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"França.Br 2009" l'Année de Ia France au Brésil (21avril-15 novembre)estorganisée: - en France,par le Commissariatgénéralfrançais, leMínistere desAffaires Etrangeres etEuropéennes,leMinistere de Ia Culture etde Ia Communication et Culturesfrance; - au Brésil,par le Commissariatgénéralbrésilien,leMinistere de Ia Culture etleMinis- teredesRelationsExtérieures. "França.Br2009"AnodaFrançanoBrasil(21deabrila 15denovembro)éorganizado: naFrança,peloComissariadogeralfrancês,peloMinistériodasRelaçõesExteriorese Europeias,peloMinistériodaCulturaedaComunicaçãoeporCulturesfrance; no Brasil,peloComissariadogeralbrasileiro,peloMinistériodaCulturaepeloMi- nistério dasRelaçõesExteriores.• Libertlf • Égalirl! • Fraternité RÉpuBLlQUE FRANÇAISB JacquesRanciere o inconsciente estético TraduçãodeMônicaCostaNetto editora.34 EDITORA 34 Editora34Ltda. RuaHungria,592 Jardim Europa CEP 01455-000 SãoPaulo- SP Brasil TellFax (lI) 3816-6777www.editora34.com.br Copyright© Editora34Ltda.(ediçãobrasileira),2009 L 'ineonscientesthétique© Galilée,2001 A fotoc6piadequalquerfolhadestelivro é ilegaleconfigurauma apropriaçãoindevidadosdireitosintelectuaisepatrimoniaisdo autor. Capa,projetográficoeeditoraçãoeletrônica: Braeher&Malta ProduçãoGrdfiea Preparação: LauraRivasGagliardi Revisão: CidePiquet 1a Edição- 2009 CIP - Brasil.Catalogação-na-Fonte (SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ, Brasil) Ranciere,J acques R152i O inconscienteestéticoI Jacqucs Ranciere;traduçãodeMônica CostaNetto. - SãoPaulo:Ed. 34, 2009. 80 p. ISBN 978-85-7326-438-8 Traduçãode:L'inconscientesthétique 1.Filosofiafrancesacontemporânea. 2. Estética.3. Psicanálise.I. Titulo. CDD - 194 o inconscienteestético Prólogo . 1.O defeitodeum tema . 2. A revoluçãoestética . 3. As duasformasdapalavramuda . 4. De um inconscienteaooutro . 5.As correçõesde Freud . 6. Dos diversosusosdo detalhe . 7. Uma medicinacontraoutra . Sobreoautor ···················· 9 17 25 33 43 51 57 63 79 Prólogo Dado o título, esclareçoque não falarei,aqui, da aplicaçãoda teoriafreudianado inconscienteao domí- nio daestética.1Não falarei,portanto,depsicanáliseda artenemmesmodosnumerososesignificativosemprés- timosquehistoriadoresefilósofosdaartepossamterfei- to dastesesfreudianase lacanianasem particular.Não tenhonenhumacompetênciaparafalardo pontodevis- tada teoriapsicanalítica.Mas, sobretudo,meuinteres- seé bemdiverso.Não procurosabercomo osconceitos freudianosseaplicamà análisee interpretaçãodos tex- tosliteráriosou dasobrasplásticas.Pergunto-me,emvez disso,por queainterpretaçãodessestextoseobrasocupa um lugarestratégiconademonstraçãodapertinênciados conceitose dasformasde interpretaçãoanalíticas.Não estoupensandoapenasnos livros ou artigosqueFreud dedicouespecificamentea algunsescritoresou artistas, sejaa biografiade LeonardodaVinci, o Moisésde Mi- 1 O presentetextoresultadeduasconferênciasrealizadasnaÉcole de Psychanalyse,emBruxelas,emjaneirode 2000,a convitedeDidier Cromphout. 9 chelangeloou a GradivadeJensen.Pensotambémnas múltiplasreferênciasatextosouapersonagensliterários queemgeralsustentamsuasdemonstrações,porexem- plonasmúltiplasreferênciasdaInterpretaçãodossonhos, emprestadastantoaosgrandestítulosdaliteraturana- cionalquantoàsobrascontemporâneas,tantoaoFausto deGoethequantoàSafodeAlphonseDaudet. Encararascoisasinversamentenãosignificade- volveraoinvestigadora questãosobreseusexemplos, perguntar-lheporqueseinteressa,emparticular,pelo MoisésdeMichelangeloou poraquelapequenaanota- çãodosCadernosdeLeonardo.Osprofissionaisdaárea já nosexplicaramascircunstânciasdaidentificaçãodo paidapsicanálisecomasTábuasdaLei ouasimplica- çõesdesuaconfusãoentreum milhafree um abutre. Nãosetratará,aqui,depsicanalisarFreud.As figurasli- teráriaseartísticasporeleescolhidasnãomeinteressam porqueremeteriamaoromanceanalíticodoFundador. Interessa-mesaberaqueservemdeprovae o quelhes permiteservirdeprova.Ora,emsuaamplageneralida- de,essasfigurasservemparaprovaristo:existesentidono queparecenãoter,algodeenigmáticono queparece evidente,umacargadepensamentono quepareceser umdetalheanódino.Taisfigurasnãosãoo materialcom quea interpretaçãoanalíticaprovasuacapacidadede interpretarasformaçõesdacultura.Elassãoostestemu- nhosdaexistênciadecertarelaçãodopensamentocom 10 o não-pensamento,decertapresençadopensamentona materialidadesensível,do involuntáriono pensamento conscienteedosentidono insignificante.Em suma,se omédicoFreudinterpretafatos"anódinos",desprezados porseuscolegaspositivistas,epodefazercomqueesses "exemplos"sirvamàsuademonstração,éporqueelessão emsimesmostestemunhosdeumdeterminadoincons- ciente.Podemosdizê-Iodeoutromodo:a teoriapsica- nalíticado inconscienteé formulávelporquejá existe, foradoterrenopropriamenteclínico,certaidentificação deumamodalidadeinconscientedopensamento,epor- queo terrenodasobrasdearteedaliteraturasedefine comooâmbitodeefetivaçãoprivilegiadadesse"incons- ciente".Meuquestionamentoserádirecionadoàanco- ragemdateoriafreudiananessaconfiguraçãojáexisten- tedo"pensamentoinconsciente",nessaideiadarelação do pensamentoedo não-pensamentoqueseformoue desenvolveudemodopredominanteno terrenodoque sechamaestética.T ratar-se-ádepensarosestudos"es- téticos"deFreudcomomarcasdeumainscriçãodopen- samentoanalíticodainterpretaçãonohorizontedopen- samentoestético. Esteprojetopressupõeevidentementeumaexplica- çãopréviadapróprianoçãodeestética.Paramim,esté- ticanãodesignaaciênciaouadisciplinaqueseocupada arte.Estéticadesignaum mododepensamentoquese desenvolvesobreascoisasdaarteequeprocuradizerem 11 queelasconsistemenquantocoisasdopensamento.De modomaisfundamental,trata-sedeumregimehistóri- coespecíficodepensamentodaarte,deumaideiado pensamentosegundoa qualascoisasdaartesãocoisas depensamento.Sabemosqueousodapalavra"estética" paradesignaropensamentodaarteérecente.Emgeral, suagenealogiaremeteà obraqueBaumgartenpublica comessetítuloem1750eà Críticadafaculdadedejul- gar,deKant.Masessasreferênciassãoequívocas.Com efeito,o termo"estética"no livrodeBaumgartennão designanenhumateoriadaarte.Designao domíniodo conhecimentosensível,doconhecimentoclaromasain- daconfusoqueseopõeaoconhecimentoclaroedistinto dalógica.E aposiçãodeKantnessagenealogiaéigual- menteproblemática.TomandoemprestadodeBaum- garteno termo"estética"paradesignarateoriadasfor- masdasensibilidade,Kantrecusadefatoaquiloquelhe davaseusentido,istoé,aideiadosensívelcomointeli- gívelconfuso.Paraele,nãoexisteumaestéticapensável comoteoriado conhecimentoconfuso.E a Crítica da faculdadedejulgar nãoconhecea"estética"comoteoria. Elaconheceapenasoadjetivo"estético",quedesignaum tipodejulgamentoenãoumdomíniodeobjetos.Ape- nasnocontextodoromantismoedoidealismopós-kan- tiano,atravésdosescritosdeSchelling,dosirmãosSchle- gelou deHegel,a estéticapassaráadesignaro pensa- mentodaarte- nãosemsefazeracompanhar,deres- 12 to,porumainsistentedeclaraçãodeimpropriedadedo termo.É sóapartirdaíque,sobo nomedeestética,se operaumaidentificaçãoentreo pensamentodaarte- opensamentoefetuadopelasobrasdearte- ecertano- çãode"conhecimentoconfuso":umaideianovaepara- doxal,já que,aofazerdaarteo territóriodeumpensa- mentopresenteforadesimesmo,idênticoaonão-pen- samento,elareúneoscontraditórios:o sensívelcomo ideiaconfusadeBaumgarteneo sensívelheterogêneoà ideiadeKant.Istoé,elafazdo"conhecimentoconfuso" nãomaisumconhecimentomenor,maspropriamente umpensamentodaquiloquenãopensa.2 Dito deoutromodo,"estética"nãoéumnovono- meparadesignaro domínioda"arte".É umaconfigu- raçãoespecíficadessedomínio.Elanãoéanovarubrica sobaqualseorganizariaaquiloqueantesconcerniaao conceitogeraldepoética.Elamarcaumatransformação noregimedopensamentodaarte.E essenovoregimeé o lugarondeseconstituiumaideiaespecíficadopensa- mento.Minhahipóteseéqueo pensamentofreudiano2 Sabe-sequeumconsensohojedominanteobstina-seemlamentar queaestéticatenhasidoassimdesviadadesuaverdadeirafunçãodecrítica do juizo degosto,talcomoKant ahaviaformulado,resumindoo pensa- mentodo iluminismo.Massósepodedesviaralgoqueexiste.Comoaes- téticajamaisfoi ateoriado juizodegosto,o desejodequeelavolteasê-Io expressatãosomentea ladainhacomumdo "retorno"a alguminencon- trávelparaisopré-revolucionáriodo "individualismoliberal". 13 do inconscientesó épossívelcom basenesseregimedo pensamentoda artee da ideia do pensamentoque lhe é imanente.Ou ainda, o pensamentofreudiano, para alémdequalquerclassicismodasreferênciasartísticasde Freud, só setornapossívelcom basena revoluçãoque operaapassagemdo domínio dasartesdo reinodapoé- ticaparao daestética. Gostariade explicitare justificaressasproposições mostrandocomo algunsobjetose modos de interpre- taçãoprivilegiadospelateoriafreudianaestãoligadosà mudançade estatutodessesobjetosna configuraçãoes- téticado pensamentoda arte.Para isso, tomareicomo pontodepartidao personagempoéticocentralnaelabo- raçãoda psicanálise,isto é, Édipo. Na Interpretaçãodos sonhos,Freud explicaqueexisteum "materiallendário" cujaeficáciadramáticauniversalrepousaemsuaconfor- midadeuniversalcom os dadosda psicologiainfantil. Essematerialé o mito de Édipo e o dramahomônimo de Sófocles.3Uma universalidadedo esquemadramáti- coedipianoéportantopostuladapor Freudsobum du- plo aspecto:comoexplicitaçãodosdesejosinfantisuni- 3SigmundFreud,L'interprétationdesrêves[1900],traduçãodeIgna- ceMeyerson,Paris,PUF, 1967,pp. 227-8fedobras.:A interpretaçãodos sonhos,in ObraspsicológicascompletasdeSigmundFreud, ed.Standard,tra- duçãodeWalderedoIsmaeldeOliveira,Rio deJaneiro,Imago,1996,vols. IV e V]. 