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104 MONTAIGNE
CAPITULO XXXI
Dos cmib:ais
Quando 0 Rei Pirro cntrou na Italia, e veri·
ficou a formacao de combate do exercito
romano, disse:" Nao sci que especie de barba·
ros sao estes (pois as grcgos assim chamavam
a todas as na¢es estrangeiras), mas a forma-
erao de combate, que os vejo rcalizar, nada tern
de barbaro". A mesma caisa diziam os gregos
do exercito que a seu pais Flaminio conduziu.
E FiJipe assim falou igualmente, ao perceber
do alto de urn outeiro a bela ordenac;ao do
acampamento daquele que, sob PUblio Sulpi-
cia GaJba, acabava de cntrar em seu reino.
Isso mostra a que ponto devemos desconfiar
da opiniao publica. Nossa razao, e nao 0 que
dizem, deve inOuir em nosso julgamento.
Durante muito tempo live a mcu lado urn
homem Que permanecera dez au doze anos
nessa parte do Novo Mundo descoberto neste
seculo, no lugar em que tomou pe Villegaignon
e a que deu 0 nome de "Francra Antartiea".
Essa deseoberta de urn imenso pais pareee de
grande aleanee e presta-se a serias renexoes.
Tantos personagens eminentes se enganaram
acerca desse descobrimento que nao saberei
dizer ~ 0 futuro nos reserva outros de igual
ilnportancia. Seja como for, receio que tenha-
mos os olhos maiores do que a barriga, mais
curiosidade do que meios de acrao. Tudo abra-
cramos mas nao apertainos senao.ventoJ 2 7.
Platii.o mostra-nos SOlon afirmando ter ou-
vido dos Sacerdotes de Sais, no Egito, que
antes do diluvio existia em frente de Gibraltar
lima grande ilha chamada Atlantida, mais
extensa do que a Africa e a Asia reunidas e
que os reis dessa regiao nao possuiam apenas a
i1ha mas exerciam igualmente sua autoridade
tao longe, em terra firme, que ocupavam a
Africa ate 0 Egito e a Europa ate a Toscana.
Que haviam empreendido ir ate a Asia e subju-
gar as nacroes do Mediterraneo ate 0 golfo for-
mado pelo mar Negro; que para tanto haviam
atravessado a Espanha, a G3..Iia. a ItaJia e che-
gadD a Grecia onde os atenienses sustaram a
arremetida; que algum tempo depois sobre-
viera 0 diluvio que os afogara juntamente com
os atenienses e sua ilha.
J27 Quem tudo abarca nada aperta. (N. do T.)
E muito provavel que nesse cataclismo hor-
nvel as aguas tenham provocado modificac;:6es
inimaginaveis em todos os paises habitados da
terra. Assim eque se atribui aacrao das aguas
do mar a separa~ao da Sicilia com a It31ia:
"Dizem que essas regioes, outTOra urn s6 conti-
nente, foram violentarnente separadas pela
for~a das aguas"J 2 8; e a da ilha de Chipre
com a Siria e a da de Negroponto com a terra
firme da Be6cia. Em compensa~ao, alhures, 0
mar teria juntado terras separadas por estrei-
lOS que foram aterrados por limo e areia: "urn
pantanal ha muito esteril, e que percorriam a'
remo, alimenta hoje as cidades vizinhas e
conhece 0 arado fecundo do lavrador"J2 9.
Nao ha muitos indlcios entretanto de que
seja a Atlantida 0 Novo Mundo que acabamos
de descobrir, pois quase tocava a Espanha e
seria efeito incrlvel da inundar.;:ao te-Ia trans-
portado a distancia, em que se encontra, de
mais de mil e duzentas leguas. Ademais os
navegadores modemos jii verificaram nao tra-
tar-se de uma ilha. mas de urn continente con-
tiguo as Indias Orientais, por urn lado, e por
outro as terras dos pOlos; e se destes se acha
separada e por tao pequeno estreito que nao se
deve tampouco considera-Ia uma ilha.
