção de um dado modo de agir. Refere-se, normalmente, ao campo dos direitos reais. A boa- fé objetiva, lado outro, manifesta uma regra de conduta, um padrão ou standard imposto pelo Direito a pessoas que se encontram em situação de contato social qualificado, típico das relações contratuais. Daí Mário Júlio de Almeida Costa invocar a distinção entre o principio da boa-fé (objetiva) e o estado ou situação de boa-fé (subjetiva) ". (COSTA, 2000, p. 102). aludido princípio, em conformidade com a concepção proclamada pela doutrina atual, sem a pretensão de esgotamento ou detalhamento mais acurado do tema.Cláudia Lima Marques assim define boa-fé objetiva: Significa uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem causar lesão ou vantagens excessivas, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes. (MARQUES, 1999, p. 106). O princípio da boa-fé objetiva impõe aos contratantes muito mais que o simples cumprimento da prestação ou obrigação principal entre eles entabulada. Cria deveres que, embora não estejam expressamente relacionados no contrato, decorrem implicitamente dele, recebendo a alcunha de deveres anexos, satelitários, secundários, laterais ou instrumentais. Tais deveres devem ser respeitados para um bom e adequado cumprimento dos objetivos contratuais, tendo por base a lealdade e a honestidade exigidas em quaisquer relações. Os principais deveres anexos são o de informação, probidade, cooperação, cuidado, proteção, sigilo, transparência, oportunidade de conhecimento do conteúdo do contrato e dever de prestar contas. É importante destacar que os deveres decorrentes da boa-fé são múltiplos e possuem diferenças entre si. Por isso mesmo, não são identificáveis em abstrato. Dessa forma, o que se pode fazer é relacionar uma série deles, especialmente aqueles que mais comumente se fazem presentes na prática negocial, mas não de forma taxativa. Somente em concreto é possível cominar a uma pessoa determinada, envolvida numa certa relação obrigacional, algum ou alguns deveres que a boa-fé impõe, uma vez que eles decorrem das circunstâncias específicas de cada relação. Todo e qualquer contratante, por certo, deverá agir de forma a manter indene a contraparte, prestar-lhe todas as informações relevantes acerca do negócio e colaborar para que o contrato atinja o seu objetivo socioeconômico. Mas exatamente que medidas deverão ser tomadas para proteger o outro contratante, que informações são relevantes e devem ser fornecidas e quais podem ser omitidas, que atos deverão ser praticados a fim de que a avença possa cumprir adequadamente a sua finalidade, tudo isso só se pode identificar em cada caso concreto, à luz de suas peculiaridades. Assim, em cada situação, a boa-fé obrigará as partes a certos deveres, que naquele caso se tornam necessários para atingir a finalidade a que o princípio se dirige: incorporar às relações obrigacionais imperativos ético-jurídicos que revelam os fundamentos axiológicos do ordenamento constitucional. (CARDOSO, 2008, p. 102). São apontadas como funções principais atinentes a boa-fé objetiva a de interpretação, integração e limitação de direitos, também conhecida como função controladora, sendo todas elas sobremaneira importantes para a construção de uma teoria contratual sedimentada em bases constitucionais. Relativamente à função interpretativa, o princípio da boa-fé objetiva será de suma relevância quando o intérprete se deparar com uma divergência acerca do conteúdo de cláusulas contratuais ambíguas, contraditórias ou obscuras, determinando que os pactos sejam considerados de acordo com o seu objetivo aparente, a não ser que o destinatário conheça a verdadeira intenção do declarante. (FIÚZA, 2003, p.313). Diante de duas interpretações possíveis para uma mesma estipulação contratual, deve o intérprete privilegiar, como determina o artigo 85 do Código Civil, aquela que estiver mais de acordo com a verdadeira intenção das partes. A interpretação que deve prevalecer, no entanto, é aquela que exprima a intenção das partes, que esteja de acordo com a exigência de atuação segundo a boa-fé. (PEREIRA, 2001, p.80). A função interpretativa do princípio em estudo resta contemplada em dois dispositivos do Código Civil atualmente em vigor. O primeiro deles é o já citado artigo 422 e o segundo é artigo 113, que contém a seguinte redação: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Através da conjugação dos dois comandos legais buscar-se-á impedir que o contrato atinja finalidade contrária àquela que, razoavelmente, em face de seus objetivos econômicos e sociais, seria razoável esperar. Por sua vez, a segunda função do princípio da boa-fé objetiva é a de integração. Situações ocorrem em que, além da estipulação de cláusulas ambíguas e contraditórias, os negociantes se omitem na previsão de alguma cláusula atinente ao contrato. É aí que se faz presente a função integrativa, incumbindo-se de acrescentar o que foi esquecido pelas partes, inteirando a vontade por elas manifestada, em observância a um critério objetivo deduzido das