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ENTRE SAIAS JUSTAS 
E JOGOS DE CINTURA 
 
Gênero e etnografia 
na antropologia brasileira recente 
 
 
 
 
 
Alinne Bonetti e Soraya Fleischer 
Organizadoras 
 
 
 
 
 
Porto Alegre 
2006 
 2
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À Claudia Fonseca, pelas lições, inspiração e generosidade. 
 
 
 
 3
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Muitas vezes retornei do chamado “campo”, que será isso, 
um capim de gado, paisagem pastagem, esvaziada de mim e 
repleta dos outros... quase cheia, de ossos fraturados; 
atropelada. Nossos valores mais caros espocam ou colidem. (...) 
Passam-se os dias e a sensação muda. Conforme escrevo 
preencho-me novamente de mim. Esta sou eu, com minhas 
dúvidas e inseguranças combalidas, em eterno questionar. 
Parece que preciso esvaziar-me do outro, aquilo que se 
convenciona como sendo “outro”. E que não passa do “eu” em 
choque; eu questionado e sem sossego. 
 
Andréa Martini 
 
 4
SUMÁRIO 
 
 
INTRODUÇÃO 
Diário de campo. (Sempre) um experimento etnográfico-literário? 
Alinne Bonetti e Soraya Fleischer 
 
 
CAPÍTULO 1 
Vicissitudes da subjetividade: Auto-controle, auto-exorcismo e liminaridade na 
antropologia dos movimentos sociais 
Carmen Susana Tornquist 
 
 
CAPÍTULO 2 
A pesquisa tem “mironga”: Notas etnográficas sobre o fazer etnográfico 
Mônica Dias 
 
 
CAPÍTULO 3 
“No salto”: Trilhas e percalços de uma etnografia entre travestis que se prostituem 
Larissa Pelúcio 
 
 
CAPÍTULO 4 
Um olhar sexual na investigação etnográfica: Notas sobre trabalho de campo e 
sexualidade 
Nádia Elisa Meinerz 
 
 
CAPÍTULO 5 
Entre homens: Espaços de gênero em uma pesquisa antropológica sobre masculinidade 
e decisões sexuais e reprodutivas 
Paula Sandrine Machado 
 
 
CAPÍTULO 6 
 
Onde estão as b.girls? A pesquisa antropológica numa roda de break 
Fernanda Noronha 
 
 
CAPÍTULO 7 
Entre o familiar e o exótico: Compartilhando experiências de campo na Boa Vista, Cabo 
Verde 
Andréa de Souza Lobo 
 
 
CAPÍTULO 8 
O poder do campo e o seu campo de poder 
 5
Kelly Cristiane da Silva 
 
 
CAPÍTULO 9 
Casos e acasos: Como acidentes e fatos fortuitos influenciam o trabalho de campo 
Daniela Cordovil 
 
 
CAPÍTULO 10 
Ser mujer y antropóloga en la escuela: Una experiencia de trabajo de campo con niños y 
ninas 
Diana Milstein 
 
 
CAPÍTULO 11 
Ritual de iniciação: Quando o campo evoca o próprio objeto através da experiência 
Patrícia de Araújo Brandão Couto 
 
 
CAPÍTULO 12 
Entre colinas verdes: Trabalhos espirituais, plantas e culinária. Reflexões sobre 
experiências de campo numa comunidade do Santo Daime 
Isabel Santana de Rose 
 
 
AS AUTORAS 
 6
DIÁRIO DE CAMPO 
 
(Sempre) um experimento etnográfico-literário? 
 
27 de janeiro de 2006 
 
 
“A narrativa é o foro da liberdade e da sanidade. 
Embate, encontro, exercício de sentimento: 
sentido no pensamento”. 
(Andréa Martini) 
 
 
Desci do ônibus e caminhei até o endereço que elas haviam me passado por telefone. Era 
apenas um par de quarteirões pelas ruas arborizadas e movimentadas do Bom Fim. Passava 
um pouco das 16h, justamente quando o calor intenso de Porto Alegre começava a dar trégua. 
A confeitaria ficava eqüidistante da casa das duas antropólogas, por isso a conveniência de 
nos encontrarmos ali. Logo avistei o nome espanhol, as grandes vidraças que serviam de 
portas e janelas e as mesinhas de madeira. Eu esperava que, lá dentro, o ar condicionado 
criasse um clima mais ameno, especialmente nesta circunstância: entrevistar meus pares. Toda 
vez que eu precisava sair de casa para entrevistar outras antropólogas, ficava ansiosa: Serão 
amistosas? Entenderão meu tema de pesquisa? Sentir-se-ão invadidas? Estas perguntas me 
dispersavam, confundiam-se com outras tantas que eu tinha preparado para esse encontro. Eu 
trazia algumas notas no caderno de campo, mas tentava também elencar as perguntas 
mentalmente, para que a conversa fluísse melhor. 
 
Um segurança de terno estava à porta, como parece ser o costume por esses tempos no bairro. 
Entrei e continuei a observar o ambiente. Algumas pessoas, de pé, dirigiam seus pedidos aos 
atendentes atrás do longo balcão de vidro. Três senhoras mais velhas desfrutavam da 
companhia uma da outra e de vários petit-fours coloridos. Um jovem de cabelos bem pretos 
digitava freneticamente em seu lap top. Chajás – esse delicioso doce gelado do Uruguai – 
absorviam a atenção de um casal que parecia apaixonado. Na única mesa vazia, uma moça lia 
um livro de capa dura. Ela aparentava seus 30 e poucos anos. Vestia uma frente única laranja 
com uma saia esvoaçante preta. Cabelos curtos e levemente encaracolados pareciam recém-
lavados. Do pescoço, desciam vários colares finos de miçangas em tons solares. Nos pés, as 
 7
sandálias verdes – era por elas que esta informante havia se identificado. Tomei fôlego e 
caminhei até ali. Quando ela sentiu minha proximidade, logo levantou os olhos de seus óculos 
verdes (parece que lhe agradava combinar todas as cores da roupa). “Tu deves ser a 
antropóloga que está nos procurando”, ela disparou sorridente, ao fechar o livro sobre o colo. 
Por que decidi fazer um estudo do familiar?, era a pergunta que eu sempre me repetia no 
início do contato. Por que escolhera um grupo tão inquisidor, arisco, observador? Eu me 
apresentei e pendurei a bolsa de brim no espaldar da cadeira. De lá, fui tirando meus 
instrumentos de trabalho, gravador, caderno de campo, canetas. Ao escrever essas linhas, 
envergonho-me da rapidez com que já passei ao “trabalho”. Ela me olhava curiosa, talvez ela 
censurasse minha ansiedade, talvez eu lhe remetesse às suas primeiras experiências de 
trabalho de campo. Foram suas perguntas corriqueiras que me deixaram mais à vontade. Ela 
queria saber onde eu morava na cidade, se meus pais haviam vindo do interior, se eu já tinha 
planos de entrar no doutorado, se eu conhecia aquela confeitaria e os outros tantos cafés do 
bairro, se neste final de ano eu tinha veraneado nalguma praia do litoral gaúcho. Eu percebi 
que ela me etnografava discretamente, invertendo o jogo. Será que isso também teria 
acontecido se eu entrevistasse outra pessoa que não uma antropóloga? Será que o 
entrevistador também desperta a curiosidade de seus interlocutores? 
 
Enquanto ela engatava uma pergunta na outra e eu me embaralhava com essas dúvidas 
metodológicas, a segunda informante chegou um pouco apressada. Ela foi logo pedindo 
desculpas pelo atraso, culpando o gato que resolvera ter fome bem no momento que ela 
deixava o apartamento. Essa outra era tão jovem e elétrica quanto a primeira, cabelos ainda 
mais curtos e roupas ainda mais coloridas. A diferença é que não combinava tão bem as cores. 
Parecia um arco-íris ambulante. Cumprimentou a amiga com os três beijinhos típicos aqui do 
Sul e depois me beijou da mesma forma. Um tanto informal e sinestésica essa outra. Sentou-
se e logo pediu um guaraná bem gelado. Reclamou do calor e perguntou se já havíamos 
começado. Eu expliquei que ainda não, mas já poderíamos fazê-lo se assim o desejassem. Ela 
não me respondeu, mas agradeceu a garçonete que irrompeu nesse momento. Virou pra a 
amiga e comentou da ressacaque lhe assolara naquela manhã. As duas comentaram 
rapidamente sobre a animada festa da noite anterior. A segunda soltou uma gargalhada quase 
contagiante e eu vi as três velhinhas lhe repreenderem com o olhar. Depois do momento de 
cumplicidade e do refrigerante, eu lhes lancei a primeira pergunta, bastante ampla. Queria 
testar porque caminho seguiriam. Eu torcia para que o barulho ambiente não interferisse na 
gravação. Abaixo, transcrevo a entrevista dessa tarde. 
 8
 
Entrevistadora: Como vocês sabem, minha pesquisa é sobre a nova geração de antropólogas 
do Rio Grande do Sul. Eu decidi entrevistar vocês porque fiquei sabendo que organizaram um 
livro justamente com esse duplo foco: gênero e juventude. 
 
Alinne Bonetti: É, mais ou menos isso. 
 
Entrevistadora: Como assim? 
 
Alinne: Bom, primeiro não sei se podemos ser consideradas exatamente do Rio Grande do 
Sul. Eu sou gaúcha, mas faço doutorado na UNICAMP. A Soraya é de Brasília, mas faz 
doutorado aqui. 
 
Soraya: Temos laços com o estado. E, sobretudo, vivemos e convivemos uma com a outra 
aqui. Isso foi muito importante pra terminar o livro. 
 
Entrevistadora: Um minuto, há muitas informações aqui. Como vocês se conheceram se são 
de cidades e universidades diferentes? 
 
Soraya: Ah, essa história é importante mesmo. Está diretamente relacionada com a história do 
livro. Em agosto de 2004, eu já morava em Porto Alegre e me dirigia pra Recife, onde eu ia 
começar a segunda parte do trabalho de campo, dentro de uma ONG feminista que trabalha 
com parteiras, que são meu foco de estudo. Mas, no caminho, eu planejei parar no “Fazendo 
Gênero”, que é um evento feminista que acontece bienalmente em Floripa. Lá, eu encontrei 
com a minha orientadora, a professora Claudia Fonseca. 
 
