Buscar

Jacques Rancière O inconsciente estético

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 38 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 38 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 38 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

"França.Br 2009" l'Année de Ia France au Brésil (21avril-15 novembre)estorganisée:
- en France,par le Commissariatgénéralfrançais, leMínistere desAffaires Etrangeres
etEuropéennes,leMinistere de Ia Culture etde Ia Communication et Culturesfrance;
- au Brésil,par le Commissariatgénéralbrésilien,leMinistere de Ia Culture etleMinis-
teredesRelationsExtérieures.
"França.Br2009"AnodaFrançanoBrasil(21deabrila 15denovembro)éorganizado:
naFrança,peloComissariadogeralfrancês,peloMinistériodasRelaçõesExteriorese
Europeias,peloMinistériodaCulturaedaComunicaçãoeporCulturesfrance;
no Brasil,peloComissariadogeralbrasileiro,peloMinistériodaCulturaepeloMi-
nistério dasRelaçõesExteriores.•
Libertlf • Égalirl! • Fraternité
RÉpuBLlQUE FRANÇAISB
JacquesRanciere
o inconsciente estético
TraduçãodeMônicaCostaNetto
editora.34
EDITORA 34
Editora34Ltda.
RuaHungria,592 Jardim Europa CEP 01455-000
SãoPaulo- SP Brasil TellFax (lI) 3816-6777www.editora34.com.br
Copyright© Editora34Ltda.(ediçãobrasileira),2009
L 'ineonscientesthétique© Galilée,2001
A fotoc6piadequalquerfolhadestelivro é ilegaleconfigurauma
apropriaçãoindevidadosdireitosintelectuaisepatrimoniaisdo autor.
Capa,projetográficoeeditoraçãoeletrônica:
Braeher&Malta ProduçãoGrdfiea
Preparação:
LauraRivasGagliardi
Revisão:
CidePiquet
1a Edição- 2009
CIP - Brasil.Catalogação-na-Fonte
(SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ, Brasil)
Ranciere,J acques
R152i O inconscienteestéticoI Jacqucs
Ranciere;traduçãodeMônica CostaNetto. -
SãoPaulo:Ed. 34, 2009.
80 p.
ISBN 978-85-7326-438-8
Traduçãode:L'inconscientesthétique
1.Filosofiafrancesacontemporânea.
2. Estética.3. Psicanálise.I. Titulo.
CDD - 194
o inconscienteestético
Prólogo .
1.O defeitodeum tema .
2. A revoluçãoestética .
3. As duasformasdapalavramuda .
4. De um inconscienteaooutro .
5.As correçõesde Freud .
6. Dos diversosusosdo detalhe .
7. Uma medicinacontraoutra .
Sobreoautor ····················
9
17
25
33
43
51
57
63
79
Prólogo
Dado o título, esclareçoque não falarei,aqui, da
aplicaçãoda teoriafreudianado inconscienteao domí-
nio daestética.1Não falarei,portanto,depsicanáliseda
artenemmesmodosnumerososesignificativosemprés-
timosquehistoriadoresefilósofosdaartepossamterfei-
to dastesesfreudianase lacanianasem particular.Não
tenhonenhumacompetênciaparafalardo pontodevis-
tada teoriapsicanalítica.Mas, sobretudo,meuinteres-
seé bemdiverso.Não procurosabercomo osconceitos
freudianosseaplicamà análisee interpretaçãodos tex-
tosliteráriosou dasobrasplásticas.Pergunto-me,emvez
disso,por queainterpretaçãodessestextoseobrasocupa
um lugarestratégiconademonstraçãodapertinênciados
conceitose dasformasde interpretaçãoanalíticas.Não
estoupensandoapenasnos livros ou artigosqueFreud
dedicouespecificamentea algunsescritoresou artistas,
sejaa biografiade LeonardodaVinci, o Moisésde Mi-
1 O presentetextoresultadeduasconferênciasrealizadasnaÉcole
de Psychanalyse,emBruxelas,emjaneirode 2000,a convitedeDidier
Cromphout.
9
chelangeloou a GradivadeJensen.Pensotambémnas
múltiplasreferênciasatextosouapersonagensliterários
queemgeralsustentamsuasdemonstrações,porexem-
plonasmúltiplasreferênciasdaInterpretaçãodossonhos,
emprestadastantoaosgrandestítulosdaliteraturana-
cionalquantoàsobrascontemporâneas,tantoaoFausto
deGoethequantoàSafodeAlphonseDaudet.
Encararascoisasinversamentenãosignificade-
volveraoinvestigadora questãosobreseusexemplos,
perguntar-lheporqueseinteressa,emparticular,pelo
MoisésdeMichelangeloou poraquelapequenaanota-
çãodosCadernosdeLeonardo.Osprofissionaisdaárea
já nosexplicaramascircunstânciasdaidentificaçãodo
paidapsicanálisecomasTábuasdaLei ouasimplica-
çõesdesuaconfusãoentreum milhafree um abutre.
Nãosetratará,aqui,depsicanalisarFreud.As figurasli-
teráriaseartísticasporeleescolhidasnãomeinteressam
porqueremeteriamaoromanceanalíticodoFundador.
Interessa-mesaberaqueservemdeprovae o quelhes
permiteservirdeprova.Ora,emsuaamplageneralida-
de,essasfigurasservemparaprovaristo:existesentidono
queparecenãoter,algodeenigmáticono queparece
evidente,umacargadepensamentono quepareceser
umdetalheanódino.Taisfigurasnãosãoo materialcom
quea interpretaçãoanalíticaprovasuacapacidadede
interpretarasformaçõesdacultura.Elassãoostestemu-
nhosdaexistênciadecertarelaçãodopensamentocom
10
o não-pensamento,decertapresençadopensamentona
materialidadesensível,do involuntáriono pensamento
conscienteedosentidono insignificante.Em suma,se
omédicoFreudinterpretafatos"anódinos",desprezados
porseuscolegaspositivistas,epodefazercomqueesses
"exemplos"sirvamàsuademonstração,éporqueelessão
emsimesmostestemunhosdeumdeterminadoincons-
ciente.Podemosdizê-Iodeoutromodo:a teoriapsica-
nalíticado inconscienteé formulávelporquejá existe,
foradoterrenopropriamenteclínico,certaidentificação
deumamodalidadeinconscientedopensamento,epor-
queo terrenodasobrasdearteedaliteraturasedefine
comooâmbitodeefetivaçãoprivilegiadadesse"incons-
ciente".Meuquestionamentoserádirecionadoàanco-
ragemdateoriafreudiananessaconfiguraçãojáexisten-
tedo"pensamentoinconsciente",nessaideiadarelação
do pensamentoedo não-pensamentoqueseformoue
desenvolveudemodopredominanteno terrenodoque
sechamaestética.T ratar-se-ádepensarosestudos"es-
téticos"deFreudcomomarcasdeumainscriçãodopen-
samentoanalíticodainterpretaçãonohorizontedopen-
samentoestético.
Esteprojetopressupõeevidentementeumaexplica-
çãopréviadapróprianoçãodeestética.Paramim,esté-
ticanãodesignaaciênciaouadisciplinaqueseocupada
arte.Estéticadesignaum mododepensamentoquese
desenvolvesobreascoisasdaarteequeprocuradizerem
11
queelasconsistemenquantocoisasdopensamento.De
modomaisfundamental,trata-sedeumregimehistóri-
coespecíficodepensamentodaarte,deumaideiado
pensamentosegundoa qualascoisasdaartesãocoisas
depensamento.Sabemosqueousodapalavra"estética"
paradesignaropensamentodaarteérecente.Emgeral,
suagenealogiaremeteà obraqueBaumgartenpublica
comessetítuloem1750eà Críticadafaculdadedejul-
gar,deKant.Masessasreferênciassãoequívocas.Com
efeito,o termo"estética"no livrodeBaumgartennão
designanenhumateoriadaarte.Designao domíniodo
conhecimentosensível,doconhecimentoclaromasain-
daconfusoqueseopõeaoconhecimentoclaroedistinto
dalógica.E aposiçãodeKantnessagenealogiaéigual-
menteproblemática.TomandoemprestadodeBaum-
garteno termo"estética"paradesignarateoriadasfor-
masdasensibilidade,Kantrecusadefatoaquiloquelhe
davaseusentido,istoé,aideiadosensívelcomointeli-
gívelconfuso.Paraele,nãoexisteumaestéticapensável
comoteoriado conhecimentoconfuso.E a Crítica da
faculdadedejulgar nãoconhecea"estética"comoteoria.
Elaconheceapenasoadjetivo"estético",quedesignaum
tipodejulgamentoenãoumdomíniodeobjetos.Ape-
nasnocontextodoromantismoedoidealismopós-kan-
tiano,atravésdosescritosdeSchelling,dosirmãosSchle-
gelou deHegel,a estéticapassaráadesignaro pensa-
mentodaarte- nãosemsefazeracompanhar,deres-
12
to,porumainsistentedeclaraçãodeimpropriedadedo
termo.É sóapartirdaíque,sobo nomedeestética,se
operaumaidentificaçãoentreo pensamentodaarte-
opensamentoefetuadopelasobrasdearte- ecertano-
çãode"conhecimentoconfuso":umaideianovaepara-
doxal,já que,aofazerdaarteo territóriodeumpensa-
mentopresenteforadesimesmo,idênticoaonão-pen-
samento,elareúneoscontraditórios:o sensívelcomo
ideiaconfusadeBaumgarteneo sensívelheterogêneoà
ideiadeKant.Istoé,elafazdo"conhecimentoconfuso"
nãomaisumconhecimentomenor,maspropriamente
umpensamentodaquiloquenãopensa.2
Dito deoutromodo,"estética"nãoéumnovono-
meparadesignaro domínioda"arte".É umaconfigu-
raçãoespecíficadessedomínio.Elanãoéanovarubrica
sobaqualseorganizariaaquiloqueantesconcerniaao
conceitogeraldepoética.Elamarcaumatransformação
noregimedopensamentodaarte.E essenovoregimeé
o lugarondeseconstituiumaideiaespecíficadopensa-
mento.Minhahipóteseéqueo pensamentofreudiano2 Sabe-sequeumconsensohojedominanteobstina-seemlamentar
queaestéticatenhasidoassimdesviadadesuaverdadeirafunçãodecrítica
do juizo degosto,talcomoKant ahaviaformulado,resumindoo pensa-
mentodo iluminismo.Massósepodedesviaralgoqueexiste.Comoaes-
téticajamaisfoi ateoriado juizodegosto,o desejodequeelavolteasê-Io
expressatãosomentea ladainhacomumdo "retorno"a alguminencon-
trávelparaisopré-revolucionáriodo "individualismoliberal".
13
do inconscientesó épossívelcom basenesseregimedo
pensamentoda artee da ideia do pensamentoque lhe
é imanente.Ou ainda, o pensamentofreudiano, para
alémdequalquerclassicismodasreferênciasartísticasde
Freud, só setornapossívelcom basena revoluçãoque
operaapassagemdo domínio dasartesdo reinodapoé-
ticaparao daestética.
Gostariade explicitare justificaressasproposições
mostrandocomo algunsobjetose modos de interpre-
taçãoprivilegiadospelateoriafreudianaestãoligadosà
mudançade estatutodessesobjetosna configuraçãoes-
téticado pensamentoda arte.Para isso, tomareicomo
pontodepartidao personagempoéticocentralnaelabo-
raçãoda psicanálise,isto é, Édipo. Na Interpretaçãodos
sonhos,Freud explicaqueexisteum "materiallendário"
cujaeficáciadramáticauniversalrepousaemsuaconfor-
midadeuniversalcom os dadosda psicologiainfantil.
Essematerialé o mito de Édipo e o dramahomônimo
de Sófocles.3Uma universalidadedo esquemadramáti-
coedipianoéportantopostuladapor Freudsobum du-
plo aspecto:comoexplicitaçãodosdesejosinfantisuni-
3SigmundFreud,L'interprétationdesrêves[1900],traduçãodeIgna-
ceMeyerson,Paris,PUF, 1967,pp. 227-8fedobras.:A interpretaçãodos
sonhos,in ObraspsicológicascompletasdeSigmundFreud, ed.Standard,tra-
duçãodeWalderedoIsmaeldeOliveira,Rio deJaneiro,Imago,1996,vols.
IV e V].
