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Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009. 497 OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal, EST; Petrópolis: Vozes, 2007. 224p. O campo religioso é um campo da experiência humana que apresenta algo próprio, que aparece só nele: a religião não se esgota em seus enunciados racionais. Ela também é composta pelo enunciado irracional, isto é, pelo indizível, que foge totalmente à apreensão conceitual, uma vez que nenhum conceito esgota a idéia de divindade. O termo sagrado (heilig) sempre esteve ligado a atributo moral no campo religioso. Porém, Otto esclarece que em línguas antigas esse termo significava algo mais e que outros significados são reinterpretações racionalistas do termo. Em relação à obra O sagrado..., Otto pretendeu acima de tudo descrever e analisar como as pessoas reagem diante do sagrado. Abandona enfoques tradicionais que até então relatavam testemunhos da história da religião e apresenta um novo enfoque que transfere da teologia para a religião todas as indagações acerca das experiências e vivências humanas do sagrado como constitutivas do fundamento da religião. Diante de um autor tão singular e de uma trajetória de vida ímpar para sua época, e que prende a atenção de pesquisadores contemporâneos, vale conhecer um pouco sobre ele próprio antes de resenharmos os 23 capítulos do seu livro. Rudolf Otto nasceu em 25 de setembro de 1869, em Peine, Alemanha. Era pastor, filósofo e teólogo. Na década de 1880, concluiu o segundo grau, em Hildesheim, e iniciou seus estudos teológicos, em Erlangen. Em 1891, RESENHAS Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009.498 continuou seus estudos em Göttingen, período em que foi profundamente marcado por Theodor von Haering, professor de Teologia Sistemática. Em 1898, concluiu seu doutorado com uma tese sobre As concepções do Espírito Santo em Lutero. Em 1899, tornou-se Livre Docente em Teologia Sistemá- tica. Em 1904, foi nomeado professor extraordinarius na Universidade de Göttingen. Nesse mesmo ano, foi publicada a sua obra Naturalistische und religiöse Weltansicht [As visões naturalista e religiosa do mundo]. Em 1915, Otto assume a cátedra de Teologia Sistemática em Breslau/Wroclav. Em 1917, época em que a Primeira Guerra Mundial aproximava de seu fim na Europa, sucedeu o teólogo sistemático Wilhelm Hermann, em Marburg. Nesse mesmo ano, em Breslau/Wroclav, era publicado o clássico da literatura teológica e da filosofia da religião O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional, obra que dedicou a Theodor von Hae- ring e que se tornou um best-seller que o fez mundialmente famoso. Essa publicação levou Marburg à fama de Meca das Ciências da Religião. Seu gosto insaciável por viagens e seu jeito introspectivo são dois as- pectos importantes e interligados de sua vida, que bem expressam o que ele vivenciou e sofreu. Quanto às viagens, Otto não as fazia em prol de estudos, mas, sim, com a finalidade de obter experiência. Entre 1881 e 1928, ele foi aos seguintes lugares: Grécia (1881); Oriente (1895, Egito, Jerusalém, Beirute, Lemmos, Monte Athos); Finlândia e Rússia (1900); Tenerife, África do Norte (1911); Índia (Lahore, Calcutá, Orissa, Rangun), Japão, China e Sibéria (1911-1912); Oberlin, Ohio, e Itália (1924); Suécia (1926); Ceilão, Mandurai, Madras, Egito e Palestina (1927-1928). Na viagem de 1895, quando esteve na Ásia, Otto adoece várias ve- zes. Há quem afirme que Otto tenha contraído malária nesse período. Ele sofria também episódios depressivos, que se expressavam em seu semblante meditativo, introspectivo, e que o levou à aposentadoria antecipada. Em 1936, Otto faz uso de morfina contra dores de uma fratura do fêmur e passa a sofrer com sintomas de dependência de tal medicamento. Em 1937, tal dependência, em conjunto com as depressões, levam-no a ser internado em uma clínica psiquiátrica, em Marburg, como precaução de médicos que temiam que ele se suicidasse. Um mês depois, Otto ali faleceu. Segundo Brandt, O sagrado... revela “o etos de um cientista desejoso que sua obra sobre o sagrado como categoria central da religião tenha fundamento próprio, independente da condição de seu autor” (p. 15), de quem o escreveu du- rante a Primeira Guerra Mundial e que sofreu enfermidade física e psíquica. Retornando ao foco principal de resenhar a obra, passaremos a apre- sentar as descobertas de Otto em relação a como as pessoas reagem diante Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009. 