Alinne: Na real, a Claudia é meio “culpada” por tudo isso. (Risos). Não, eu estou brincando. 
Acho que seria mais apropriado defini-la como uma madrinha dessa amizade, desse encontro 
e, porque não, desse livro. 
 
Soraya: Isso mesmo. Foi a Claudia que nos apresentou, ali no meio do saguão da reitoria, 
onde aconteciam as inscrições do evento, as grandes palestras e a sociabilidade do final de 
tarde. 
 
 9
Alinne: Eu fui orientanda dela na graduação. A Claudia, sabendo dos meus interesses de 
pesquisa, que envolve ativismo político, feminismo, gênero e família, achou que seria 
interessante nós duas nos conhecermos. 
 
Soraya: E ela acertou em cheio. A gente nunca mais se desgrudou desde então. (Risos). 
Depois do evento, eu segui pra Recife e a Alinne voltou pra casa que, à época, era em 
Campinas. A gente se falava por e-mail de vez em quando. Nessa época, ela não tinha 
definido onde iria fazer o campo dela. E eu sugeri que ela pensasse em Recife porque, pelo 
que eu já tinha percebido, ali era, como eu passei a chamar, a atual “Meca do feminismo” no 
Brasil. 
 
Alinne: Eu já tinha lido textos sobre a efervescência do feminismo de Recife e quando a 
Soraya colocou essa pulga atrás da minha orelha eu comecei a cogitar seriamente essa 
alternativa. Eu nunca tinha ido pra um lugar tão longe, nunca tinha feito campo numa cidade 
nova pra mim, como Recife. E aí a Soraya me estimulou muito: ela disse que estava morando 
num quarto com espaço pra nós duas e com uma bela vista pro Atlântico e ela já conhecia um 
pouco da cidade. Então, aceitei o desafio e me mandei pra lá. De fato, conviver com a Soraya 
naquelas três semanas foi muito importante pra mim e pra pesquisa. Ela me ajudou a conhecer 
os primeiros caminhos daquela metrópole e as primeiras ONGs e feministas dali. 
 
Soraya: Eu não sei se ajudei tanto assim. A Alinne ficou muito mais tempo lá do que eu e ela 
se embrenhou super bem pela “Meca”. (Risos). Só sei que nossa convivência foi super intensa 
naquelas semanas. Eu estava no final de meus meses de campo ali, rumo pra outro canto do 
país, o Pará, onde eu conviveria mesmo com as parteiras. E a Alinne estava começando sua 
incursão pelo Recife. Eu queria descrever um pouquinho nosso convívio porque é daí que 
nasce a idéia do livro. 
 
Entrevistadora: Claro, boa idéia. Como era esse convívio? 
 
Soraya: A gente acordava bem cedo. 
 
Alinne: Bem mais cedo do que eu gostaria. (Risos). 
 
 10
Soraya: É verdade. Mas como não tinha cortina no quarto, a gente levantava com os primeiros 
raios de sol. A gente comia alguma coisa de café da manhã e depois, descíamos juntas o Alto 
da Sé, em Olinda. Nem sempre pegávamos o mesmo ônibus, porque eu estava etnografando 
uma única ONG e a Alinne estava com uma perspectiva mais ampla, isto é, conhecendo o 
universo de ONGs, associações comunitárias, grupos de mulheres da cidade. No final do dia a 
gente se falava. 
 
Alinne: Às vezes, a gente marcava de se encontrar pra almoçar também. Mas geralmente, o 
“cafofo” era o ponto de encontro “natural” ao entardecer. 
 
Entrevistadora: Como assim “cafofo”? 
 
Alinne: A gente chamou nosso quartinho assim. (Risos). Era um quarto de madeira pré-
fabricada. Devia medir o que, Soraya, uns 20 metros quadrados? Dois colchões no chão, uma 
mesinha redonda com duas cadeiras, um frigobar, uma estante pras roupas, sapatos e livros e 
um banheiro separado por uma cortina. Não tinha porta. (Risos). Ah, claro, e uma varanda que 
dava pro mar. A coisa mais linda do mundo. Acho que, brincando com o nome do livro, posso 
dizer que estávamos fisicamente justas. (Risos) 
 
Entrevistadora: Parece bem paradisíaco esse lugar onde vocês moravam. Será que seus pares 
não desconfiariam que vocês estavam mais a turismo do que a trabalho em Olinda? (Admito 
que eu soltei um olhar irônico nesse momento). 
 
Soraya: (Risos). A gente se perguntou muitas vezes isso. Há um subtexto na Antropologia de 
que a qualidade dos dados de campo é proporcional aos sacrifícios que se enfrenta durante o 
mesmo. Isso nem sempre é verdade. Sim, morávamos num lugar lindo que justamente nos 
dava um pouco de tranqüilidade emocional depois de longos dias de trabalho. 
 
Alinne: E, além de passarmos horas debruçadas sobre nossos lap tops velhos, escrevendo 
nossos diários de campo (que, por mais que fôssemos disciplinadas, estavam sempre 
atrasados), ainda passávamos horas, madrugada adentro, falando das aventuras e desventuras 
das experiências de campo. Na real, essa troca de confidências, angústias e descobertas foi o 
que inspirou a idéia do livro. Geralmente, fazemos pesquisa de forma muito solitária. Vamos 
e voltamos sozinhas pro campo. Depois, pensamos e escrevemos sozinhas sobre ele. 
 11
 
Soraya: Pra mim, foi a primeira vez que eu compartilhei casa & campo com outra 
antropóloga. Eu aprendi muito de antropologia naquelas três semanas em que convivi 
diariamente com a Alinne. Nosso diálogo foi muito proveitoso. Numa dessas noites, eu virei 
pra Line e falei, “Muitas outras antropólogas devem se sentir sozinhas também. Você conhece 
aquele famoso livro da Peggy Golde?1 Eu sei que ele é datado, mas não há nada parecido nem 
atualizado no Brasil. Quem sabe a gente não organiza um livro com vários artigos para 
socializar essas dificuldades e aprendizagens? Quem sabe uma coletânea assim ajude outras 
pesquisadoras a enfrentar o campo melhor ‘equipadas’?”. E a Alinne aceitou o desafio. 
 
Alinne: Sim. E ainda mais porque a idéia surgiu num momento muito particular: eu andava 
muito interessada numa certa antropologia feminista; super encantada com a leitura de textos 
como os de Henrietta Moore e pensando a respeito da relação entre etnografia e gênero.2 São 
temas que sempre me instigaram e queria muito pensar e debater sobre eles. E, justamente 
nesse momento, a Soraya veio com essa idéia. Topei na hora, sem pensarmuito sobre o 
trabalhão em que implicaria! (Risos). E, junto disso, estávamos nós duas em meio às nossas 
experiências de campo. Foi a nossa experiência ali, intensamente compartilhada, que criou as 
possibilidades para a germinação da idéia. 
 
Soraya: E queria remeter a mais um ponto aqui. A Alinne comentou antes como sempre 
estávamos tentando manter os nossos diários de campo atualizados. Esse livro não se 
relaciona com os diários só porque foi pensado entre um e outro dia relatado em suas páginas. 
Mas falar do trabalho de campo é falar, necessariamente, de como registramos nossos dados e 
nossa circulação pelo campo. É falar da produção e apropriação dos diários. Porque, refletir 
sobre as nossas experiências de campo é re/tomar o diário como nossa principal fonte. 
 
Alinne: Enquanto captávamos artigos, recebemos vários e-mails (e vamos falar disso daqui a 
pouco). Eu queria ressaltar aqui que muitas dessas pessoas fizeram essa associação entre o 
diário e o campo. E acho relevante enfatizar o lugar – delicioso e pesadíssimo, ao mesmo 
 
1 GOLDE, Peggy (ed.) Women in the field: Anthropological experiences. Berkeley e Los Angeles: California 
Press, 1970. 
2 MOORE, Henrietta. “Whatever happened to women and men? Gender and other crises in anthropology”. In 
MOORE, Henrietta (ed.). Anthropological theory today. Cambridge: Polity Press, 2000 (1999). ____. “The 
differences within and the differences between”. In DEL VALLE, Teresa. (ed) Gendered Anthropology. London: 
Routledge, 1996 (1993). ____. A passion for difference. Essays in anthropology and gender. Indianapolis: 
Indiana University Press, 1994. ____. Feminism and anthropology. Minneapolis: University of Minnesota Press, 
1988. 
 12
tempo – que o diário de campo toma em nossas trajetórias profissionais e pessoais. Num e-
mail, uma professora escreveu: “A reflexão sobre os diários de campo me persegue desde meu 
doutorado e, como sabes, tem sido um dos eixos fundamentais de minhas pesquisas e das que 
oriento”. Uma doutoranda de Brasília desabafou: “Nós, por algum motivo que não sei qual é, 
temos varrido essas experiências para debaixo do tapete, deixando-as relegadas tão somente 
aos nossos diários de campo”. No mesmo sentido, um outro colega disse ainda: “Penso que 
tenho muitas informações preciosas e interessantes nos diários de campo de mestrado e 
doutorado e que é um desperdício guardar isso nas próprias prateleiras para sempre”. O livro 
que, em muitos momentos, deriva de nossa relação com os diários, é uma tentativa de levantar 
esses tapetes, de acessar essas prateleiras. Um livro como o “Saias” socializa essa relação que 
é, convencionalmente, tão íntima, silenciada e escondida. 
 
Soraya: E não só isso. Há mesmo um gênero “diário de campo”, já com muitas publicações.3 
Mas é uma literatura diferente daquela sobre o trabalho de campo em si mesmo – esta seria 
uma relação e uma abordagem de segunda ordem com os diários de campo. Quer dizer, no 
nosso livro, os artigos re/tomam os diários – abordagem com a qual concordamos totalmente. 
 
Entrevistadora: Mas por que somente antropólogas e, sobretudo, jovens? 
 