14
versaise universalmentereprimidos, e tambémcomo
forma exemplarde revelaçãode um segredooculto.A
revelaçãoprogressivaeconduzidacomarteemÉdipoRei
é comparável,nosdiz ele,ao trabalhode umacurapsi-
canalítica.Assim, na mesmaafirmaçãode universalida-
de sãoenglobadastrêscoisas:uma tendênciageraldo
psiquismohumano,um materialficcionaldeterminado
e um esquemadramáticoconsideradoexemplar.Colo-
ca-sepoisaquestão:o quepermitea Freud afirmaressa
adequaçãoefazerdelao cernedesuademonstração?Ou,
numa outra formulação:em que consisteessaeficácia
dramáticauniversaldahistóriaedipianaeo esquemade
revelaçãodesenvolvidopor Sófocles?Colocareiessaques-
tãocom aajudadeum exemplo,quemeseráfornecido
peladifícil experiênciade um dramaturgocandidatoà
exploraçãodessamatériadeêxito.
15
I
w
li
1.
o defeito de um tema4
Em 1659,Corneille recebea encomendade uma
tragédiaparaasfestasde carnaval.Para o dramaturgo,
ausentedo palcoháseteanos,desdeo estrondosofiasco
de Pertharite,é a oportunidadede voltar à cena.Não
pode permitir-seum novo fracassoe tem apenasdois
mesesparaescreversuatragédia.Assim, paraotimizar
suaschancesde êxito,recorreaotematrágicopor exce-
lência,já tratadopor modelosilustres,queeleprecisaria
apenas"traduzir"eadaptarparao contextofrancês.De-
cide,então,fazerum Édipo.Ora, essetemadeourologo
revelaconterumaarmadilha.E, paraobtero sucessoal-
mejado,Corneilleteráderenunciarà simplestransposi-
ção de Sófoclese remodelartotalmenteo esquemade
revelaçãoda culpabilidadede Édipo, a fim de suprimir
aquiloqueo tornaimpraticável.
4 O títulodestecapítulo,no originalLe défàutd'unsujet,introduz
umadificuldadedetraduçãoquepermeiaareflexãoquesesegue.Trata-se
daambiguidadefundamentaldo termosujet,que,alémdesujeito,signifi-
catambémassunto,objeto,argumento,tema.(N. daT.)
17
"Dei-mecontadequeaquiloquehavia
passadopormiraculosonaquelesséculosdis-
tantespoderiaparecerhorrívelaonosso,ede
queessaeloquenteecuriosadescriçãodomo-
do comoo infelizpríncipefuraospróprios
olhos,eo espetáculodessesolhosfuradospor
ondeosanguelhejorraà face,queocupatodo
o quintoatonessesincomparáveisoriginais,
abalariamadelicadezadenossasdamas,asque
compõemamaisbelapartedenossaaudiên-
ciaecujadesaprovaçãoatraifacilmenteacen-
suradaquelesqueasacompanham,edeque,
enfim,comoo amornãofazpartedestetema
easmulheresdelenãofazememprego,elese
encontravadespidodosprincipaisornamen-
tosquedecostumenosrendemo comentário
dopúblico."5
Osproblemas,comosepodeperceber,nãovêmdo
dadoincestuoso.Vêmdesuaficcionalização,doesque-
maderevelaçãoedafisicalidadeteatraldodesenlace.Ao
todo,trêspontostornamimpossívelameratransposição
inicialmenteplanejada.Ao horrordosolhosfuradosde
5 Corneille,Oeuvrescomplêtes,Paris,Gallimard,BibliothequedeIa
Pléiade,1987,t. III, p. 18.
18
i
1
Édipoeà ausênciadeinteresseamorosoacrescenta-se,
comefeito,o abusodeoráculos:estesdeixamtranspa-
recerdemaisachavedoenigmaetornampoucoveros-
símilacegueiradodecifrador deenigmas.
Resumindo,o esquemasofoclianodarevelaçãofa-
lhaaofazerverdemaiso quedeveriaserapenasdito,e
aofazersabercedodemaiso quedeveriapermanecerig-
norado.Corneille,portanto,precisacorrigiressesdefei-
tos.Paranãoferira sensibilidadedasdamas,eledeixa
foradecenaosolhosfuradosdeÉdipo.Mas também
deixadeforaTirésias.Suprimeo afrontamentoverbal,
nuclearemSófocles,no qualaquelequesabenãoquer
dizer- eassimmesmofala-, enquantoaqueleque
quersaberserecusaaouviraspalavrasquerevelamaver-
dadeprocurada.Corneillesubstituiessejogodeescon-
de-escondedoinvestigadorculpadocomaverdade,evi-
dentedemaisparaoespectador,porumaintrigamoder-
na,umaintrigacheiadepaixõeseinteressesconflitantes
queprovocama indecisãoquantoà identidadedocul-
pado.É paraissoqueserveahistóriadeamor,ausente
emSófocles.CorneilledáaÉdipoumairmã,Dirce,des-
tituídaporeledotronoquelhepertencia.E dáaDirce
umamante,Teseu.ComoDircesesenteresponsávelpe-
laviagemquecustouavidadopai,eTeseutemdúvidas
quantoà suaorigem,ou fingetê-Iasparaprotegersua
amada,pode-secontar,assim,comtrêsinterpretações
possíveisdooráculo,trêseventuaisculpados.A história
19
deamoradministrao suspenseadministrandoa distri-
buiçãodosabereaincertezaquantoaodesenlace.
Sessentaanosmaistarde,outrodramaturgoencon-
traráo mesmoproblemaeo resolverádamesmaforma.
Parasuaestreianacarreiradramáticao jovemVoltaire,
entãocomvinteanos,tambémescolheuo temadeÉdi-
po.E, contrapondo-seaSófoclesaindamaisabertamente
doqueCorneílle,denunciouas"inverossimilhanças"da
intrigadeÉdipoRei.É inverossímilqueÉdipoignoreas
circunstânciasdamortedeseupredecessorLaios.Inve-
rossímilquenãoouçao quelhedizTirésiasequeinsul-
tecomomentirosoaquemmandouchamarcomovene-
rávelprofeta.A conclusãoseimpõe,radical:"É umde-
feitodotema,diz-se,enãodoautor.Comosenãofos-
sedacompetênciado autorcorrigirseutemaquando
esteé defeituoso!".6Assim,Voltaire,porsuavez,corri-
geo temaencontrandooutrocandidatoparao assassino
deLaios:Filocteto,meninooutroraabandonado,louco
deamorpor]ocasta,desaparecidodeTebasjustonaépo-
cadoassassinatoeparaláretornando,oportunamente,
quandoseestáà procuradeumculpado.
"Um temadefeituoso",assimparecenaidadeclás-
sica,na idadedarepresentação,o funcionamentoda
6 Volraire,Lettressur Oedipe, in Oeuvrescomplêtes,Paris,Garnier,
1877,t. III, p. 20.
20
"psicanálise"sofocliana.E o defeito,repetimos,nãose
encontranahistóriadeincesto.Não sepodealegaras
dificuldadesdeCorneílleedeVoltaireparaadaptarSó-
foelescontraa universalidadedo complexodeÉdipo.
Em compensação,elascolocamemdúvidaauniversali-
dadeda"psicanálise"edipiana,istoé,doroteirosofoclia-
noderevelaçãodosegredo.Na perspectivadeles,o ro-
teiroestabeleceumarelaçãodefeituosaentreoqueévis-
toeoqueédito,entreoqueéditoeoqueéouvido.Ele
mostrademaisaoespectador.E talexcessonãodizres-
peitoapenasaoespetáculodesagradáveldosolhosfura-
dos.Deformamaisgeral,dizrespeitoà marcadopensa-
mentosobreoscorpos.E, sobretudo,fazcomqueseou-
çademais.Contrariamenteà afirmaçãodeFreud,nãoé
umbomsuspense,umaboaprogressãodramáticaquan-
.toaodesvelamentodaverdadeparao heróieparao es-
pectador.Masentãoo queé quecomprometeessara-
cionalidadedramática?Arespostaéindubitável:éo "te-
ma",?o própriopersonagemdeÉdipo.É essafúriaque
o levaa querersabera qualquerpreço,contratodose
contrasimesmo,e,aomesmotempo,anãoouvirapa-
lavramalencobertaquelheofereceaverdadequeele
reclama.Aí estáo cernedoproblema:nãosóa"delica-
deza"dasdamaséabaladaporesseloucopelosaberque
7 No original:le ''sujet''.Ver nora4. (N. daT.)
21
acabacom osolhosfurados,maspropriamenteaordem
do sistemarepresentativoqueregea criaçãodramática.
A ordemdarepresentaçãosignificaessencialmente
duascoisas.Em primeirolugar,umadeterminadaordem
dasrelaçõesentreo dizível e o visível.Nessaordem,a
palavratemcomoessênciao fazerver.Mas elao fazse-
gundo o regimedeumadupla retenção.Por um lado,a
funçãodemanifestaçãovisívelretémo poderdapalavra.
Estamanifestasentimentose vontades,emvezde falar
por si mesma,comoapalavradeTirésias- assimcomo
adeÉsquilo ou adeSófocles-, sobaformadeoráculo
ou de enigma.Por outro lado, elaretéma potênciado
própriovisível.A palavrainstitui umadeterminadavisi-
bilidade.Manifestao queestáescondidonasalmas,con-
taedescreveo queestálongedosolhos.Mas, assim,re-
témsobseucomandoo visívelqueelamanifesta,impe-
dindo-o demostrarpor si mesmo,demostraro quedis-
pensapalavras,o horror dosolhosfurados.
A ordem da representação,em segundolugar, é
uma determinadaordem dasrelaçõesentreo sabere a
ação.O drama,dizAristóteles,éordenaçãodeações.Na
basedo drama,hápersonagensperseguindocertosobje-
tivos,em condiçõesde ignorânciaparcial,cujo desenla-
cese daráno decursoda ação.Dessaforma, exclui-se
precisamenteo fundamentaldaperformanceedipiana,o
pathosdo saber:aobstinaçãomaníacapor sabero queé
melhornãosaber,o furor queimpededeouvir, arecusa
22
dereconheceraverdadenaformaemqueelaseapresen-
ta,acatástrofedo saberinsuportável,do saberqueobri-
gaa subtrair-seao mundo do visível.A tragédiade Só-
foclesé feitadessepathos.E é elequeo próprio Aristó-
telesjá nãoconseguemaisentender,recalcando-oatrás
dateoriadaaçãodramática,quefazadviro sabersegun-
do a engenhosamaquinariada peripéciae do reconhe-
cimento.É ele,enfim, quefazde Édipo, na idadeclás-
sica,um herói impossível,salvocom correçõesradicais.
Impossívelnãoporquematao paiesedeitacomamãe,
maspelomodo como aprende,pelaidentidadequeen-
camanesseaprendizado,a identidadetrágicado sabere
do não-saber,daaçãovoluntáriaedopathossofrido.
23
2.
A revolução estética
É, portanto, todo um regimede pensamentodo
poemaque recusao roteiro edipiano.Mas a formula-
çãopodeserinvertida.Paraqueo privilégiodesserotei-
ro sejaenunciável,éprecisoquesejarevogadoesseregi-
medepensamentodasartes,esseregimerepresentativo
que tambémimplica uma determinadaideiade pensa-
mento:o pensamentocomo açãoque seimpõe a uma
matériapassiva.E o quechameihápouco de revolução
estéticaéexatamenteisso:aaboliçãodeum conjuntoor-
denadoderelaçõesentreo visíveleo dizÍvel,o saberea
ação,a atividadee a passividade.Dito de outro modo:
paraqueÉdipo sejao heróidarevoluçãopsicanalítica,é
precisoum novo Édipo, que invalideaquelesde Cor-
neillee deVoltaire e quepretendareatar- paraalém
datragédiaà francesa,bemcomodaracionalizaçãoaris-
totélicadaaçãotrágica- como pensamentotrágicode
Sófocles.Sãonecessáriosum novo Édipo e uma nova
ideiadatragédia,taiscomopropuseramHolderlin, He-
gelou Nietzsche.
25
Dois traçosvãocaracterizaressenovoÉdipo efazer
deleo herói de uma "nova" ideia do pensamentoque
pretendereatarcom aquelatestemunhadapelatragédia
grega.Édipo, paracomeçar,é testemunhade certasel-
vageriaexistencialdo pensamento,naqualo sabersede-
finenãocomoo atosubjetivodeapreensãodeumaidea-
lidadeobjetiva,mascomo um determinadoafeto,uma
paixão,ou mesmoumaenfermidadedo vivente.O pró-
prio saberconstituium crimecontraa natureza:eis,se-
gundo O nascimentoda tragédia,o significadodahistó-
riaedipiana.8Édipo ea tragédiadãotestemunhodeque,
emmatériadepensamento,ésemprededoençaedeme-
dicina que setrata,da união paradoxaldasduas.Essa
nova encenaçãofilosóficada equivalênciatrágicaentre
saberesofrimento(o mathospatheideÉsquilo ou deSó-
focles)pressupõequesejareunidaa grandetrilogiados
doentesdo saber:Édipo e Hamlet - quedialogamna
Interpretaçãodossonhos,comojá o faziamnos Cursosde
estéticadeHegel- eFausto,quetambémestápresente
aÍ.A psicanáliseé inventadanesseponto em quefiloso-
fia emedicinasecolocamreciprocamenteemcausapara
fazerdo pensamentoumaquestãodedoençaedadoença
umaquestãodepensamento.