exigências da boa- fé, para que seja suprida a eventual falha contratual. A última função a ser apresentada é a de limitação de direitos, também conhecida como função controladora do exercício de direitos subjetivos. Intimamente relacionada às limitações impostas pela liberdade contratual, pela autonomia privada e pela teoria do abuso de direito, impede que o indivíduo exceda os limites necessários ao exercício de suas prerrogativas, invocando arbitrariamente uma posição jurídica favorável, sob pena de agir ilicitamente. (FIÚZA, 2003, p. 313). A função limitadora de direitos, tal como apresentada, aproxima a boa-fé objetiva à figura conhecida como abuso de direito, determinando que os contratantes adotem uma conduta coerente, proba, honesta e leal, abstendo-se de ao longo da relação contratual, adotar um posicionamento ou uma postura contraditória à que vinha sendo apresentada, com o intuito de se locupletar. Nos termos do disposto no artigo 187 do Código Civil brasileiro: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Discorrendo sobre as funções da boa-fé, o professor Gustavo Tepedino leciona que: O princípio da boa-fé funciona como o elo entre o direito contratual e os princípios constitucionais. Atribuem-se-lhe, do ponto de vista técnico, três funções principais: (i) função interpretativa dos contratos; (ii) função restritiva do exercício abusivo de direitos; e (iii) função criadora de deveres anexos à prestação principal, nas fases pré-negocial, negocial e pós- negocial. (...) Pode-se afirmar, portanto, que, seja em sua função interpretativa, seja na criação de deveres anexos, ou na restrição de condutas abusivas, a boa- fé objetiva diz sempre respeito à preservação do conteúdo econômico do negócio. Tais deveres não servem a tutelar o interesse privado e individual de cada um dos contratantes, mas o interesse mútuo que se extrai objetivamente da avença. (TEPEDINO, 2006, p.252). Ventilada a acepção, o conteúdo e o alcance inerentes ao princípio da boa-fé objetiva, conclui-se que, à luz das belas palavras do professor Nelson Rosenvald, "a boa-fé se assemelha a uma janela que se abre para deveres de conduta, modelo de comportamento e uma gama de valores que radicam imediatamente no princípio da solidariedade e, mediatamente, no princípio da dignidade da pessoa humana". (2005, p. 167). 3.3.3 Justiça contratual No Livro V da Ética a Nicômaco, Aristóteles estabelece o que parece ter sido o primeiro estudo analítico da ideia de justiça. O filósofo parte do conceito de justiça como virtude, definindo-a como a "disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e a desejar o que é justo". (PERELMAN, 1996, p.68). Nessa perspectiva, a justiça vincula-se ao respeito à lei, cujo objetivo pressuposto consiste na realização do bem comum,através da imposição de comportamentos normalmente reveladores de outras virtudes, tais como a coragem, a temperança, a tranquilidade. Daí porque a justiça assim considerada constitui a virtude completa ou a maior das virtudes. A justiça e a virtude em si mesma confundem-se. (ARISTÓTELES, 2002, p.1030). A justiça neste sentido amplo é aquela a que Aristóteles chamou de justiça total. Há, contudo, um sentido diverso, mais restrito, do termo: a justiça particular. Tanto uma quanto a outra se relacionam intimamente com a ideia de alteridade. Entretanto, se, naquele caso, a noção de alteridade era ampla, no sentido de que a ação dirige-se a toda a comunidade, a justiça particular diz respeito ao outro, singularmente considerado, nas relações levadas a efeito no seio da sociedade. A justiça particular traz a ideia de igualdade, equilíbrio; relaciona-se com um "ponto intermediário", que consiste na equidade. O justo significa, portanto, manter o equilíbrio, de forma que a situação de cada contratante antes e depois da transação seja a mesma. É preciso que cada uma das partes tenha uma quantidade igual antes e depois da transação. (Aristóteles, 2002, p.1.131 – 1.132). A necessidade de equivalência entre as prestações já era, portanto, apontada por Aristóteles como condição para a realização da justiça nas relações privadas. Não se pode olvidar que a finalidade do instituto da lesão, de coibir a proliferação de disparidades, mantendo a equidade e a comutatividade entre as prestações avençadas num determinado negócio, tem íntima ligação com o princípio da justiça contratual, o qual, por sua vez, estabelece uma distribuição igualitária de encargos e benefícios aos contratantes. Aliás, o entrelaçamento vivente entre os problemas da lesão e da própria justiça é de tal maneira vigoroso que cabe atestar, com Caio Mário da Silva Pereira, que "equacionar o primeiro é deduzir a fórmula do segundo". (PEREIRA, 2001a, p. IX). O objetivo primordial do ordenamento, ao censurar a lesão nos negócios jurídicos, consiste em evitar que o indivíduo que se encontra em situação de inferioridade, seja em razão de sua inexperiência, seja em virtude da sua premente necessidade de contratar, sofra prejuízo assumindo prestação manifestamente desproporcional à