Alinne: Essa pergunta nos foi feita várias vezes. Vê só. Nós escrevemos a proposta do livro e 
lançamos na Internet. Mandamos para nossas redes e conhecidos da área e pedimos que 
passassem adiante. Desde o início, o projeto tem um quê ensaístico. Nunca havíamos feito 
isso antes, cada passo foi aprendido na prática. Enfim, era um teste, um experimento: Será 
que muitas pessoas responderiam? Será que a proposta seduziria muita gente? Será que o 
conteúdo estava claro e reuniria artigos exatamente como esperávamos? Não tínhamos a 
menor idéia do que poderia acontecer. 
 
Soraya: Ao todo, 72 pessoas nos escreveram. Fizeram todo tipo de pergunta sobre a idéia do 
livro. Muitas dessas perguntas nos ajudaram a definir melhor o foco do livro. Se no “cafofo”, 
tivemos um “primeiro momento de diálogo”, com esses e-mails, tivemos um “segundo 
 
3 Só para alguns exemplos, ver LÉVI-STRAUSS, CLAUDE - Tristes trópicos. São Paulo, Anhembi,1957. 
MAYBURY-LEWIS, David. O selvagem e o inocente. São Paulo, Editora da Unicamp,1990. MALINOWSKI, 
Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro, Record, 1997. CARDOSO DE OLIVEIRA, 
Roberto. Os diários e suas margens. Brasília: Editora da UnB, 2003. Agradecemos todas as sugestões 
bibliográficas que nos foram enviadas durante a chamada do livro, especialmente estas do gênero “diário de 
campo”, gentilmente indicadas pelo professor Roberto Cardoso de Oliveira. 
 13
momento de diálogo”, se posso chamar assim, que consolidou, para nós mesmas, o argumento 
do livro. Foi muito interessante conversar com todos esses pares. Muitas dessas pessoas, 
mesmo em curtos e-mails, nos contaram de casos pontuais vividos no campo. A chamada 
estimulou que deixassem o silêncio e a solidão das experiências de campo. Nós aprendemos 
um bocado sobre as pesquisas dessas pessoas e também aumentou bastante nosso leque de 
contatos e nosso conhecimento sobre a atual produção antropológica no Brasil. E você acertou 
na mosca, várias foram as pessoas que escreveram perguntando por que homens não podiam 
participar; por que graduandas e professoras já experientes não podiam submeter artigos; por 
que sociólogas, psicólogas, arquitetas, terapeutas, historiadoras – que já tinham usado o 
método etnográfico – não poderiam contar suas histórias de campo. Todo um grupo de 
pessoas “excluídas” pelo escopo do livro escreveu pra nós. Quer dizer, ficava claro (para nós, 
sobretudo) que o livro, ao impor critérios, circunscrevia um universo de candidatas – e não foi 
fácil lidar com isso. Apareceram pessoas genuinamente interessadas em conhecer melhor o 
perfil do livro. Mas também outras, mais agressivas, nos acusaram de sexistas, de 
geracionistas, de corporativistas. Foram todos estes embates que nos ajudaram a amadurecer a 
idéia do livro. 
 
Alinne: Foram diálogos de certa forma inesperados, mas profundamente ricos. Acho que um 
dos mais surpreendentes foi o diálogo com antropólogos homens. Foi justamente desse 
diálogo que surgiu a sugestão de sexismo. Um colega nos escreveu, muito polidamente, e 
disse. “Eu não sou mulher e sou antropólogo e tenho vivido as mesmas situações de trabalho 
de campo. Como certamente não as convencerei do contrário, vocês acabam de me inspirar 
para um projeto semelhante com antropólogos homens”. Nós ficamos contentes que ele tenha 
se motivado a começar um projeto correlato. Enquanto alguns nos acusaram de um certo 
sexismo, outros ainda sugeriram um certo essencialismo no uso que supunham estarmos 
fazendo de gênero. É bem verdade que, dado o ponto de vista, esta nossa decisão possa ser 
assim descrita. Primeiro, para fundamentarmos a nossa escolha, precisamos te contar sobre a 
forma como encaramos o gênero. Longe de querermos essencializar e traçar uma 
correspondência direta entre homens = masculino e mulheres = feminino, entendemos gênero 
como uma forma de atribuir sentido a determinadas diferenças, que partem, sobretudo da 
imagética sexual, mas as transcendem, dotando de sentido as mais diversas manifestações das 
 14
experiências humanas, como ensina Marilyn Strathern.4 Tais diferenças não são desprovidas 
de valor, que variam enormemente de acordo com uma complexa combinação entre 
contextos, situações e sentidos. Em conseqüência, entendemos que "as coisas do mundo" têm, 
na sua base, um atributo relativo ao gênero. Sendo assim, com a nossa disciplina não poderia 
deixar de ser diferente. Entendemos que a Antropologia é eminentemente masculina, assim 
como a ciência tal como a conhecemos noOcidente. O que se reflete no tipo de formação que 
nós antropólogos e antropólogas recebemos. Essa consciência nos instiga a pensar em como 
essa formação, por assim dizer, “masculina” é experenciada e re-significada por corpos de 
mulheres nos embates cotidianos da pesquisa empírica. Enfim, muito embora antropólogos 
(corpos sexualmente marcados, homens) vivenciem situações semelhantes (vê, acreditamos 
que sejam semelhantes e não as mesmas) de obstáculos e saias justas em campo, há uma 
diferença em relação àquelas que antropólogas (corpos sexualmente marcados, mulheres) 
experimentam. E é sobre as implicações desta diferença, na própria reprodução da disciplina 
tal como é feita no Brasil, que queremos refletir porque sentimos que há uma certa 
invisibilidade acerca dela. 
 
Soraya: Pouco se fala disto, é quase como se os antropólogos não fossem homens e mulheres, 
e que essa diferença não tivesse um peso forte pra gente. Essa suposta indiferenciação nos 
remete a um texto da Miriam Grossi no qual ela se refere ao “mito do antropólogo assexuado” 
e as suas implicações diferenciais de gênero na disciplina antropológica. Esse ponto da 
Miriam também nos instigou a pensar sobre os impactos desse mito sobre a produção de 
conhecimento na antropologia.5 Pensamos muito, também, na experiência que a Ruth Landes 
teve quando esteve pesquisando em Salvador, em 1938.6 
 
Alinne: Há uma infinidade de outros exemplos que nos parecem demarcar uma especificidade 
da experiência de antropólogAs em campo.7 Assim, quisemos dar visibilidade justamente para 
esta especificidade, pensar nas suas implicações para a Antropologia, em especial para a 
 
4 STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift. Problems with women and problems with society in Melanesia. 
Berkeley: University Of California Press, 1990 (1988). ____. “An awkward relationship: The case of feminism 
and anthropology”. Signs Journal of Women in Culture and Society, 12 (2), 1987. 
5 GROSSI, Miriam. “Na busca do ‘outro’ encontra-se a si mesmo” In Trabalho de campo e subjetividade. 
Florianópolis: UFSC, 1992. 
6 LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967. ____. “A women 
anthropologist in Brazil” In GOLDE, Peggy (ed.) Women in the field: Anthropological experiences. Berkeley e 
Los Angeles: California Press, 1970. 
7 CORRÊA, Mariza. “O espartilho de minha avó. Linhagens femininas na antropologia”. In ____. Antropólogas 
& Antropologia. Belo Horizonte: Humanitas/Editora da UFMG, 2003. 
 15
Antropologia feita no Brasil, e, sobretudo, construir um espaço de debate e trocas acerca das 
formas como se têm lidado com essa inegável especificidade. 
 
Entrevistadora: E a idéia de jovens, tem a ver com o que, exatamente? 
 
Soraya: A idéia de “jovens” se relaciona com o momento na formação dessas antropólogas e 
não necessariamente com a faixa etária. O importante era um momento na carreira, isto é, ser 
“júnior”. Nosso intuito foi conhecer como uma nova geração tem pensado, praticado e 
reinventado o bom e velho trabalho de campo. O livro serviria como um retrato desse 
momento da Antropologia Brasileira. Claro que graduandas estão em formação, como alguns 
e-mails nos alertaram. Mas uma de nossas hipóteses é que a partir dos cursos de pós-
graduação, os/as pesquisadores/as têm a oportunidade de mergulhar com bastante intensidade 
e exclusividade na Antropologia, na forma de pesquisa e escrita. Há um salto de 
amadurecimento importante aqui, que quisemos ressaltar. 
 
Entrevistadora: Então, parece que vocês estão me contando de várias saias justas que 
enfrentaram ao organizar o livro. 
 
Soraya: Exatamente. Desde o começo, enfrentamos as tais “saias justas” que imaginávamos 
que apareceriam somente depois, nos artigos. Ao definir um escopo tão estreito para as 
biografias que estão por trás dos artigos aqui reunidos, não imaginávamos como teríamos que 
justificar cada uma destas condições e escolhas. (E penso também se a forma e a quantidade 
de intervenções que recebemos também não se relacionam com o fato de nós duas sermos 
juniores. Quer dizer, se uma antropóloga sênior estivesse propondo esse livro, estes e-mails 
teriam sido tão “inquisidores”, tão agressivos por vezes? Esse parêntese é só pra lembrar que 
aprendemos muito com o livro.) 
 
Alinne: E não parou só na idade e no sexo. Como a Soraya lembrou, apareceram outros casos 
difíceis: uma antropóloga portuguesa que estava pesquisando em Portugal, uma doutoranda 
argentina no Brasil e com campo na Espanha, uma chilena que estuda no Rio de Janeiro e 
pesquisa na Argentina e Moçambique, uma alemã que realizou seu campo no interior de 
Pernambuco. Nos escreveram também algumas brasileiras que estavam estudando e 
pesquisando na Inglaterra, Espanha, Cabo Verde, México, Timor Leste. Quer dizer, tivemos 
que refletir sobre os limites do livro segundo todas essas demandas. Como o foco do livro é a 
 16
formação em Antropologia no Brasil, aceitamos artigos de todas aquelas que mantinham 
alguma relação com sua formação aqui no país. Isto é, brasileiras que tiveram sua formação 
aqui e atualmente estão estudando e pesquisando no exterior e/ou estrangeiras com vínculos 
institucionais e etnográficos aqui no Brasil. 
 