14 versaise universalmentereprimidos, e tambémcomo forma exemplarde revelaçãode um segredooculto.A revelaçãoprogressivaeconduzidacomarteemÉdipoRei é comparável,nosdiz ele,ao trabalhode umacurapsi- canalítica.Assim, na mesmaafirmaçãode universalida- de sãoenglobadastrêscoisas:uma tendênciageraldo psiquismohumano,um materialficcionaldeterminado e um esquemadramáticoconsideradoexemplar.Colo- ca-sepoisaquestão:o quepermitea Freud afirmaressa adequaçãoefazerdelao cernedesuademonstração?Ou, numa outra formulação:em que consisteessaeficácia dramáticauniversaldahistóriaedipianaeo esquemade revelaçãodesenvolvidopor Sófocles?Colocareiessaques- tãocom aajudadeum exemplo,quemeseráfornecido peladifícil experiênciade um dramaturgocandidatoà exploraçãodessamatériadeêxito. 15 I w li 1. o defeito de um tema4 Em 1659,Corneille recebea encomendade uma tragédiaparaasfestasde carnaval.Para o dramaturgo, ausentedo palcoháseteanos,desdeo estrondosofiasco de Pertharite,é a oportunidadede voltar à cena.Não pode permitir-seum novo fracassoe tem apenasdois mesesparaescreversuatragédia.Assim, paraotimizar suaschancesde êxito,recorreaotematrágicopor exce- lência,já tratadopor modelosilustres,queeleprecisaria apenas"traduzir"eadaptarparao contextofrancês.De- cide,então,fazerum Édipo.Ora, essetemadeourologo revelaconterumaarmadilha.E, paraobtero sucessoal- mejado,Corneilleteráderenunciarà simplestransposi- ção de Sófoclese remodelartotalmenteo esquemade revelaçãoda culpabilidadede Édipo, a fim de suprimir aquiloqueo tornaimpraticável. 4 O títulodestecapítulo,no originalLe défàutd'unsujet,introduz umadificuldadedetraduçãoquepermeiaareflexãoquesesegue.Trata-se daambiguidadefundamentaldo termosujet,que,alémdesujeito,signifi- catambémassunto,objeto,argumento,tema.(N. daT.) 17 "Dei-mecontadequeaquiloquehavia passadopormiraculosonaquelesséculosdis- tantespoderiaparecerhorrívelaonosso,ede queessaeloquenteecuriosadescriçãodomo- do comoo infelizpríncipefuraospróprios olhos,eo espetáculodessesolhosfuradospor ondeosanguelhejorraà face,queocupatodo o quintoatonessesincomparáveisoriginais, abalariamadelicadezadenossasdamas,asque compõemamaisbelapartedenossaaudiên- ciaecujadesaprovaçãoatraifacilmenteacen- suradaquelesqueasacompanham,edeque, enfim,comoo amornãofazpartedestetema easmulheresdelenãofazememprego,elese encontravadespidodosprincipaisornamen- tosquedecostumenosrendemo comentário dopúblico."5 Osproblemas,comosepodeperceber,nãovêmdo dadoincestuoso.Vêmdesuaficcionalização,doesque- maderevelaçãoedafisicalidadeteatraldodesenlace.Ao todo,trêspontostornamimpossívelameratransposição inicialmenteplanejada.Ao horrordosolhosfuradosde 5 Corneille,Oeuvrescomplêtes,Paris,Gallimard,BibliothequedeIa Pléiade,1987,t. III, p. 18. 18 i 1 Édipoeà ausênciadeinteresseamorosoacrescenta-se, comefeito,o abusodeoráculos:estesdeixamtranspa- recerdemaisachavedoenigmaetornampoucoveros- símilacegueiradodecifrador deenigmas. Resumindo,o esquemasofoclianodarevelaçãofa- lhaaofazerverdemaiso quedeveriaserapenasdito,e aofazersabercedodemaiso quedeveriapermanecerig- norado.Corneille,portanto,precisacorrigiressesdefei- tos.Paranãoferira sensibilidadedasdamas,eledeixa foradecenaosolhosfuradosdeÉdipo.Mas também deixadeforaTirésias.Suprimeo afrontamentoverbal, nuclearemSófocles,no qualaquelequesabenãoquer dizer- eassimmesmofala-, enquantoaqueleque quersaberserecusaaouviraspalavrasquerevelamaver- dadeprocurada.Corneillesubstituiessejogodeescon- de-escondedoinvestigadorculpadocomaverdade,evi- dentedemaisparaoespectador,porumaintrigamoder- na,umaintrigacheiadepaixõeseinteressesconflitantes queprovocama indecisãoquantoà identidadedocul- pado.É paraissoqueserveahistóriadeamor,ausente emSófocles.CorneilledáaÉdipoumairmã,Dirce,des- tituídaporeledotronoquelhepertencia.E dáaDirce umamante,Teseu.ComoDircesesenteresponsávelpe- laviagemquecustouavidadopai,eTeseutemdúvidas quantoà suaorigem,ou fingetê-Iasparaprotegersua amada,pode-secontar,assim,comtrêsinterpretações possíveisdooráculo,trêseventuaisculpados.A história 19 deamoradministrao suspenseadministrandoa distri- buiçãodosabereaincertezaquantoaodesenlace. Sessentaanosmaistarde,outrodramaturgoencon- traráo mesmoproblemaeo resolverádamesmaforma. Parasuaestreianacarreiradramáticao jovemVoltaire, entãocomvinteanos,tambémescolheuo temadeÉdi- po.E, contrapondo-seaSófoclesaindamaisabertamente doqueCorneílle,denunciouas"inverossimilhanças"da intrigadeÉdipoRei.É inverossímilqueÉdipoignoreas circunstânciasdamortedeseupredecessorLaios.Inve- rossímilquenãoouçao quelhedizTirésiasequeinsul- tecomomentirosoaquemmandouchamarcomovene- rávelprofeta.A conclusãoseimpõe,radical:"É umde- feitodotema,diz-se,enãodoautor.Comosenãofos- sedacompetênciado autorcorrigirseutemaquando esteé defeituoso!".6Assim,Voltaire,porsuavez,corri- geo temaencontrandooutrocandidatoparao assassino deLaios:Filocteto,meninooutroraabandonado,louco deamorpor]ocasta,desaparecidodeTebasjustonaépo- cadoassassinatoeparaláretornando,oportunamente, quandoseestáà procuradeumculpado. "Um temadefeituoso",assimparecenaidadeclás- sica,na idadedarepresentação,o funcionamentoda 6 Volraire,Lettressur Oedipe, in Oeuvrescomplêtes,Paris,Garnier, 1877,t. III, p. 20. 20 "psicanálise"sofocliana.E o defeito,repetimos,nãose encontranahistóriadeincesto.Não sepodealegaras dificuldadesdeCorneílleedeVoltaireparaadaptarSó- foelescontraa universalidadedo complexodeÉdipo. Em compensação,elascolocamemdúvidaauniversali- dadeda"psicanálise"edipiana,istoé,doroteirosofoclia- noderevelaçãodosegredo.Na perspectivadeles,o ro- teiroestabeleceumarelaçãodefeituosaentreoqueévis- toeoqueédito,entreoqueéditoeoqueéouvido.Ele mostrademaisaoespectador.E talexcessonãodizres- peitoapenasaoespetáculodesagradáveldosolhosfura- dos.Deformamaisgeral,dizrespeitoà marcadopensa- mentosobreoscorpos.E, sobretudo,fazcomqueseou- çademais.Contrariamenteà afirmaçãodeFreud,nãoé umbomsuspense,umaboaprogressãodramáticaquan- .toaodesvelamentodaverdadeparao heróieparao es- pectador.Masentãoo queé quecomprometeessara- cionalidadedramática?Arespostaéindubitável:éo "te- ma",?o própriopersonagemdeÉdipo.É essafúriaque o levaa querersabera qualquerpreço,contratodose contrasimesmo,e,aomesmotempo,anãoouvirapa- lavramalencobertaquelheofereceaverdadequeele reclama.Aí estáo cernedoproblema:nãosóa"delica- deza"dasdamaséabaladaporesseloucopelosaberque 7 No original:le ''sujet''.Ver nora4. (N. daT.) 21 acabacom osolhosfurados,maspropriamenteaordem do sistemarepresentativoqueregea criaçãodramática. A ordemdarepresentaçãosignificaessencialmente duascoisas.Em primeirolugar,umadeterminadaordem dasrelaçõesentreo dizível e o visível.Nessaordem,a palavratemcomoessênciao fazerver.Mas elao fazse- gundo o regimedeumadupla retenção.Por um lado,a funçãodemanifestaçãovisívelretémo poderdapalavra. Estamanifestasentimentose vontades,emvezde falar por si mesma,comoapalavradeTirésias- assimcomo adeÉsquilo ou adeSófocles-, sobaformadeoráculo ou de enigma.Por outro lado, elaretéma potênciado própriovisível.A palavrainstitui umadeterminadavisi- bilidade.Manifestao queestáescondidonasalmas,con- taedescreveo queestálongedosolhos.Mas, assim,re- témsobseucomandoo visívelqueelamanifesta,impe- dindo-o demostrarpor si mesmo,demostraro quedis- pensapalavras,o horror dosolhosfurados. A ordem da representação,em segundolugar, é uma determinadaordem dasrelaçõesentreo sabere a ação.O drama,dizAristóteles,éordenaçãodeações.Na basedo drama,hápersonagensperseguindocertosobje- tivos,em condiçõesde ignorânciaparcial,cujo desenla- cese daráno decursoda ação.Dessaforma, exclui-se precisamenteo fundamentaldaperformanceedipiana,o pathosdo saber:aobstinaçãomaníacapor sabero queé melhornãosaber,o furor queimpededeouvir, arecusa 22 dereconheceraverdadenaformaemqueelaseapresen- ta,acatástrofedo saberinsuportável,do saberqueobri- gaa subtrair-seao mundo do visível.A tragédiade Só- foclesé feitadessepathos.E é elequeo próprio Aristó- telesjá nãoconseguemaisentender,recalcando-oatrás dateoriadaaçãodramática,quefazadviro sabersegun- do a engenhosamaquinariada peripéciae do reconhe- cimento.É ele,enfim, quefazde Édipo, na idadeclás- sica,um herói impossível,salvocom correçõesradicais. Impossívelnãoporquematao paiesedeitacomamãe, maspelomodo como aprende,pelaidentidadequeen- camanesseaprendizado,a identidadetrágicado sabere do não-saber,daaçãovoluntáriaedopathossofrido. 23 2. A revolução estética É, portanto, todo um regimede pensamentodo poemaque recusao roteiro edipiano.Mas a formula- çãopodeserinvertida.Paraqueo privilégiodesserotei- ro sejaenunciável,éprecisoquesejarevogadoesseregi- medepensamentodasartes,esseregimerepresentativo que tambémimplica uma determinadaideiade pensa- mento:o pensamentocomo açãoque seimpõe a uma matériapassiva.E o quechameihápouco de revolução estéticaéexatamenteisso:aaboliçãodeum conjuntoor- denadoderelaçõesentreo visíveleo dizÍvel,o saberea ação,a atividadee a passividade.Dito de outro modo: paraqueÉdipo sejao heróidarevoluçãopsicanalítica,é precisoum novo Édipo, que invalideaquelesde Cor- neillee deVoltaire e quepretendareatar- paraalém datragédiaà francesa,bemcomodaracionalizaçãoaris- totélicadaaçãotrágica- como pensamentotrágicode Sófocles.Sãonecessáriosum novo Édipo e uma nova ideiadatragédia,taiscomopropuseramHolderlin, He- gelou Nietzsche. 25 Dois traçosvãocaracterizaressenovoÉdipo efazer deleo herói de uma "nova" ideia do pensamentoque pretendereatarcom aquelatestemunhadapelatragédia grega.Édipo, paracomeçar,é testemunhade certasel- vageriaexistencialdo pensamento,naqualo sabersede- finenãocomoo atosubjetivodeapreensãodeumaidea- lidadeobjetiva,mascomo um determinadoafeto,uma paixão,ou mesmoumaenfermidadedo vivente.O pró- prio saberconstituium crimecontraa natureza:eis,se- gundo O nascimentoda tragédia,o significadodahistó- riaedipiana.8Édipo ea tragédiadãotestemunhodeque, emmatériadepensamento,ésemprededoençaedeme- dicina que setrata,da união paradoxaldasduas.Essa nova encenaçãofilosóficada equivalênciatrágicaentre saberesofrimento(o mathospatheideÉsquilo ou deSó- focles)pressupõequesejareunidaa grandetrilogiados doentesdo saber:Édipo e Hamlet - quedialogamna Interpretaçãodossonhos,comojá o faziamnos Cursosde estéticadeHegel- eFausto,quetambémestápresente aÍ.A psicanáliseé inventadanesseponto em quefiloso- fia emedicinasecolocamreciprocamenteemcausapara fazerdo pensamentoumaquestãodedoençaedadoença umaquestãodepensamento. 