obrigação devida pelo contratante mais forte. O Direito busca promover, dessa forma, a equivalência entre as obrigações recíprocas, por uma questão de justiça. À luz dos valores e dos princípios estabelecidos no ápice da ordem jurídica, é injusto que o contratante débil seja compelido a honrar a obrigação assumida em negócio que se mostra claramente desequilibrado. Por isso a lei possibilita-lhe desvincular-se do pactuado. A instauração de uma nova ordem, que no Brasil foi consolidada pela Carta Constitucional de 1988, importou a modificação dos vetores que dirigem a ciência do Direito, através da elevação ao vértice da pirâmide normativa de valores diversos daqueles que orientavam o ordenamento anterior. Nesse contexto, alterou-se de tal modo a concepção de justiça nas relações privadas que a força vinculante dos contratos passou a submeter-se a princípios de feição social. O princípio da Justiça Contratual funda-se na equidade, que cumpre imperar nas relações jurídicas sociais. Não basta ater-se à observância da igualdade de oportunidades das partes no momento da contratação; é imprescindível, também, que o contrato corresponda à sua finalidade maior, e sirva como um instrumento equilibrado de comunhão dos interesses de seus partícipes. Impende, destarte, seja respeitado o preceito da justiça material, que resta efetivamente concretizada no caso dado, quando nos contratos de natureza onerosa, houver um verdadeiro senso de comutatividade. (GODINHO, 2008, p. 39). A importância conferida à justiça contratual revela a nítida intenção do Direito de coibir eventuais disparidades obrigacionais convencionadas contratualmente. A partir da fixação de parâmetros genéricos de equilíbrio social, é natural que ocorra a previsão de diversos institutos que, em respeito à tabua axiológica vigente, contenham seu espírito voltado à concreção da justiça material. Ilustram a incidência do princípio nas relações jurídicas concretas, não só a figura da lesão, mas também a figura do estado de perigo, que, uma vez caracterizadas, impõem o reajuste das prestações a medidas dignas da equivalência que se espera encontrar em um acordo de vontades. Aristóteles já afirmava que a justiça acompanha a igualdade e o equilíbrio, relacionando-se com um ponto intermediário, que consiste na equidade. No âmbito do contrato, pode-se afirmar que a equidade refere-se ao equilíbrio da relação negocial, vale dizer, a equidade impõe o equilíbrio entre as obrigações recíprocas assumidas no negócio. Nesse sentido, Cláudia Lima Marques afirma que o princípio da equidade contratual corresponde ao "equilíbrio de direitos e deveres nos contratos, para alcançar a justiça contratual". (MARQUES, 1999, p. 741). 3.3.4 Equilíbrio contratual Dentro de uma nova ordem contratual, o princípio do equilíbrio contratual denota visível importância e estreita correlação com o instituto da lesão contratual, na medida em que a principal finalidade de tal figura é assegurar a equivalência e o equilíbrio entre as prestações decorrentes do contrato. O prestígio atribuído ao princípio pacta sunt servanda, é preciso que se diga, foi determinante para uma tímida evolução da noção de equivalência material dos contratos, uma vez que a base ética das contratações fulcrada a partir, ainda, dos ideais individualistas pautava-se, como já se sabe, na noção de segurança jurídica. Assim, uma vez realizado o contrato, não havia de se perquirir se era ele justo ou não, ou estudar uma consequência concreta para a hipótese de não o ser. Ou seja, se as partes eram "livres" e "iguais", então a presunção era a de que essa liberdade e essa igualdade eram geradoras da própria justiça contratual, afinal o contrato é obra dos próprios "contratantes livres e iguais". Desde a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, até a chegada do Código Civil de 2002, que entrou em vigor em 2003, o mundo dos contratos passou por profundas reflexões, entre as quais a necessária observância de um contrato equilibrado, que não esteja a serviço da parte mais forte seja na relação de consumo seja na relação civil ou empresarial. Vale ressaltar que o princípio da equivalência material ou do equilíbrio econômico do contrato encontra- se perfilado ao lado de outros dois princípios sociais, quais sejam, o da função social e o da boa-fé que já foram objeto de análise. A busca do equilíbrio das prestações entre as partes pactuantes mostra-se em consonância com a proteção da dignidade da pessoa humana e com os demais princípios insculpidos na Carta Magna de 1988. Exige-se, na atualidade, a presença de uma justiça substancial, ou material, nas relações privadas e não a mera igualdade de direito que escondia atrás de si muitas desigualdades de fato. Talvez uma das maiores características do contrato, na atualidade, seja o crescimento do princípio da equivalência material das prestações, que perpassa todos os fundamentos constitucionais a ele aplicáveis. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência
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