Soraya: Eu quero retomar um ponto. Várias pessoas escreveram demonstrando simpatia com a 
proposta do livro. Como eu disse antes, algumas não se enquadravam no perfil por serem de 
outras áreas de estudo. Eu suponho que esse interesse foi demonstrado justamente porque elas 
se reconheceram na nossa proposta pelo impacto subjetivo que geralmente se vivencia 
durante as pesquisas de campo, mesmo que não “essencialmente” etnográficas. O “campo” 
parece ser, também para esses e essas interlocutores/as, uma oportunidade de aprendizado, 
sensibilização, superação. A exposição – sobretudo pessoal – ao mundo concreto dos dados 
marca os pesquisadores e demanda que novos espaços sejam criados para compartilhar e 
analisar estas experiências. O interesse desse público além-Antropologia só demonstra como a 
iniciativa do livro cumpre com sua intenção de suprir um pouco essa lacuna. Eu espero que 
esse livro inspire outras iniciativas semelhantes. Por exemplo, seria ótimo encontrar uma 
coletânea de artigos sobre as experiências interdisciplinares de/no campo, sobre as diferentes 
apropriações do que seja “campo” e “etnografia”, uma conversa franca entre a Antropologia e 
outras áreas. Todas estas inquisições nos fizeram pensar e repensar nosso livro. Foi um 
exercício maravilhoso. Desde o começo e de forma mais intensa do que poderíamos supor, a 
iniciativa foi coletivamente construída. Vale aqui um agradecimento a todas e todos que nos 
escreveram, apoiaram a idéia, enviaram sugestões e ajudaram a divulgar a chamada. 
 
Alinne: Muita gente escreveu para nos parabenizar pela iniciativa, para dizer que iriam 
encaminhar a proposta pra seus conhecidos, para sugerir nomes de editoras, para indicar 
referências bibliográficas. E, como a Soraya lembrou, vários e-mails louvaram a idéia que 
vinha de encontro com uma espécie de lacuna sobre as experiências mais subjetivas, 
metodológicas e conceituais sobre trabalhos de campo. Eu me lembro que uma graduanda em 
Ciências Sociais nos escreveu assim: “Realmente esse ‘silêncio’ sobre o campo faz com que 
todos os trabalhos pareçam ser feitos na total tranqüilidade, onde as coisas ‘brotam’ 
naturalmente e não há espaço para dúvidas e angústias”. Eu gostei muito desse comentário 
dela. 
 
 17
Soraya: Recebemos muitas mensagens de apoio, mas também algumas reclamações, críticas e 
verdadeiros sacolejos. Fazer um livro nos instruiu como é possível fazer Antropologia. Querdizer, acredito que no período de formação também deve haver espaço para aprender a fazer 
livros e não só fazer pesquisa e escrever teses. Nós aprendemos muito pouco sobre como 
divulgar o que produzimos. 
 
Alinne: Justamente porque durante nossa formação nós não recebemos lições claras sobre 
como publicar, aqui nesse livro nós aprendemos fazendo e fizemos com nossa cara, nosso 
estilo, sem seguir cartilhas. Essa é a vantagem de sermos juniores e incautas. (Risos). Por isso, 
há um certo frescor em nosso projeto. Não deixa de ser um olhar da nova safra sobre o cânone 
e uma contribuição na reelaboração do mesmo. 
 
Entrevistadora: Vocês disseram que 72 pessoas escreveram para vocês. E quantos artigos 
vocês receberam, no final das contas? 
 
Alinne: Chegaram 28 artigos. As instituições, os temas e a formação das autoras foram muito 
diversos. Por exemplo, recebemos textos de Brasília, Rio Grande do Sul, Paraíba, 
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, 
de Portugal, Espanha e Inglaterra. As autoras eram mestrandas, mestras, doutorandas, 
doutoras e pós-doutoras. Algumas já estavam dando aulas em universidades, outras estavam 
trabalhando fora da academia. É curioso notar que, mesmo com a ampla circulação da 
chamada para o livro e com a manifestação de interesse de pesquisadoras de diferentes partes 
do país, a maioria dos textos que recebemos vieram de centros de formação já tradicionais no 
Brasil, em especial do sudeste, do sul e de Brasília. O que nos remete a um quadro bastante 
interessante sobre o perfil atual da formação antropológica aqui. 
 
Soraya: Depois, Alinne e eu lemos e comentamos todos os artigos. Foi uma fase de esforço 
argumentativo, crítica construtiva e um genuíno interesse em dialogar. Dos 28, selecionamos 
12 artigos que mais se aproximavam de nossa proposta. Devolvemos todos os artigos às 
autoras e pedimos que os revisassem à luz de nossos comentários e sugestões. Elas tiveram 
mais um tempo para esse segundo esforço sobre o texto. Quando retornaram, nós lemos tudo 
de novo. Aqui, nosso objetivo era tornar o livro cada vez mais “redondinho”, consistente, 
bonito, bom de ler. 
 
 18
Alinne: Como tu podes perceber, a organização do livro demandou um trabalho intenso e 
denso de nós duas e foi, além da nossa expectativa, muito lento. Primeiro, porque eu e Soraya 
temos ritmos de trabalho bem distintos. Eu preciso de mais tempo para ler, refletir, escrever. 
E tu podes imaginar como essas características se potencializaram em meio à demanda do 
trabalho de campo. Segundo, porque essas distintas fases, de leitura e retorno às autoras, 
também foram demoradas. As autoras, por sua vez, também estavam em diferentes momentos 
das suas trajetórias: algumas em meio ao campo como nós, outras em fase de finalização de 
teses, aulas, viagens. Havia ainda algumas em processo de deslocamento para cursar 
doutorados sanduíches fora do país. Tivemos de lidar com todas essas vicissitudes, negociar 
prazos e adequar as diferentes temporalidades de cada uma. Bem ao gosto dos imponderáveis 
que um projeto coletivo como esse traz. 
 
Soraya: É e tem mais uma terceira etapa aí, que Alinne esqueceu de mencionar: o tempo de 
negociação com financiadores e editoras que topassem publicar um livro como esse, sem 
pessoas de “renome” assinando o livro. Quase não há editoras que incentivem iniciativas de 
empreendedores juniores, não há linhas de financiamento para pesquisadores em formação, há 
poucos editais para publicação em geral etc. 
 
Entrevistadora: Ainda uma outra questão sobre o processo de leitura dos textos: vocês duas 
concordavam sempre consensualmente sobre os artigos? 
 
Soraya: (Risos). Essa é uma outra saia justa: dialogar e discordar sem que isso resvale sobre a 
nossa amizade. Descobrimos que temos estilos diferentes para escrever, analisar, debater, 
criticar. Mas, em geral, concordávamos bastante. Eu aprendi muito nessa intensa conversa 
com a Alinne, principalmente sobre Antropologia. Cada vez que chegava um artigo que ela 
tinha lido e comentado, eu não só aprendia um bocado com a própria autora, mas também 
com as provocativas intervenções da Alinne sobre o artigo. E acho que vice-versa, né amiga? 
Foram meses muito ricos. 
 
Alinne: Certamente. Acho que aqui tem ainda outra saia justa. Foi uma oportunidade de 
aprendizado para nós duas o desafio de ler e comentar trabalhos de colegas que estão em 
posições muito semelhantes a nós dentro da hierarquia acadêmica. Quer dizer, geralmente é 
o/a professor/a que lê o que um ou uma doutorando/a escreve. Então, estamos aprendendo 
como formular e comunicar críticas de forma mais eficiente possível. E importante também 
 19
foi o exercício da escuta, em todos os momentos: responder aos e-mails questionadores, ler os 
artigos, debater com a Soraya, compreender as reações das autoras aos nossos comentários 
etc. 
 
Soraya: Além disso, fizemos questão de enviar os comentários também para as 16 autoras que 
não entraram no livro. Acreditamos que essa nossa leitura comprometida e interessada lhes 
pudesse ser de alguma forma útil para encaminhar os artigos para outros destinos de 
publicação. 
 
Entrevistadora: Então, pode-se dizer que essa fase de leitura dos artigos e dos comentários 
uma da outra foi o “terceiro momento de diálogo”? 
 
Alinne: Claro! E é bom lembrar que depois que nos despedimos no “cafofo”, eu e Soraya 
vivemos poucas semanas na mesma cidade. Quer dizer, toda essa fase de divulgação da 
chamada de propostas, recepção e leitura dos artigos e diálogo entre nós duas, todos os três 
momentos foram feitos à distância. Ora eu estava em Recife e a Soraya, aqui em Porto Alegre 
preparando a qualificação dela. Depois, ela foi pro Pará e eu voltei pra cá pra escrever a 
minha qualificação. Ou então, eu estava em Campinas e ela continuava no interior do Pará. A 
Internet e o telefone foram fundamentais para gente tocar nossas tarefas. Se por um lado, 
foram os nossos campos que nos aproximaram e criaram condições para o livro brotar, foram 
os mesmos campos que nos separaram por vários meses e fizeram grande parte do livro ser 
realizado virtualmente. Um paradoxo existencial, eu diria. 
 
Entrevistadora: Muito interessante: esse livro sobre o campo foi praticamente organizado 
enquanto vocês duas também estavam em trabalho de campo. 
 
Soraya: Exatamente. E pra mim isso é muito forte porque organizar o livro enquanto se está 
no campo supre justamente o que nos motivou a começá-lo, isto é, a solidão do campo. Por 
exemplo, lá em Melgaço, essa cidadela marajoara onde eu fazia meu campo, só tinha Internet 
na prefeitura. E foi lá que eu li todos os artigos revisados pelas autoras. Enquanto a cidade 
inteira dormia sua, digamos, siesta, eu aproveitava o desaceleramento do cotidiano lá fora e o 
ar condicionado lá dentro da prefeitura. Passava cerca de duas horas lendo sobre experiências 
de campo em outros lugares do mundo, mas eu sempre saía de lá inspirada para enfrentar as 
 20
minhas próprias dificuldades de pesquisa. Todas as autoras e a Alinne serviram como uma 
espécie de “oráculo” para mim. (Risos de todas). 
 