8 FriedrichNietzsche,Ia naissancede Ia tragédie[1872],Paris,Gal- limard,1977,pp. 78-9 fedobras.:O nascimentoda tragédia,traduçãode JacóGuinsburg,SãoPaulo,CompanhiadasLetras,1992]. 26 Mas essasolidariedadedascoisasdo pensamentoe dascoisasda doençaé elamesmasolidáriado novo re- gimedepensamentodasproduçõesda arte.SeÉdipo é um herói exemplar,é porque suafigura ficcional em- blematizaaspropriedadesquea revoluçãoestéticaatri- bui aessasproduções.Édipo éaquelequesabeenãosa- be,queageabsolutamenteequepadeceabsolutamente. Ora, éprecisamenteatravésdessaidentidadedecontrá- rios quea revoluçãoestéticadefineo próprio daarte.À primeiravista,elapareceapenasopor àsnormasdo re- gimerepresentativouma potênciaabsolutadofazer.A obraresultadesuapróprialei deproduçãoeéprovasu- ficientede si mesma.Mas, ao mesmotempo,essapro- dução incondicionadase identificacom uma absoluta passividade.O gênio kantiano resumeessadualidade. .Eleéo poderativodanaturezaqueopõesuaprópriapo- tênciaaqualquermodelo,aqualquernorma,ou melhor, que sefaz norma.Mas, ao mesmotempo,eleé aquele quenãosabeo quefaz,queé incapazdeprestarcontas. N o regimeestético,essaidentidadede um sabere de um não-saber,de um agire de um padecer,quera- dicalizaemidentidadedecontráriosa "claridadeconfu- sa"deBaumgarten,constitui-seno próprio mododeser da arte.Nessesentido,a revoluçãoestéticajá haviaco- meçadono séculoXVIII quandoVico, em suaCiência nova,sedispuseraaestabelecer,contraAristóteleseatra- diçãorepresentativa,o queeledenominavaa figurado 27 "verdadeiroHomero".Valeapenarememoraro con- textoparaesclarecerafiliaçãoquenosinteressa.Poiso alvoprincipaldeViconãoébema"teoriadaarte",mas o velhoproblemateológico-poéticoda"sabedoriados egípcios":sabersealinguagemdoshieróglifoséumalin- guagemcríptica,depositáriadeumpensamentoreligio- sovedadoaoprofanoese,damesmaforma,asantigas fábulaspoéticassãoaexpressãoalegóricadeumpensa- mentofilosófico.Essevelhoproblemavem,pelomenos, desdePlatão.Denunciandoa imoralidadedasfábulas homéricas,PIarãodefatorefutavaaquelesqueenxerga- vamalegoriascosmológicasnosadultériosdivinospor elasnarrados.O problemaressurgenaépocaprotocristã, quandoautorespagãos,pararefutaraacusaçãodeido- latria,maisumavezsevalemdasabedoriacrípticapre- sentenasescritasideogramáticasenasfábulasdospoe- tas.RetomacomforçanosséculosXVII eXVIII, susci- tadoaomesmotempopelosdesenvolvimentosdosmé- todosexegéticosepelaquerelafilosóficasobreaorigem dalinguagem.Vico inscreve-senessecontextoedispõe- -seadarumduplogolpe.Elepropõeliquidaraideiade umasabedoriamisteriosaocultanasescritasimagéticas enasfábulaspoéticas.Contrapõe-lheumanovaherme- nêuticaquerelacionaaimagemnãoaumsentidoocul- to,masàscondiçõesdesuaprodução.Todavia,como mesmogolpe,elearruínatambémaimagemtradicional dopoetacomoinventordefábulas,personagenseima- 28 gens.Suadescobertado"verdadeiroHomero"refutaem quatropontosa imagemaristotélicaerepresentativado poetacomoinventordefábulas,caracteres,imagenserit- mos.Paracomeçar,demonstraVico,Homeronãoéum inventordefábulas.Poiselenãoconhecianossadiferen- çaentrehistóriaeficção.Suassupostasfábulas,paraele, eramahistória,queeletransmitiatalcomoarecebera. Em segundolugar,Homeronãoéuminventordetipos decaráter.Seussupostoscaracteres- Aquiles,ovalen- te,Ulisses,oastuto,Nestor,osábio- nãosãocaracteres individualizados.Tambémnãosãoalegoriasinventadas comfinspoéticos.Sãoabstraçõesemimagens,oúnico modopeloqualumpensamento,igualmenteincapazde abstrairedeindividualizar,podefigurarvirtudes- co- ragem,inteligência,sabedoriaoujustiça- quenãocon- segueconcebernemdenominarcomotais.Em terceiro lugar,elenãoéo inventordebelasmetáforasedeima- gensbrilhantesquesetemcelebrado.Simplesmentevi- vianumtempoemqueopensamentonãoseseparavada imagem,tampoucoo abstratodoconcreto.Suas"ima- gens"nãosãonadamaisqueo mododefalardospovos deseutempo.Porfim,elenãoéuminventorderitmos emetros.Eleéapenastestemunhadeumestadodalin- guagememqueapalavraeraidênticaaocanto.Osho- mens,comefeito,cantaramantesdefalar,antesdepas- sarparaalinguagemarticulada.Osencantospoéticosda palavracantadasão,narealidade,osbalbuciosdainfân- 29 cia da linguagem,da qual testemunhamaindahoje os surdos-mudos.Assim, os quatroprivilégiostradicionais do poeta-inventorsãotransformadosem propriedades de sualinguagem,de uma linguagemqueé suana me- dida em quenãolhe pertence,em quenão seconstitui num instrumentoà suadisposição,masno testemunho de um estadode infânciada linguagem,do pensamen- to e da humanidade.Homero é poetagraçasà identi- dadedo queelequeredo quenãoquer,daquiloquesa- beedaquiloqueignora,do quefazedo quenãofaz.O fatopoéticoestáligadoa essaidentidadede contrários, a essadistânciaentreuma palavrae aquilo que eladiz. Há solidariedadeentreo caráterpoéticodalinguageme seucarátercifrado.Mas essacifragemnãodissimulane- nhumaciênciasecreta.Ela nãoé,enfim,nadamaisque a inscriçãodo processomesmopelo qual essapalavraé produzida. A figurade Édipo, como tematrágicoexemplare universalmenteválido,temcomoantecedenteessafigu- rahermenêuticado "verdadeiroHomero".Ela pressupõe um regimedepensamentoda arteemqueo próprio da arteé sera identidadede um procedimentoconsciente e de umaproduçãoinconsciente,deumaaçãovoluntá- ria edeum processoinvoluntário,emsuma,a identida- de de um logose de umpathos. E é essaidentidadeque doravantedá testemunhodo fatodaarte.Tal identida- de, porém, pode serpensadade duasformas opostas: 30 como imanênciado logosnopathos, do pensamentono não-pensamento,ou, inversamente,comoimanênciado pathos no logos,do não-pensamentono pensamento.A primeiraforma é ilustradapelosgrandestextosfunda- doresdo modoestéticodo pensamentoeémelhorresu- mida nos Cursosde estéticadeHegel.Aí, a arte,emter- mosschellingnianos,é a odisseiadeum espíritoforade simesmo.Esseespírito,nasistematizaçãohegeliana,pro- curasemanifestar,ou melhor,tornar-semanifestopara si mesmo,atravésda matériaquelhe é oposta:na com- pacidadedapedraerguidaou esculpida,naespessurada cor ou na materialidadetemporalou sonorada lingua- gem.Ele buscaa si mesmona duplaexterioridadesen- síveldamatériaedaimagem.Septocuraeseperde.Mas, nessejogo de esconde-esconde,elesetorna a luz inte- rior da materialidadesensível,a belaaparênciado deus de pedra,elãarborescenteda abóbadae da flechagó- ticas,ou o brilho espiritualqueanimaa insignificância danaturezamorta.A essaodisseiacontrapõe-seo mode- lo inverso,quevoltadabelaaparênciaestéticaeracional parao fundoobscuroe"pático".9Trata-sedo movimen- to que, em Schopenhauer,retomadasaparênciase da belaordem causaldo mundo da representaçãoparao mundo obscuro,subterrâneoe desprovidode sentido 9 No original:pathique;paraevitarpathétique,patético.(N. daT.) 31 r dacoisaemsi,o mundodoquerer-vivernu, insensaro, dessa"vontade",paradoxalmenteassimchamada,jáque suaessênciaéprecisamentenãoquerernada,recusaro modelodaescolhadefinsedaadaptaçãodosmeiosaos finsqueconfereaessanoçãoseusignificadousual.Tra- ta-se,emNietzsche,daidentificaçãodoprópriofatoda arteà polaridadedabelaaparênciaapolíneaedessapul- sãodionisíaca,aomesmotempodealegriae desofri- mento,quevemà tonanasformasmesmasquepreten- demnegá-Ia. , I , I I 32 3. As duas formas da palavra muda onascimentodapsicanáliseseinscrevehistorica- mentenocernedessecontramovimentocujosheróisfi- losóficossãoSchopenhauereo jovemNietzscheeque reinanaliteraturaque,deZolaaMaupassant,Ibsenou Strindberg,mergulhanopurosem-sentidodavidabru- taounoencontrocomasforçasdastrevas.Masnãose trataapenasdainfluênciadeideiasedetemasdeuma época,trata-sepropriamentedeumaposiçãono inte- riordosistemadepossíveisdefinidoporumadetermi- nadaideiadepensamentoeumadeterminadaideiade escrita.Poisarevoluçãosilenciosadenominadaestética abreespaçoparaelaboraçãodeumaideiadepensamen- to edeumaideiacorrespondentedeescrita.Essaideia depensamentorepousasobreumaafirmaçãofundamen- tal:existepensamentoquenãopensa,pensamentoope- randonãoapenasno elementoestranhodonão-pensa- mento,masnaprópriaformado não-pensamento.In- versamente,existenão-pensamentoquehabitaopensa- mentoelhedáumapotênciaespecífica.Essenão-pensa- 33 ! mentonãoésóumaformadeausênciadopensamento, éumapresençaeficazdeseuoposto.Há, portanto,sob umououtroaspecto,umaidentidadeentreopensamen- toeo não-pensamento,aqualédotadadeumapotên- ciaespecífica.A essaideiadepensamentocorresponde umaideiadeescrita.Escritanãoquerdizersimplesmente umaformademanifestaçãodapalavra.Querdizeruma ideiadaprópriapalavraedesuapotênciaintrínseca.Em Platão,sabe-sequeaescritanãoésimplesmenteamate- rialidadedosignoescritosobreumsuportematerial,mas umestatutoespecíficodapalavra.Paraele,aescritaéo lagosmudo,apalavraquenãopodenemdizerdeoutro modoo quediz,nemparardefalar:nemdarcontado queprofere,nemdiscerniraquelesaosquaisconvémou nãoconvémserendereçada.A essapalavra,aomesmo tempomudae tagarela,opõe-seumapalavraemato, umapalavraguiadapor um significadoa sertransmi- tidoeumefeitoaserassegurado.Em PIarão,éapalavra domestrequesabeaomesmotempoexplicitarsuapa- lavrae reservá-Ia,subtraí-Iaaosprofanose depositá-Ia comoumasementenaalmadaquelesemquemelapode frutificar.Na ordemrepresentativaclássica,essa"palavra viva"éidentificadaàgrandepalavraquesefazato:apa- lavravivado oradorqueperturbaepersuade,edificae arrebataasalmasou oscorpos.É também,concebida sobreseumodelo,apalavradoheróitrágicoquevaiaté o fimdesuasvontadesepaixões. 