8 FriedrichNietzsche,Ia naissancede Ia tragédie[1872],Paris,Gal-
limard,1977,pp. 78-9 fedobras.:O nascimentoda tragédia,traduçãode
JacóGuinsburg,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1992].
26
Mas essasolidariedadedascoisasdo pensamentoe
dascoisasda doençaé elamesmasolidáriado novo re-
gimedepensamentodasproduçõesda arte.SeÉdipo é
um herói exemplar,é porque suafigura ficcional em-
blematizaaspropriedadesquea revoluçãoestéticaatri-
bui aessasproduções.Édipo éaquelequesabeenãosa-
be,queageabsolutamenteequepadeceabsolutamente.
Ora, éprecisamenteatravésdessaidentidadedecontrá-
rios quea revoluçãoestéticadefineo próprio daarte.À
primeiravista,elapareceapenasopor àsnormasdo re-
gimerepresentativouma potênciaabsolutadofazer.A
obraresultadesuapróprialei deproduçãoeéprovasu-
ficientede si mesma.Mas, ao mesmotempo,essapro-
dução incondicionadase identificacom uma absoluta
passividade.O gênio kantiano resumeessadualidade.
.Eleéo poderativodanaturezaqueopõesuaprópriapo-
tênciaaqualquermodelo,aqualquernorma,ou melhor,
que sefaz norma.Mas, ao mesmotempo,eleé aquele
quenãosabeo quefaz,queé incapazdeprestarcontas.
N o regimeestético,essaidentidadede um sabere
de um não-saber,de um agire de um padecer,quera-
dicalizaemidentidadedecontráriosa "claridadeconfu-
sa"deBaumgarten,constitui-seno próprio mododeser
da arte.Nessesentido,a revoluçãoestéticajá haviaco-
meçadono séculoXVIII quandoVico, em suaCiência
nova,sedispuseraaestabelecer,contraAristóteleseatra-
diçãorepresentativa,o queeledenominavaa figurado
27
"verdadeiroHomero".Valeapenarememoraro con-
textoparaesclarecerafiliaçãoquenosinteressa.Poiso
alvoprincipaldeViconãoébema"teoriadaarte",mas
o velhoproblemateológico-poéticoda"sabedoriados
egípcios":sabersealinguagemdoshieróglifoséumalin-
guagemcríptica,depositáriadeumpensamentoreligio-
sovedadoaoprofanoese,damesmaforma,asantigas
fábulaspoéticassãoaexpressãoalegóricadeumpensa-
mentofilosófico.Essevelhoproblemavem,pelomenos,
desdePlatão.Denunciandoa imoralidadedasfábulas
homéricas,PIarãodefatorefutavaaquelesqueenxerga-
vamalegoriascosmológicasnosadultériosdivinospor
elasnarrados.O problemaressurgenaépocaprotocristã,
quandoautorespagãos,pararefutaraacusaçãodeido-
latria,maisumavezsevalemdasabedoriacrípticapre-
sentenasescritasideogramáticasenasfábulasdospoe-
tas.RetomacomforçanosséculosXVII eXVIII, susci-
tadoaomesmotempopelosdesenvolvimentosdosmé-
todosexegéticosepelaquerelafilosóficasobreaorigem
dalinguagem.Vico inscreve-senessecontextoedispõe-
-seadarumduplogolpe.Elepropõeliquidaraideiade
umasabedoriamisteriosaocultanasescritasimagéticas
enasfábulaspoéticas.Contrapõe-lheumanovaherme-
nêuticaquerelacionaaimagemnãoaumsentidoocul-
to,masàscondiçõesdesuaprodução.Todavia,como
mesmogolpe,elearruínatambémaimagemtradicional
dopoetacomoinventordefábulas,personagenseima-
28
gens.Suadescobertado"verdadeiroHomero"refutaem
quatropontosa imagemaristotélicaerepresentativado
poetacomoinventordefábulas,caracteres,imagenserit-
mos.Paracomeçar,demonstraVico,Homeronãoéum
inventordefábulas.Poiselenãoconhecianossadiferen-
çaentrehistóriaeficção.Suassupostasfábulas,paraele,
eramahistória,queeletransmitiatalcomoarecebera.
Em segundolugar,Homeronãoéuminventordetipos
decaráter.Seussupostoscaracteres- Aquiles,ovalen-
te,Ulisses,oastuto,Nestor,osábio- nãosãocaracteres
individualizados.Tambémnãosãoalegoriasinventadas
comfinspoéticos.Sãoabstraçõesemimagens,oúnico
modopeloqualumpensamento,igualmenteincapazde
abstrairedeindividualizar,podefigurarvirtudes- co-
ragem,inteligência,sabedoriaoujustiça- quenãocon-
segueconcebernemdenominarcomotais.Em terceiro
lugar,elenãoéo inventordebelasmetáforasedeima-
gensbrilhantesquesetemcelebrado.Simplesmentevi-
vianumtempoemqueopensamentonãoseseparavada
imagem,tampoucoo abstratodoconcreto.Suas"ima-
gens"nãosãonadamaisqueo mododefalardospovos
deseutempo.Porfim,elenãoéuminventorderitmos
emetros.Eleéapenastestemunhadeumestadodalin-
guagememqueapalavraeraidênticaaocanto.Osho-
mens,comefeito,cantaramantesdefalar,antesdepas-
sarparaalinguagemarticulada.Osencantospoéticosda
palavracantadasão,narealidade,osbalbuciosdainfân-
29
cia da linguagem,da qual testemunhamaindahoje os
surdos-mudos.Assim, os quatroprivilégiostradicionais
do poeta-inventorsãotransformadosem propriedades
de sualinguagem,de uma linguagemqueé suana me-
dida em quenãolhe pertence,em quenão seconstitui
num instrumentoà suadisposição,masno testemunho
de um estadode infânciada linguagem,do pensamen-
to e da humanidade.Homero é poetagraçasà identi-
dadedo queelequeredo quenãoquer,daquiloquesa-
beedaquiloqueignora,do quefazedo quenãofaz.O
fatopoéticoestáligadoa essaidentidadede contrários,
a essadistânciaentreuma palavrae aquilo que eladiz.
Há solidariedadeentreo caráterpoéticodalinguageme
seucarátercifrado.Mas essacifragemnãodissimulane-
nhumaciênciasecreta.Ela nãoé,enfim,nadamaisque
a inscriçãodo processomesmopelo qual essapalavraé
produzida.
A figurade Édipo, como tematrágicoexemplare
universalmenteválido,temcomoantecedenteessafigu-
rahermenêuticado "verdadeiroHomero".Ela pressupõe
um regimedepensamentoda arteemqueo próprio da
arteé sera identidadede um procedimentoconsciente
e de umaproduçãoinconsciente,deumaaçãovoluntá-
ria edeum processoinvoluntário,emsuma,a identida-
de de um logose de umpathos. E é essaidentidadeque
doravantedá testemunhodo fatodaarte.Tal identida-
de, porém, pode serpensadade duasformas opostas:
30
como imanênciado logosnopathos, do pensamentono
não-pensamento,ou, inversamente,comoimanênciado
pathos no logos,do não-pensamentono pensamento.A
primeiraforma é ilustradapelosgrandestextosfunda-
doresdo modoestéticodo pensamentoeémelhorresu-
mida nos Cursosde estéticadeHegel.Aí, a arte,emter-
mosschellingnianos,é a odisseiadeum espíritoforade
simesmo.Esseespírito,nasistematizaçãohegeliana,pro-
curasemanifestar,ou melhor,tornar-semanifestopara
si mesmo,atravésda matériaquelhe é oposta:na com-
pacidadedapedraerguidaou esculpida,naespessurada
cor ou na materialidadetemporalou sonorada lingua-
gem.Ele buscaa si mesmona duplaexterioridadesen-
síveldamatériaedaimagem.Septocuraeseperde.Mas,
nessejogo de esconde-esconde,elesetorna a luz inte-
rior da materialidadesensível,a belaaparênciado deus
de pedra,elãarborescenteda abóbadae da flechagó-
ticas,ou o brilho espiritualqueanimaa insignificância
danaturezamorta.A essaodisseiacontrapõe-seo mode-
lo inverso,quevoltadabelaaparênciaestéticaeracional
parao fundoobscuroe"pático".9Trata-sedo movimen-
to que, em Schopenhauer,retomadasaparênciase da
belaordem causaldo mundo da representaçãoparao
mundo obscuro,subterrâneoe desprovidode sentido
9 No original:pathique;paraevitarpathétique,patético.(N. daT.)
31
r dacoisaemsi,o mundodoquerer-vivernu, insensaro,
dessa"vontade",paradoxalmenteassimchamada,jáque
suaessênciaéprecisamentenãoquerernada,recusaro
modelodaescolhadefinsedaadaptaçãodosmeiosaos
finsqueconfereaessanoçãoseusignificadousual.Tra-
ta-se,emNietzsche,daidentificaçãodoprópriofatoda
arteà polaridadedabelaaparênciaapolíneaedessapul-
sãodionisíaca,aomesmotempodealegriae desofri-
mento,quevemà tonanasformasmesmasquepreten-
demnegá-Ia.
, I
, I
I
32
3.
As duas formas da palavra muda
onascimentodapsicanáliseseinscrevehistorica-
mentenocernedessecontramovimentocujosheróisfi-
losóficossãoSchopenhauereo jovemNietzscheeque
reinanaliteraturaque,deZolaaMaupassant,Ibsenou
Strindberg,mergulhanopurosem-sentidodavidabru-
taounoencontrocomasforçasdastrevas.Masnãose
trataapenasdainfluênciadeideiasedetemasdeuma
época,trata-sepropriamentedeumaposiçãono inte-
riordosistemadepossíveisdefinidoporumadetermi-
nadaideiadepensamentoeumadeterminadaideiade
escrita.Poisarevoluçãosilenciosadenominadaestética
abreespaçoparaelaboraçãodeumaideiadepensamen-
to edeumaideiacorrespondentedeescrita.Essaideia
depensamentorepousasobreumaafirmaçãofundamen-
tal:existepensamentoquenãopensa,pensamentoope-
randonãoapenasno elementoestranhodonão-pensa-
mento,masnaprópriaformado não-pensamento.In-
versamente,existenão-pensamentoquehabitaopensa-
mentoelhedáumapotênciaespecífica.Essenão-pensa-
33
!
mentonãoésóumaformadeausênciadopensamento,
éumapresençaeficazdeseuoposto.Há, portanto,sob
umououtroaspecto,umaidentidadeentreopensamen-
toeo não-pensamento,aqualédotadadeumapotên-
ciaespecífica.A essaideiadepensamentocorresponde
umaideiadeescrita.Escritanãoquerdizersimplesmente
umaformademanifestaçãodapalavra.Querdizeruma
ideiadaprópriapalavraedesuapotênciaintrínseca.Em
Platão,sabe-sequeaescritanãoésimplesmenteamate-
rialidadedosignoescritosobreumsuportematerial,mas
umestatutoespecíficodapalavra.Paraele,aescritaéo
lagosmudo,apalavraquenãopodenemdizerdeoutro
modoo quediz,nemparardefalar:nemdarcontado
queprofere,nemdiscerniraquelesaosquaisconvémou
nãoconvémserendereçada.A essapalavra,aomesmo
tempomudae tagarela,opõe-seumapalavraemato,
umapalavraguiadapor um significadoa sertransmi-
tidoeumefeitoaserassegurado.Em PIarão,éapalavra
domestrequesabeaomesmotempoexplicitarsuapa-
lavrae reservá-Ia,subtraí-Iaaosprofanose depositá-Ia
comoumasementenaalmadaquelesemquemelapode
frutificar.Na ordemrepresentativaclássica,essa"palavra
viva"éidentificadaàgrandepalavraquesefazato:apa-
lavravivado oradorqueperturbaepersuade,edificae
arrebataasalmasou oscorpos.É também,concebida
sobreseumodelo,apalavradoheróitrágicoquevaiaté
o fimdesuasvontadesepaixões.