Entrevistadora: Daria pra interpretar o que Soraya disse sobre a sua leitura dos textos, em 
meio ao seu próprio campo, como um segundo efeito de descentramento – a primeira seria a 
própria experiência de imersão e solidão no campo. Isto poderia ser caracterizado como um 
jogo de cintura com o qual a organização do livro lhes muniu em meio as suas pesquisas de 
campo. E quais foram as outras surpresas encontradas nessa leitura? Quero dizer, os textos 
que chegavam correspondiam à expectativa inicial sobre as saias justase os jogos de cintura 
enfrentados? 
 
Soraya: Esse é um ponto bem interessante. Lembro dos ensinamentos de um professor de 
graduação que dizia que não há como ensinar a fazer campo; a gente aprende fazendo. Na 
época, eu fiquei muito perturbada com essa idéia. Para uma neófita, recém ingressa na 
Antropologia, aquele conselho parecia tirar todo meu chão. Só depois eu entendi que a 
riqueza da Antropologia parece ser justamente o seu caráter experimental e artesanal. Mas não 
precisamos nos sentir tão sozinhos. Quer dizer, ler e conhecer outras experiências de campo 
nos ajuda a formar um repertório de possíveis e prováveis saias justas e jogos de cintura. 
Vamos pro campo com essas sugestões, esse legado na forma de histórias de campo. E há um 
bocado de coisas já produzidas que tem ajudado muita gente em campo.8 Em vista disso, 
queríamos trocar essas experiências, ver como cada uma estava lidando com o seu campo e, 
com isso, como mencionamos há pouco, além de irmos afinando a idéia do projeto ao longo 
do diálogo com as/os interessados/as, foi no contato com os textos que a idéia abstrata das 
saias justas e jogos de cintura foi tomando corpo. Foi também um aprendizado perceber como 
as autoras interpretavam aquela nossa idéia inicial de saia justa. Sendo assim, os textos foram 
 
8 Na literatura brasileira, já há um lastro considerável nesse sentido. Apenas como sugestão inicial, ver 
CARDOSO, Ruth (org.). A aventura antropológica. Teoria e pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 
GUIMARÃES, Alba Z. (org.) Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alvez Editora, 
1990. SILVA, Vagner Gonçalves. O antropólogo e sua magia. Trabalho de campo e texto etnográfico nas 
pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora da USP, 2000. VELHO, Gilberto e 
KUSCHNIR, Karina. (orgs.) Pesquisas urbanas. Desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editor, 2003. E, para algumas sugestões estrangeiras, ver RABINOW, Paul. Reflections on fieldwork in 
Morocco. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1977. CESARA, Manda. Reflections of a 
woman anthropologist: No hiding place. London: Academic Press, 1982. SANJEK, Roger (ed.) Fieldnotes. The 
making of anthropology. Ithaca and Londo: Cornell University Press, 1990. OKELY, Judith e CALLAWAY, 
Helen (ed.) Anthropology and autobiography. London: Routledge, 1992. ALTORKI, Soraya e EL-SOLH, 
Camille Fawzi. (ed.). Arab women in the field: Studying our own society. Syracuse: Syracuse University Press, 
1988. KULICK, Dan e WILSON, Margaret. Taboo. Identity and erotic subjectivity in anthropological fieldwork. 
London e New York: Routdlege, 1995. 
 21
revelando gratas e inusitadas surpresas. Uma das autoras, a Kelly Cristiane da Silva, tem uma 
passagem justamente sobre isso. Ela diz assim, “É impossível, ilusório, ou mesmo, 
antimetodológico, antecipar ou calcular minuciosamente a realização de qualquer pesquisa em 
antropologia – é preciso deixar-se capturar ou ‘perder-se’ pela experiência de campo – e/ou 
afirmar, de antemão, que necessariamente algum traço da identidade do antropólogo (sua 
posição de gênero, raça ou classe etc.) seria vantajoso ou desvantajoso diante da natureza de 
um determinado objeto. Tal resposta só pode ser construída etnograficamente”. Concordamos 
plenamente com isso. 
 
Alinne: Então, quem estiver esperando encontrar um manual com dicas de problemas e 
soluções certamente se frustrará. É possível caracterizar os textos como uma meta-etnografia; 
ou seja, uma narrativa-reflexão sobre diferentes aspectos do fazer etnográfico mais do que 
simplesmente um inventário das vicissitudes e as suas soluções correspondentes. Os textos 
nos ensinam que fazer etnografia é, sobretudo, formular perguntas. E é a partir dessas 
perguntas, claudicantes e criativas que se vão ensaiando caminhos. É exatamente esse 
processo de formulações constantes de perguntas, suscitadas pelas vivências inesperadas que 
as pesquisas impõem, que o livro retrata. É, sobretudo, um exercício fortemente reflexivo. Por 
essa característica, os textos são riquíssimos, trazem inúmeras questões sobre o ofício da/do 
etnógrafa/etnógrafo. E há, ainda, uma outra peculiaridade que gostaria de mencionar. Nem 
todas as autoras são estudiosas da temática de gênero. Sendo assim, o livro retrata diferentes 
posições e abordagens sobre a relação gênero e etnografia, revelando a importância e a 
necessidade de se tratar dessa relação como algo fundante do fazer antropológico. 
 
Entrevistadora: Se não é um manual, qual é a cara do livro? 
 
Soraya: Vamos falar um pouquinho sobre cada um dos textos para você ter uma idéia. Mas 
antes, queria dizer um par de coisas: reunir artigos sobre trabalho de campo é considerar 
seriamente a autonomia dos dados, o efeito do acaso, o lento e manual timing da produção 
etnográfica e, retomando um pouco a idéia da Alinne, os artigos nos ajudam a formular 
perguntas em relação ao estar em campo e ao escrever sobre ele; nos perguntar 
continuamente sobre como o nosso campo nos afeta como antropólogas, nos forja como tais, e 
nesse processo, forja também a própria pesquisa. Ou seja: refletir sobre como fomos 
recebidas, definidas e manipuladas semanticamente em nossos campos de pesquisa 
específicos é uma das grandes contribuições dos artigos aqui reunidos. 
 22
 
Alinne: É, isso mesmo. O texto de Carmen Susana Tornquist, reflete sobre diferentes saias 
justas enfrentadas no movimento de humanização do parto, do qual ela era (ou é?) adepta. 
Dentre as inúmeras idéias que esse texto traz, eu salientaria duas que me parecem 
fundamentais: uma delas está relacionada com a sua reflexão acerca dos impactos subjetivos e 
as saias justas enfrentadas no processo de estranhamento na construção do seu objeto de 
pesquisa. Intimamente ligado com esse primeiro aspecto está o segundo: uma importante 
discussão sobre como lidar com o tempo da reflexão acadêmica e as urgências da militância e 
a manutenção das crenças políticas após ter passado pelo processo indelével de relativização. 
No mesmo sentido de questionamento sobre a manutenção das crenças, embora num outro 
campo, o artigo de Mônica Dias relata a sua experiência ao pesquisar identidade e 
religiosidade negra em terreiros de Umbanda. No seu caso, analisa como o encontro 
etnográfico produziu um choque no seu sistema de crenças, enquanto pesquisadora e também 
como católica. Pasmada frente à força com que lhe afetou a experiência de campo, ela se 
pergunta se haveria aí uma questão de gênero que fugiria ao controle do treinamento 
antropológico. Repetindo padrões culturais associados ao feminino, ela se questiona se 
estariam as etnógrafas mais suscetíveis aos afetos e envolvimentos emocionais. Sem nos 
brindar objetivamente com uma resposta, ela se embrenha numa reflexão sobre o encontro 
etnográfico e o processo de estranhamento afirmando que o/a etnógrafo/a deve experimentar 
outra condição de ser; o que significa não virar o outro, mas experimentar a sua lógica. 
 
Soraya: Esse jogo entre a familiarização e o estranhamento é também a tônica do texto da 
Larissa Pelúcio. Ela descreve o processo (desejado, mas insuportavelmente lento por vezes) 
de “des-estranhamento” no campo. Traz-nos uma discussão fundamental sobre como foi 
construindo o seu lugar de pesquisadorA junto ao grupo pesquisado – travestis que se 
prostituem e homens que se relacionam com travestis – negociando os distintos marcadores 
sociais (gênero, classe, sexualidade, etc) que se traduziam, segundo ela, nas marcas do 
distanciamento entre eles. Nesse processo, ela demonstra como foi aprendendo sobre o que 
era “estar mulher” ao enfrentarsaias justas de misoginia e também de sedução, por exemplo. 
Sendo assim, o atributo que no início da sua pesquisa fora um entrave, passou a ser vantajoso 
para o estabelecimento do vínculo da pesquisa; de uma “estranha na rua” para ser uma 
“amapô” (isto é, “mulher no bajubá, espécie de gíria falada pelas travestis em todo o Brasil”). 
 
 23
Alinne: Na mesma linha, no texto da Nádia Meinerz, o foco é a produção de conhecimento 
antropológico através da etnografia quando o tema é a sexualidade. Ela traz uma reflexão 
sobre os diferentes dilemas enfrentados ao pesquisar um grupo de mulheres que se relacionam 
sexual e afetivamente com mulheres. A autora elenca diferentes “enrascadas” teórico-
metodológicas enfrentadas na sua pesquisa e as diferentes suspeitas de que se é alvo quando 
se estuda esse tema. Por exemplo, mesmo mencionando a existência do namorado, foi alvo da 
expectativa de estar, a qualquer momento, “saindo do armário”. Sempre que a pergunta “Você 
é entendida?” lhe era dirigida, Meinerz explica que “adotei como estratégia posicionar-me no 
campo em relação à orientação sexual de forma não decisiva. Ou seja, quando interpelada a 
esse respeito, procurava devolver e explorar as questões colocadas”. Ela nos mostra, portanto, 
que é justamente com base nesses encontros em campo que a Antropologia se desenvolve. 
 
