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o psicopata é como o gato, que não pensa no que o rato sente. Ele só pensa em comida. A vantagem do rato sobre as vítimas do psicopata é que ele sempre sabe quem é o gato.200 Hare 9. Psicopatia: da máscara da sanidade à máscara da justiça 199 Introdução A história do conceito de psicopatia tem seguido um caminho às vezes confuso e sinuoso que se reflete claramente em diferentes descrições e em desencontradas denominações recebidas ao longo dos anos. Como é fácil comprovar, Psicopatia é um termo que vem se tomando popular. É frequentemente utilizado em pareceres jurídicos e documentos legais, especialmente em perícias que interessam à área do direito penal e em alguns casos de matéria civil. No entanto, o termo ainda é muitas vezes utilizado num sentido amplo e não técnico, servindo para nomear distintas situações, nem todas adequadas às características que perforrnam o construto moderno da psicopatia. Em realidade, o termo personalidade psicopâtica, atualmente de uso corrente, foi introduzido no final do século XVIII, para designar um amplo grupo de patologias de comportamento sugestivas de psicopatologia, mas não classificáveis em qualquer outra categoria de desordem ou transtorno mental. De fato, a expressão é carregada de diferentes sentidos, dependendo do uso que fazem profissionais da área da saúde mental e do direito, sendo muito importante que se possa estabelecer o seu verdadeiro sentido e mantê-lo em todos os usos, não independentemente do contexto, mas independentemente da área de atuação de quem a utiliza. A psicopatia não é um transtorno mental da mesma ordem da esquizofrenia, do retardo ou da depressão, por exemplo. Não sem críticas, pode-se dizer que a psi- copatia não é propriamente um transtorno mental. Mais adequado parece considerar a psicopatia como um transtorno de personalidade, pois implica uma condição mais grave de desarmonia na formação da personalidade. 199 Para ampliar informações, ver: TRINDADE, J.; BEHEREGARA Y, A.; CUNEO, M. Psicopatia: a máscara da justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 200 HARE, R.D. Psicopatas no divã. Revista Veja: páginas amarelas, 1° de Abril de 2009. 160 JORGE TRINDADE Com efeito, a personalidade refere-se a uma individual característica de mode- los de pensamento, sentimento e comportamento. Nesse sentido, ela é interna, resi- de no indivíduo, mas é manifestada globalmente, e possui componentes cognitivos, interpessoais e comportamentais, de modo que descreve modelos comportamentais através do tempo e das situações. De acordo com essa compreensão, a psicopatia pode ser entendida como um particular modelo de personalidade. Aliás, a ideia de psicopatia como uma configuração da personalidade não é nova, pois a inicial descri- ção de Cleckey (1976)201 era um estudo sobre a personalidade.t" As características consideradas por Cleckley (1941, 1976 - reedição) para ser um psicopata típico foram as seguintes: • Charme superficial e boa inteligência; • Ausência de delírios e outros sinais de pensamento irracional; • Ausência de manifestações psiconeuróticas; • Falta de confiabilidade; • Insinceridade; • Falta de remorso ou vergonha; • Comportamento antissocial e inadequadamente motivado; • Julgamento pobre e dificuldade para aprender com a experiência; • Egocentricidade patológica e incapacidade para amar; • Pobreza geral nas relações afetivas; • Específica falta de insight; • Falta de responsividade na interpretação geral das relações interpessoais; • Comportamento fantástico com o uso de bebidas; • Raramente suscetível ao suicídio; • Interpessoal, trivial e pobre integração da vida sexual; • E falha para seguir planejamento vital. Contribuições das Neurocíêncías= Um importante evento, ocorrido em 1848, marcou a história da Neurociência na busca pela compreensão do comportamento violento. O incrível acidente ocorrido com Phineas Cage, na Nova Inglaterra - EUA - levantou questionamentos que, até hoje, não foram esclarecidos. Então com 25 anos, Cage trabalhava para estrada de ferro Rutland & Burling. Sua função era bastante perigosa e lhe exigia muita concen- tração, atenção e destreza física. Além de coordenar uma equipe de vários operários, Cage era responsável por preparar as detonações das rochas, para abrir caminho para uma estrada de ferro. 