34
À palavravivaqueregulavaaordemrepresentativa,
arevoluçãoestéticaopõeomododapalavraquelhecor-
responde,o modocontraditóriodeumapalavraqueao
mesmotempofalaesecala,quesabeenãosabeo que
diz.Ou seja,aescrita.Maselao fazsegundoduasgran-
desfigurasquecorrespondemàsduasformasopostasda
relaçãoentrepensamentoenão-pensamento.E apolari-
dadedessasfigurasdescreveoespaçodeummesmodo-
mínio,odapalavraliteráriacomopalavradosintoma.10
A escritamuda,numprimeirosentido,éapalavra
queascoisasmudascarregamelasmesmas.É apotência
designificaçãoinscritaemseuscorpos,equeresumeo
"tudofala"deNovalis,o poetamineralogista.Tudo é
rastro,vestígioou fóssil.Toda formasensível,desdea
pedraou aconcha,é falante.Cadaumatrazconsigo,
inscritasemestriasevolutas,asmarcasdesuahistóriae
ossignosdesuadestinação.A escritaliteráriaseestabe-
lece,assim,comodecifraçãoereescritadossignosdehis-
tóriaescritosnascoisas.É essanovaideiadeescritaque
Balzacresumeeexaltano iníciodeA peledeonagro,ll
naspáginasdecisivasquedescrevemalojadoantiquário
10 Cf. J acquesRanciere,La parole muette:essaisur lescontradictions
de Ia littérature,Paris,Hachette,1998.
11 HonorédeBalzac,La peau de chagrin [1831]'Paris,Gallimard/
Folio, 1974,p. 47 [ed.bras.:A pelede onagro,in A comédiahumana, rra-
duçãodeGomesdaSilveira,vol.XV, Rio deJaneiro,Globo, 1999].
35
"
, "
I"
comoemblemadeumanovamitologia,deumfantás-
ticofeitoexclusivamentedaacumulaçãodasruínasdo
consumo.O grandepoetadosnovostemposnãoéBy-
ron,o repórterdasdesordensdaalma.É Cuvier,o geó-
logo,onaturalista,quereconstituipopulaçõesanimaisa
partirdeossos,eflorestasapartirdeimpressõesfossili-
zadas.Com ele,define-seumanovaideiadeartista.O
artistaéaquelequeviajanoslabirintosounossubsolos
domundosocial.Elerecolheosvestígiosetranscreveos
hieróglifospintadosnaconfiguraçãomesmadascoisas
obscurasoutriviais.Devolveaosdetalhesinsignificantes
daprosadomundosuaduplapotênciapoéticaesigni-ficante.Na topografiadeumlugarounafisionomiade
umafachada,naformaounodesgastedeumavestimen-
ta,nocaosdeumaexposiçãodemercadoriasoudede-
tritos,elereconheceoselementosdeumamitologia.E,
nasfigurasdessamitologia,eledáaconhecerahistória
verdadeiradeumasociedade,deumtempo,deumaco-
letividade;fazpressentiro destinodeumindivíduoou
deumpovo.Tudojàla, issoquerdizertambémqueas
hierarquiasdaordemrepresentativaforamabolidas.A
granderegrafreudianadequenãoexistem"detalhes"
desprezíveis,deque,aocontrário,sãoessesdetalhesque
noscolocamnocaminhodaverdade,seinscrevenacon-
tinuidadediretadarevoluçãoestética.Não existemte-
masnobrese temasvulgares,muitomenosepisódios
narrativosimportanteseepisódiosdescritivosacessórios.
36
Nãoexisteepisódio,descriçãooufrasequenãocarregue
emsi apotênciadaobra.Porquenãohácoisaalguma
quenãocarregueemsiapotênciadalinguagem.Tudo
estáempédeigualdade,tudoéigualmenteimportante,
igualmentesignificativo.Assim,onarrador deIa maison
du chatquipelotenosinstaladiantedafachadadeuma
casacujasaberturasassimétricas,recortese saliências
caóticosformamumtecidodehieróglifosnoqualsepo-
dedecifrarahistóriadacasa- ahistóriadasociedade
daqualelaétestemunha- eodestinodospersonagens
quenelahabitam.12 Ou, ainda,o romancistadeOsmi-
serdveisnosmergulhanumesgotoquediz tudo,como
um filósofocínico,e reúneempéde igualdadetudo
aquiloqueacivilizaçãoutilizaerejeita,suasmáscarase
insígnias,bemcomoseusutensílioscotidianos.O novo
poeta,o poetageólogoouarqueólogo,numcertosenti-
do,fazoquefaráocientistadeA interpretaçãodossonhos.
Eleafirmaquenãoexisteo insignificante,queosdeta-
lhesprosaicosqueumpensamentopositivistadespreza
ouremeteaumasimplesracionalidadefisiológicasãoos
signosemquesecifraumahistória.Masafirmatambém
acondiçãoparadoxaldessahermenêutica:paraqueoba-
nalentregueseusegredo,eledeveprimeirosermitolo-
12 Cf. HonorédeBalzac,Ia maisondu chatquipelote(1830).Ed.
bras.:Ao "chat-qui-pelote",traduçãodeVidaldeOliveira,in op.cit.,vol.I,
p. 77. (N. daT.)
37
1:1
"I
'I
I ~::
r,1
gizado.A casaouo esgotofalam,trazemconsigorastros
doverdadeiro,comofarãoosonhoouoatofalho- mas
tambémamercadoriamarxiana-, desdequesejampri-
meirotransformadosemelementosdeumamitologiaou
deumafantasmagoria.
O escritoréo geólogoou o arqueólogoqueviaja
peloslabirintosdomundosociale,maistarde,pelosla-
birintosdoeu.Elerecolheosvestígios,exumaosfósseis,
transcreveossignosquedãotestemunhodeummundo
eescrevemumahistória.A escritamudadascoisasreve-
la,nasuaprosa,averdadedeumacivilizaçãooudeum
tempo,verdadequerecobreacenaoutroragloriosada
"palavraviva".Esta,agora,nãoémaisdoqueavãcena
oratória,odiscursodasuperfícieedesuasagitações.Mas
aomesmotempoo hermeneutaétambémummédico,
umsintomatologistaquediagnosticaosmalesdequepa-
decemo indivíduoempreendedoreasociedadebrilhan-
te.O naturalistaegeólogoBalzacé tambémo médico
quedetectaadoençano âmagodaatividadeintensade
indivíduosesociedades,adoençaidênticaaessainten-
sidade.Em suaobra,elarecebeo nomedevontade.É a
doençadopensamentoquequersetransformaremrea-
lidadee levaà destruiçãoindivíduosesociedades.Fiz
alusãoa issoanteriormente:ahistóriadaliteraturano
séculoXIX éahistóriadastransformaçõesdessa"vonta-
de".No períodonaturalistaesimbolista,elasetornará
destinoimpessoal,hereditariedadepassiva,cumprimen-
38
todeumquerer-viverdestituídoderazão,ataqueàsilu-
sõesdaconsciênciapelomundodasforçasobscuras.A
sintomatologialiteráriamudaráentãodeestatutonessa
literaturadaspatologiasdopensamento,centradanahis-
teria,no"nervosismo"ounopesodopassado,nessasno-
vasdramaturgiasdo segredovelado,emqueserevela,
atravésdehistóriasindividuais,o segredomaisprofun-
dodahereditariedadeedaraçae,emúltimainstância,
dofatobrutoeinsensatodavida.
Assim,essaliteraturasevinculaàoutraidentidade
do fogosedopathos dequeeufalavahápouco,aquela
quevai,aocontráriodaprimeira,doclaroaoobscuroe
do fogosaopathos, istoé,àpuradordeexistireàpura
reproduçãodosem-sentidodavida.Elaacionatambém
umaoutraformadapalavramuda,quejá nãoémaiso
hieróglifoinscritodiretamentenoscorposesubmetido
aumadecifração.É apalavrasolilóquio,aquelaquenão
falaaninguéme nãodiznada,a nãoserascondições
impessoais,inconscientes,daprópriapalavra.Foi Mae-
terlinckquem,naépocadeFreud,teorizoucommaior
empenhosobreessasegundaformadapalavramuda,do
discursoinconsciente,aoanalisarnosdramasdeIbseno
"diálogodesegundograu".Estenãomaisexpressaos
pensamentos,sentimentoseintençõesdospersonagens,
maso pensamentodo"terceiropersonagem"queronda
odiálogo,oconfrontocomoDesconhecido,comaspo-
tênciasanônimaseinsensatasdavida.A "linguagemda
39
'I i ~
','
\11
tragédiaimóvel"transcreve"osgestosinconscientesdo
serquepassamsuasmãosluminosasatravésdasameias
damuralhaartificialondeestamospresos",osgolpesda
"mãoquenãonospertenceequebateàsportasdoins-
tinto",13 Nãosepodemabriressasportas,dizemsubs-
tânciaMaeterlinck,maspodem-seouviros"golpesatrás
daporta".Pode-sefazerdo poemadramático,outrora
dedicadoà "ordenaçãodeações",a linguagemdesses
golpes,apalavradamultidãoinvisívelquerondanossos
pensamentos.Talvezsejaprecisoapenas,paraencarnar
essapalavranopalco,umnovocorpo:nãomaiso cor-
pohumanodoator/personagem,maso deumserque
"tivesseaaparênciadavidasemtervida",umcorpode
sombraoudeceraajustadoaessavozmúltiplaeanôni-
ma.14E dissoeleextraiaideiadeumteatrodeandroides
quefazcomunicaro devaneioromanescodeVilliersde
L'Isle-Adamcomo futurodo teatro:asupermarionete
13MauriceMaeterlinck,"Menuspropos:lethéâtre(unthéâtred'an-
dro'ides)"[1890],in Introduction à unepsychologiedessongesetautresécrits,
Bruxelas,Labor, 1985,p. 83, e "Le tragiquequotidien"in Le trésordes
humbles[1913],Bruxelas,Labor,1986,pp.99-110.Naturalmente,nãoig-
noroqueMaeterlinck,porsuavez,temcomoreferênciaEmersoneatra-
diçãomística,enãoo "niilismo"shopenhaueriano.Mas o quemeinteres-
saaqui~ eque,deresto,provocaaconfusãodasduastradições~ éesse
mesmoestatutodapalavrasurda,expressãodeum "querer"inconsciente
do ser.
14 Maeterlinck,"Menuspropos",in op.cit., p. 87.
40
deEdwardGordonCraigouo teatrodamortedeTa-
deuszKantor.
O inconscienteestético,consubstancialaoregime
estéticodaarte,semanifestanapolaridadedessadupla
cenadapalavramuda:deumlado,apalavraescritanos
corpos,quedeveserrestituídaàsuasignificaçãolingua-
geiraporum trabalhodedecifraçãoe dereescrita;do
outro,apalavrasurdadeumapotênciasemnomeque
permaneceportrásdetodaconsciênciaedetodosigni-
ficado,eàqualéprecisodarumavozeumcorpo,mes-
moqueessavozanônimaeessecorpofantasmagórico
arrastemo sujeitohumanoparao caminhodagrande
renúncia,parao nadadavontadecujasombraschopen-
hauerianapesacomtodaforçasobreessaliteraturado
, .
lllconSClente.
41
,
4.
De um inconsciente ao outro
Tornoadizer:nãopretendo,aoesboçaremtraços
largosafiguraliteráriaefilosóficadoinconscienteesté-
tico,estabelecerumagenealogiado inconscientefreu-
dianoqueassumisseessestraços.Nãosetratadeesque-
cero contextomédicoecientíficono qualseelaboraa
psicanálise,nemdedissolveroconceitofreudianodein-
consciente,aeconomiadaspulsõeseosestudosdasfor-
maçõesdo inconscienteemumaideiaseculardosaber
quenãosabeedopensamentoquenãopensa.Tampou-
coqueroviraro jogo,mostrandocomo,semsabê-Io,o
inconscientefreudianoédependentedaliteraturaeda
arte,cujossegredoselepretendedesvendar.Trata-se,an-
tesdemaisnada,deassinalarasrelaçõesdecumplicida-
deedeconflitoqueseestabelecementreo inconsciente
estéticoeo inconscientefreudiano.Podemosdefinira
implicaçãodo encontroentreessesdoisinconscientes,
emprimeirolugar,a partirdeindicaçõesdo próprio
Freud,apartirdocontextodainvençãopsicanalíticatal
comoeleaesboçanaInterpretaçãodossonhos.Nestaobra,
apsicanáliseécontrapostaaumadeterminadaideiade
43
I~; :
i,11
,,'
11,1
ciência,adamedicinapositivista,quetrataasesquisiti-
cesdamenteadormecidacomodadosnegligenciáveisou
asatribuia causasmateriaisidentificáveis.Contraesse
positivismo,Freudincitao psicanalistaa fazeraliançacomacrençapopular,como velhoacervomitológico
do significadodossonhos.Mas,defato,é umaoutra
aliançaqueseteceatravésdaInterpretaçãodossonhos,e
queseexplicitaránolivrosobrea Gradiva:umaaliança
comGoetheouSchiller,SófoclesouShakespeare,ouou-
trosescritoresmenosprestigiadosemaispróximoscomo
Popper-LynkeusouAlphonseDaudet.E nãosóporque
Freudlança,contraaautoridadedosmestresdaciência,
adosgrandesnomesdacultura.Maisprofundamente,
essesgrandesnomessãoguiasnaviagempeloAqueronte
empreendidapelanovaciência.Mas,seelesosão,épre-
cisamenteporqueo espaçoentreaciênciapositivaea
crençapopularouo acervolendárionãoestávazio.Tal
espaçoéodomíniodesseinconscienteestéticoquerede-
finiuascoisasdaartecomomodosespecíficosdeunião
entreo pensamentoquepensaeo pensamentoquenão
pensa.Eleéocupadopelaliteraturadaviagempelaspro-
fundezas,daexplicitaçãodossignosmudosedatranscri-
çãodaspalavrassurdas.Essaliteraturajáhaviavincula-
doapráticapoéticadeexibiçãoeexplicitaçãodossignos
aumadeterminadaideiadecivilização,desuasaparên-
ciasbrilhantesedesuasprofundezasobscuras,dassuas
doençasedasmedicinasquelhessãoapropriadas.E essa
44
ideiavaibemalémdo interessedoromancenaturalista
pelasfigurashistéricasepelassÍndromesdegenerativas.