Soraya: Isso mesmo! E o texto da Nádia nos leva a refletir também sobre a pluralidade de 
sentidos que o papel de etnógrafa pode gerar. Uma das perguntas que esses textos no ensinam 
a fazer, de diferentes formas, é sobre se e como esses papéis estão relacionados aos corpos de 
etnógrafas sexualmente marcados como mulheres e também indica como a coleta de dados e a 
própria construção da Antropologia “passam” pela presença da antropóloga em campo. E aqui 
já adentro no texto de Paula Machado. Ele se centra quase por completo nas negociações para 
transitar pelos espaços masculinos de uma vila em Porto Alegre. O foco dela era conhecer as 
representações e práticas sociais de homens pobres sobre métodos para evitar gravidez ou 
DSTs. 
 
Alinne: Eu lembro que Paula, a certa altura, diz assim, “O desconforto gerado por minha 
presença em lugares masculinos foi um forte indicativo não apenas deste contexto 
segregatório, como também das diferentes avaliações que podiam ser atribuídas às mulheres, 
entre as quais eu mesma. (...) Tive que lidar com algumas peculiaridades do trabalho, como, 
por exemplo, com as brincadeiras e as tentativas dos homens de me designarem 
classificações: eu era uma mulher de respeito? Sem-vergonha? Casada? Solteira? Ajuntada? 
Tico-tico no fubá? Essas interlocuções já iam me mostrando de que forma esses homens 
também classificavam as ‘outras’ mulheres, ou seja, que elementos eram significativos para 
tanto”. 
 
Soraya: Pois é, e aqui há dois aspectos que tendem a aparecer em muitas pesquisas. Por um 
lado, há sempre um esforço classificador em relação à/ao antropóloga/o. E, por outro, indica 
 24
como a coleta de dados e a própria construção da Antropologia “passam” pela presença da/o 
antropóloga/o em campo, colocando em xeque o mito do antropólogo assexuado. Ou seja, em 
que medida ser mulher ajuda ou atrapalha a investigação quando se pesquisa entre homens, 
como no caso da Paula e, em grande medida, da Fernanda Noronha, que pesquisa sobre 
movimento hip hop em São Paulo. 
 
Alinne: No seu texto, Fernanda reflete sobre os problemas de inserção no universo de 
pesquisa masculino, e em certa medida “machista”, advindos do seu lugar de pesquisadora. 
Ela relata que questões raciais, de gênero, geracionais e do que caracteriza como um certo 
“estilo universitário” fizeram-na redirecionar as atenções da pesquisa e impuseram-lhe outros 
questionamentos sobre os modelos de masculinidade e feminilidade vigentes em um grupo de 
hip hoppers da periferia paulistana. Foram esses duplos estranhamentos – dela em relação ao 
grupo e do grupo em relação a ela – que passaram a dar a tônica da sua interação. 
Compreendendo o porquê era uma “mulher estranha” aos olhos dos seus interlocutores 
homens, Fernanda Noronha (assim com Paula Machado) pôde compreender melhor os 
códigos que regem aquele micro-universo. De forma semelhante, Andréa Lobo coloca em 
perspectiva as distintas posições que ocupa no seu universo de pesquisa para melhor 
compreendê-lo. 
 
Soraya: A Andréa Lobo fez pesquisa em Cabo Verde, um país marcado pela emigração de 
seus habitantes. E na ilha onde ela vivia, Boa Vista, são especialmente as mulheres que vão 
embora. Então, você pode imaginar o que foi uma estrangeira chegar onde a regra são as 
mulheres partirem? 
 
Alinne: Ela nos mostra como as diferentes posições que era levada a assumir em campo (e.g. 
pesquisadora, mãe, mulher, esposa de cabo-verdiano, estrangeira) impunham-lhe distintas 
dificuldades. Utilizando-se da metáfora do “jogo de espelhos”, ela desvela a redescoberta de 
si no diálogo com diferentes outros, culminando com uma definição do seu lugar naquele 
contexto como de um “ser entre dois mundos”. Esse complexo mosaico de posições reforça a 
nossa tese de que é fundamental se levar em consideração as questões de gênero inerentes ao 
processo de trabalho de campo. 
 
Soraya: Ah, outra coisa que considero importante de salientar: a questão da maternidade. 
Andréa, Larissa e Patrícia (que comentaremos daqui a pouco) mencionam como o fato de 
 25
serem mães e de terem, vez por outra, seus filhos em campo ou, ao menos, mencionados e 
semantizados em campo, lhes afetou sua inserção e o tipo de dados e posicionamentos que daí 
derivaram. Eu, pessoalmente, gostaria de ouvir mais destas experiências e aqui fica a sugestão 
para uma nova coletânea: como é ser mãe no campo, como é ser mãe na Antropologia, como 
os filhos retratam suas mães antropólogas e como se relacionam com a intensidade e rotina do 
campo etc. E, claro, tudo isso para quem é pai também. Com base no modelo ocidental e 
masculino de ciência e de Antropologia, o silêncio sobre essas questões é previsível e, 
justamente por isso, desafiador às novas reflexões. 
 
Alinne: E por falar em desafios, o texto de Kelly da Silva traz uma contribuição sobre as 
inter-relações entre trabalho de campo, gênero e poder. Ela pesquisou a influência da ONU na 
“re-estruturação” dos mecanismos estatais no Timor Leste e no seu texto analisa de que 
formas os diferentes traços que a constituem como sujeito naquele contexto – “mulher, 
casada, não-branca, brasileira, falante de português etc” – influenciaram no desenrolar da sua 
pesquisa e interagiram com os distintos eixos de poder que conformam o seu campo de 
investigação. Segundo avalia, “se eu não fosse brasileira, mulher e não falasse tétum, minha 
rede de contatos dentro da estrutura do Estado timorense não fluiria com essa relativa 
facilidade”. E há ainda, nesse texto, uma outra reflexão crucial, já clássica na Antropologia e 
que nos interessa muito em discutir: ao abordar a discussão sobre a conjugalidade em campo, 
Kelly confidencia que achou estratégico, em alguns momentos, omitir o fato de ser casada, 
com o consentimento do próprio marido, também antropólogo. 
 
Soraya: Bem lembrado! A presença de maridos, namorados e companheiros em campo 
perpassa vários artigos e é particularmente interessante para o foco do livro. Vale a pena 
registrar aqui a importância da reflexão deles para o fazer etnográfico porque remete a 
questões clássicas de antropólogas em campo, ou sozinhas e mal vistas (como no caso já 
citado de Ruth Landes), ou casadas e invisibilizadas pelos seus maridos antropólogos de 
renome (como no caso de Dina Lévi-Strauss)9. 
 
Alinne: Colocando um pouco de lenha na fogueira: há também ocaso clássico da Margaret 
Mead, que fez seu trabalho de campo na Nova Guiné acompanhada do seu então marido – 
 
9 Ver CORRÊA, Mariza. Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Humanitas/Editora da UFMG, 2003. 
 26
Fortune.10 Eu nem sequer lembro do primeiro nome dele! Nesse caso, o menos famoso ou 
menos “visível” foi ele… (Risos) 
 
Soraya: Pois é, são exatamente essas nuances que tornam a questão tão instigante. Longe de 
dar receitas, vários artigos discutem as vantagens e desvantagens de identificações como 
“heterossexual”, “ajuntada”, “casada”, “comprometida”, “acompanhada”, “sozinha”, “avulsa” 
e tantas outras possibilidades afetivo-eróticas. E como essas condições contribuíram ou não 
para a coleta de dados, para o tipo de incursões e relações que foram estabelecidas em campo. 
A Daniela Cordovil, por exemplo, em pesquisa no interior do Maranhão, ora esteve 
acompanhada e ora esteve distante do marido antropólogo e comenta, “Não acredito que o 
fato de estar só em campo seja uma espécie de ‘passaporte instantâneo’ para adentrar a 
realidade nativa”. 
 
Alinne: E por falar na Daniela, ela discute, à luz de suas sucessivas incursões de pesquisa em 
Cururupu, MA, uma questão sobre o nosso ofício, que muitas de nós certamente já 
enfrentaram. Ela nos desafia: “Os problemas teóricos que persegui eram os problemas de 
meus informantes ou estavam na minha cabeça e na de outros pesquisadores que deles se 
ocuparam? (...) Afinal, o ofício do antropólogo não seria, em última instância, deixar falar o 
nativo?”. Daniela se inspira nos dilemas semelhantemente vividos por Evans-Pritchard.11 
Quer dizer, seu objeto teórico só foi construído depois que voltou do campo, justamente 
quando ela lhes deu a oportunidade de “falar” e “dialogar” com as leituras que tinha feito. 
 
Soraya: O texto de Diana Milstein vai ao encontro, de certa forma, à reflexão de Daniela. 
Diana nos mostra como foi aprendendo sobre o campo ao se abrir para ele, ao afinar a escuta e 
deixar falar o nativo. Ela relata como, em sua pesquisa sobre a relação entre vida escolar e 
contexto político-econômico da Argentina, numa cidadezinha perto de Buenos Aires, foi 
confrontada com concepções cristalizadas nela mesma sobre gênero e geração. Foram essas 
cristalizações que lhe impuseram um sentimento de esgotamento do campo de pesquisa que 
fizeram-na perceber, após idas e vindas reflexivas, as crianças da comunidade escolar como 
interlocutores privilegiados. Segundo relata, foram eles que contribuíram decisivamente para 
os redirecionamentos da sua investigação. O que me faz lembrar também do texto de Patrícia 
Couto, que se faz perguntas semelhantes sobre as cristalizações de concepções de gênero em 
 
10 MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988. 
11 EVANS-PRITICHARD, E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 
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que estamos implicadas, por sermos sujeitos “da cultura”. Estudando o turismo na Bahia, ela 
elenca uma série de questões muito comuns e “rentáveis” (do ponto de vista etnográfico) em 
relação a mulheres em campo: “Por que uma mulher viaja sozinha, sem amigos ou família se 
não está trabalhando? E se está trabalhando e é mulher porque escolheu este estranho ofício? 
Se está viajando sozinha por lazer, o que está procurando? Não percebe o perigo ou gosta 
dele?”. Falar dessas situações é admitir como elas afetam a Antropologia que estamos 
produzindo. 
 