Creio que ocorreram nessas grandes massas
movimentos semelhantes aos que se constatam
em nossas reg tOes, naturais uns, acidentais e
violenlOs outros. Quando observo a a~ao exer-
cida pelo rio Dordonha, no decurso de minha
existencia, abaixo de casa, na margem direita;
quando vejo quanto em vinte anos conquistou
de terras, e 0 que solapou de alicerces das
construcOes erguidas a sua margem, concluo
que nao se trata de urn fato normal. Se, com
efeito, assim tivesse sido sempre, ou que isso
devesse cominuar, a configuraIYao do mundo
acabaria por mudar. Mas esses movimentos
nao sao constantes: ora as aguas se expandem
por urn lado, ora por outro; e orR paramo Nao
falo aqui das cheias slibitas cujas causas
conhecemos. Na regiao de Medoc, junto ao
mar, tern meu irmao, Sr. de Arzac, uma de
32. Virgilio.
32! Horacio.
Marcos Euzebio
Michel de Montaigne. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. SP: Abril Cultural, 1972.
ENSAlOS-I 105
suas tcrras enterradas sob as areias que 0 mar
Ihe vai jogando em cima. as te!hados de algu-
mas habit3c;:3es sc veem ainda e essa proprie-
dade e suas culturas transformaram-se em bern
magras pastagens. Dizem os habitantes que de
uns tempos para ca avanr;3 0 mar lao rapida-
mente que ja perderam quatro lc~guas de terras.
Essas areias sao sellS arautos; como uma espe-
cie de dunas movedic;:as precedem-no de cerca
de meia Ii~gua e conquistam insensivelmcnte a
regiao.
Outro testemunho da antiguidade, que se
quer aplicar a esse descobrimento, se encoo-
traria em Arist61eles. se for de sua autoria a
obra intitulada "Maravilhas Extraordinacias".
Nela se conta que alguns canagineses, tendo-
se aventurado pelo Atlantica afora, alem do
estreito de Gibraltar, tcriam acabado, ap6s
urna longa navega~ao, por descobrir urna
grande ilha fertil, coberta de bosques, regada
por grandes e profundos rios, e muito afastada
da terra firme. E que alraidos, eles e oulros
mais tarde, pela qualidade e fertilidade do solo,
para ali teriam lransportado suas mulheres e
filhos, nela se fixando. De taJ amplitude se
revestira essa migra~ao que as autoridades de
Cartago teriam proibido expressamente e sob
pena de morte que emigrassem quaisquer
outros. E teriam expulso da ilha os que ali ja
residiam, com receio de que se multiplicassem
a ponto de suplantar e arruinar 0 dominio da
metr6pole. Esta narrativa de Arist6teles, tal
qual a de S6lon, nao deve referir-se as nossas
novas terras.
o homem que tinha a meu servi.;:o, e que
voltava do Novo Mundo, era simples e gros-
seiro de espirilo, 0 que da mais valor a seu
testemunho. As pessoas dotadas de finura
observam melhor e com mais cuidado as eoi-
sas, mas comentam 0 que veem e, a fim de
valorizar sua intcrpreta~ao e persuadir, nao
podem deixar de alterar urn poueo a verdade.
unca relatam pura e simplesmente 0 que
viram, e para dar eredito a sua maneira de
apreeiar, deformam e ampliam os fatos. A
infonna~ao objetiva n6s a Lemos das pessoas
muilO eserupulosas ou muito simples, que nao
tenham imagina~ao para inventar e justificar
suas inven~s e igualmente que nao sejam
sectarias. Assim era 0 meu informante, 0 qual,
ademais, me apresentou marinheiros e comer-
eiantes que eonheeera na viagem, 0 que me
induz a aeredilar em suas informaCDes sem me
preocupar 'demasiado com a opiniao dos
cosm6grafos. Fora preciso encontrar top6gra-
fos33 0que nos falassem em particular dos
no Exploradores.
lugares por onde andaram. Mas, porque levam
sobre n6s a vantagem de ter visto a Palcstina,
reivindicam 0 privilegio de contar 0 que se
passa no resto do mundo. Goslaria que cada
qual escrevesse 0 que sabe e sem ultrapassar os
limites de seus conhecimentos; e isso nao sO na
materia em apr~o mas em todas as materias.
Hi!. quem tenha algum conhecimento especial
ou experiencia do curso de urn riacho, sem
saber de resto mais do que qualquer urn, e no
entanto para valorizar sua pitada de erudicao .
atira-se alarcfa de escrever urn tratado acerca
da configura~aodo mundo. Este defeito muito
comum acarreta graves inconvenientes.