499 do numinoso, como o numinoso as atinge e como o sagrado, origem de toda religião, exprime-se em suas diversas formas. Nos 23 capítulos, autor concentra-se em três fases divididas em temas oriundos da teologia cristã, de questões de Filosofia e Psicologia da Religião e de trabalhos comparativos entre religiões, especialmente do Extremo Oriente, para onde fez várias viagens. No primeiro capítulo, o autor ressalta “como o ser humano o per- cebe em si mesmo de forma limitada e inibida” (p. 33), por meio do título Racional e Irracional. Ele apresenta como racional a essência da divindade descrita por conceitos claros e expressa o a priori como o conceito e o a posteriori como o sentir. Então ele comenta que o cristianismo é uma forma de religião que mais possui clareza, nitidez e completude em seus conceitos. Esclarece que toda linguagem pretende transmitir conceitos, porém de forma alguma conceitos esgotam a idéia da divindade, portanto a religião não se esgota em seus enunciados racionais. O sagrado, segundo Otto, é uma categoria inderivável. Ele é uma categoria composta. Composta por- que apresenta componentes racionais (conceitos) e irracionais (indizíveis). Esses componentes, entretanto, são categorias estritamente a priori. Esse a priori é inerente à psique humana independentemente de percepção, isto é, está implantado no próprio espírito humano como sua primeiríssima origem. Assim, percebe-se que mesmo que todo conhecimento comece pela experiência não quer dizer que ele derive da experiência. O conhecimento empírico é apenas desencadeado por impressões sensoriais, pois já é uma capacidade cognitiva interior. A experiência do sagrado antecede todo e qualquer conceito de Deus. Portanto, para Otto, toda tentativa de extrema racionalização do sagrado é condicionada. A partir do segundo capítulo, o autor vai traçando aspectos do sa- grado. No segundo capítulo, O Numinoso, Otto relata de essa categoria é sui generis e que por isso não pode ser definida, mas somente discutida. No terceiro, apresenta o sentimento de criatura como aquilo de “afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura” (p. 41) diante de uma sensação de superioridade absoluta do numinoso. No quarto, informa sobre o misterium tremendum do numinoso em seus os aspectos arrepiante, avassalador, energético, totalmente outro. O quinto capítulo traz hinos numinosos cujas criações literárias expressam a diferença entre uma glorificação meramente racional da divindade e uma sensação irracional do numinoso. O sexto capítulo refere o aspecto fascinante do numinoso, uma harmonia de algo distanciador e atraente ao mesmo tempo, “não é apenas o fundamento e o superlativo de tudo que seja cogitável. Deus em si Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009.500 mesmo ainda é algo à parte” (p. 78). O sétimo capítulo apresenta o aspecto assombroso do numinoso, que ultrapassa nossa capacidade de imaginação espacial, que é aterrador, incomparável, enigmático. No oitavo, o autor diz que a harmonia de contrastes no teor e na qualidade do mistério que ten- tamos e não conseguimos descrever pode servagamente insinuada por uma correspondência oriunda não da religião, mas da estética. O nono apresenta o sanctum como valor numinoso, seu aspecto augustum, o sentimento de a pessoa se sentir absolutamente profana diante de Deus. A partir do décimo capítulo, o autor faz uma retrospectiva sobre toda a investigação desenvolvida até o nono capítulo e passa a apresentar discussões sobre o emprego do termo ‘irracional’ nas mais diferentes áreas, então expressa o irracional como “um evento um tanto singular, que por sua profundidade foge à interpretação inteligente” (p. 97) e o racional na idéia do divino como “aquilo que nela pode ser formulado com clareza, compre- endido com conceitos familiares e definíveis” (p. 97-8); informa também os meios de expressão do numinoso (capítulo 11); exemplos do numinoso no Antigo Testamento (capítulo 12), no Novo Testamento (capítulo 13), em Lutero (capítulo 14). No capítulo 15, o autor apresenta a evolução histórica do termo ‘santo’ do Novo Testamento a como está atualmente fixado em nossa sensibilidade lingüística religiosa, ou seja, “deixou de ser o meramente numinoso em si, nem mesmo no grau supremo deste, mas está agora sempre impregnado e saturado com elementos morais e pessoais dotados de finalidade” (p. 148). No capítulo 16, trata do sagrado como categoria a priori, isto é, existente no espírito humano independentemente da experiência. No capítulo 17, ele traça o surgimento histórico e o desenvolvimento da religião na história, retomando certas coisas que pouco se parecem com a religião como a entendemos hoje como, por exemplo, crença nos mortos e culto aos ancestrais, feitiço, contos, mitos, adoração de objetos da natureza