A elaboraçãodeumanovamedicinaedeumanovaciên-
ciadapsycheépossívelporqueexistetodoessedomínio
dopensamentoedaescritaqueseestendeentreaciên-
ciaeasuperstição.No entanto,precisamente,aprópria
consistênciadessacenasemiológicae sintomatológica
impedequalquertáticadesimplesaliançainteressadaen-
treFreudeosescritoresou artistas.A literaturaaque
Freudrecorreutemsuaprópriaideiadeinconsciente,
suaprópriaideiadepathosdopensamento,dasdoenças
edasmedicinasdacivilização.Nãopodehaveraí,por-
tanto,utilizaçãopragmáticae tampoucocontinuidade
inconsciente.O domíniodopensamentoquenãopen-
sanãoéumreinodoqualFreudseriaapenaso explora-
dorembuscadecompanheirosealiados.É umterritó-
riojáocupado,ondeuminconscienteentraemconcor-
rênciaeemconflitocomumoutro.
Paracompreenderessaduplarelação,éprecisore-
tomarà questãoemsuageneralidade:o queFreudtem
afazer"na"históriadaarte?A própriaquestãoédupla.
O quelevaFreudasefazerhistoriadorou analistada
arte?O queestáemquestãonasconsistentesanálises
queelededicaaLeonardo,aoMoisésdeMichelangeloou
à Gradivade]ensen,ouemsuasobservaçõesmaisrápi-
dassobre"O homemdeareia"deHoffmannou sobre
Rosmersholm,deIbsen?Por queessesexemplos?O que
45
11'1
'I
procuranelesecomoostrata?A primeirainterrogação,
comoseviu, implicaumasegunda:comopensaro lu-
gardeFreudnahistóriadaarte?Nãoapenaso lugardo
Freud"analistadaarte",masdoFreudcientista,médi-
codapsyche,intérpretedesuasformaçõeseperturbações?
A "históriadaarte"assimentendidaéalgototalmente
distintodasucessãodeobraseescolas.É ahistóriados
regimesdepensamentodaarte,entendendo-seporregi-
mesdepensamentodaarteummodoespecíficodecone-
xãoentreaspráticaseummododevisibilidadeedepen-
sabilidadedessaspráticas,istoé,emúltimaanálise,uma
ideiadoprópriopensamento.15Assim,aduplaquestão
podeserreformuladadaseguintemaneira:o queFreud
procuraeencontranaanálisedasobrasou dospensa-
mentosdosartistas?Queligaçãoaideiadopensamento
inconsciente,investidanessasanálises,mantémcoma
ideiaquedefineumregimehistórico,o regimeestético
daarte?
Essasperguntaspodemsercolocadasa partirde
duasreferênciasteóricas.A primeiraé declaradapelo
próprioFreud,asegundaseextraidasobrasedosper-
sonagensquesuaanáliseprivilegia.Freudafirma,como
vimos,umaaliançaobjetivaentreo psicanalistaeo ar-
15Quantoaesteponto,permito-meremeteraomeulivroLepartage
du sensible:esthétiqueetpolitique, Paris,LaFabrique,2000fedobras.:A par-
tilha do sensível:estéticaepolítica, SãoPaulo,EXO/Editora 34,2005].
46
tista,emaisparticularmenteentreopsicanalistaeopoe-
ta."Ospoetaseromancistassãopreciososaliados",afir-
mao iníciodeDelíriosesonhosna Gradivade]ensen.16
Em matériadepsyche,deconhecimentodasformações
singularesdopsiquismohumanoedeseusmecanismos
ocultos,osaberdelesestámaisavançadoqueo doscien-
tistas.Elessabemcoisasqueoscientistasignoram,pois
conhecemaimportânciaearacionalidadeprópriadesse
componentefantasmáticoqueaciênciapositivaremete
aonadadasquimerasou àscausasfísicase fisiológicas
simples.Sãoportantoaliadosdopsicanalista,essecien-
tistaquedeclaraa igualimportânciadetodasasmani-
festaçõesdoespíritoearacionalidadeprofundadesuas
"fantasias",aberraçõesecontrassensos.Ressaltemosesse
pontoimportante,àsvezessubestimado:a abordagem
freudianadaarteemnadaémotivadapelavontadede
desmistificarassublimidadesdapoesiaedaarte,dire-
cionando-asàeconomiasexualdaspulsões.Nãorespon-
deaodesejodeexibiro segredinho- boboousujo-
portrásdograndemitodacriação.Antes,Freudsolicita
àarteeàpoesiaquetestemunhempositivamenteemfa-
vordaracionalidadeprofundada"fantasia",queapoiem
umaciênciaquepretende,decertaforma,reporapoe-
16 SigmundFreud,Délire et rêvesdansIa Gradivadejensen [1907],
traduçãodeMarie Bonaparte,Paris,Gallimard,1949,p. 109fedobras.:
Delírios esonhosna Gradivadejensen, in op.cit., vaI. IX, pp. 15-88].
47
siaeamitologianoâmagodaracionalidadecientífica.É
porissoqueadeclaraçãoéseguidadeimediatoporuma
ressalva:ospoetaseromancistassãoapenasmeio-aliados,
poisnãoderamatençãosuficienteàracionalidadedosso-
nhose dasfantasias.Não tomarampartido,deforma
clarao bastante,emfavordovalorsignificativodasfan-
tasiascujosmovimentoselesrepresentaram.
A segundareferênciaé tiradadasfigurasexempla-
resescolhidasporFreud.Algumassãoemprestadasàli-
teraturacontemporânea,aodramanaturalistadodesti-
noàmaneiradeIbsen,ouàsfantasias,comoasdeJensen
oudePopper-Lynkeus,herdeirosdeumatradiçãoque,
passandoporHoffmann,remontaaJean-PauleaTieck.
Masessasobrascontemporâneasestãoà sombradeal-
gunsgrandesmodelos.Há asduasgrandesencarnações
daRenascença:Michelangelo,o demiurgosombriode
criaçõescolossais,eLeonardodaVinci,o artista/cientis-
ta/inventor,ohomemdosgrandessonhosegrandespro-
jetosdosquaisnosrestaramapenasalgumasobras,que
sãocomoasdiversasfigurasdeummesmoenigma.E há
osdoisheróisromânticosdatragédia:Édipo,atestemu-
nhadeumaantiguidadeselvagemopostaàantiguidade
polidadatragédiafrancesa,edeumpathosdopensamen-
to opostoà lógicarepresentativadeordenamentoda
ação,bemcomoàsuadistribuiçãoharmônicadovisível
edodizível;eHamlet,o heróimodernodeumpensa-
mentoquenãoageouantesdeumpensamentoqueage
48
porsuaprópriainércia.Há, emsuma,o heróidaanti-
guidadeselvagem,adeHolderlinoudeNietzsche,eos
heróisdaRenascençaselvagem,a deShakespearemas
tambémdeBurckhardteTaine,opostaàordemclássica.
A ordemclássica,comovimos,nãoéapenasaetiqueta
deumaartecortesãàfrancesa.É propriamenteo regime
representativodaarte,esseregimequeencontrasuasle-
gitimaçõesteóricasprimeirasnaelaboraçãoaristotélica
damimesis,seuemblemanatragédiaclássicafrancesa,e
suasistematizaçãonosgrandestratadosfrancesesdosé-
culoXVIII, deBatteuxaLaHarpe,passandopelosCom-
mentairessurCorneilledeVoltaire.No cernedesseregi-
me,haviacertaideiadopoemacomodisposiçãoorde-
nadadeações,tendendoparasuaresoluçãoatravésdo
confrontodepersonagensqueperseguiamfinsconflitan-
tesequemanifestavamemsuafalasuasvontadesesen-
timentossegundotodoum sistemadeconveniências.
Tal sistemamantinhao sabersobodomíniodahistória
e o visívelsobo domíniodapalavra,numarelaçãode
contençãomútuadovisíveledodizível.É essaordem
quevemromperoÉdiporomântico,oheróideumpen-
samentoquenãosabeo quesabe,quero quenãoquer,
agepadecendoefalaporseumutismo.SeÉdipo- ar-
rastandoatrásdesio cortejodosgrandesheróisedipia-
nos- estánocentrodaelaboraçãofreudiana,éporque
eleéo emblemadesseregimedaartequeidentificaas
coisasdaartecomocoisasdopensamento,enquantotes-
49
I i
I
.11
,
li:
'1:1
.,
"
temunhosde um pensamentoimanentea seuoutro e
habitadopor seuoutro,escritoemtodapartenalingua-
gemdos signossensíveise dissimuladoem seuâmago
obscuro.
50
5.
As correções de Freud
Há portanto,de um lado, o apeloaosartistas,de
outro, a dependênciaobjetivaemrelaçãoàspressuposi-çõesde um determinadoregimeda arte.Faltapensara
especificidadeda conexãoentreeles,a especificidadeda
intervençãode Freud com relaçãoao inconscientees-
tético.Seuprincipal interesse,como disse,não é esta-
belecerumaetiologiasexualdos fenômenosda arte.É
intervir na ideiado pensamentoinconscientequenor-
matizaasproduçõesdo regimeestéticodaarte,épôr or-
demnamaneiracomoa arteeo pensamentodaartejo-
gamcom asrelaçõesdo sabere do não-saber,do senti-
do e do sem-sentido,do logose dopathos,do reale do
fantástico.Com suasintervenções,Freud procura,em
primeirolugar,afastarcertainterpretaçãodessasrelações,
aquelaquejogacom a ambiguidadedo realedo fantás-
tico, do sentidoe do sem-sentido,paraconduziro pen-
samentoda artee a interpretaçãodasmanifestaçõesda
"fantasia"a uma palavraúltima que é pura afirmação
dopathos,do sem-sentidobruto davida.Ele querfazer
51
triunfar umavocaçãohermenêuticae elucidativada ar-
te sobreuma entropia niilista inerenteà configuração
estéticada arte.
Paracompreenderisso,éprecisocolocarladoalado
duasafirmaçõesliminaresde Freud.Tiro a primeirado
início de "O MoisésdeMichelangelo".Freud nãosein-
teressa,diz ele,pelasobrasde artedo ponto devistada
forma.Ele seinteressapelo "fundo": pelaintençãoque
aíseexprimeepeloconteúdoqueaíserevela.I? A segun-
daéareprimendafeitaaospoetas,no início da Gradiva,
sobresuaambiguidadeno que concerneao significado
das"fantasias"damente.É precisorelacionaressasduas
declaraçõesparaquesecompreendaa tomadadeparti-
do declaradadeFreudunicamentepelo"conteúdo"das
obras.Sabe-sequeem geraleleconduzessabuscapelo
conteúdorumo à descobertada lembrançarecalcadae,
em última instância,rumo ao ponto de partida que é
angústiainfantil da castração.Essadesignaçãoda causa
últimasedágeralmentepelamediaçãodo fantasmaorga-
nizador,da formaçãodecompromissoquepermiteà li-
bido do artista,maisou menosrepresentadopor seuhe-
rói, escaparao recaIquee sesublimarna obra,ao preço
de nela inscreverseuenigma.Essatomadade partido
17 SigmundFreud,"LeMoise deMichel-Ange"[1914],in Essaisde
psychanalyseappliquée,Paris,Gallimard,coleçãoldées,1971,p.9 [ed.bras.:
"O MoisésdeMichelangelo",in op. cit., voI.XIII, pp.213-42].