Alinne: A Patrícia que, ao contrário de trazer dados de um trabalho de campo já realizado, nos 
oferece aquele período do “pré-campo”, em que a curiosidade e o desconforto por um tema de 
pesquisa nos levam a querer saber mais. Há duas idéias nesse texto sobre as quais eu gostaria 
de comentar também. Primeiro, a diferença entre a experiência e uma experiência. E, 
segundo, a diferença entre viajante e turista. São dois blocos de conceitos que precisam ser 
discutidos, particularmente quando tratamos de trabalho de campo – que envolve tanto 
experiências quanto viagens. Além disso, ela coloca em perspectiva o que é fazer pesquisa 
num contexto que lhe é bastante familiar de alguma forma. 
 
Alinne: E é exatamente sobre uma questão semelhante que o texto de Isabel Santana de Rose 
nos incita a pensar: como lidar com as tensões e os conflitos advindos de um processo de 
investigação no qual interesse pessoal e interesse antropológico se confundem e misturam? 
Ao trazer dados da sua experiência de campo numa comunidade do Santo Daime no interior 
de Minas Gerais, sendo ela mesma uma daimista, Isabel reflete sobre como lidar com os 
limites e interdições rituais da sua crença e o processo de estranhamento e relativização 
inerentes ao ofício da Antropologia. Essas questões se agudizam, nesse caso, quando se inclui 
a variável de gênero. 
 
Soraya: Há uma outra conseqüência desta relação entre interesse pessoal e antropológico que 
gostaria de ressaltar, porque aparece em muitos dos textos da coletânea. Isabel menciona que 
essa confluência de interesses é comum no campo de estudos da religião. No entanto, outros 
textos também trazem essa mesma preocupação, como, por exemplo, quando tratam de temas 
que envolvem ativismo político. Como lidar com as simpatias às causas dos grupos 
pesquisados? Quais os limites do engajamento solicitado aos pesquisadores/as? Como 
encaixar os desencantamentos e reconfigurações das nossas crenças pós-pesquisa? Bem, esse 
 28
conjunto de questões – que de certa forma está contemplado no livro – já daria um novo livro. 
Quem sabe não nos embrenhamos nessa nova empreitada, Alinne? 
 
Alinne: Desafio aceito! (Risos). Eita, falamos pelos cotovelos, não? Quase nem te deixamos 
falar… (Risos). Mas acho que sobre os textos é isso… (Ambas pensam alto e repetem os 
nomes das autoras. Me apresso em introduzir outra pergunta, antes que elas me metralhassem 
novamente). 
 
Entrevistadora: Parece ter ficado um conjunto interessante! Mas é curioso que na coletânea 
não se encontre um texto de vocês. Era de se esperar que, dadas as motivações que as levaram 
a conceber o livro, vocês quisessem também contar das suas experiências de campo. Por que 
não escreveram nenhum artigo? 
 
Soraya: Pois é, essa é uma pergunta que nos tem sido feita recorrentemente. A idéia inicial era 
essa, a de que também pudéssemos compartilhar um pouco das saias justas que cada uma de 
nós vivenciou nos nossos campos. No entanto, por um lado, organizar um livro a quatro mãos, 
à distância, em meio ao nosso trabalho de campo e toda a demanda no que isso implicou nos 
absorveu completamente. Foram, como já dissemos, longos meses de intenso trabalho na 
produção do livro. Por outro lado, recebemos tantos textos, ricos e diversos que consideramos 
o livro muito bem representado. Assim, abrimos mão de um texto individual de cada uma de 
nós e resolvemos investir na reflexão sobre a própria experiência de fazer o livro. Fizemos a 
nossa contribuição, dessa forma, com a escrita da introdução inspirada nos moldes do que foi 
o processo inteiro: artesanal, experimental e a quatro mãos. 
 
Alinne: E foi, novamente, uma experiência e tanto! (Elas trocam olhares de cumplicidade e 
caem na gargalhada). A idéia de fazer uma introdução um pouco heterodoxa, que refletisse de 
maneira lúdica e ao mesmo tempo instrutiva o processo de construção do livro foi da Soraya. 
Numa das nossas reuniões sobre o livro, em que discutíamos sobre como construir a 
introdução, ela teve uma idéia e disse que faria um rascunho-surpresa para depois 
trabalharmos em cima. Alguns dias depois, eis que surge em minha caixa de mensagens ume-
mail intitulado: “exercício delirante”. “Ai, ai, ai, o que foi que ela inventou agora!”, pensei. 
Quando abri o anexo, fiquei maravilhada. Dando vazão a sua veia literária, Soraya tinha feito 
um exercício não delirante, mas super criativo ao tentar criar uma situação ficcional que 
mimetizasse a experiência de uma jovem antropóloga em campo, entrevistando duas 
 29
antropólogas sobre as suas experiências de campo. A base das perguntas e respostas foram as 
nossas conversas, nossas trocas de e-mails, as mensagens que recebemos. Confesso que a 
minha primeira reação, quando li o rascunho, foi de emoção. Estava registrado ali o 
inventário, meio ficcional, meio etnográfico, do processo de concepção e produção do livro. E 
além de tudo, era divertido e diferente, seguindo bem de perto o espírito que nos levou a 
realizar esse projeto. Obviamente adorei a idéia, embarquei nela rapidamente e tudo começou 
novamente. Comentários, mais idéias, mais diálogos e, enfim, conseguimos finalizar a 
introdução experimental pro nosso livro. Um ensaio em que já não sabemos muito bem onde 
finda a Antropologia e começa a ficção; onde está o retrato do real e as viagens do imaginado, 
onde começa a idéia de uma e termina a opinião da outra. Enfim, uma brincadeira séria com o 
ofício da escrita etnográfica e aquela concepção da etnografia como ficções, no sentido 
atribuído por Clifford Geertz.12 
 
Soraya: Ah, olha só, a gente trouxe um exemplar do “Saias” pra você. Esperamos que lhe seja 
útil! E também esperamos sua reação. Fizemos uma dedicatória porque não só foi uma super 
gentileza você vir conversar com a gente sobre o livro, como acreditamos muito na sua 
pesquisa. Afinal, a história da Antropologia passa também pelos seus quadros em formação, 
não apenas pelos seus cânones estabelecidos. 
 
Agradeci o presente, meio timidamente. Não esperava recebê-lo. Disse-lhes que leria com 
muita atenção e curiosidade. Ainda mais depois da conversa que tivemos. A essa altura, todas 
nós já demonstrávamos sinais de cansaço. Logo em seguida encerrei a entrevista, agradecendo 
a disponibilidade das duas. Passamos a falar de amenidades: sobre o calor que àquela altura já 
abrandava, os doces maravilhosos da confeitaria e os riscos que representam à balança e o 
livro que Alinne lia a minha chegada. Enquanto esquecíamos temporariamente dos chajás em 
função da nossa conversa, ela me explicou: “‘O amor de Pedro por João’ é de um escritor 
gaúcho e retrata a história do reencontro de um grupo de ativistas políticos gaúchos em 
meados da década de 70”. Ainda segundo ela, “Este é o meu livro predileto. Reli várias vezes 
e sempre descubro coisas novas. Acho-o etnograficamente inspirador! Vale a pena!”. 
Sugestão registrada. Só nos demos conta de que se passara muito tempo, quando aquele 
mesmo segurança com quem me deparei na porta da confeitaria tinha entrado e caminhava, 
com um certo ar de impaciência, por entre as mesas agora vazias do salão. Entreolhamo-nos e 
 
12 GEERTZ, Clifford. “Por uma teoria interpretativa da cultura”. In ___. A interpretação das culturas. Rio de 
Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1989. 
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caímos na risada. Rapidamente pagamos a nossa conta e saímos. Na frente da confeitaria nos 
despedimos, trocamos desejos de sorte em nossas atividades e cada uma seguiu para um lado 
diferente. Depois, peguei o ônibus que me traria de volta a minha casa, de onde escrevo agora 
esse diário, com tantas idéias sobre a nova geração de antropólogas que transitam pelo Rio 
Grande do Sul. Logo começarei a minha incursão pelo “Saias”, como o chamam Soraya e 
Alinne. Vejamos que surpresas me aguardam... 
 
 
 
Alinne Bonetti e Soraya Fleischer 
Porto Alegre, verão (escaldante) de 2006. 
 
 
 
 
 
 
 
 31
CAPÍTULO 1 
 
 
VICISSITUDES DA SUBJETIVIDADE: 
AUTO-CONTROLE, AUTO-EXORCISMO E LIMINARIDADE 
NA ANTROPOLOGIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS 
 
Carmen Susana Tornquist 
 
 
Este artigo é uma versão modificada do primeiro capítulo da tese de Doutorado Parto 
e Poder: Análise do movimento pela humanização do parto no Brasil, da qual fizeram parte 
três etnografias: uma feita junto a dois cursos de capacitação de parteiras tradicionais, no 
interior de Minas Gerais, outra, feita em uma Maternidade no Sul do Brasil e, por fim, a 
etnografia do movimento social propriamente dito, com destaque aos seus rituais a nível 
nacional e local. A forma de organização deste movimento segue uma tendência considerada 
recorrente nos movimentos sociais contemporâneos, a saber, em redes ou em teias, 
articulando grupos e pessoas no âmbito local, regional e internacional, conforme veremos 
depois. 
 Neste artigo, tratarei das questões ligadas à subjetividade que surgiram no âmbito das 
duas primeiras, mais particularmente, aquelas que vivenciei a partir de minha participação no 
âmbito do movimento a nível local, o qual, doravante, chamarei de Grupo Local. 
 
