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Jessé de Souza - O Estado de todas as culpas - Aliás - Estadão

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4/21/2015 O Estado de todas as culpas, por Jessé Souza ­ Aliás ­ Estadão
http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o­estado­de­todas­as­culpas­por­jesse­souza,430094 1/3
JESSÉ SOUZA*
05 Setembro 2009 | 14h 47
Ele é só associado à ‘politicagem’. E o mercado, à ‘racionalidade’: eis a trava do debate público no Brasil
O debate público e político brasileiro, há algumas décadas, é travado sob a forma de um suposto conflito entre mercado e Estado. A atual
discussão sobre o petróleo do assim chamado pré­sal apenas o confirma. Assim sendo, se quisermos compreender efetivamente o que está
em jogo nesse debate conjuntural sobre o que fazer com o dinheiro do petróleo recém­descoberto ­ assim como compreender os debates
conjunturais do passado recente e dos que ainda vão acontecer no futuro próximo ­ temos que focar nossa capacidade compreensiva na
reconstrução da estrutura invisível presente em todas essas situações conjunturais passageiras. O tema do debate muda ao sabor das
circunstâncias. Sua "estrutura profunda", no entanto, permanece a mesma. Qual é a estrutura profunda nunca tematizada enquanto tal
na mídia? O Estado é sempre suspeito de "politicagem" e de "aparelhamento" por indicações políticas e o mercado é definido como
instância "técnica", ou seja, reflexo da "racionalidade pura" e do "cálculo técnico". Um é a esfera do "privilégio inconfessável" e o outro o
reflexo da "razão técnica" supostamente no interesse de todos. É isso que explica o foco constante e diário na "corrupção política" como a
lembrar ao público onde está o mal e onde está o bem. Como tudo no mundo social, essa é uma realidade "construída", fruto de uma
leitura seletiva e interessada do mundo.
 
Veja também:
link
 
Como a recente crise mundial mostrou sobejamente (já nos esquecemos dela?), a corrupção é endêmica tanto no mercado quanto no
Estado em qualquer latitude do globo. A mitigação da corrupção em qualquer esfera da vida ocorre quando os mecanismos de controle
ganham eficiência. A leitura seletiva do Estado como ineficiente e corrupto e do mercado como pura virtude esconde a ambiguidade
constitutiva dessas duas instituições que podem servir ao bem ou ao mal conforme seu uso. Por que a "dramatização" cotidiana mil vezes
repetida de justamente essa visão distorcida do mundo? A meu ver porque ela é o núcleo mesmo da violência simbólica ­ aquele tipo de
violência que não "aparece" como violência ­ que torna possível a manutenção e a reprodução continuada no tempo da sociedade
complexa mais desigual e injusta do planeta.
 
O mundo social não é perceptível a olho nu. Pode­se ver a pobreza e a desigualdade nas ruas e não se perceber suas causas. O brasileiro
das ruas aprendeu a vincular as mazelas sociais do Brasil à corrupção política. A tese do Estado corrupto ­ ou a tese do
"patrimonialismo" na sua versão erudita igualmente conservadora e frágil ­ mata dois coelhos com uma mesma cajadada. Como o
conflito que ela cria é falso de fio a pavio ­ na realidade, mercado e Estado são interdependentes e igualmente ambivalentes ­, ela ajuda a
fabricar uma realidade que permite esconder todos os conflitos sociais reais. Pior ainda. Como uma falsa oposição é dramatizada como
"conflito", tem­se a impressão de que existe efetivo debate crítico entre nós, de que temos uma esfera pública atuante, uma mídia atenta e
crítica e um país politicamente avançado, quando a realidade é, ponto por ponto, precisamente o inverso.
O Estado de todas as culpas, por Jessé
Souza
4/21/2015 O Estado de todas as culpas, por Jessé Souza ­ Aliás ­ Estadão
http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o­estado­de­todas­as­culpas­por­jesse­souza,430094 2/3
 
 
A dramatização do Estado ineficiente e corrupto serve como fachada para "representar" a política sob a forma simplista, subjetivada e
maniqueísta das novelas, enquanto se cala e se esconde acerca das bases de poder real na sociedade. Toda a aparência é de "crítica
social", enquanto toda ação efetiva é a da conservação dos privilégios reais. Assim, fala­se do combate aos "coronéis" e às "oligarquias" ­
sempre caricatamente nordestinas como o bigode de Sarney ­ enquanto escondem­se as reais novas oligarquias responsáveis por
abocanhar quase 70% do PIB sob a forma de lucro ou juros reduzindo os salários a pouco mais de 30%. Nos países europeus social­
democratas essa proporção é inversa. As falsas oposições escondem oposições reais. O falso "charminho crítico" da dramatização do
Estado ineficiente e corrupto serve para esconder e desviar a atenção para a luta de classes que cinde o país entre privilegiados que
possuem um exército de pessoas para servi­los a baixo preço e dezenas de milhões de excluídos sem nenhuma chance nem esperança de
mudança de vida.
 