52
vigorosatemumaconsequênciasingular,queo próprio
Freudélevadoaobservar:asaber,abiografizaçãodafic-
ção.Freud interpretaos sonhosfantasiososou ospesa-
delosdo N orbertHanold, deJ ensen,do estudanteN a-
thanael,de Hoffmann, ou de RebeccaWest, de Ibsen,
como dadospatológicosefetivosde personagensreais,
de quemo escritorteriasido o analistamaisou menos
lúcido. O exemplolimite dissoédadoem umanotade
"O estranho"sobre"O homemdeareia",naqualFreud
apresentaaprovadequeo ópticoCoppola eo advogado
Coppeliussãomesmoumaúnicapessoa,no caso,o Pai
castrador. Ele restabelece,assim,aetiologiado casoN a-
thanael,etiologiaqueHoffmann, o médicodefantasia,
teriaembaralhado,masnãoo suficienteparaocultá-Iade
seucolegacientista,pois "afantasiado poetanãomistu-
rou oselementosdo materialatalpontodeintrincamen-
to quenãosepossarestaurarsuaordemoriginal".18Exis-
te,portanto,umaordemoriginaldo "casoNathanael".
Por trásdaquiloqueo escritoroferececomoobradesua
livrefantasia,éprecisoreconhecera lógicado fantasma
eaangústiaprimordialneletravestida:aangústiadecas-
traçãodo pequenoN athanael,expressãodo dramafami-
liar vividopelopróprio Hoffmann quandocriança.
18SigmundFreud,"L'inquiérant"[1919],in Oeuvrescompletes,Pa-
ris,PUF, 1996,t.XV, p. 165[ed.bras.:"O estranho",in op.cit.,voI.XVII,
pp.233-69].
53
"
"
omesmoprocedimentopercorreo livro sobreGra-
diva. Por trásdo "dado arbitrário" e da históriafanta-
siosado jovemapaixonadopor umafiguradepedraede
sonho,a ponto de só conseguirenxergara mulher real
como apariçãofantasmáticadessafiguraantiga,Freud
trataderestabeleceraverdadeiraetiologiado casoNor-
bertHanold: um recalquee um deslocamentoda atra-
çãosexualdo adolescentepelajovemZoé.Essacorreção
nãosó o obrigaa fundarseuraciocínionum dadopro-
blemáticodaexistência"real"deumacriaturadeficção,
como tambémacarretaum modo de interpretaçãodos
sonhosquepodepareceringênuoàpróprialuz dosprin-
cípiosdo Freud cientista.A mensagemocultaseobtém
de fato pelasimplestraduçãoda figuraonÍrica em seu
equivalentereal:teinteressaspelaGradivaporque,narea-
lidade,éZoéqueteinteressa.Tal atalhoda interpretação
mostraque há maisnessecasodo queuma simplesre-
duçãodo dadoficcionala umasÍndromeclínica.Freud
põeem dúvidaaquilomesmoquepoderiatornar a sÍn-
dromeinteressanteparao médico,ou seja,o diagnósti-
co de um casodeerotomaniafetichista.Ele negligencia
igualmenteaquilo que deveriainteressarao cientista
preocupadoemrelacionaraclínicaàhistóriadosmitos,
ou seja,a longahistóriado mito do homemapaixonado
por uma imagemequesonhacom apossessãorealdes-
saimagem,mito do qualPigmaliãoéa figuraexemplar.
Uma únicacoisapareceinteressá-Io:restabelecernahis-
54
tóriaumaboaintrigacausal,mesmoquetenhadereme-
tera essedado inencontrávelque é a infânciade Nor-
bertHanold. Muito maisdo queofereceraboaexplica-
çãodo casoHanold, Freudestápreocupadoemrefutar
o estatutoqueo livro deJensenconfereàs"invenções"
da literatura.Sua refutaçãodiz respeitoa dois pontos
fundamentaisecomplementares:primeiro,a afirmação
do autorsegundoaqualosjàntasmasquedescrevesãoas
únicasinvençõesde suajàntasia inventiva;emseguida,
a moralqueeleconferea suahistória:o simplestriunfo
da"vidareal",emcarneeossoeembom alemão,quese
ri, pelavoz deseuhomônimo Zoé, da loucurado cien-
tistaNorbert e opõe suasimplese alegreperpetuidade
aosdevaneiosideais.A reivindicação,peloautor,desua
fantasiaformaevidentementeum sistemacomadenún-
ciadosdevaneiosdeseuherói.E essesistemapoderiase
resumirnum termofreudiano:dessublimação.Seexiste
dessublimaçãonessecaso,elaéobrado romancista,não
do psicanalista,e coincidecom sua"faltade seriedade"
peranteo fatofantasmático.
Por trásda"redução"do dadoficcionalaumainen-
contrável"realidade"patológicaesexual,háum questio-
namentopolêmicoquevisaumaprimeiraconfusãodo
ficcionale do real:a que fundamentaa práticae o dis-
cursodo romancista.Ao reivindicaro fantasmacomo
produtodesuafantasiaerefutar,atravésdo princípiode
realidade,o devaneiode seupersonagem,o romancista
55
seoutorgaa facilidadedecircular,segundolheconvém,
por ambososladosdafronteiraentrerealidadee ficção.
A tal equivocidade,Freud trata,em primeiro lugar,de
contrapor uma univocidadeda história. O ponto im-
portante,e quejustificatodosos atalhosda interpreta-
ção,é a identificaçãoda intrigaamorosaa um esquema
de racionalidadecausal.Não é a causaúltima - o in-
verificávelrecaiqueremetendoà infânciainencontrável
deNorbert - queinteressaa Freud,maso próprio en-
cadeamentocausal.Que a históriasejarealou fictícia,
pouco importa. O essencialé queelasejaunívoca,que
oponha à indiscernibilidaderomânticae reversíveldo
imaginárioedo realumadisposiçãoaristotélicadeações
esaberesdirecionadaparao acontecimentomaiordeum
reconhecimento.
56
6.
Dos diversos usos do detalhe
A partir daí, a relaçãoda interpretaçãofreudiana
com a revoluçãoestéticacomeçaa secomplicar.A psi-
canáliseépossívelnabasedeum regimedaartequedes-
titui asintrigasordenadasdaidaderepresentativae,no-
vamente,dá lugaraopathos do saber.Mas Freud opera
uma escolhabem determinadana configuraçãodo in-
conscienteestético.Ele privilegiaa primeira forma da
palavramuda,a do sintomaqueé vestígiode umahis-
tória.E a fazvalercontrasuaoutraforma,avoz anôni-
madavidainconscienteeinsensata.Essaoposiçãoo leva
a puxarparatrás,na direçãoda velhalógica represen-
tativa,asfigurasromânticasda equivalênciado fogose
dopathos. O exemplomaismarcanteé dadopelo texto
sobreo Moisés deMichelangelo.O objetodessaanálise
é defatosingular.Freud nãonosfalaaí, comono texto
sobreLeonardo,de um fantasmaidentificadoemuma
nota.Faladeumaesculturaquenosdiz terido revervá-
riasvezes.E estabeleceumaadequaçãoexemplarentrea
atençãovisualaodetalhedaobraea prerrogativapsica-
nalíticadosdetalhes"insignificantes".Como sesabe,isso
57
';1'
",
passaporumareferênciaquenutriumuitoscomentários,
areferênciaaMorelli/Lermolieff,o médicoespecialista
emobrasdearte,inventordeummétodoparajudiciário
deidentificaçãodasobrasapartirdosdetalhesÍnfimos
einimitáveisquerevelamamãodoartista.Um método
deleituradasobrasé,assim,identificadoaumparadig-
madeinvestigaçãodascausas.Masessemétododode-
talhe,porsuavez,podeserpraticadodeduasmaneiras,
quecorrespondemàsduasgrandesformasdo incons-
cienteestético.De umlado,háo modelodorastroque
fala,no qualselêa inscriçãosedimentadadeumahis-
tória.Num textofamoso,CarloGinzburgmostrouco-
mo,atravésdo "métodoMorelli",a interpretaçãofreu-
dianaseinscreviano grandeparadigmaindiciárioque
procurareconstituirumprocessoapartirdeseusrastros
ousinais.19Mashátambémo outromodelo,quevêno
detalhe"insignificante"nãomaiso rastroquepermite
reconstituirumprocesso,masa marcadiretadeuma
verdadeinarticulável,queseimprimenasuperfícieda
obraedesarmatodalógicadehistóriabem-composta,de
composiçãoracionaldoselementos.É essesegundomo-
19 Cado Ginzburg,"Traces:racinesd'unparadigmeindiciaire",in
Mythes, emblemes,traces,Paris,Flammarion,1989,pp. 139-80[ed.bras.:
"Sinais:raÍzesdeumparadigmaindiciário",in Mitos, emblemas,sinais:mor-
jálogia ehistória, rraduçãodeFedericoCarotti,SãoPaulo,Companhiadas
Letras,1989.
58
delodeanálisedodetalhequeseráreivindicadomaistar-
deporhistoriadoresdaarteparaseoporàprerrogativa
concedidaporPanofskyàanálisedoquadroapartirda
históriaqueelerepresentaoudotextoqueilustra.E essa
polêmica,alimentadaontemporLouisMarinehojepor
GeorgesDidi-Huberman,sereportaaFreud,aoFreud
inspiradoporMorelli parafundarummododeleitura
daverdadedapinturanodetalhedaobra:umainsigni-
ficantecolunaquebradaemA tempestadedeGiorgione
ouasmanchasdecorimitandoo mármorenapartein-
feriordaMadonadassombras,deFraAngelico.20O de-
talhefunciona,assim,comoobjetoparcial,fragmento
inacomodávelquedesfazaordenaçãodarepresentação
paradarlugaràverdadeinconscientequenãoéadeuma
históriaindividual,masqueéoposiçãodeumaordema
outra:ofigural sobofigurativo,ouo visualsobo visível
representado.Ora,no quelhedizrespeito,Freudnada
temavercomessacontribuiçãoaumaleituradapintura
edeseuinconsciente,quehojesereivindicadapsicaná-
lise.TampoucocomtodasessascabeçasdeMedusa,re-
presentantesdacastração,quetantoscomentadorescon-
temporâneosseesmeramparadesencavaremcadacabe-
çadeHolofernesou deJoãoBatista,emtaldetalheda
20 LouisMarin, De Ia représentation,Paris,Gallimard/Seuil,1994,
eGeorgesDidi-Huberman,Devant l'image,Paris,Minuit, 1990.
59
cabeleiradeGinevradeBenciouemtalrepresentaçãode
turbilhãodesenhadonoscadernosdeLeonardo.
É claroqueessapsicanálisedeDaVinci, praticada
sobretudoporLouisMarin,nãoéadeFreud.Pareceser
outracoisaqueo interessanoprivilégiodadoaodetalhe,
umaoutraverdadedafigurapintadaouesculpida,aque-
ladahistóriadeumtema[sujet],deumsintoma,deum
fantasmasingulares.Freudbuscaofantasmamatricialda
criaçãodoartistaenãoaordemfiguralinconscienteda
arte.Ora, o exemplodoMoisésvaideencontroa essa
explicaçãosimples.Semdúvidaéaestátuaqueo interes-
sa.Mas o princípiodesseinteresseésurpreendente.A
longaanálisedodetalhedaposiçãodasmãosedabar-
ba,comefeito,nãorevelanenhumsegredodeinfância,
nenhumciframentodo pensamentoinconsciente.Ela
remeteà maisclássicadasquestões:qualéexatamenteo
momentodoepisódiobíblicorepresentadopelaestátua
deMichelangelo?Serámesmoo dafúriadeMoisés?Es-
taráelerealmenteprestesadeixarcairnochãoasTábuas
daLei?Freudestáomaisdistantepossíveldasanálisesde
LouisMarin. Poder-se-iamesmodizerque,no debate
entreWorringer,o qualprocuraidentificarordensvi-
suaisdistintas,remetidasatraçospsicológicosdominan-
tes,ePanofsky,quesubmeteaidentificaçãodasformas
àdostemaseepisódiosrepresentados,Freudseposiciona
defacto aoladodePanofsky.E, maisprofundamente,
suaatençãoaodetalheremeteà lógicadaordemrepre-
60
sentativanaqualaformaplásticaeraaimitaçãodeuma
açãonarradaeo temaespecíficodo quadroseconfun-
diacomarepresentaçãodomomentopregnantedaação,
aqueleemqueseconcentravamseumovimentoesua
significação.Essemomentodepregnância,Freudo de-
duzdaposiçãodamãodireitaedasTábuas.Nãoéaque-
le emqueMoisés,indignado,sepreparaparaatirar-se
contraosidólatras.É o dacóleradominada,quandoa
mãoabandonaabarbaqueantesseguravaeagarrafir-
mementeasTábuas.Sabe-sequeessemomentonãose
encontranotextobíblico.Freudo acrescentaemnome
deumainterpretaçãoracionalistanaqualo homem,se-
nhordesi,seimpõeaoservodoDeusciumento.A aten-
çãoaodetalheservefinalmenteparaidentificaraposição
deMoiséscomotestemunhodeumtriunfodavontade.