34 À palavravivaqueregulavaaordemrepresentativa, arevoluçãoestéticaopõeomododapalavraquelhecor- responde,o modocontraditóriodeumapalavraqueao mesmotempofalaesecala,quesabeenãosabeo que diz.Ou seja,aescrita.Maselao fazsegundoduasgran- desfigurasquecorrespondemàsduasformasopostasda relaçãoentrepensamentoenão-pensamento.E apolari- dadedessasfigurasdescreveoespaçodeummesmodo- mínio,odapalavraliteráriacomopalavradosintoma.10 A escritamuda,numprimeirosentido,éapalavra queascoisasmudascarregamelasmesmas.É apotência designificaçãoinscritaemseuscorpos,equeresumeo "tudofala"deNovalis,o poetamineralogista.Tudo é rastro,vestígioou fóssil.Toda formasensível,desdea pedraou aconcha,é falante.Cadaumatrazconsigo, inscritasemestriasevolutas,asmarcasdesuahistóriae ossignosdesuadestinação.A escritaliteráriaseestabe- lece,assim,comodecifraçãoereescritadossignosdehis- tóriaescritosnascoisas.É essanovaideiadeescritaque Balzacresumeeexaltano iníciodeA peledeonagro,ll naspáginasdecisivasquedescrevemalojadoantiquário 10 Cf. J acquesRanciere,La parole muette:essaisur lescontradictions de Ia littérature,Paris,Hachette,1998. 11 HonorédeBalzac,La peau de chagrin [1831]'Paris,Gallimard/ Folio, 1974,p. 47 [ed.bras.:A pelede onagro,in A comédiahumana, rra- duçãodeGomesdaSilveira,vol.XV, Rio deJaneiro,Globo, 1999]. 35 " , " I" comoemblemadeumanovamitologia,deumfantás- ticofeitoexclusivamentedaacumulaçãodasruínasdo consumo.O grandepoetadosnovostemposnãoéBy- ron,o repórterdasdesordensdaalma.É Cuvier,o geó- logo,onaturalista,quereconstituipopulaçõesanimaisa partirdeossos,eflorestasapartirdeimpressõesfossili- zadas.Com ele,define-seumanovaideiadeartista.O artistaéaquelequeviajanoslabirintosounossubsolos domundosocial.Elerecolheosvestígiosetranscreveos hieróglifospintadosnaconfiguraçãomesmadascoisas obscurasoutriviais.Devolveaosdetalhesinsignificantes daprosadomundosuaduplapotênciapoéticaesigni-ficante.Na topografiadeumlugarounafisionomiade umafachada,naformaounodesgastedeumavestimen- ta,nocaosdeumaexposiçãodemercadoriasoudede- tritos,elereconheceoselementosdeumamitologia.E, nasfigurasdessamitologia,eledáaconhecerahistória verdadeiradeumasociedade,deumtempo,deumaco- letividade;fazpressentiro destinodeumindivíduoou deumpovo.Tudojàla, issoquerdizertambémqueas hierarquiasdaordemrepresentativaforamabolidas.A granderegrafreudianadequenãoexistem"detalhes" desprezíveis,deque,aocontrário,sãoessesdetalhesque noscolocamnocaminhodaverdade,seinscrevenacon- tinuidadediretadarevoluçãoestética.Não existemte- masnobrese temasvulgares,muitomenosepisódios narrativosimportanteseepisódiosdescritivosacessórios. 36 Nãoexisteepisódio,descriçãooufrasequenãocarregue emsi apotênciadaobra.Porquenãohácoisaalguma quenãocarregueemsiapotênciadalinguagem.Tudo estáempédeigualdade,tudoéigualmenteimportante, igualmentesignificativo.Assim,onarrador deIa maison du chatquipelotenosinstaladiantedafachadadeuma casacujasaberturasassimétricas,recortese saliências caóticosformamumtecidodehieróglifosnoqualsepo- dedecifrarahistóriadacasa- ahistóriadasociedade daqualelaétestemunha- eodestinodospersonagens quenelahabitam.12 Ou, ainda,o romancistadeOsmi- serdveisnosmergulhanumesgotoquediz tudo,como um filósofocínico,e reúneempéde igualdadetudo aquiloqueacivilizaçãoutilizaerejeita,suasmáscarase insígnias,bemcomoseusutensílioscotidianos.O novo poeta,o poetageólogoouarqueólogo,numcertosenti- do,fazoquefaráocientistadeA interpretaçãodossonhos. Eleafirmaquenãoexisteo insignificante,queosdeta- lhesprosaicosqueumpensamentopositivistadespreza ouremeteaumasimplesracionalidadefisiológicasãoos signosemquesecifraumahistória.Masafirmatambém acondiçãoparadoxaldessahermenêutica:paraqueoba- nalentregueseusegredo,eledeveprimeirosermitolo- 12 Cf. HonorédeBalzac,Ia maisondu chatquipelote(1830).Ed. bras.:Ao "chat-qui-pelote",traduçãodeVidaldeOliveira,in op.cit.,vol.I, p. 77. (N. daT.) 37 1:1 "I 'I I ~:: r,1 gizado.A casaouo esgotofalam,trazemconsigorastros doverdadeiro,comofarãoosonhoouoatofalho- mas tambémamercadoriamarxiana-, desdequesejampri- meirotransformadosemelementosdeumamitologiaou deumafantasmagoria. O escritoréo geólogoou o arqueólogoqueviaja peloslabirintosdomundosociale,maistarde,pelosla- birintosdoeu.Elerecolheosvestígios,exumaosfósseis, transcreveossignosquedãotestemunhodeummundo eescrevemumahistória.A escritamudadascoisasreve- la,nasuaprosa,averdadedeumacivilizaçãooudeum tempo,verdadequerecobreacenaoutroragloriosada "palavraviva".Esta,agora,nãoémaisdoqueavãcena oratória,odiscursodasuperfícieedesuasagitações.Mas aomesmotempoo hermeneutaétambémummédico, umsintomatologistaquediagnosticaosmalesdequepa- decemo indivíduoempreendedoreasociedadebrilhan- te.O naturalistaegeólogoBalzacé tambémo médico quedetectaadoençano âmagodaatividadeintensade indivíduosesociedades,adoençaidênticaaessainten- sidade.Em suaobra,elarecebeo nomedevontade.É a doençadopensamentoquequersetransformaremrea- lidadee levaà destruiçãoindivíduosesociedades.Fiz alusãoa issoanteriormente:ahistóriadaliteraturano séculoXIX éahistóriadastransformaçõesdessa"vonta- de".No períodonaturalistaesimbolista,elasetornará destinoimpessoal,hereditariedadepassiva,cumprimen- 38 todeumquerer-viverdestituídoderazão,ataqueàsilu- sõesdaconsciênciapelomundodasforçasobscuras.A sintomatologialiteráriamudaráentãodeestatutonessa literaturadaspatologiasdopensamento,centradanahis- teria,no"nervosismo"ounopesodopassado,nessasno- vasdramaturgiasdo segredovelado,emqueserevela, atravésdehistóriasindividuais,o segredomaisprofun- dodahereditariedadeedaraçae,emúltimainstância, dofatobrutoeinsensatodavida. Assim,essaliteraturasevinculaàoutraidentidade do fogosedopathos dequeeufalavahápouco,aquela quevai,aocontráriodaprimeira,doclaroaoobscuroe do fogosaopathos, istoé,àpuradordeexistireàpura reproduçãodosem-sentidodavida.Elaacionatambém umaoutraformadapalavramuda,quejá nãoémaiso hieróglifoinscritodiretamentenoscorposesubmetido aumadecifração.É apalavrasolilóquio,aquelaquenão falaaninguéme nãodiznada,a nãoserascondições impessoais,inconscientes,daprópriapalavra.Foi Mae- terlinckquem,naépocadeFreud,teorizoucommaior empenhosobreessasegundaformadapalavramuda,do discursoinconsciente,aoanalisarnosdramasdeIbseno "diálogodesegundograu".Estenãomaisexpressaos pensamentos,sentimentoseintençõesdospersonagens, maso pensamentodo"terceiropersonagem"queronda odiálogo,oconfrontocomoDesconhecido,comaspo- tênciasanônimaseinsensatasdavida.A "linguagemda 39 'I i ~ ',' \11 tragédiaimóvel"transcreve"osgestosinconscientesdo serquepassamsuasmãosluminosasatravésdasameias damuralhaartificialondeestamospresos",osgolpesda "mãoquenãonospertenceequebateàsportasdoins- tinto",13 Nãosepodemabriressasportas,dizemsubs- tânciaMaeterlinck,maspodem-seouviros"golpesatrás daporta".Pode-sefazerdo poemadramático,outrora dedicadoà "ordenaçãodeações",a linguagemdesses golpes,apalavradamultidãoinvisívelquerondanossos pensamentos.Talvezsejaprecisoapenas,paraencarnar essapalavranopalco,umnovocorpo:nãomaiso cor- pohumanodoator/personagem,maso deumserque "tivesseaaparênciadavidasemtervida",umcorpode sombraoudeceraajustadoaessavozmúltiplaeanôni- ma.14E dissoeleextraiaideiadeumteatrodeandroides quefazcomunicaro devaneioromanescodeVilliersde L'Isle-Adamcomo futurodo teatro:asupermarionete 13MauriceMaeterlinck,"Menuspropos:lethéâtre(unthéâtred'an- dro'ides)"[1890],in Introduction à unepsychologiedessongesetautresécrits, Bruxelas,Labor, 1985,p. 83, e "Le tragiquequotidien"in Le trésordes humbles[1913],Bruxelas,Labor,1986,pp.99-110.Naturalmente,nãoig- noroqueMaeterlinck,porsuavez,temcomoreferênciaEmersoneatra- diçãomística,enãoo "niilismo"shopenhaueriano.Mas o quemeinteres- saaqui~ eque,deresto,provocaaconfusãodasduastradições~ éesse mesmoestatutodapalavrasurda,expressãodeum "querer"inconsciente do ser. 14 Maeterlinck,"Menuspropos",in op.cit., p. 87. 40 deEdwardGordonCraigouo teatrodamortedeTa- deuszKantor. O inconscienteestético,consubstancialaoregime estéticodaarte,semanifestanapolaridadedessadupla cenadapalavramuda:deumlado,apalavraescritanos corpos,quedeveserrestituídaàsuasignificaçãolingua- geiraporum trabalhodedecifraçãoe dereescrita;do outro,apalavrasurdadeumapotênciasemnomeque permaneceportrásdetodaconsciênciaedetodosigni- ficado,eàqualéprecisodarumavozeumcorpo,mes- moqueessavozanônimaeessecorpofantasmagórico arrastemo sujeitohumanoparao caminhodagrande renúncia,parao nadadavontadecujasombraschopen- hauerianapesacomtodaforçasobreessaliteraturado , . lllconSClente. 