Para todo um exército de analistas que se concentram no "teatro" da política ­ com suas fofocas e escaramuças diárias entre senadores e
deputados com poder decisório entre o nada e o muito pouco ­ falar­se em "luta de classes" é um tabu. Luta de classes é coisa do
passado, tem a ver com greves de trabalhadores e sindicatos que estão desaparecendo ou perdendo importância. Essa é a cegueira da
política como "espetáculo" pseudocrítico para um público acostumado à informação sem reflexão. A luta de classes só é percebida nas
raras vezes em que as classes oprimidas logram alguma forma de reação pública eficaz. Condenam­se ao esquecimento todas as formas
naturalizadas e cotidianas do uso e abuso do trabalho barato e não valorizado. Um pequeno exemplo. O exército de babás, empregadas,
faxineiras, porteiros, office­boys, motoboys, que permitem que a classe média brasileira possa dedicar seu tempo a trabalhos valorizados e
bem pagos relegando o trabalho pesado e mal pago a outra classe de seres humanos que tiveram o azar de nascer na família (e na classe
social) errada. Isso não é "luta de classes"? Apenas porque não há piquetes, polícia e sangue nas ruas? Apenas porque essa dominação é
silenciosa e aceita, dentre outras coisas porque também eles, os humilhados e ofendidos, ouvem todo dia que o nosso único mal é a
corrupção no Senado ou em algum órgão estatal?
 
E para as classes média e alta? Não é um verdadeiro presente dos deuses ter privilégios que nem seus consortes europeus ou norte­
americanos possuem e ainda poder ter a consciência tranquila de quem sabe que o mal do Brasil está em "outro" lugar, lá bem longe em
Brasília, um "outro" abstrato, mau por definição, em relação ao qual podemos nos sentir a "virtude" por excelência? Não se fecha com
isso um círculo de ferro onde necessidades sociais e existenciais podem ser manipuladas por uma política e uma mídia conservadora e
seu público ávido por autolegitimação e por consciência tranquila?
 
Para Max Weber ­ pensador crítico mal lido entre nós como inspiração para a tese do patrimonialismo ­ os ricos, saudáveis e charmosos,
em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos, saudáveis e charmosos. Eles querem saber que têm "direito" a
serem ricos, saudáveis e charmosos em oposição aos pobres, doentes e feios. É essa necessidade o verdadeiro fundamento e razão do
sucesso da tese da suspeição do Estado entre nós. Ela serve como uma luva para não perceber e naturalizar um cotidiano injusto e ainda
transferir qualquer responsabilidade para uma entidade abstrata e longínqua, garantindo boa consciência e aparência de envolvimento
crítico na política.
 
A cortina de fumaça do falso debate acerca da demonização do Estado serve para deslocar a única e verdadeira questão do Brasil
moderno: uma desigualdade abissal que separa gente com todos os privilégios, de um lado, de subgente sem nenhuma chance real de
uma vida digna desse nome, de outro lado. O culpado desse crime coletivo não é apenas o bigode de Sarney. É toda uma sociedade
infantilizada por falsos debates e por falsas prioridades e que ainda se pensa ­ suprema autoindulgência ­ como crítica e atuante. Esse
projetopolítico não é de partidos, até porque o consenso conservador atinge todos indistintamente. As tímidas iniciativas de política
social do atual governo, por exemplo, são mero paliativo da efetiva redenção dos secularmente humilhados e ofendidos. O que fazer com
os recursos do pré­sal poderia e deveria ser o estopim para um novo debate brasileiro, corajoso, maduro e generoso, por oposição ao
debate covarde, infantil e mesquinho que temos hoje.
 
*Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora, é autor
de A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive, a ser publicado em outubro pela UFMG

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