entre outros. No capítulo 18, expõe os aspectos brutos e de receio demoníaco dos primórdios da história da religião. No 19, dedica-se ainda ao sagrado como categoria a priori , uma segunda parte do capítulo 16, ressaltando que o caráter apriorístico do sagrado é responsável pela ligação entre os elementos racionais e irracionais na religião. O capítulo 20 fala das manifestações do sagrado, enfatizando a natureza da faculdade da divinização, a capacidade de conhecer e reconhecer genuinamente a sagrado em sua manifestação. Nos capítulos 20 e 21, Otto se estende à divinização no protocristianismo e no cristianismo de hoje, respectivamente, em especial se a protocomunidade experimentou e conseguiu vivenciar o sagrado em e por meio da pessoa Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009. 501 de Cristo e se ainda hoje conseguimos. No capítulo 23, o autor trata do a priori religioso e história, da relação entre razão e história, pois, segundo Otto, toda religião que busque cognição própria d sua verdade deve pres- supor princípios cognitivos segundo os quais a pessoa possa reconhecê-la como uma religião verdadeira. O anexo I compreende três criações literárias numinosas. O anexo II é composto de quinze adendos. Os trabalhos de revisão e tradução merecem elogios, pois demons- tram que a pessoa foi minuciosa no momento das adequações gramaticais, respeitando o estilo do autor acima de tudo. Evidentemente, quando se trata de tradução, o leitor pode indagar se houve deslize na tradução ou se o autor apresenta mesmo construções um tanto neboluminosas nas estruturas de pensamento quando nos deparamos com trechos como o seguinte: “Dizemos isso para pelo menos dizer alguma coisa. Imediata- mente, porém, fica evidente que com isso, a rigor, não estamos dizendo coisa alguma...” (p. 45). Em relação ao projeto gráfico da obra, houve uma boa escolha do tipo e do tamanho da fonte, assim como da entrelinha, que contribuem para uma leitura fluente. Também foi muito confortável ao leitor a opção do projetista pelo uso das notas em rodapé, embora tenha apresentado uma miscelânea de notas bibliográficas com explicativas que ora apareciam ambas numa mesma nota, ora somente as bibliográficas completas, ora as bibliográficas num sistema semelhante ao das expressões latinas em rodapé que repetem somente autor, ano e página. Destaco ainda que faltou uma lista de referências bibliográficas no final dos capítulos, antes dos anexos. Falando em anexo, na verdade, o segundo anexo trata-se de um adendo aos seguintes capítulos: 4, 6, 10, 11, 14, 16, 17 e 18. Quanto à normalização, o glossário (um elemento pós-textual) é colocado nas páginas pré-textuais, penso que com o intuito de facilitar a consulta para o leitor, entretanto destaco os sublinhados desnecessários em alguns itens. Em se tratando da numeração progressiva de um capítulo ou outro não seguiu o mesmo padrão do início ao fim do livro, partindo ora de uma seção primária para alíneas como no capítulo quarto, ora para nume- rações erradas como nos capítulos oitavo e décimo primeiro. Isso também ocorreu nos anexos cuja numeração progressiva salta de números romanos para ordinais. Além disso, os títulos principais de cada capítulo não apresen- tavam a numeração do sumário nem o mesmo corpo da letra: no sumário, 1.Racional e irracional, na abertura do capítulo, Racional e numinoso em maiúsculas e negrito. Nos capítulos que apresentavam subtítulo não faltou realce para eles: maiúsculas, negrito e itálico! O subtítulo ganhou posição de Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 5/6, p. 497-502, maio/jun. 2009.502 destaque e o título que teria de ter o principal realce foi rebaixado a segundo plano. O excesso de destaques subestima a inteligência do leitor. Sabemos que a publicação de uma obra envolve um conjunto de profissionais cujas decisões devem estar coerentes com o perfil editorial da instituição. Mesmo que editoras tenham maior liberdade em relação ao processo de editoração de textos a serem publicados, ao contrário de trabalhos acadêmicos que devem seguir um rigor quanto à normalização, penso que especialmente publicações feitas por co-edições que envolvem editoras universitárias devem prezar pelas recomendações das normas da ABNT para publicação de livros para que o processo educativo se dê pelo exemplo. Nessa obra em especial, houve incoerências no projeto gráfico, sobretudo quanto à normalização dos elementos que impediu uma uniformização geral da obra. Avaliações de editoração de texto à parte, trata-se de uma pesquisa imperdível. Vale a pena ler a obra! Confira. Keila Matos
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