O MoisésdeMichelangelointerpretadoporFreudéalgo
comooLaocoontedeWinckelmann,aexpressãodeuma
serenidadeclássicavitoriosasobreo afeto.E, nocasode
Moisés,éopathosreligiosoqueévencidopelarazão.
Moiséséoheróidoafetovencido,reconduzidoàordem.
Poucoimportasaber,comoquercertatradição,sefoisua
própriaatitudeemrelaçãoaseusdiscípulosrebeldesque
opatriarcadapsicanáliseteriaassimestatuadopordele-
gaçãonomármoreromano.Muito maisdoqueumau-
torretratodecircunstância,esseMoisésreproduzuma
cenaclássicadaerarepresentativa:o triunfodavontade
edaconsciênciaencarnadasnacenatrágica,naoperase-
61
ria ou nosquadrosdetemashistóricos,por algumherói
romanotornadosenhordesi comodo universo:Brutus
ouAugusto,Cipião ou Titus. E maisqueaosidólatrase
aosdissidentes,esseMoisés, encarnaçãoda consciência
vitoriosa,seopõe aoshomenssemobra,àsvítimasdo
fantasmanão elucidado.E naturalmentese pensano
alteregolendáriode Michelangelo,LeonardodaVinci,
o homemdoscadernosedoscroquis,o inventordemil
projetosnão realizados,o pintor quenão chegaa indi-
vidualizarasfigurasepintasempreo mesmosorriso,em
suma,o homempresoaseufantasma,fixadonumaliga-
çãohomossexualemrelaçãoao Pai.
62
7.
Uma medicina contra outra
Mas aesseMoisésclássicopode-setambémcontra-
por umaoutra"figuradepedra":o baixo-relevode Gra-
diva.Para Freud, a semelhançaentreo movimentoda
figuradepedraeo dajovemvivaseria- com o encon-
tro deZoé emPompeia- o único elemento"inventa-
do" e "arbitrário"na apresentaçãodo casoNorbert Ha-
nold.21Eu diriabemo contrário.Essajovemvirgemro-
mana,cujo andardesenvoltoé feito de voo suspensoe
apoio firme sobreo solo, essaexpressãode vida ativae
derepousotranquiloemsi étudo menosumainvenção
arbitráriasaídado cérebrodeWilhelm ]ensen.Pelocon-
trário, reconhece-seaí a figura tantasvezescelebrada
desdeSchillerou Byron, Hülderlin ou Hegel: o andar
da kóre,lembrançade frisadasPanateneiasou de urna
grega,figuraemtorno da qual todaumaépocasonhou
umanovaideiadecomunidadesensível,umavidaidên-
21 Delírios esonhosna Gradivadejensen,op. cito
63
11::
::~
I11
ticaàarte,umaarteidênticaàvida.Mais do queumjo-
vemcientistaextravagante,Norbert Hanold é umadas
inúmerasvítimas,trágicasou cômicas,decertofantasma
teórico:a vida vibranteda estátua,da dobra da túnica
ou do andarlivre,em quesevia encarnadoum mundo
ideal da comunidadeviva. O "fantasista"Jensen sim-
plesmentesediverteconfrontandoessa"vida" imagina-
dadapedraantigaedacomunidadefuturacoma trivia-
lidadeda vida pequeno-burguesa:osvizinhos,os caná-
riosnasjanelaseospassantesna rua.O apaixonadopela
vida encarnadana pedrasevê chamadoà vida da vizi-
nhabrejeiraeprosaicaeaotrivialdasviagensdenúpcias
pequeno-burguesasna Itália.É issoqueFreudrecusaao
contraporsuaprópria interpretaçãoao tratamentode
Zoé:essaliquidaçãosimplesdo sonhoqueseopõe ;'L ka-
tharsisdo afeto.Ele denunciaacumplicidadeentreapo-
siçãodo fantasistae certofim prosaicodo sonho. Essa
denúncianão é novidade.E pode-seaqui evocaraspá-
ginasde Hegel quedenunciam,nos Cursosdeestética,o
arbitrário da fantasiade Jean-Paul ou de Tieck, e suasolidariedadeúltima com o filisteísmodavida burgue-
sa.Nos dois casossevê denunciar,no "fantasista",um
determinadousodo espírito,do Witz romântico.Mas,
nessaproximidade,opera-seuma reviravoltaessencial.
À frivolidadesubjetivado Witz, Hegelopõea realidade
substancialdo espírito.Freud censuraao fantasistades-
conhecera substancialidadedos jogos do Witz. Hegel
64
empenha-sea princípio emrecusarumafiguravaziada
"livre" subjetividade,reduzidaà suaautoafirmaçãore-
petitiva.Freud,confrontadoaosnovosdesdobramentos
do inconscienteestético,põeemcausaprioritariamente
umaideiadaobjetividadequeseresumeàideiade "sa-
bedoriadavida".Na sorridenteZoé Bertgangeno "fan-
tasista"Wilhelm Jensen, essasabedoriaassumeumafi-
gurabastanteanódina. Mas o mesmonão ocorre em
outras"curas",emoutros"fins desonho" ilustradospe-
la "medicina"literáriado final do séculoXIX. Pode-se
pensaraqui em duasficçõesexemplares,uma inventa-
da por um filho de médico,a outra tendo um médico
por herói.Trata-se,primeiro,do fim daEducaçãosenti-
mental,a evocaçãodavisitafrustradaaobordeldaTur-
ca,quepermanece- na derrocadade suasesperanças
ideaiscomo de suasambiçõespositivas- o que Fré-
déric e Deslaurierstiveramde melhor. E, semdúvida
aindamaissignificativo,o fim do DoutorPascaldeZola,
queé tambémaconclusãoeamoraldetodo o ciclodos
Rougon-Macquart.Essamoraléno mínimo singular,já
que O doutorPascalnarrao amor incestuosodo velho
doutor,queé tambémhistoriógrafoda família,por sua
sobrinhaClotilde. O final do livro nosmostraClotilde,
apósa mortedePascal,amamentando,no antigogabi-
netedetrabalhotransformadoemquartode bebê,o fi-
lho do incestoque, inconscientede qualquertabucul-
tural,ergueseupequenopunho,nãoaalgumfuturo ra-
65
diante,massimplesmenteà forçacegaebrutadavida
queassegurasuaperpetuidade.Essetriunfodavida,afir-
madopor um incestobanalizadoe atéregenerador,é,
emsuma,aversão"séria"eescandalosadafantasialevia-
nade}ensen.Essamoralrepresentao queFreudrecusa,
o "mau"incesto,maunãoporqueofendeamoral,mas
porquedesconectao dadoincestuosodetodaboaintri-
gadecausalidade- edeculpabilidade-, detodaló-
gicadesaberlibertador.
Não seiseFreudleuO doutorPascal.Em compen-
sação,leudepertoumcontemporâneodeZola,autorde
históriasexemplaresdeperturbaçõesdaalmaedesegre-
dosdainfância,detratamentos,confissõesecuras.Falo
deIbsenepensoaquinaanálisequeFreudfazdesua
peçaRosmersholmnoartigointitulado"Algunstiposde
caráterencontradosnotrabalhopsicanalítico".Essetexto
analisaalgunstiposparadoxaisqueseopõemà racio-
nalidadedotratamentopsicanalítico:unsporquesere-
cusamarenunciaraumasatisfaçãoeasubmeteroprin-
cípiodeprazeraoprincípioderealidade;outros,aocon-
trário,porqueseesquivamdiantedo própriosucesso,
recusamumasatisfaçãonomomentomesmoemquepo-
demenfimobtê-Ia,emqueelanãoestámaismarcada
peloselodaimpossibilidadeoudatransgressão.Taissão
ajovemqueportantotempoconfabulouparaserdes-
posadaouoprofessoràsvésperasdefinalmenteconquis-
taracátedrapelaqualfeztantasintrigas,equeseesqui-
66
vamdiantedosucessodeseusempreendimentos.É que,
julgaFreud,osucessoofertadoprovocaainvasãodeum
incontrolávelsentimentodeculpa.E éaíqueintervêm
osexemplostiradosdeduaspeçasexemplares:Macbeth,
semdúvida,mastambémRosmersholm.Comoapeçade
IbsenémenosconhecidaqueadeShakespeare,convém
relembrarseuenredo.Ela tempor cenárioumavelha
mansãosituadanosconfinsdeumapequenacidadeda
Noruega,recônditanofundodeumfiorde.Nessaman-
são,isoladaporumapassarelaerguidasobreáguastur-
bulentas,viveo antigopastorRosmer,herdeirodeuma
extensafamíliadedignitáriosecujamulher,vítimade
distúrbiosmentais,sejogouno marumanoantes.Na
mesmacasaviveagovernantaRebecca,quealiseempre-
garaapósamortedeseupadrasto,o doutorWest.Este,
adeptodolivre-pensamento,haviaeducadoRebeccade-
poisdamortedamãe,convertendo-aàssuasideiaslibe-
rais.A convivênciadeRosmeredamoçatemumadu-
placonsequência:porumlado,aconversãodoex-pas-
toràsideiasliberais,queeleacabaassumindo,paragran-
deescândalodeseucunhado,Kroll, diretordeescolae
chefelocaldopartidodaordem.Por outro,atransfor-
maçãodesuacomunhãointelectualcomRebeccaem
sentimentoamoroso.Eleapedeemcasamento.MasRe-
becca,apósumprimeiromovimentodealegria,declara
queé impossível.Nisso,o diretorKroll vemrevelarao
cunhadoquesuairmãforainduzidaaosuicídioe,aRe-
67
becca,queseunascimentoé ilegítimo:elaé,defato,a
filhanaturaldeseu"padrasto".Rebeccaserecusaener-
gicamenteaacreditar.Confessa,aocontrário,quefoiela
queminsinuouàdefuntaasideiasquealevaramaosui-
cídio.Depoisdisso,prepara-separadeixaracasaquan-
doRosmerlheroga,pelasegundavez,quesetornesua
esposa.Mas elarecusanovamente.Elajá nãoé,diz,a
jovemsequiosaporsucessoquehaviaseinstaladonacasa
eque,aospoucos,afastaraa esposaqueconstituíaum
obstáculo.SeRosmer,naconvivênciacomela,tinhase
convertidoaolivre-pensamento,ela,porsuavez,havia
enobrecidopelocontatocomele.Elanãopodemaisgo-
zardosucessoobtido.
É nessepontoqueFreudfazsuaintervençãoque,
maisumavez,visacorrigirasexplicaçõesdoautoreres-
tabeleceraverdadeiraetiologiado caso.A razãomoral
alegadaporRebeccaé,dizele,umsimplesvéu.A pró-
priamoçaindicaumarazãomaissólida:elatemum
"passado".E compreende-sefacilmenteo queéessepas-
sadoquandoseanalisasuareaçãoàsrevelaçõessobreseu
nascimento.Seelaserecusacomtantaênfaseaadmitir
queéfilhadeWesteseessarevelaçãotemcomoconse-
quênciaaconfissãodesuasmanobrascriminosas,épor-
quefoi amantedopretensopadrasto.É o incestoreco-
nhecidoquedesencadeiao sentimentodeculpa.É ele
queseopõeaoêxitodeRebecca,enãosuaconversão
moral.Paracompreendersuaconduta,éprecisorestabe-
68
leceressaverdadequeapeçanãodiz,quenãopodiadi-
zer,senãoporvagasalusões.22
Contudo,aooporassima"verdadeira"razãoocul-
taà razão"moralizante"declaradapelaheroína,Freud
esqueceaquiloque,paraIbsen,dáseusentidoúltimoà
condutadeRebecca.Eleesqueceo fimdapeça,quenão
concernenemàconversãomoralizante,nemaoabati-
mentosobo pesodaculpa.Com efeito,a transforma-
çãodeRebeccasesituaparaalémdobemedomal.Ela
setraduznãopelaconversãoàboamoral,maspelaim-
possibilidadedeagir,impossibilidadedequerer.O fim
dahistória,paraRebeccaquenãoquermaisagir,epa-
raRosmerquenãoquermaissaber,éumauniãomísti-
cadeumtipoparticular.Comefeito,elesseunempara
tomaralegrementeo caminhodapassarelaeseafogar
juntosnasondas.Uniãoderradeiradosaberedonão-
-saber,do agiredopadecer,conformeà lógicado in-
conscienteestético.O verdadeirotratamento,averda-
deiracuraéarenúnciaschopenhauerianaaoquerer-vi-
ver,o abandonono maroriginaldo não-querer,"vo-
lúpiasuprema"naqualhaviasucumbidoa Isoldade
22 SigmundFreud,"Quelquestypesdecaracrêresdégagésparlerra-
vai!psychanalyrique"[1916J,ínDeuvres completes,Paris,PUF, 1996,r.XV,
p. 36 [ed.bras.:"Algunsripasdecarárerenconrradosno rrabalhopsicana-
lírico",ín op. cit.,vaI.XIV, pp.321-48].