41 , 4. De um inconsciente ao outro Tornoadizer:nãopretendo,aoesboçaremtraços largosafiguraliteráriaefilosóficadoinconscienteesté- tico,estabelecerumagenealogiado inconscientefreu- dianoqueassumisseessestraços.Nãosetratadeesque- cero contextomédicoecientíficono qualseelaboraa psicanálise,nemdedissolveroconceitofreudianodein- consciente,aeconomiadaspulsõeseosestudosdasfor- maçõesdo inconscienteemumaideiaseculardosaber quenãosabeedopensamentoquenãopensa.Tampou- coqueroviraro jogo,mostrandocomo,semsabê-Io,o inconscientefreudianoédependentedaliteraturaeda arte,cujossegredoselepretendedesvendar.Trata-se,an- tesdemaisnada,deassinalarasrelaçõesdecumplicida- deedeconflitoqueseestabelecementreo inconsciente estéticoeo inconscientefreudiano.Podemosdefinira implicaçãodo encontroentreessesdoisinconscientes, emprimeirolugar,a partirdeindicaçõesdo próprio Freud,apartirdocontextodainvençãopsicanalíticatal comoeleaesboçanaInterpretaçãodossonhos.Nestaobra, apsicanáliseécontrapostaaumadeterminadaideiade 43 I~; : i,11 ,,' 11,1 ciência,adamedicinapositivista,quetrataasesquisiti- cesdamenteadormecidacomodadosnegligenciáveisou asatribuia causasmateriaisidentificáveis.Contraesse positivismo,Freudincitao psicanalistaa fazeraliançacomacrençapopular,como velhoacervomitológico do significadodossonhos.Mas,defato,é umaoutra aliançaqueseteceatravésdaInterpretaçãodossonhos,e queseexplicitaránolivrosobrea Gradiva:umaaliança comGoetheouSchiller,SófoclesouShakespeare,ouou- trosescritoresmenosprestigiadosemaispróximoscomo Popper-LynkeusouAlphonseDaudet.E nãosóporque Freudlança,contraaautoridadedosmestresdaciência, adosgrandesnomesdacultura.Maisprofundamente, essesgrandesnomessãoguiasnaviagempeloAqueronte empreendidapelanovaciência.Mas,seelesosão,épre- cisamenteporqueo espaçoentreaciênciapositivaea crençapopularouo acervolendárionãoestávazio.Tal espaçoéodomíniodesseinconscienteestéticoquerede- finiuascoisasdaartecomomodosespecíficosdeunião entreo pensamentoquepensaeo pensamentoquenão pensa.Eleéocupadopelaliteraturadaviagempelaspro- fundezas,daexplicitaçãodossignosmudosedatranscri- çãodaspalavrassurdas.Essaliteraturajáhaviavincula- doapráticapoéticadeexibiçãoeexplicitaçãodossignos aumadeterminadaideiadecivilização,desuasaparên- ciasbrilhantesedesuasprofundezasobscuras,dassuas doençasedasmedicinasquelhessãoapropriadas.E essa 44 ideiavaibemalémdo interessedoromancenaturalista pelasfigurashistéricasepelassÍndromesdegenerativas. A elaboraçãodeumanovamedicinaedeumanovaciên- ciadapsycheépossívelporqueexistetodoessedomínio dopensamentoedaescritaqueseestendeentreaciên- ciaeasuperstição.No entanto,precisamente,aprópria consistênciadessacenasemiológicae sintomatológica impedequalquertáticadesimplesaliançainteressadaen- treFreudeosescritoresou artistas.A literaturaaque Freudrecorreutemsuaprópriaideiadeinconsciente, suaprópriaideiadepathosdopensamento,dasdoenças edasmedicinasdacivilização.Nãopodehaveraí,por- tanto,utilizaçãopragmáticae tampoucocontinuidade inconsciente.O domíniodopensamentoquenãopen- sanãoéumreinodoqualFreudseriaapenaso explora- dorembuscadecompanheirosealiados.É umterritó- riojáocupado,ondeuminconscienteentraemconcor- rênciaeemconflitocomumoutro. Paracompreenderessaduplarelação,éprecisore- tomarà questãoemsuageneralidade:o queFreudtem afazer"na"históriadaarte?A própriaquestãoédupla. O quelevaFreudasefazerhistoriadorou analistada arte?O queestáemquestãonasconsistentesanálises queelededicaaLeonardo,aoMoisésdeMichelangeloou à Gradivade]ensen,ouemsuasobservaçõesmaisrápi- dassobre"O homemdeareia"deHoffmannou sobre Rosmersholm,deIbsen?Por queessesexemplos?O que 45 11'1 'I procuranelesecomoostrata?A primeirainterrogação, comoseviu, implicaumasegunda:comopensaro lu- gardeFreudnahistóriadaarte?Nãoapenaso lugardo Freud"analistadaarte",masdoFreudcientista,médi- codapsyche,intérpretedesuasformaçõeseperturbações? A "históriadaarte"assimentendidaéalgototalmente distintodasucessãodeobraseescolas.É ahistóriados regimesdepensamentodaarte,entendendo-seporregi- mesdepensamentodaarteummodoespecíficodecone- xãoentreaspráticaseummododevisibilidadeedepen- sabilidadedessaspráticas,istoé,emúltimaanálise,uma ideiadoprópriopensamento.15Assim,aduplaquestão podeserreformuladadaseguintemaneira:o queFreud procuraeencontranaanálisedasobrasou dospensa- mentosdosartistas?Queligaçãoaideiadopensamento inconsciente,investidanessasanálises,mantémcoma ideiaquedefineumregimehistórico,o regimeestético daarte? Essasperguntaspodemsercolocadasa partirde duasreferênciasteóricas.A primeiraé declaradapelo próprioFreud,asegundaseextraidasobrasedosper- sonagensquesuaanáliseprivilegia.Freudafirma,como vimos,umaaliançaobjetivaentreo psicanalistaeo ar- 15Quantoaesteponto,permito-meremeteraomeulivroLepartage du sensible:esthétiqueetpolitique, Paris,LaFabrique,2000fedobras.:A par- tilha do sensível:estéticaepolítica, SãoPaulo,EXO/Editora 34,2005]. 46 tista,emaisparticularmenteentreopsicanalistaeopoe- ta."Ospoetaseromancistassãopreciososaliados",afir- mao iníciodeDelíriosesonhosna Gradivade]ensen.16 Em matériadepsyche,deconhecimentodasformações singularesdopsiquismohumanoedeseusmecanismos ocultos,osaberdelesestámaisavançadoqueo doscien- tistas.Elessabemcoisasqueoscientistasignoram,pois conhecemaimportânciaearacionalidadeprópriadesse componentefantasmáticoqueaciênciapositivaremete aonadadasquimerasou àscausasfísicase fisiológicas simples.Sãoportantoaliadosdopsicanalista,essecien- tistaquedeclaraa igualimportânciadetodasasmani- festaçõesdoespíritoearacionalidadeprofundadesuas "fantasias",aberraçõesecontrassensos.Ressaltemosesse pontoimportante,àsvezessubestimado:a abordagem freudianadaarteemnadaémotivadapelavontadede desmistificarassublimidadesdapoesiaedaarte,dire- cionando-asàeconomiasexualdaspulsões.Nãorespon- deaodesejodeexibiro segredinho- boboousujo- portrásdograndemitodacriação.Antes,Freudsolicita àarteeàpoesiaquetestemunhempositivamenteemfa- vordaracionalidadeprofundada"fantasia",queapoiem umaciênciaquepretende,decertaforma,reporapoe- 16 SigmundFreud,Délire et rêvesdansIa Gradivadejensen [1907], traduçãodeMarie Bonaparte,Paris,Gallimard,1949,p. 109fedobras.: Delírios esonhosna Gradivadejensen, in op.cit., vaI. IX, pp. 15-88]. 47 siaeamitologianoâmagodaracionalidadecientífica.É porissoqueadeclaraçãoéseguidadeimediatoporuma ressalva:ospoetaseromancistassãoapenasmeio-aliados, poisnãoderamatençãosuficienteàracionalidadedosso- nhose dasfantasias.Não tomarampartido,deforma clarao bastante,emfavordovalorsignificativodasfan- tasiascujosmovimentoselesrepresentaram. A segundareferênciaé tiradadasfigurasexempla- resescolhidasporFreud.Algumassãoemprestadasàli- teraturacontemporânea,aodramanaturalistadodesti- noàmaneiradeIbsen,ouàsfantasias,comoasdeJensen oudePopper-Lynkeus,herdeirosdeumatradiçãoque, passandoporHoffmann,remontaaJean-PauleaTieck. Masessasobrascontemporâneasestãoà sombradeal- gunsgrandesmodelos.Há asduasgrandesencarnações daRenascença:Michelangelo,o demiurgosombriode criaçõescolossais,eLeonardodaVinci,o artista/cientis- ta/inventor,ohomemdosgrandessonhosegrandespro- jetosdosquaisnosrestaramapenasalgumasobras,que sãocomoasdiversasfigurasdeummesmoenigma.E há osdoisheróisromânticosdatragédia:Édipo,atestemu- nhadeumaantiguidadeselvagemopostaàantiguidade polidadatragédiafrancesa,edeumpathosdopensamen- to opostoà lógicarepresentativadeordenamentoda ação,bemcomoàsuadistribuiçãoharmônicadovisível edodizível;eHamlet,o heróimodernodeumpensa- mentoquenãoageouantesdeumpensamentoqueage 48 porsuaprópriainércia.Há, emsuma,o heróidaanti- guidadeselvagem,adeHolderlinoudeNietzsche,eos heróisdaRenascençaselvagem,a deShakespearemas tambémdeBurckhardteTaine,opostaàordemclássica. A ordemclássica,comovimos,nãoéapenasaetiqueta deumaartecortesãàfrancesa.É propriamenteo regime representativodaarte,esseregimequeencontrasuasle- gitimaçõesteóricasprimeirasnaelaboraçãoaristotélica damimesis,seuemblemanatragédiaclássicafrancesa,e suasistematizaçãonosgrandestratadosfrancesesdosé- culoXVIII, deBatteuxaLaHarpe,passandopelosCom- mentairessurCorneilledeVoltaire.No cernedesseregi- me,haviacertaideiadopoemacomodisposiçãoorde- nadadeações,tendendoparasuaresoluçãoatravésdo confrontodepersonagensqueperseguiamfinsconflitan- tesequemanifestavamemsuafalasuasvontadesesen- timentossegundotodoum sistemadeconveniências. Tal sistemamantinhao sabersobodomíniodahistória e o visívelsobo domíniodapalavra,numarelaçãode contençãomútuadovisíveledodizível.É essaordem quevemromperoÉdiporomântico,oheróideumpen- samentoquenãosabeo quesabe,quero quenãoquer, agepadecendoefalaporseumutismo.SeÉdipo- ar- rastandoatrásdesio cortejodosgrandesheróisedipia- nos- estánocentrodaelaboraçãofreudiana,éporque eleéo emblemadesseregimedaartequeidentificaas coisasdaartecomocoisasdopensamento,enquantotes- 49 I i I .11 , li: '1:1 ., " temunhosde um pensamentoimanentea seuoutro e habitadopor seuoutro,escritoemtodapartenalingua- gemdos signossensíveise dissimuladoem seuâmago obscuro. 50 5. As correções de Freud Há portanto,de um lado, o apeloaosartistas,de outro, a dependênciaobjetivaemrelaçãoàspressuposi-çõesde um determinadoregimeda arte.Faltapensara especificidadeda conexãoentreeles,a especificidadeda intervençãode Freud com relaçãoao inconscientees- tético.Seuprincipal interesse,como disse,não é esta- belecerumaetiologiasexualdos fenômenosda arte.É intervir na ideiado pensamentoinconscientequenor- matizaasproduçõesdo regimeestéticodaarte,épôr or- demnamaneiracomoa arteeo pensamentodaartejo- gamcom asrelaçõesdo sabere do não-saber,do senti- do e do sem-sentido,do logose dopathos,do reale do fantástico.Com suasintervenções,Freud procura,em primeirolugar,afastarcertainterpretaçãodessasrelações, aquelaquejogacom a ambiguidadedo realedo fantás- tico, do sentidoe do sem-sentido,paraconduziro pen- samentoda artee a interpretaçãodasmanifestaçõesda "fantasia"a uma palavraúltima que é pura afirmação dopathos,do sem-sentidobruto davida.Ele querfazer 51 triunfar umavocaçãohermenêuticae elucidativada ar- te sobreuma entropia niilista inerenteà configuração estéticada arte. Paracompreenderisso,éprecisocolocarladoalado duasafirmaçõesliminaresde Freud.Tiro a primeirado início de "O MoisésdeMichelangelo".Freud nãosein- teressa,diz ele,pelasobrasde artedo ponto devistada forma.Ele seinteressapelo "fundo": pelaintençãoque aíseexprimeepeloconteúdoqueaíserevela.I? A segun- daéareprimendafeitaaospoetas,no início da Gradiva, sobresuaambiguidadeno que concerneao significado das"fantasias"damente.É precisorelacionaressasduas declaraçõesparaquesecompreendaa tomadadeparti- do declaradadeFreudunicamentepelo"conteúdo"das obras.Sabe-sequeem geraleleconduzessabuscapelo conteúdorumo à descobertada lembrançarecalcadae, em última instância,rumo ao ponto de partida que é angústiainfantil da castração.Essadesignaçãoda causa últimasedágeralmentepelamediaçãodo fantasmaorga- nizador,da formaçãodecompromissoquepermiteà li- bido do artista,maisou menosrepresentadopor seuhe- rói, escaparao recaIquee sesublimarna obra,ao preço de nela inscreverseuenigma.Essatomadade partido 17 SigmundFreud,"LeMoise deMichel-Ange"[1914],in Essaisde psychanalyseappliquée,Paris,Gallimard,coleçãoldées,1971,p.9 [ed.bras.: "O MoisésdeMichelangelo",in op. cit., voI.XIII, pp.213-42]. 