- Mas, voltando ao assuOlo, nao vejo nada de
barbara ou selvagem no que dizem daqueles
povos; e, na verdade, cada qual considera bar-
baro 0 que nao se pratiea em sua terra. E e
natural, porque sO podemos julgar da verdade
e da razao de ser das coisas pelo exemplo e
pela ideia dos usos e costumes do pais em que
vivemos. Neste a religiao e sempre a melhor, a
adrninistracao exeelente, e tudo 0 rnais perfei-
to. A essa gente cham amos selvagens como
- denominamos selvagens os frotos que a natu-
reza produz seminterven~ao do homem. No
entanto aos outros, aqueles que alteramos por
processos de cullura e cujo desenvolvimento
natural modificamos, eque deveriamos aplicar
o eptteto. As quaJidades e propriedades dos
primeiros sao vivas, vigorosas, autenticas,
uteis e naturais; nao fazemos scnao abastar·
di·las nos oulros a fim de rnelhor as adaptar a
nosso gosto corrompido. Entretanto, em certas
especies de frutos dessas regiDes, achamos urn
sabor e urna dclicadeza scm par e que os lOrna
dignos de rivalizar com os nossos. Nao hi
razao para que a ane sobrepuje em suas obras
a natureza, nossa grande e poderosa mae.
Sobrecarregamos de tal modo a beleza e rique-
za de seus produtos com as nossas inven~s,
que a abafamos completamente. Mas, onde
permaneceu intata" e se mostra como e real-
mente, ela ridiculariza nossos vaos e frivol os
empreendimentos: "a hera cresce ainda melhor
scm cuidados; 0 medronheiro nunca se apre-
senta tao belo como nos antros solitarios e 0
canto dos passaros e assim tao suave porque
natural"33 1" Nem apelando para todas as nos-
sas for~as e os nossos talentos seriamos capa-
zes de reproduzir 0 ninho do passaro mais
insignificantc, com sua contextura e sua bele-
za, nem de 0 tornar adcquado ao uso a que se
destina; e nao saberiamos tampouco tecer a
teia de urna mirrada aranha. Todas as coisas,
disse Platao, produzem-nas a natureza ou 0
]] 1 Propercio.
106 MONTAIGNE
aeaso, ou a arte. As mais belas e grandes sao
[rutos das duas primeiras causas; as menores e
mais irnperfeitas, da ultima.
Esses povos naD me parecem, pois, merecer
o qualificativo de se)vagens somente por nao
terem side senaa muita poueo modificados
pela ingerencia do espirito humane e nao have-
rem quase "ada perdido de sua simplicidAde
prirnitiva. As leis da natureza, naD ainda
- pervertidas pela imi~ao dos nossos, regem-
nos ate agora e mantiveram-se tao puras que
lamento por vezes nao as tenha 0 nosso mundo
conhecido antes, quando havia homens capa-
zes de aprecia-Ias. Lamento que Licurgo e Pla-
tao nao te"ham Qllvido [alar del as, pais sou de
opiniao que 0 que vemos praticarem esses
pavos, nao somente ultrapassa as magnificas
descri~oes que nos deu a pocsia da idade de
ouro, e tudo 0 que imaginou como suscetivel
de reatizar a felicidade perfeita sabre a terra,
mas tambem as conce~s e aspira¢es da
filosofia. inguem concebeu jamais uma sim-
plicidade natural elevada a tal grau, nem nin·
guem jamais acreditau pudesse a saciedade
subsistir com tao poucos artificios. E urn pais,
diria eu a Platao, onde nao ha comercio de
qualquer natureza, nem literatura, nem mate-
rna-ticas; onde nao se conhece scquer de nome
urn magislrado; onde nao existe hierarquia
politica, nem domesticidade, nem ricas e
pobres. Contratos, sucessao, partilhas ai 'sao
desconhecidos; em materia de trabalha s6
sabem da ociosidade; 0 respeito aos parentes e
o mesmo que dedicam a todos; 0 vestuirio, a
agricultura, 0 trabalho dos mClais ai se igno-
ram; nao usam vinho nem trigo; as proprias
palavras que exprimem a mentira, a traic;:ao, a
dissimula(j:ao, a avareza, a inveja, a calunia, 0
perdao, s6 excepcionalmente se ouvem. Quan-
to a Republica que irnaginava Ihe pareceria
longe de tamanha perfeic;:ao ! I·Sao homens que
saem das maos dos deuses"332. uComo essas,
foram as primeiras leis da natureza"333.