69
li'I::
1",1'
I'
I'
,I'
,,:1
Wagner,equeo jovemNietzscheassimilaraaotriunfo
donovoDionísio.
É essavolúpiaqueFreudrecusa.É contraelaque
elefazvaleraboaintrigacausal,aracionalidadedosen-
timentodeculpaliberadopelotratamentodo diretor
Kroll. Ele nãoseopõeà explicaçãomoralizante,masa
essa"inocência"do mergulhono maroriginal.Ainda
aquisemanifestaaambiguidadedesuarelaçãocomoin-
conscienteestético:diantedesseniilismo,dessaidentida-
deradicaldopathosedo lagosqueseconstatanotempo
deIbsen,deStrindbergedowagnerianismo,averdade
últimaea"moral"doinconscienteestético,eleretoma,
emsuma,aposiçãodeCorneilleedeVoltaireperanteo
furoredipiano.Procurarestabelecer,contraessepathos,
umbomencadeamentocausaleumavirtudepositivado
efeitodesaber.A forçadesseargumentopodesersenti-
daemumaoutrareferência,maisbreve,aoutrodrama
"psicanalítico"deIbsen,A damadomar,emqueaesposa
dodoutorWangeléperseguidapeloirresistívelchama-
dodomar.Quandoseumaridoadeixalivreparaseguir
omarinheiroqueestádepassagem,noqualelareconhe-
ceaencarnaçãodesseapelo,Ellidarenuncia.Assimco-
moRebeccasedeclaravatransformadaporRosmer,elasedeclaraliberadapelaescolhaqueo maridolheconce-
deu.Já quepodeescolher,elaficarácomele.Ora,dessa
vez,arelaçãoentreasrazõesdoautoreasdo intérprete
seapresentainvertida.Freudefetivamenteconfirmaa
70
interpretaçãodapersonagemenelaenxergaosucessodo
"tratamento"conduzidopelodoutorWangel.Ibsen,por
suavez,reduzessaliberdadeaoestatutodeilusãonas
notaspreparatóriasqueresumemahistóriaemtermos
decididamenteschopenhauerianos:
"A vidaaparentementeé alegre,fácile
plenadevivacidadeláemcima,à sombrados
fiordesenauniformidadedoisolamento.No
entanto,exprime-sea ideiadequeessetipo
devidaé umasombradevida.Nenhumvi-
gordeação;nenhumalutapelalibertação.Na-
daalémdeaspiraçõesepromessas.Assimse
viveláduranteo curtoeclaroverão.E emse-
guida...penetra-senastrevas.Entãodesperta
o vivodesejodagrandevidadomundoexte-
rior.Masoqueseganhacomisso?Dependen-
do dassituações,dependendodo desenvolvi-
mentodoespírito,aumentamasexigências,as
aspirações,aspromessas[...] Limitesportoda
parte.Daí a melancoliaespraiadacomoum
cantolamuriosoabafadoportodaaexistência
enacondutadaspessoas.Um clarodiadeve-
rãoseguidoporgrandestrevas...eistudo[...]
Forçadeatraçãodomar.Aspiraçãopelomar.
Pessoasaparentadasaomar.Ligadasaele.De-
pendentesdo mar.Devemretornaraele[...]
71
ograndesegredoéadependênciadohomem
emrelaçãoàs'forçassemvontade'."23
Assim,o ciclodasestaçõesnoNorteéidentificado
aoesvanecimentodasilusõesdarepresentaçãononadada
vontadequenadaquer.A essamoraldaintriga,Freud,
dessavez,opõeaqueladeclaradapelodoutorWangele
adamadomar.
Dir-se-átratar-se,nessecaso,deumaquestãoda
época.Mas essa"questãodeépoca"nadatemdecir-
cunstancial.Nãosetrataapenasdocombatecontrauma
ideologiapresentenaatmosferadaépoca- umaépoca,
deresto,já umtantoultrapassadaquandoFreudescre-
veessestextos.Trata-sepropriamentedocombateentre
doisinconscientes,entreduasideiasdaquiloqueestápor
debaixodasuperfíciepolidadassociedades,duasideias
dedoençaedecuradascivilizações.Já queestamosfa-
landodeépoca,sejamosprecisos.O "MoisésdeMiche-
langelo"éde1914,"O estranho",de1915,assimcomo
o textosobreIbsen.Não estamosmuitolongedeAlém
doprincípio deprazer,quemarcaráumareviravoltana
obradeFreud,fazendointervirapulsãodemorte.Sa-
be-secomoFreudexplicaessareviravoltadeseupensa-
23 HenrikIbsen,Ia damedeIa mer,in Oeuvrescomplêtes,Paris,Plan,
1943,t. XIV, pp.244-5.
72
mento.A afirmaçãodapulsãodemortesededuzdoes-
tudodaproblemática"neurosetraumática".Masseure-
conhecimentoestátambémligadoaogolpeinfligidope-
laguerrade1914à visãootimistaquehavianorteadoa
primeirafasedapsicanáliseeasimplesoposiçãodoprin-
cípiodeprazeraoprincípioderealidade.No entanto,é
legítimopensarqueessaexplicaçãonãoesgotaporcom-
pletoo sentidodoacontecimento.A descobertadapul-
sãodemorteé tambémumepisódiodalongaconfron-
tação- maisoumenosencoberta- deFreudcomo
grandetemaobsedantedaépocaemqueapsicanálise
seformou:como inconscientedacoisaemsischopen-
hauerianaecomasgrandesficçõesliteráriasdoretorno
a esseinconsciente.Que osinstintosconservadoresda
vidadefinitivamenteconservamnavidaadireçãorumo
a"sua"morteequeos"guardiõesdavida"são,assim,os
"lacaiosdamorte",édefatoo segredoúltimodetodo
granderomancedasilusõesdavontade,emqueseresu-
mealiteraturadetodoumséculo,aliteraturadaidade
estética.Foi comessesegredoqueFreudnãocessoude
sedebater.E éjustamenteainterpretaçãodo"princípio
derealidade"queestáno cernedascorreçõesfeitaspor
FreudnasintrigasdeJensen,Hoffmannou Ibsen.É a
confrontaçãocomalógicadoinconscienteestéticoque
o levaarestabeleceraboaetiologiadocasoHanoldou
do casoNathanaele o bomfim deRosmersholm,mas
tambémaboaatitudedeMoisés,a dacalma,darazão
73
quesesobrepõeaopathossagrado.Tudo sepassacomo
seessasanálisesfossemmeiosderesistirà entropianiilista
queFreud detectae recusanasobrasdo regimeestético
daarte,eà qual,todavia,eledaráum lugarnateorização
dapulsãodemorte.
Pode-se,assim,compreendera relaçãoparadoxal
entreasanálisesestéticasde Freud e aquelasque, mais
tarde,farãoreferênciaa ele.Estastratarãode refutaro
biografismofreudianoesuaindiferençaà "forma"artís-
tica.É nasparticularidadesdo toquepictural,refutando
silenciosamenteaanedotafigurativa,ou nas"gagueiras"
do textoliterário,marcandoa açãode uma "outra lín-
gua"na língua, queelesbuscarãoa eficáciado incons-
ciente,concebidocomo a marcade umaverdadeino-
minávelou o choquede umapotênciado Outro, exce-
dendoemseuprincípio todaapresentaçãosensívelade-
quada.No início de"Moisés",Freudevocao choquepro-
vocadopelasgrandesobraseaconfusãoquepodetomar
contado pensamentodiantedo enigmadessechoque.
"Não teriamesmoalgumestetaconsideradotal desam-
parodenossainteligênciacomocondiçãonecessáriados
maioresefeitosqueumaobradearteé capazdeprodu-
zir?Contudo, eu teriadificuldadesem acreditarem se-
melhantecondição."24O motor dasanálisesde Freud,
24 Essaisdepsychanalyseappliquée,op. cit., p. 10.
74
a razãodo privilégioqueeleconcedeà intrigabiográfi-
ca,sejaadaficção,sejaado artista,seencontraaí:elese
recusaa atribuira potênciada pintura,da esculturaou
da literaturaa essedesamparo.Paravencera tesedo es-
tetahipotético,eleestápronto a refazerqualquerhistó-
ria e atémesmoreescrever,quandopreciso,o textosa-
grado.Ora, esseesteta,paraFreudhipotético,éhojeem
dia umafigurabempresenteno campodo pensamento
estéticoe,emgeral,sereferea Freudparafundamentar
a tesequeelepretendiarefutar,aqueassociaapotência
da obra a seuefeitode desamparo.Aqui, pensoparti-
cularmentenasanálisesdo último Lyotard,queelabora
umaestéticado sublimedaqualBurke,Kant eFreudsão
os trêspilares.25À "debilidade"estética,Lyotard opõe
uma potênciado toque pictural, concebidocomo po-
tênciadedesapropriação.O sujeitoéaí desarmadopela
marcado aistheton,do sensível,que afetaa almanua,
confrontadoa umapotênciado Outro, queem última
instânciaéa dafacede Deus,quenãopodesermirada,
a qual colocao espectadorna posiçãode Moisés diante
da sarçaardente.À sublimaçãofreudianaseopõeessa
marcado sublime,quefaztriunfarumpathosirredutível
25 Cf., emparticular,L 'inhumain, Paris,Galilée,1988,eMoralités
postmodernes,Paris,Galilée,1993[ed.bras.:Moralidades pós-modernas,
rraduçãodeMarinaAppenzeller,Campinas,Papirus,1996].
75
atodologos,umpathos,emúltimainstância,identifica-
doà potênciamesmadeDeusquechamaMoisés.
A relaçãoentreosdoisinconscientesapresenta,por-
tanto,umasingularpermutabilidade.A psicanálisefreu-
dianapressupõeessarevoluçãoestéticaquerevogaaor-
demcausaldarepresentaçãoclássicaeidentificaapotên-
ciadaarteà identidadeimediatadoscontraditórios,do
logose dopathos.Elapressupõeumaliteraturaquere-
pousasobreaduplapotênciadapalavramuda.Mas,nes-
sadualidade,Freudoperasuaescolha.À entropianiilis-
tainerenteaopoderdapalavrasurda,eleopõea outra
formadapalavramuda,o hieróglifoentregueaotraba-
lhodainterpretaçãoeà esperançadacura.E, seguindo
essalógica,eletendeaassimilaraobrada"fantasia"eo
trabalhodesuadecifraçãoà intrigaclássicadoreconhe-
cimentoquea revoluçãoestéticarevogava.Assim,ele
reconduzaosparâmetrosdo regimerepresentativoda
arteasfiguraseintrigasqueesseregimerecusavaeque
apenasa revoluçãoestéticahaviacolocadoà suadispo-
sição.A esseretornoseopõehojeumoutrofreudismo,
quepõeemcausao biografismofreudianoeseafirma
maisrespeitosodoprópriodaarte.Esteseapresentaco-
moumfreudismomaisradical,liberadodassequelasda
tradiçãorepresentativaeafinadocomo novoregimeda
artequelheconcedeseuÉdipo,o regimequeigualao
ativoaopassivo,afirmandoaomesmotempoaautono-
miaantirrepresentativadaartee suanaturezaprofun-
76
damenteheteronômica,seuvalordetestemunhodaação
dasforçasqueultrapassamo sujeitoeo arrancamdesi
mesmo.E, paraisso,apoia-seprincipalmenteemAlém
doprincípiodeprazeretodosostextosdosanos1920e
1930,quemarcamadistânciaentreo Freudcorretorde
]ensen,IbsenouHoffmann,eoFreudadmiradordeum
Moiséslibertodafúriasagrada.Mas,paratanto,preci-
sadecidir-se,demaneiraoposta,quantoà lógicacon-

Outros materiais