52 vigorosatemumaconsequênciasingular,queo próprio Freudélevadoaobservar:asaber,abiografizaçãodafic- ção.Freud interpretaos sonhosfantasiososou ospesa- delosdo N orbertHanold, deJ ensen,do estudanteN a- thanael,de Hoffmann, ou de RebeccaWest, de Ibsen, como dadospatológicosefetivosde personagensreais, de quemo escritorteriasido o analistamaisou menos lúcido. O exemplolimite dissoédadoem umanotade "O estranho"sobre"O homemdeareia",naqualFreud apresentaaprovadequeo ópticoCoppola eo advogado Coppeliussãomesmoumaúnicapessoa,no caso,o Pai castrador. Ele restabelece,assim,aetiologiado casoN a- thanael,etiologiaqueHoffmann, o médicodefantasia, teriaembaralhado,masnãoo suficienteparaocultá-Iade seucolegacientista,pois "afantasiado poetanãomistu- rou oselementosdo materialatalpontodeintrincamen- to quenãosepossarestaurarsuaordemoriginal".18Exis- te,portanto,umaordemoriginaldo "casoNathanael". Por trásdaquiloqueo escritoroferececomoobradesua livrefantasia,éprecisoreconhecera lógicado fantasma eaangústiaprimordialneletravestida:aangústiadecas- traçãodo pequenoN athanael,expressãodo dramafami- liar vividopelopróprio Hoffmann quandocriança. 18SigmundFreud,"L'inquiérant"[1919],in Oeuvrescompletes,Pa- ris,PUF, 1996,t.XV, p. 165[ed.bras.:"O estranho",in op.cit.,voI.XVII, pp.233-69]. 53 " " omesmoprocedimentopercorreo livro sobreGra- diva. Por trásdo "dado arbitrário" e da históriafanta- siosado jovemapaixonadopor umafiguradepedraede sonho,a ponto de só conseguirenxergara mulher real como apariçãofantasmáticadessafiguraantiga,Freud trataderestabeleceraverdadeiraetiologiado casoNor- bertHanold: um recalquee um deslocamentoda atra- çãosexualdo adolescentepelajovemZoé.Essacorreção nãosó o obrigaa fundarseuraciocínionum dadopro- blemáticodaexistência"real"deumacriaturadeficção, como tambémacarretaum modo de interpretaçãodos sonhosquepodepareceringênuoàpróprialuz dosprin- cípiosdo Freud cientista.A mensagemocultaseobtém de fato pelasimplestraduçãoda figuraonÍrica em seu equivalentereal:teinteressaspelaGradivaporque,narea- lidade,éZoéqueteinteressa.Tal atalhoda interpretação mostraque há maisnessecasodo queuma simplesre- duçãodo dadoficcionala umasÍndromeclínica.Freud põeem dúvidaaquilomesmoquepoderiatornar a sÍn- dromeinteressanteparao médico,ou seja,o diagnósti- co de um casodeerotomaniafetichista.Ele negligencia igualmenteaquilo que deveriainteressarao cientista preocupadoemrelacionaraclínicaàhistóriadosmitos, ou seja,a longahistóriado mito do homemapaixonado por uma imagemequesonhacom apossessãorealdes- saimagem,mito do qualPigmaliãoéa figuraexemplar. Uma únicacoisapareceinteressá-Io:restabelecernahis- 54 tóriaumaboaintrigacausal,mesmoquetenhadereme- tera essedado inencontrávelque é a infânciade Nor- bertHanold. Muito maisdo queofereceraboaexplica- çãodo casoHanold, Freudestápreocupadoemrefutar o estatutoqueo livro deJensenconfereàs"invenções" da literatura.Sua refutaçãodiz respeitoa dois pontos fundamentaisecomplementares:primeiro,a afirmação do autorsegundoaqualosjàntasmasquedescrevesãoas únicasinvençõesde suajàntasia inventiva;emseguida, a moralqueeleconferea suahistória:o simplestriunfo da"vidareal",emcarneeossoeembom alemão,quese ri, pelavoz deseuhomônimo Zoé, da loucurado cien- tistaNorbert e opõe suasimplese alegreperpetuidade aosdevaneiosideais.A reivindicação,peloautor,desua fantasiaformaevidentementeum sistemacomadenún- ciadosdevaneiosdeseuherói.E essesistemapoderiase resumirnum termofreudiano:dessublimação.Seexiste dessublimaçãonessecaso,elaéobrado romancista,não do psicanalista,e coincidecom sua"faltade seriedade" peranteo fatofantasmático. Por trásda"redução"do dadoficcionalaumainen- contrável"realidade"patológicaesexual,háum questio- namentopolêmicoquevisaumaprimeiraconfusãodo ficcionale do real:a que fundamentaa práticae o dis- cursodo romancista.Ao reivindicaro fantasmacomo produtodesuafantasiaerefutar,atravésdo princípiode realidade,o devaneiode seupersonagem,o romancista 55 seoutorgaa facilidadedecircular,segundolheconvém, por ambososladosdafronteiraentrerealidadee ficção. A tal equivocidade,Freud trata,em primeiro lugar,de contrapor uma univocidadeda história. O ponto im- portante,e quejustificatodosos atalhosda interpreta- ção,é a identificaçãoda intrigaamorosaa um esquema de racionalidadecausal.Não é a causaúltima - o in- verificávelrecaiqueremetendoà infânciainencontrável deNorbert - queinteressaa Freud,maso próprio en- cadeamentocausal.Que a históriasejarealou fictícia, pouco importa. O essencialé queelasejaunívoca,que oponha à indiscernibilidaderomânticae reversíveldo imaginárioedo realumadisposiçãoaristotélicadeações esaberesdirecionadaparao acontecimentomaiordeum reconhecimento. 56 6. Dos diversos usos do detalhe A partir daí, a relaçãoda interpretaçãofreudiana com a revoluçãoestéticacomeçaa secomplicar.A psi- canáliseépossívelnabasedeum regimedaartequedes- titui asintrigasordenadasdaidaderepresentativae,no- vamente,dá lugaraopathos do saber.Mas Freud opera uma escolhabem determinadana configuraçãodo in- conscienteestético.Ele privilegiaa primeira forma da palavramuda,a do sintomaqueé vestígiode umahis- tória.E a fazvalercontrasuaoutraforma,avoz anôni- madavidainconscienteeinsensata.Essaoposiçãoo leva a puxarparatrás,na direçãoda velhalógica represen- tativa,asfigurasromânticasda equivalênciado fogose dopathos. O exemplomaismarcanteé dadopelo texto sobreo Moisés deMichelangelo.O objetodessaanálise é defatosingular.Freud nãonosfalaaí, comono texto sobreLeonardo,de um fantasmaidentificadoemuma nota.Faladeumaesculturaquenosdiz terido revervá- riasvezes.E estabeleceumaadequaçãoexemplarentrea atençãovisualaodetalhedaobraea prerrogativapsica- nalíticadosdetalhes"insignificantes".Como sesabe,isso 57 ';1' ", passaporumareferênciaquenutriumuitoscomentários, areferênciaaMorelli/Lermolieff,o médicoespecialista emobrasdearte,inventordeummétodoparajudiciário deidentificaçãodasobrasapartirdosdetalhesÍnfimos einimitáveisquerevelamamãodoartista.Um método deleituradasobrasé,assim,identificadoaumparadig- madeinvestigaçãodascausas.Masessemétododode- talhe,porsuavez,podeserpraticadodeduasmaneiras, quecorrespondemàsduasgrandesformasdo incons- cienteestético.De umlado,háo modelodorastroque fala,no qualselêa inscriçãosedimentadadeumahis- tória.Num textofamoso,CarloGinzburgmostrouco- mo,atravésdo "métodoMorelli",a interpretaçãofreu- dianaseinscreviano grandeparadigmaindiciárioque procurareconstituirumprocessoapartirdeseusrastros ousinais.19Mashátambémo outromodelo,quevêno detalhe"insignificante"nãomaiso rastroquepermite reconstituirumprocesso,masa marcadiretadeuma verdadeinarticulável,queseimprimenasuperfícieda obraedesarmatodalógicadehistóriabem-composta,de composiçãoracionaldoselementos.É essesegundomo- 19 Cado Ginzburg,"Traces:racinesd'unparadigmeindiciaire",in Mythes, emblemes,traces,Paris,Flammarion,1989,pp. 139-80[ed.bras.: "Sinais:raÍzesdeumparadigmaindiciário",in Mitos, emblemas,sinais:mor- jálogia ehistória, rraduçãodeFedericoCarotti,SãoPaulo,Companhiadas Letras,1989. 58 delodeanálisedodetalhequeseráreivindicadomaistar- deporhistoriadoresdaarteparaseoporàprerrogativa concedidaporPanofskyàanálisedoquadroapartirda históriaqueelerepresentaoudotextoqueilustra.E essa polêmica,alimentadaontemporLouisMarinehojepor GeorgesDidi-Huberman,sereportaaFreud,aoFreud inspiradoporMorelli parafundarummododeleitura daverdadedapinturanodetalhedaobra:umainsigni- ficantecolunaquebradaemA tempestadedeGiorgione ouasmanchasdecorimitandoo mármorenapartein- feriordaMadonadassombras,deFraAngelico.20O de- talhefunciona,assim,comoobjetoparcial,fragmento inacomodávelquedesfazaordenaçãodarepresentação paradarlugaràverdadeinconscientequenãoéadeuma históriaindividual,masqueéoposiçãodeumaordema outra:ofigural sobofigurativo,ouo visualsobo visível representado.Ora,no quelhedizrespeito,Freudnada temavercomessacontribuiçãoaumaleituradapintura edeseuinconsciente,quehojesereivindicadapsicaná- lise.TampoucocomtodasessascabeçasdeMedusa,re- presentantesdacastração,quetantoscomentadorescon- temporâneosseesmeramparadesencavaremcadacabe- çadeHolofernesou deJoãoBatista,emtaldetalheda 20 LouisMarin, De Ia représentation,Paris,Gallimard/Seuil,1994, eGeorgesDidi-Huberman,Devant l'image,Paris,Minuit, 1990. 59 cabeleiradeGinevradeBenciouemtalrepresentaçãode turbilhãodesenhadonoscadernosdeLeonardo. É claroqueessapsicanálisedeDaVinci, praticada sobretudoporLouisMarin,nãoéadeFreud.Pareceser outracoisaqueo interessanoprivilégiodadoaodetalhe, umaoutraverdadedafigurapintadaouesculpida,aque- ladahistóriadeumtema[sujet],deumsintoma,deum fantasmasingulares.Freudbuscaofantasmamatricialda criaçãodoartistaenãoaordemfiguralinconscienteda arte.Ora, o exemplodoMoisésvaideencontroa essa explicaçãosimples.Semdúvidaéaestátuaqueo interes- sa.Mas o princípiodesseinteresseésurpreendente.A longaanálisedodetalhedaposiçãodasmãosedabar- ba,comefeito,nãorevelanenhumsegredodeinfância, nenhumciframentodo pensamentoinconsciente.Ela remeteà maisclássicadasquestões:qualéexatamenteo momentodoepisódiobíblicorepresentadopelaestátua deMichelangelo?Serámesmoo dafúriadeMoisés?Es- taráelerealmenteprestesadeixarcairnochãoasTábuas daLei?Freudestáomaisdistantepossíveldasanálisesde LouisMarin. Poder-se-iamesmodizerque,no debate entreWorringer,o qualprocuraidentificarordensvi- suaisdistintas,remetidasatraçospsicológicosdominan- tes,ePanofsky,quesubmeteaidentificaçãodasformas àdostemaseepisódiosrepresentados,Freudseposiciona defacto aoladodePanofsky.E, maisprofundamente, suaatençãoaodetalheremeteà lógicadaordemrepre- 60 sentativanaqualaformaplásticaeraaimitaçãodeuma açãonarradaeo temaespecíficodo quadroseconfun- diacomarepresentaçãodomomentopregnantedaação, aqueleemqueseconcentravamseumovimentoesua significação.Essemomentodepregnância,Freudo de- duzdaposiçãodamãodireitaedasTábuas.Nãoéaque- le emqueMoisés,indignado,sepreparaparaatirar-se contraosidólatras.