A regiao em que esses povos habitarn e de
resta muito agrada-vel. 0 clima e temperado a
ponlo de, segundo minhas teslemunhas, rara·
mente se encontrar urn enfermo. Afirrnaram
mesmo nunea terem visto algum epileptic033 4,
remeloso, desdentado ou curvado pela idade.
A regiao estende·se abeira-mar e eIimitada do
lado da terra por platos e attas montanhas. a
cerea de cern leguas, 0 que representa a
profundidade de seus territorios. Tern peixe e
carne em abundAncia, e de excelente qual ida-
ll2 seneca.
ll3 Virgilio.
33. No texto "aueun tremblant", 0 que supomos
rererir·se aepilepsia. (N. do T .)
de, contentando·sc com os grelhar para os
comer. 0 primeiro individuo que viram a cava-
10 inspirou-Ihes tal pavor que embora ja hou-
vessem eSlado com ele de outras feitas, 0 mata-
ram a flechadas e sO entao 0 reconheceram.
Suas residencias constituem·se de barracc3es
com capaeidade para duzentas a trezentas pes·
soas, e sao edificadas com troncos e galhos3 3 6
de grandes 3..rvores enfiados no solo e se
apoiando uns nos outros na cumeada, Ii seme-
ihanc;:a de certos celeiros nossos eujos tetos
descem ale 0 chao fechando os lados. Possuem
madeiras tao duras que com elas fabrieam
espadas e espetos para grelhar os aJimentos.
Seus leitos. form ados de eordinhas de algodao,
suspendem-se ao leta, como nos nossos navios.
Cada qual tern 0 seu. dormindo as mulheres
separadas dos maridos. Levanlarn-se com 0 sol
e logo merendam, nao fazendo outra refeir;ao
durante 0 resto do dia. Nao bebem ao se
alimentarem, agindo nesse ponta, segundo Sui-
das, como outros povos. Fora das refeic;:Oes,
bebem quanto e quando querem. Sua bebida
extrai·sc de cerla raiz; lem a cor de nossos cla-
retes e s6 a tomarn morna. Conserva·se apenas
dois ou tres dias, com urn goSlo algo picanle,
scm espurna. Edigesliva e laxativa para os que
nao estao acostumados e muito agradavel para
quem se habitua a eia. Em lugar de pao,
comem uma substancia branca parecida com 0
coentro cozido. Experimentei, e doce e algo
insosso. Passam 0 dia a danc;:ar; os jovens van
a ca~a de animais grandes contra os quais
empregarn 0 arco unicamente. Enquanto isso,
uma parte das mulheres diverte-se com prepa-
rar a bebida, a que constitui sua principal
ocupa:;ao.
Todas as manhiis, antes que iniciem a refei·
c;:ao, urn anciao percorre 0 barracao, que tern
bern cern passos de comprimento, e prega aos
ocupantes sem eessar as mesmas coisas: valen-
tia diante do inimigo e amizade a suas rnulhe-
res. E nunea esquecem, ao fazer esta ultima
reeomendac;:ao, de Ihes lembrar que sao elas
Que rabricam a bebida e a conservam morna.
Podem ver-se em muitos lugares, em particular
em minha casa, esses leitas, cordas, espadas,
pulseiras de madeira que Ihes protegem 0 pulso
no combate. e 10ngos cani(j:os furados de urn
lado que tocam para rilmar suas danc;:as. Cor-
tam os pelos todos e se escanhoam melhor do
que n6s, usando apenas navalhas de madeira
ou pedra_ Acreditam na imortalidade da alma.
As que mereceram aprOVal;aO dos deuses ala·
jam·se no ceu do lado do nascente; as amaldi·
c;:oadas do lado do poente.
33 S 0 texto diz "ecorses", mas deve ttatar-se, pela
descri~ao. de troneos. (N. do T.)