1 Confissões 
 
A primeira vez que senti uma perturbação, no sentido estrito do termo, sobre meu 
próprio sistema de crenças foi quando uma amiga, vinda de outra região do Brasil, 
observando minha preocupação excessiva em fazer uma alimentação natural, comentou: “Lá 
em casa a gente come qualquer coisa, somos uma família simples, não temos esse jeito 
naturalista das classes médias do sul [do Brasil]”. Essa fala me deixou profundamente 
irritada, mas não consegui responder absolutamente nada diante do impacto com tal 
afirmação. Nos meses que se seguiram, tal frase não me saía da cabeça e foi, então, que se 
iniciou o processo de estranhamento do familiar que acredito ser o início do processo de 
construção deste trabalho. Era a primeira vez que alguém que eu supunha ser igual a mim 
procedia a um estranhamento sobre meus hábitos vegetarianos e o associava a um estilo de 
 32
vida e ao pertencimento de classe e a uma região. Na sua observação, ficava clara a 
constatação de que este jeito natural era na verdade construído no cotidiano de um contexto 
social muito específico (camadas médias urbanas do Sul) e que sustentar este estilo de vida 
requeria trabalho e esforço – não era fácil ser naturalista, ou seja, o modo de vida natural era 
construído culturalmente por um determinado grupo social. Muitos anos se passaram e outras 
situações similares se sucederam àquela primeira dose de choque cultural. Foi necessário 
realizar um esforço de simbolizar um processo também existencial, o momento estomacal, 
cunhado por Roberto da Matta (1974), em seu clássico texto acerca do trabalho de campo, 
exercício radical de relativização de um universo do qual eu faço parte, desconstruindo 
subjetividades até então compartilhadas por mim, entre elas, a forma natural de dar a luz, 
motivação que me levou à escolha da temática da humanização do parto ou, como tratarei 
doravante, deste texto, do Parto Humanizado. 
 Assim como muitas pessoas da minha geração e de meu meio, eu era uma ativista 
ecológica e pacifista nos anos 80, e foi no livro “Aprenda a fazer Movimento Ecológico” 
(Minc,1984), que escutei as primeiras referências sobre o parto natural, feito de cócoras. Dizia 
o autor, em tom quase confessional, mas buscando socializar sua experiência familiar: minha 
companheira resolveu dar à luz de cócoras, como os índios. Certamente o autor conhecia o já 
famoso livro sobre Parto Indígena (Paciornik, 1982), pois eram pessoas como ele as que se 
interessavam pelo assunto (esquerdistas, ecologistas, pacifistas, talvez feministas). E, tal qual 
estes ensinamentos, eu dei à luz, alguns anos depois, à minha primeira filha em casa, de 
cócoras, com apoio de um médico ecologista e pessoas amigas, bem como,evidentemente, 
meu companheiro. O nome do bebê foi escolhido cuidadosamente no repertório onomástico 
alternativo e acredito que tenha chancelado, durante a pesquisa, minha legitimidade no 
movimento social, e, mais especificamente, no Grupo Local. Afinal, eu havia seguido uma 
trajetória familiar muito comum, na década de 80, entre jovens pertencentes a camadas 
médias urbanas, segundo a análise de Tânia Salem (1983): migrara de um grande centro 
urbano para uma cidade menor, à beira-mar, fugindo da poluição e da correria da cidade 
grande, em busca de um estilo de vida conhecido como “alternativo”, que incluía um conjunto 
de práticas e valores naturalistas e contraculturais, do qual fazia parte o projeto do casal 
grávido e do parto natural, dentro de um universo ético específico. Neste contexto, a gravidez 
era fruto de uma escolha conjugal, e nosso parto era visto como um grande acontecimento de 
nossa vida alternativa, como projeto que consolidava esta identidade de família alternativa. 
Nós tínhamos lido e relido os livros de Fernando Gabeira, tanto Vida Alternativa, posterior a 
seu clássico O Que é isto, companheiro?, no qual fazia um balanço dos equívocos da 
 33
esquerda dos anos 60 e sintetizava algumas idéias que vinham configurando algo como uma 
esquerda alternativa (não-autoritária, pacifista, ecologista, feminista). Assim, embalada por 
ideologias de mudanças e de ruptura com o modo de vida burguês e urbano, minha opção de 
vida aproximava-se dos parâmetros que Gilberto Velho atribui aos profissionais de camadas 
médias cariocas, valorização do vanguardismo, da originalidade e de um certo aristocratismo 
ligado à valorização da diferença, da transgressão e da inovação (Velho, 1998), sendo que 
estes últimos aspectos são típicos do ideário individualista-igualitário, típico da geração 
contracultural o qual teve como desdobramento mais recente o modo de vida alternativo 
(Salem,1989). Foi assim que pensar sobre este universo alternativo – enquanto, de certa 
forma, ainda o vivia – e sobre o parto, foi a um só tempo um projeto acadêmico e um 
processo existencial. Como estranhar o que me era tão familiar? Ou melhor, como perceber o 
que neste familiar estava relacionado com esta escolha, com esta arbitrariedade que representa 
um estilo de vida – seja por tendência sociológica, seja por opção? Como relativizar, efetiva e 
profundamente, que o que eu julgava certo pudesse ser apenas fruto das arbitrariedades da 
cultura? Na própria escolha do objeto da pesquisa, eu me defrontava com o clássico desafio 
de estranhar o familiar, tanto no sentido que lhe atribui Velho (1982) como no sentido literal: 
era meu modo de vida familiar que estava sendo, aos poucos, problematizado. 
Passo, agora, a desenvolver mais especificamente as vicissitudes do trabalho de campo 
no que se refere a esta dimensão e àquela relativa às minhas relações com o movimento social 
pela humanização do parto, propriamente dito, faceta militante deste ethos alternativo. 
 
2 Tensões n(d)o campo 
 
A antropologia das sociedades urbano-industriais exige que o estabelecimento de 
fronteiras, tênues do ponto de vista geográfico e social, sejam estabelecidas simbolicamente 
pela pessoa que faz a pesquisa, já que os contatos com o universo de estudo, e, sobretudo, 
com as pessoas que transformamos em nativas, não cessam nunca – desde o insight 
inaugurador do próprio projeto até o derradeiro momento de finalização da escrita. Acredito, 
no entanto, que, quando estamos envolvidos com nossos nativos (daí o abuso do pronome 
“nosso”), seja por proximidade geográfica, afetiva, política, geográfica ou simbólica, costuma 
acontecer o contrário: queremos, em um determinado momento, abandonar o campo, mas, eis 
que nem sempre este campo – feito de pessoas de carne, osso, idiossincrasias, hormônios, 
expectativas – não nos abandona. Pelo menos, foi a experiência que vivi em campo, marcada 
por sucessivas tentativas de ruptura com particularmente com o Grupo Local, com o qual a 
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relação era mais contínua e intensa, seguidas de sucessivas desistências: era como se, a cada 
tentativa minha de “abandonar” o grupo para dedicar-me totalmente à tese (o que implicava 
em tempo cronológico e distanciamento simbólico), eu vacilasse diante das urgências do 
ativismo, nas pautas sempre cheias do Grupo Local e da Rede Nacional, e diante das quais eu 
não conseguia me abster. Ora se tratava da organização de um evento importante, ora a 
realização de uma reunião decisiva para a consolidação da Lei do Acompanhante,13 ou aquele 
necessário mutirão para despachar certificados dos participantes do Evento, ou ainda, a 
fundamentalíssima tarefa de formalizar a existência do grupo na Rede nacional e/ou como 
núcleo institucional da Universidade, e assim sucessivamente. Tais atividades, que quando eu 
estava, mais tarde, a uma certa distância, me parecia comum à dinâmica dos movimentos, cuja 
temporalidade é feita de urgências, mas que, quando ainda estava imersa no campo, me 
parecia efetivamente ímpares e imperdíveis. Além disso, havia uma certa pressão de alguns 
colegas do próprio Grupo Local, legitimada por mim, de que A Academia era uma torre de 
marfim. Ou seja, o grupo, de um lado valorizava o campo acadêmico, mas, de outro, 
rechaçava as tentativas, vistas como individualistas, daqueles que priorizavam escrever 
artigos, dissertações, teses e livros, vistas como desligadas do cotidiano das pessoas, no caso, 
das mulheres usuárias dos serviços de saúde. 
E este argumento, no contexto de uma sociedade como a brasileira, onde grande parte 
dos pesquisadores está engajada com projetos de transformação social e/ou extensão de 
direitos, tem um peso por demais significativo e nos empurra para a desconfortável posição de 
quem veste uma saia extremamente justa. As nossas tentativas de fuga, exílio temporário para 
pensar, escrever e concluir nossos trabalhos acadêmicos são, não raro, contrabalançadas com 
novos convites, quando não convocações, para o ativismo, participação, intervenção, 
posicionamento. Tais observações não são novas na antropologia brasileira, marcada por seu 
comprometimento com grupos desviantes e marginalizados da sociedade nacional: a dívida 
perpétua que temos com estes grupos, ainda que nem sempre consubstanciados em atores 
coletivos, parece ser o fator decisivo nas dificuldades que estabelecemos com nossos 
interlocutores mais imediatos, particularmente esta relativa à busca de consentimento para um 
afastamento temporário do grupo. Muito mais do que relações abstratas com idéias de 
mudança e de direitos, as relações entre antropólogos e movimentos sociais são muito 
 
13 A primeira atividade do Grupo Local foi encaminhar, seguindo orientação da rede nacional, uma campanha 
pelo direito das mulheres escolher alguém para lhes acompanhar no parto. Esta atividade foi assumida pelo 
Grupo, que buscou apoio de uma deputada estadual, processo que resultou na aprovação da lei 12.333/02/em 
Santa Catarina, e, depois, de projeto de lei federal similar, Lei n. 195/2003, que “concede a parturiente a escolha 
de um acompanhante durante o processo do parto.” 
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concretas: os “ativistas” são sujeitos de carne e osso, conhecem nossas agendas, e contrapõem 
a estas as urgências da prática e as vicissitudes da política. Estamos num contexto permeado 
pela lógica da reciprocidade: o trabalho de campo nos endivida, precisamos retribuir a dádiva 
e não somos exatamente nós que detemos o controle de sua temporalidade. Pierre Bourdieu 
(1996) assinala este aspecto (da dúvida sobre a temporalidade da contra-dádiva), peculiar, do 
sistema de dádiva: não há uma temporalidade prevista ou explícita, ela se insinua na relação

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