É o dacóleradominada,quandoa mãoabandonaabarbaqueantesseguravaeagarrafir- mementeasTábuas.Sabe-sequeessemomentonãose encontranotextobíblico.Freudo acrescentaemnome deumainterpretaçãoracionalistanaqualo homem,se- nhordesi,seimpõeaoservodoDeusciumento.A aten- çãoaodetalheservefinalmenteparaidentificaraposição deMoiséscomotestemunhodeumtriunfodavontade. O MoisésdeMichelangelointerpretadoporFreudéalgo comooLaocoontedeWinckelmann,aexpressãodeuma serenidadeclássicavitoriosasobreo afeto.E, nocasode Moisés,éopathosreligiosoqueévencidopelarazão. Moiséséoheróidoafetovencido,reconduzidoàordem. Poucoimportasaber,comoquercertatradição,sefoisua própriaatitudeemrelaçãoaseusdiscípulosrebeldesque opatriarcadapsicanáliseteriaassimestatuadopordele- gaçãonomármoreromano.Muito maisdoqueumau- torretratodecircunstância,esseMoisésreproduzuma cenaclássicadaerarepresentativa:o triunfodavontade edaconsciênciaencarnadasnacenatrágica,naoperase- 61 ria ou nosquadrosdetemashistóricos,por algumherói romanotornadosenhordesi comodo universo:Brutus ouAugusto,Cipião ou Titus. E maisqueaosidólatrase aosdissidentes,esseMoisés, encarnaçãoda consciência vitoriosa,seopõe aoshomenssemobra,àsvítimasdo fantasmanão elucidado.E naturalmentese pensano alteregolendáriode Michelangelo,LeonardodaVinci, o homemdoscadernosedoscroquis,o inventordemil projetosnão realizados,o pintor quenão chegaa indi- vidualizarasfigurasepintasempreo mesmosorriso,em suma,o homempresoaseufantasma,fixadonumaliga- çãohomossexualemrelaçãoao Pai. 62 7. Uma medicina contra outra Mas aesseMoisésclássicopode-setambémcontra- por umaoutra"figuradepedra":o baixo-relevode Gra- diva.Para Freud, a semelhançaentreo movimentoda figuradepedraeo dajovemvivaseria- com o encon- tro deZoé emPompeia- o único elemento"inventa- do" e "arbitrário"na apresentaçãodo casoNorbert Ha- nold.21Eu diriabemo contrário.Essajovemvirgemro- mana,cujo andardesenvoltoé feito de voo suspensoe apoio firme sobreo solo, essaexpressãode vida ativae derepousotranquiloemsi étudo menosumainvenção arbitráriasaídado cérebrodeWilhelm ]ensen.Pelocon- trário, reconhece-seaí a figura tantasvezescelebrada desdeSchillerou Byron, Hülderlin ou Hegel: o andar da kóre,lembrançade frisadasPanateneiasou de urna grega,figuraemtorno da qual todaumaépocasonhou umanovaideiadecomunidadesensível,umavidaidên- 21 Delírios esonhosna Gradivadejensen,op. cito 63 11:: ::~ I11 ticaàarte,umaarteidênticaàvida.Mais do queumjo- vemcientistaextravagante,Norbert Hanold é umadas inúmerasvítimas,trágicasou cômicas,decertofantasma teórico:a vida vibranteda estátua,da dobra da túnica ou do andarlivre,em quesevia encarnadoum mundo ideal da comunidadeviva. O "fantasista"Jensen sim- plesmentesediverteconfrontandoessa"vida" imagina- dadapedraantigaedacomunidadefuturacoma trivia- lidadeda vida pequeno-burguesa:osvizinhos,os caná- riosnasjanelaseospassantesna rua.O apaixonadopela vida encarnadana pedrasevê chamadoà vida da vizi- nhabrejeiraeprosaicaeaotrivialdasviagensdenúpcias pequeno-burguesasna Itália.É issoqueFreudrecusaao contraporsuaprópria interpretaçãoao tratamentode Zoé:essaliquidaçãosimplesdo sonhoqueseopõe ;'L ka- tharsisdo afeto.Ele denunciaacumplicidadeentreapo- siçãodo fantasistae certofim prosaicodo sonho. Essa denúncianão é novidade.E pode-seaqui evocaraspá- ginasde Hegel quedenunciam,nos Cursosdeestética,o arbitrário da fantasiade Jean-Paul ou de Tieck, e suasolidariedadeúltima com o filisteísmodavida burgue- sa.Nos dois casossevê denunciar,no "fantasista",um determinadousodo espírito,do Witz romântico.Mas, nessaproximidade,opera-seuma reviravoltaessencial. À frivolidadesubjetivado Witz, Hegelopõea realidade substancialdo espírito.Freud censuraao fantasistades- conhecera substancialidadedos jogos do Witz. Hegel 64 empenha-sea princípio emrecusarumafiguravaziada "livre" subjetividade,reduzidaà suaautoafirmaçãore- petitiva.Freud,confrontadoaosnovosdesdobramentos do inconscienteestético,põeemcausaprioritariamente umaideiadaobjetividadequeseresumeàideiade "sa- bedoriadavida".Na sorridenteZoé Bertgangeno "fan- tasista"Wilhelm Jensen, essasabedoriaassumeumafi- gurabastanteanódina. Mas o mesmonão ocorre em outras"curas",emoutros"fins desonho" ilustradospe- la "medicina"literáriado final do séculoXIX. Pode-se pensaraqui em duasficçõesexemplares,uma inventa- da por um filho de médico,a outra tendo um médico por herói.Trata-se,primeiro,do fim daEducaçãosenti- mental,a evocaçãodavisitafrustradaaobordeldaTur- ca,quepermanece- na derrocadade suasesperanças ideaiscomo de suasambiçõespositivas- o que Fré- déric e Deslaurierstiveramde melhor. E, semdúvida aindamaissignificativo,o fim do DoutorPascaldeZola, queé tambémaconclusãoeamoraldetodo o ciclodos Rougon-Macquart.Essamoraléno mínimo singular,já que O doutorPascalnarrao amor incestuosodo velho doutor,queé tambémhistoriógrafoda família,por sua sobrinhaClotilde. O final do livro nosmostraClotilde, apósa mortedePascal,amamentando,no antigogabi- netedetrabalhotransformadoemquartode bebê,o fi- lho do incestoque, inconscientede qualquertabucul- tural,ergueseupequenopunho,nãoaalgumfuturo ra- 65 diante,massimplesmenteà forçacegaebrutadavida queassegurasuaperpetuidade.Essetriunfodavida,afir- madopor um incestobanalizadoe atéregenerador,é, emsuma,aversão"séria"eescandalosadafantasialevia- nade}ensen.Essamoralrepresentao queFreudrecusa, o "mau"incesto,maunãoporqueofendeamoral,mas porquedesconectao dadoincestuosodetodaboaintri- gadecausalidade- edeculpabilidade-, detodaló- gicadesaberlibertador. Não seiseFreudleuO doutorPascal.Em compen- sação,leudepertoumcontemporâneodeZola,autorde históriasexemplaresdeperturbaçõesdaalmaedesegre- dosdainfância,detratamentos,confissõesecuras.Falo deIbsenepensoaquinaanálisequeFreudfazdesua peçaRosmersholmnoartigointitulado"Algunstiposde caráterencontradosnotrabalhopsicanalítico".Essetexto analisaalgunstiposparadoxaisqueseopõemà racio- nalidadedotratamentopsicanalítico:unsporquesere- cusamarenunciaraumasatisfaçãoeasubmeteroprin- cípiodeprazeraoprincípioderealidade;outros,aocon- trário,porqueseesquivamdiantedo própriosucesso, recusamumasatisfaçãonomomentomesmoemquepo- demenfimobtê-Ia,emqueelanãoestámaismarcada peloselodaimpossibilidadeoudatransgressão.Taissão ajovemqueportantotempoconfabulouparaserdes- posadaouoprofessoràsvésperasdefinalmenteconquis- taracátedrapelaqualfeztantasintrigas,equeseesqui- 66 vamdiantedosucessodeseusempreendimentos.É que, julgaFreud,osucessoofertadoprovocaainvasãodeum incontrolávelsentimentodeculpa.E éaíqueintervêm osexemplostiradosdeduaspeçasexemplares:Macbeth, semdúvida,mastambémRosmersholm.Comoapeçade IbsenémenosconhecidaqueadeShakespeare,convém relembrarseuenredo.Ela tempor cenárioumavelha mansãosituadanosconfinsdeumapequenacidadeda Noruega,recônditanofundodeumfiorde.Nessaman- são,isoladaporumapassarelaerguidasobreáguastur- bulentas,viveo antigopastorRosmer,herdeirodeuma extensafamíliadedignitáriosecujamulher,vítimade distúrbiosmentais,sejogouno marumanoantes.Na mesmacasaviveagovernantaRebecca,quealiseempre- garaapósamortedeseupadrasto,o doutorWest.Este, adeptodolivre-pensamento,haviaeducadoRebeccade- poisdamortedamãe,convertendo-aàssuasideiaslibe- rais.A convivênciadeRosmeredamoçatemumadu- placonsequência:porumlado,aconversãodoex-pas- toràsideiasliberais,queeleacabaassumindo,paragran- deescândalodeseucunhado,Kroll, diretordeescolae chefelocaldopartidodaordem.Por outro,atransfor- maçãodesuacomunhãointelectualcomRebeccaem sentimentoamoroso.Eleapedeemcasamento.MasRe- becca,apósumprimeiromovimentodealegria,declara queé impossível.Nisso,o diretorKroll vemrevelarao cunhadoquesuairmãforainduzidaaosuicídioe,aRe- 67 becca,queseunascimentoé ilegítimo:elaé,defato,a filhanaturaldeseu"padrasto".Rebeccaserecusaener- gicamenteaacreditar.Confessa,aocontrário,quefoiela queminsinuouàdefuntaasideiasquealevaramaosui- cídio.Depoisdisso,prepara-separadeixaracasaquan- doRosmerlheroga,pelasegundavez,quesetornesua esposa.Mas elarecusanovamente.Elajá nãoé,diz,a jovemsequiosaporsucessoquehaviaseinstaladonacasa eque,aospoucos,afastaraa esposaqueconstituíaum obstáculo.SeRosmer,naconvivênciacomela,tinhase convertidoaolivre-pensamento,ela,porsuavez,havia enobrecidopelocontatocomele.Elanãopodemaisgo- zardosucessoobtido. É nessepontoqueFreudfazsuaintervençãoque, maisumavez,visacorrigirasexplicaçõesdoautoreres- tabeleceraverdadeiraetiologiado caso.A razãomoral alegadaporRebeccaé,dizele,umsimplesvéu.A pró- priamoçaindicaumarazãomaissólida:elatemum "passado".E compreende-sefacilmenteo queéessepas- sadoquandoseanalisasuareaçãoàsrevelaçõessobreseu nascimento.Seelaserecusacomtantaênfaseaadmitir queéfilhadeWesteseessarevelaçãotemcomoconse- quênciaaconfissãodesuasmanobrascriminosas,épor- quefoi amantedopretensopadrasto.É o incestoreco- nhecidoquedesencadeiao sentimentodeculpa.