ENSAIOS-I 107
Tern DaD sci que tipos de sacerdotes au pro-
[etas que aparecem raramente e mOTam nas
montanhas. Quando surgem, ha grandes festas
e realiza-se lima assembleia solene a que se
apresentam todas as aJdeias. Carla uma das
habit3crQes a que me referi forma uma al-
deia33 ' e distarn uma da Dutra cerca de uma
legua de Franc;a. 0 profeta fala-lhes em publi-
co, exortando-os a virtude, e ao dever. Sua
Tiloral resume-se em dais pontos: valentia na
guerra e afei930 por suas mulheres. Predit
tambem 0 futuro eo que devem esperar de seus
empreendimentos, incitando a guerra au a
desaconselhando. Mas importa que diga certo,
pois do contrario. se 0 pegarn, e condenado
como falso profeta e esquartejado. Por isso
DaD se reve jamais quem uma vez errau. Adi-vi-
nhar edam de Deus, enganar euma impostura
merecedora de castigo. Entre os citas, par
exemplo, quando os adivinhos se enganavam
em suas previs3es, jogavam-nos, pes e maos
a1gemados, denuo de urn carro de boi cheio de
gravetos a que deitavam fogo. Os que tern a
seu cargo dirigir as fatos cometidos a sagaci-
dade humana, sao desculpaveis se recorrerem
a todos as meios a seu alcance. Mas nao
devem ser punidos os outros, pela sua impcstu-
ra, as que nos iludem apresentando-se como
donas de uma faculdade extraordinaria e fora
do nosso conhecimento?
Esses povos guerreiam os que se encontram
alem das montanhas,na terra firme. Fazem-no
inteiramente nus, tendo como armas apenas
seus arcos e suas espadas de madeira, pontia-
gudas como as nossas lan~as. E eadmiravel a
resoluyao com que agem nesses combates .que
sempre terminam com efusao de sangue e mor-
tes, pais ignoram a flJga e 0 medo. Como tro-
feu, traz cada qual a cabe~a do inimigo truci·
dado, a qual penduram a entrada de suas
residencias. Quanto aos prisioneiros, guar-
dam-nos durante a1gum tempo, tratando-os
bern e fornecendo-Ihes tudo de que precisam
ate 0 dia em que resolvem acabar com eles.
Aquele a quem pertence 0 prisioneiro convoca
tados os seus amigos. No momento propicio,
amarra a urn dos brayos da vitima uma corda
cuja outra extremidade ele segura nas maos, 0
mesmo fazendo com 0 outro bra~o que fica
entregue a seu melhor amigo. de modo a man-
ter 0 condenado afastado de alguns passos e
incapaz de rea~ao. Isso feito, ambos 0 moem
de bordoadas as vistas da assistencia. assan-
do-o em seguida, comendo-o c presenteando os
amigos ausentes com peda~os da vitima. Nao
o fazem entretamo para se a1imentarem, como
a faziam os antigos citas, mas sim em sinal de
:u. Taba, scm duvida. (N. do T.)
vinganya. e a prova esta em que, tendo visto as
portugueses, aliados de seus inimigos, empre-
garem para com eles, quando os aprisionavam,
outro genera de morte, que consistia em enter-
ra-Ios ate a cintura, crivando de nechas a parte
fora da terra e enforcando-os depois, imagina-
ram que essa geote da mesma origem daqueles
seus vizinhos que haviam espalhado 0 conheci-
mento de tantos vicios, que essa gente, muito
superior a eles no mal, nao devia ter escolhido
scm razao urn tal processo de vinganera. 0 qual
por isso adotaram. porque 0 acreditavam mais
cruel, e abandonaram seu sistema tradicional.
Nao me parece excessivo julgar barbaros
tais atos de crueldade, mas que 0 fato de con-
denar tais defeitos nao nos leve a cegueira
acerca dos nossos. Estimo que e mais barbara
comer urn homem vivo do que a comer depois
de morto; e e pior esquartejar urn homem entre
suplicios e tormentas e 0 queimar 'aos poucos,
au entrega-lo a caes e porcos, a pretexto de
devoyao e re, como nao somente 0 lemos mas
vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterra-
neos; e isso em verdade ebern mais grave do
que assar e comer urn homem previamenle
executado.
Crisipo e Zenao, chefes da escola estoica,
admiliam nao haver mal em lirar partido de
nossos cadaveres se necessaria, nem mesmo
em nos alimentarmos deles como 0 fizeram
nossos antepassados que, assediados por
Cesar em Alesia, resolveram, a tim de prosse-
guir resistindo, matar a fome comendo os
velhos, as mulheres e todos os que nao fossem
uteis ao combate: "dizem que os gasc6es
prolongaram a vida valendo-se de semelhantes
alimentos"33 7. E os medicos nao temem
emprega-Ios em toda especie de usos internos e
externos em beneficio de nossa saude. Mas nao
se ouviu jamais ninguem que livesse 0 julga·
mento moral assaz pervertido para desculpar a
traiy3.o, a deslealdadc, a tirania, .a crueldade,
nossos defeitos ha.bituais. Podemos portanto
qualificar esses povos como barbaros em
dando apenas ouvidos it inteligencia, mas
nunea se os compararmos a nos mesmos, que
os excedemos em lada sorte de barbaridades.
Fazem a guerra de urn modo nobre e gene-
roso e ela eneles desculpavel e bela na medida
em que pode ser desculpavel e bela essa doen-
~a da humanidade. pois nao tern entre e1es
outra causa senao a da inveja da virtude33 •.
ao entram em conn ito a tim de conquistar
novos terriL6rios, porquanto gozam ainda de
uma uberdade natural que sem lrabalhos nem
fac!igas Ihes forncee tudo de que necessitarn e
:u 1 Juvenal.
33. No caso, a virlude da valentia.
108 MONTAIGNE
em tal abundancia que nao teriam motivo para
desejar ampliar suas teTras. Tern ademais a
felicidade de Iimitar sellS desejos ao que exige
a satisfac;:ao de suas necessidades naturalS,
tudo 0 que as excede Ihes parecendo superfiuo.
Tratam-se rnutuamente por irmaos quando sao
da mesma idade, e aDs mais jovens cbamam
filhos; e pais aDs velhos, indistintamente.
Quando morrem estes. passam os sellS bens
aDs herdeiros naturais; as heranc;:as nao sao
diVididas, conservando todos os panicipames
a posse do todo, sem Dutro titulo que 0 que
Ihes da a natureza ao cria-Ios. Se os povos viz i-
nhos descem das monlanhas para os atacar e
sao vitoriosos. 0 beneficia de sua viloria con-
sisle unicamente na gl6ria que auferem dela e
na vantagem de se terem moslrado superiores
em valentia e coragem, pois nao saberiam que
fazer dos bens dos vencidos. Voltam para suas
terras onde nada Ihes falta e onde podem gozar
a felicidade de saber contentar-se com sua con·
di9aO. Sc sao vencidos, seus inimigos proce-
dem de igual maneira. Aos prisioneiros nao se
exige senao que se confessem vencidos. Mas
nao se encontra urn 56, em um seculo, que nao
prefira a morte a assumir urna atitude ou a
proferir urna palavra suscetiveis de desmen-
lirem urna coragem que timbram em ostentar
acima de tudo. Nao se ve nenhum que nao pre-
fira ser matado e comido a pedir merce. oao·
Ihes inteira Iiberdade, a fim de que a vida Ihes
seja mais cara, c nao cessarn de cntrete-Ios
ace rca da mone" que os espera brevemente, das
tOTluras que experimentarao, dos preparativos
para 0 supllcio, de seus mernbros decepados e
do festim que fadio com eles. Tude isso no
intuito de Ihes arrancar alguma palavra de
queixa ou fraqueza, ou de os levar it fuga, com
o que mostram te-Ios apavorado e triunfado de
sua firmeza de animo. Nisso, em verdade, e s6
nisso consiste a vitoria: "A vit6ria verdadeira
e a que constrange 0 inimigo a confessar-se
vencido"33!1 .
Os himgaros, que sao muito belicosos, DaO
prosseguiam na guerra senao ate que 0 inimigo
se rendesse; logo que se confessava vencido,
deixavam-no ir sem 0 molestar, nem exigir res-
gate. Apenas queriam que prometesse DaO
mais pegar em armas contra eles. Quando ven-
cernos nossos inimigos, deverno-Io antes a van-
tagens ocasionais e naD a nosso rnerito exclusi-
vo. Ter brayos e pemas 56lidos e apanagio do
carregador e nao da virtude; independe de nOs,
e e c6isa toda fisica, ter boa saude. E e golpe
de sorte abalar 0 inimigo ou conscguir com
que tenha 0 sol nos olhos e se ofusque. E e
tao-sornente prova de habilidade e treino, que
3:J!I Claudio.