É ele queseopõeaoêxitodeRebecca,enãosuaconversão moral.Paracompreendersuaconduta,éprecisorestabe- 68 leceressaverdadequeapeçanãodiz,quenãopodiadi- zer,senãoporvagasalusões.22 Contudo,aooporassima"verdadeira"razãoocul- taà razão"moralizante"declaradapelaheroína,Freud esqueceaquiloque,paraIbsen,dáseusentidoúltimoà condutadeRebecca.Eleesqueceo fimdapeça,quenão concernenemàconversãomoralizante,nemaoabati- mentosobo pesodaculpa.Com efeito,a transforma- çãodeRebeccasesituaparaalémdobemedomal.Ela setraduznãopelaconversãoàboamoral,maspelaim- possibilidadedeagir,impossibilidadedequerer.O fim dahistória,paraRebeccaquenãoquermaisagir,epa- raRosmerquenãoquermaissaber,éumauniãomísti- cadeumtipoparticular.Comefeito,elesseunempara tomaralegrementeo caminhodapassarelaeseafogar juntosnasondas.Uniãoderradeiradosaberedonão- -saber,do agiredopadecer,conformeà lógicado in- conscienteestético.O verdadeirotratamento,averda- deiracuraéarenúnciaschopenhauerianaaoquerer-vi- ver,o abandonono maroriginaldo não-querer,"vo- lúpiasuprema"naqualhaviasucumbidoa Isoldade 22 SigmundFreud,"Quelquestypesdecaracrêresdégagésparlerra- vai!psychanalyrique"[1916J,ínDeuvres completes,Paris,PUF, 1996,r.XV, p. 36 [ed.bras.:"Algunsripasdecarárerenconrradosno rrabalhopsicana- lírico",ín op. cit.,vaI.XIV, pp.321-48]. 69 li'I:: 1",1' I' I' ,I' ,,:1 Wagner,equeo jovemNietzscheassimilaraaotriunfo donovoDionísio. É essavolúpiaqueFreudrecusa.É contraelaque elefazvaleraboaintrigacausal,aracionalidadedosen- timentodeculpaliberadopelotratamentodo diretor Kroll. Ele nãoseopõeà explicaçãomoralizante,masa essa"inocência"do mergulhono maroriginal.Ainda aquisemanifestaaambiguidadedesuarelaçãocomoin- conscienteestético:diantedesseniilismo,dessaidentida- deradicaldopathosedo lagosqueseconstatanotempo deIbsen,deStrindbergedowagnerianismo,averdade últimaea"moral"doinconscienteestético,eleretoma, emsuma,aposiçãodeCorneilleedeVoltaireperanteo furoredipiano.Procurarestabelecer,contraessepathos, umbomencadeamentocausaleumavirtudepositivado efeitodesaber.A forçadesseargumentopodesersenti- daemumaoutrareferência,maisbreve,aoutrodrama "psicanalítico"deIbsen,A damadomar,emqueaesposa dodoutorWangeléperseguidapeloirresistívelchama- dodomar.Quandoseumaridoadeixalivreparaseguir omarinheiroqueestádepassagem,noqualelareconhe- ceaencarnaçãodesseapelo,Ellidarenuncia.Assimco- moRebeccasedeclaravatransformadaporRosmer,elasedeclaraliberadapelaescolhaqueo maridolheconce- deu.Já quepodeescolher,elaficarácomele.Ora,dessa vez,arelaçãoentreasrazõesdoautoreasdo intérprete seapresentainvertida.Freudefetivamenteconfirmaa 70 interpretaçãodapersonagemenelaenxergaosucessodo "tratamento"conduzidopelodoutorWangel.Ibsen,por suavez,reduzessaliberdadeaoestatutodeilusãonas notaspreparatóriasqueresumemahistóriaemtermos decididamenteschopenhauerianos: "A vidaaparentementeé alegre,fácile plenadevivacidadeláemcima,à sombrados fiordesenauniformidadedoisolamento.No entanto,exprime-sea ideiadequeessetipo devidaé umasombradevida.Nenhumvi- gordeação;nenhumalutapelalibertação.Na- daalémdeaspiraçõesepromessas.Assimse viveláduranteo curtoeclaroverão.E emse- guida...penetra-senastrevas.Entãodesperta o vivodesejodagrandevidadomundoexte- rior.Masoqueseganhacomisso?Dependen- do dassituações,dependendodo desenvolvi- mentodoespírito,aumentamasexigências,as aspirações,aspromessas[...] Limitesportoda parte.Daí a melancoliaespraiadacomoum cantolamuriosoabafadoportodaaexistência enacondutadaspessoas.Um clarodiadeve- rãoseguidoporgrandestrevas...eistudo[...] Forçadeatraçãodomar.Aspiraçãopelomar. Pessoasaparentadasaomar.Ligadasaele.De- pendentesdo mar.Devemretornaraele[...] 71 ograndesegredoéadependênciadohomem emrelaçãoàs'forçassemvontade'."23 Assim,o ciclodasestaçõesnoNorteéidentificado aoesvanecimentodasilusõesdarepresentaçãononadada vontadequenadaquer.A essamoraldaintriga,Freud, dessavez,opõeaqueladeclaradapelodoutorWangele adamadomar. Dir-se-átratar-se,nessecaso,deumaquestãoda época.Mas essa"questãodeépoca"nadatemdecir- cunstancial.Nãosetrataapenasdocombatecontrauma ideologiapresentenaatmosferadaépoca- umaépoca, deresto,já umtantoultrapassadaquandoFreudescre- veessestextos.Trata-sepropriamentedocombateentre doisinconscientes,entreduasideiasdaquiloqueestápor debaixodasuperfíciepolidadassociedades,duasideias dedoençaedecuradascivilizações.Já queestamosfa- landodeépoca,sejamosprecisos.O "MoisésdeMiche- langelo"éde1914,"O estranho",de1915,assimcomo o textosobreIbsen.Não estamosmuitolongedeAlém doprincípio deprazer,quemarcaráumareviravoltana obradeFreud,fazendointervirapulsãodemorte.Sa- be-secomoFreudexplicaessareviravoltadeseupensa- 23 HenrikIbsen,Ia damedeIa mer,in Oeuvrescomplêtes,Paris,Plan, 1943,t. XIV, pp.244-5. 72 mento.A afirmaçãodapulsãodemortesededuzdoes- tudodaproblemática"neurosetraumática".Masseure- conhecimentoestátambémligadoaogolpeinfligidope- laguerrade1914à visãootimistaquehavianorteadoa primeirafasedapsicanáliseeasimplesoposiçãodoprin- cípiodeprazeraoprincípioderealidade.No entanto,é legítimopensarqueessaexplicaçãonãoesgotaporcom- pletoo sentidodoacontecimento.A descobertadapul- sãodemorteé tambémumepisódiodalongaconfron- tação- maisoumenosencoberta- deFreudcomo grandetemaobsedantedaépocaemqueapsicanálise seformou:como inconscientedacoisaemsischopen- hauerianaecomasgrandesficçõesliteráriasdoretorno a esseinconsciente.Que osinstintosconservadoresda vidadefinitivamenteconservamnavidaadireçãorumo a"sua"morteequeos"guardiõesdavida"são,assim,os "lacaiosdamorte",édefatoo segredoúltimodetodo granderomancedasilusõesdavontade,emqueseresu- mealiteraturadetodoumséculo,aliteraturadaidade estética.Foi comessesegredoqueFreudnãocessoude sedebater.E éjustamenteainterpretaçãodo"princípio derealidade"queestáno cernedascorreçõesfeitaspor FreudnasintrigasdeJensen,Hoffmannou Ibsen.É a confrontaçãocomalógicadoinconscienteestéticoque o levaarestabeleceraboaetiologiadocasoHanoldou do casoNathanaele o bomfim deRosmersholm,mas tambémaboaatitudedeMoisés,a dacalma,darazão 73 quesesobrepõeaopathossagrado.Tudo sepassacomo seessasanálisesfossemmeiosderesistirà entropianiilista queFreud detectae recusanasobrasdo regimeestético daarte,eà qual,todavia,eledaráum lugarnateorização dapulsãodemorte. Pode-se,assim,compreendera relaçãoparadoxal entreasanálisesestéticasde Freud e aquelasque, mais tarde,farãoreferênciaa ele.Estastratarãode refutaro biografismofreudianoesuaindiferençaà "forma"artís- tica.É nasparticularidadesdo toquepictural,refutando silenciosamenteaanedotafigurativa,ou nas"gagueiras" do textoliterário,marcandoa açãode uma "outra lín- gua"na língua, queelesbuscarãoa eficáciado incons- ciente,concebidocomo a marcade umaverdadeino- minávelou o choquede umapotênciado Outro, exce- dendoemseuprincípio todaapresentaçãosensívelade- quada.No início de"Moisés",Freudevocao choquepro- vocadopelasgrandesobraseaconfusãoquepodetomar contado pensamentodiantedo enigmadessechoque. "Não teriamesmoalgumestetaconsideradotal desam- parodenossainteligênciacomocondiçãonecessáriados maioresefeitosqueumaobradearteé capazdeprodu- zir?Contudo, eu teriadificuldadesem acreditarem se- melhantecondição."24O motor dasanálisesde Freud, 24 Essaisdepsychanalyseappliquée,op. cit., p. 10. 74 a razãodo privilégioqueeleconcedeà intrigabiográfi- ca,sejaadaficção,sejaado artista,seencontraaí:elese recusaa atribuira potênciada pintura,da esculturaou da literaturaa essedesamparo.Paravencera tesedo es- tetahipotético,eleestápronto a refazerqualquerhistó- ria e atémesmoreescrever,quandopreciso,o textosa- grado.Ora, esseesteta,paraFreudhipotético,éhojeem dia umafigurabempresenteno campodo pensamento estéticoe,emgeral,sereferea Freudparafundamentar a tesequeelepretendiarefutar,aqueassociaapotência da obra a seuefeitode desamparo.Aqui, pensoparti- cularmentenasanálisesdo último Lyotard,queelabora umaestéticado sublimedaqualBurke,Kant eFreudsão os trêspilares.25À "debilidade"estética,Lyotard opõe uma potênciado toque pictural, concebidocomo po- tênciadedesapropriação.O sujeitoéaí desarmadopela marcado aistheton,do sensível,que afetaa almanua, confrontadoa umapotênciado Outro, queem última instânciaéa dafacede Deus,quenãopodesermirada, a qual colocao espectadorna posiçãode Moisés diante da sarçaardente.À sublimaçãofreudianaseopõeessa marcado sublime,quefaztriunfarumpathosirredutível 25 Cf., emparticular,L 'inhumain, Paris,Galilée,1988,eMoralités postmodernes,Paris,Galilée,1993[ed.bras.:Moralidades pós-modernas, rraduçãodeMarinaAppenzeller,Campinas,Papirus,1996]. 75 atodologos,umpathos,emúltimainstância,identifica- doà potênciamesmadeDeusquechamaMoisés. A relaçãoentreosdoisinconscientesapresenta,por- tanto,umasingularpermutabilidade.A psicanálisefreu- dianapressupõeessarevoluçãoestéticaquerevogaaor- demcausaldarepresentaçãoclássicaeidentificaapotên- ciadaarteà identidadeimediatadoscontraditórios,do logose dopathos.Elapressupõeumaliteraturaquere- pousasobreaduplapotênciadapalavramuda.Mas,nes- sadualidade,Freudoperasuaescolha.À entropianiilis- tainerenteaopoderdapalavrasurda,eleopõea outra formadapalavramuda,o hieróglifoentregueaotraba- lhodainterpretaçãoeà esperançadacura.E, seguindo essalógica,eletendeaassimilaraobrada"fantasia"eo trabalhodesuadecifraçãoà intrigaclássicadoreconhe- cimentoquea revoluçãoestéticarevogava.Assim,ele reconduzaosparâmetrosdo regimerepresentativoda arteasfiguraseintrigasqueesseregimerecusavaeque apenasa revoluçãoestéticahaviacolocadoà suadispo- sição.A esseretornoseopõehojeumoutrofreudismo, quepõeemcausao biografismofreudianoeseafirma maisrespeitosodoprópriodaarte.Esteseapresentaco- moumfreudismomaisradical,liberadodassequelasda tradiçãorepresentativaeafinadocomo novoregimeda artequelheconcedeseuÉdipo,o regimequeigualao ativoaopassivo,afirmandoaomesmotempoaautono- miaantirrepresentativadaartee suanaturezaprofun- 76 damenteheteronômica,seuvalordetestemunhodaação dasforçasqueultrapassamo sujeitoeo arrancamdesi mesmo.E, paraisso,apoia-seprincipalmenteemAlém doprincípiodeprazeretodosostextosdosanos1920e 1930,quemarcamadistânciaentreo Freudcorretorde ]ensen,IbsenouHoffmann,eoFreudadmiradordeum Moiséslibertodafúriasagrada.Mas,paratanto,preci- sadecidir-se,demaneiraoposta,quantoà lógicacon-
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