pode oferecer igualrnente urn covarde ou urn
plebeu, saber manejar 0 norete. 0 valor de urn
hornern, e a estima que nos inspira, medem·se
pelo seu carater e for9a de vontade. A valentia
nao deeorre do vigor fisico e sim da frrmeza de
animo e da coragem; nao consiste na superio-
ridade de nossa momaria e de nossas armas,
mas na nossa. Quem sueumbe scm que sua
coragem se abata; "quem, se cai, combate de
joelho"J 4 0; quem, apesar das ameayas de
morte nao perde sua altivez; quem, agonizante,
pcrrnanece impassivel e com 0 olhar desafia
ainda 0 inimigo, nao e por n6s abatido e sim
pelo destino. Morre mas scm ser vencido. Os
mais valentes sao por vezes os mais infelizes, 0
que faz com que haja derrotas rnais gloriosas
do que as vit6rias. As quatro brilhantes vito-
rias de Salamina, Plateia, Micale e Sicilia, as
mais belas que testernunhou 0 sol, serao mais
gloriosas do que a que eonquistou 0 Rei LeOni-
das nas Term6pilas? Quem jamais preparou a
vilOria com mais cuidado da gloria e mais
ardente desejo de veneer, do que Ischolas sua
derrota? Quem preparou a sua salvayao rnais
engenhosa e estranhamente do que ele a sua
perda? Fora encarregado de defender urna pas·
sagem do Peloponeso contra os arcades.
Compreendendo que os nao poderia rechayar,
em virtude da topografia local e da inferior i-
dade numerica de suas foryas; certo de que
tudo 0 que se opusesse ao inimigo seria
destruido; julgando par outro lado in-digno de
sua propria coragem e de sua grandeza de
alma, tanto quanto de urn laeedemonio, faltar
ao dever, entre duas resoluyOes extremas esco-
Iheu urna que asconciliasse: dispensou os mais
jovens e vigorosos da tropa, a fim de os con~
servar para a defesa do pais, e, com os que
menos falta deviam fazer, resolveu defender a
passagem entregue a sua guarda, eobrando
eom a mOfte dos defensores 0 mais caro possi-
vel a vilOria do inimigo. Foi 0 que aconteceu:
logo eercados de lOdos os lados pelos arcades,
Ischolas e os seus sueumbiram e foram levados
ao fio de espada ap6s verdadeira carnificina.
Que trofeu assinalado aos vencedores naD fora
antes devido a vencidos dessa ordem? A ver-
dade ira vilOria reside na maneira por que eom-
batemos e nao no resultado final. E nao con·
siste a honra em vencer mas em combater.
Voltemos a nossa hist6ria. Com tudo isso
que Ihes fazern, naD conseguem nem de longe
que os prisioneiros cedam; ao contrario,
durante os dois ou tres meses que permanecem
presos. afetam alegria e incitam seus senhores
a se apressarem em submete-Ios as provacraes
com que os ameayam. Desafiam-nos e os inju-
1 40 seneca.
ENSAIOS-I 109
riam, censurando-Ihes a covardia e Ihes recor-
dando os combates que perderam em autTas
ocasioes. Tenho em meu peder 0 canto de urn
desses prisioneiros. Eis 0 que diz: "Que se
aproxirnem todes com coragem e se juntem
para come-Io; em 0 fazendo camerao seus pais
e seus avos que ja serviram de alimento a cle
proprio e delcs seu corpo se constituiu. Estes
musculos. esta carne, estas veias, diz-Ihes. sao
vossas, pobres laucos. NaG reconheceis a subs-
tancia dos membros de vossos antepassados
que no eolanto ainda se encootTam em mim?
Saboreai-os atentamente, sentireis 0 gosto de
vossa pr6pria carne." Havera alga barbara
nesta composi~ao? Os que Ihes descrevcm os
suplicios e os rcpresentam no momento em que
sao esbordoados. pintam-nos cuspindo no
rosto dos que as trucidam em meio a earctas.
E, com efcito, ate cxalarem 0 ultimo suspiro,
nao param de desafiar os inimigos tanto pelas
atitudcs como pelos prop6sitos_ Por certo, em
relaerao a nos sao real mente selvagens, pois
entre suas maneiras e as nOSSaS ha tao grande
diferen"ra que ou 0 sao ou 0 somos nos.
Os homens tern varias mulheres, em tanto
maior numero quanto mais farnosos e valentes.
Particularidade que nao carece de beleza, nes-
ses lares a ciume, que entre nos impele nossas
esposas a impedir que busquemos a amizade e
as boas gra"ras de outras mulheres, entre eles
as induz a arranjarem outras para seus mari-
dos. A honra deste primando entre lOdas as de-
rna is considera"r0es, pOem elas todo a cuidado
em ter 0 maior numero posslvel de companhei-
ras, pais esse numero comprova a coragem do
esposo. Entre nos falariam de milagre. Nao se
trata disso e sim da virtude matrimonial eleva-
da ao maximo. Nao nos mostra a Biblia,
Sara3 4 1e as mulheres de laOO, Lia e Raquei,
pando SuaS serventes a disposierao de seus
maridos? Nao auxiliou Livia, contra seu inte-
resse, a satisfaerao dos desejos de Augusto? E
Estratonice, mulher de Dejotaro, nao somente
emprestou ao marido uma de suas mais belas
serventes, para que a usasse como entendesse,
mas ainda educou os filhos da concubina e os
ajudou a suceder ao pai. E nao se imagine que
se trate da observaerao servil de urn costume,
imposta pela autoridade dos costumes tradi-
cionais, e que se aplique sem maior discussao,
porquanto sao os selvagens demasiado esrupi-
dos para se rebelarem. Eis alguns traeros que
demonstram 0 contrario. Transcrevi aqui urn
de seus cantos guerreiros: pois tenho tarnbCm
uma canerao de arnor: "Serpente, para; para,
J'" No texto: "Lia, Rachel e Sarah, femmes de
Jacob", mas ha confusao porquanto Sara era mu-
Iher de Abraao. (N. do T.)
scrpente, a tim de que minha irma copie as
cores com que te enfeitas; a fim de que eu faera
urn colar para dar a rninha amante; que tua be-
leza e tua elegancia sejam sempre preferidas
entre as das demais' serpentes." E a primeira
estrofe e 0 estribilho da canerao; ora, eu conhe-
ero bastante a poesia para julgar que este pro-
duto de sua imagina<;:ao nada tern de barbaro,
antes hle parece de esplrito anacroontico. Alias
a lingua que falam'nao careee de do<;:ura. Os
sons sao agradaveis e as desinencias das pala-
vras aproximam-se das gregas.
- Tres dentre eles (e como lastimo que se te-
nham deixado tentar pela novidade e trocado
seu dima suave pelo nosso !), ignorando quan·
to Ihes custara de tranquilidade e felicidade 0
conhecimento de nossos costumes corrompi-
dos, e quao rapida sera a sua perda, que supo·
nho ja iniciada, estiveram em Ruao quando ali
se encontrava Carlos IX. Entreteve-se 0 rei
!=om eles, longamente; mostraram-lhes como
viviamos no cotidiano; ofereceram-Ihes gran·
des festas; ensinaram-lhes como era uma cida-
de grande. Alguem Ihes havendo perguntado
mais tarde 0 que pensavam da cidade e 0 que
ela Ihes tinha revelado, citaram tres coisas.
Esqueci a terceira, e a lamento, mas lembro-
me das duas outras. Disserarn antes de tudo
que lhes parecia estranho tao grande numero
de homens de alta estatura e barba na cara,
robustos e armados e que se achavam junto do
rei (provavelmente se referiam aos suic;os da
guarda) se sujeitassem em obedecer a uma
crianc;a e que fora mais natural se escolhessem
urn deles para 0 comando. Em segundo lugar
observaram que ha entre nos gente bern
alimentada, gozando as comodidades da vida,
enquanto metades de homcns emagrecidos,
esfaimados, miseraveis mendigam as portas
dos outros (em sua linguagem metaforica a tais
infelizes chamam "metades"); e acham ex-
traordinario que essas metades de homens
suportem -lanla injustic;a sem se revoltarem e
incendiarem as casas dos demais.
Conversei longamente com urn deles, mas
meu interprete eompreendia tao mal e se mos-
trava tao embara<;:ado com as perguntas que,
gracras it sua estupidez, nao pude obter algo
mais serio de mcu interlocutor. Tendo-the per-
guntado de onde provinha sua ascendencia
sobre os seus (era urn chefe e nossos mari-
nheiros 0 tratavam como rei), respondeu-me
que tinha 0 privilegio de marchar a [rente dos
outros quando iam para a guerra. A minha
pergunta: quantos homens 0 acompanhavam?
mostrou urn terreno como para dizer: 0 que
cabia naquele espac;o, cerca de cinco mil
homens. Indaguei ainda $C nas epocas de paz
110 MONTAIGNE
ele conservava alguma autoridade.e disse-me:
uQuando visito as aldeias que dependem de
mim, abrem-me caminhos no malO para que eu,
possa passar scm inoomodo.... Tudo isso e, em
verdade, interessante, mas, que diabo. essa
gente nao usa call;3S!

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