201CLECKLEY, H. The mask ofsanity. 5th ed. St. Louis, MO: Mosby, 1976. 202CLECKLEY, H. The mask of sanity. St. Louis, MO: Mosby, 1941. 203 TRINDADE, J.; BEHEREGARA Y, A.; CUNEO, M. Psicopatia: a máscara da justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO 161 o processo que antecedia à explosão da rocha deveria ser realizado de forma metódica. Primeiro, era feito um buraco na rocha e preenchido até a metade com pólvora, rastilho e areia. Depois, através de uma barra de ferro, a areia deveria ser calcada com uma série de pancadas, e, somente então, o rastilho era aceso. Desta forma, a explosão ocorreria dentro da rocha. No entanto, Cage acabou colocando a pólvora sem perceber que a areia não havia sido introduzida por seu ajudante. O resultado foi uma grande explosão, que fez com que uma barra de ferro invadisse sua face esquerda e atravessasse o crânio, saindo no topo da cabeça, e caindo a mais de 30 metros de distância. Para surpresa de todos, embora muito ferido e atordoado, Cage manteve-se consciente, conseguindo falar, andar e aguardar uma hora até receber atendimento médico. Pôde, também, responder racionalmente a todas as perguntas que lhe foram feitas. A recuperação de Cage impressionou sob muitos aspectos, principalmente pelo fato de o acidente não ter deixado sequelas. A recuperação física foi completa, exceto pela visão do olho esquerdo. Logo depois do acidente, Cage andava e se movimenta- va como antes; a linguagem e a fala também não apresentavam alterações. Em pouco tempo, porém, processou-se uma surpreendente mudança na personalidade de Cage. Antes descrito como alguém responsável, eficiente, capaz, educado e inteligen- te, Cage passou a demonstrar comportamento caprichoso, irreverente, impaciente, grosseiro com os colegas, e repleto de palavrões. A grande mudança na personalidade de Cage fez com que terminasse por ser dispensado do trabalho. No restante da sua vida, ele não conseguiu mais se estabele- cer em nenhum emprego, vindo a trabalhar em um circo, onde se apresentava como uma anomalia. Morreu em 21 de maio de 1861, aos 38 anos, vítima de ataques epi- lépticos. Diversas foram as consequências do caso de Cage. A dramática mudança de comportamento, ocorrida após o acidente, chamou atenção para relação entre as le- sões da região frontal do cérebro e o comportamento disfuncional, apresentado pos- teriormente. Outro aspecto importante, debatido até hoje, busca compreender como os processos cognitivos, os sentimentos e as emoções estão relacionados, assim como seus efeitos na vida das pessoas. Estudos sistemáticos têm sido desenvolvi- dos com pacientes que possuem lesões na região frontal do cérebro. Na época do acidente, sabia-se muito pouco sobre as regiões do cérebro que ha- viam sido atingidas. O lobo frontal era uma delas. Recentemente, conseguiu-se apontar, exatamente, onde a lesão ocorreu, graças às imagens guardadas no Warren Medical Museum, da Harvard Medical School, em Boston. Estudos em 3D do crânio de Cage, realizados por Hanna Damásio, revelaram que os danos foram mais extensos no hemisfério esquerdo, atingindo mais setores anteriores do que posteriores da região (Warren Medica! Museum,Harvard Medica! School, Boston) 162 JORGE TRINDADE frontal. A lesão ocorreu, principalmente, nos córtices pré-frontais na superfície ven- tral, ou orbital, interna de ambos os hemisférios. Aspectos laterais e externos foram preservados.P' No que tange à psicopatia, as importantes descobertas realizadas no caso de Cage e os subsequentesestudos de neuroimagem apontam para o envolvimento de estruturas cerebrais frontais, especialmente para o córtex orbitofrontal e para a amíg- dala, sugerindo que prejuízos na função serotoninérgica possam estar associados à ocorrência do comportamento antissocial. Com efeito, as modernas técnicas de neuroimagem estão confirmando antigas hipóteses de uma correlação entre comportamento delinquente e alterações no lobo frontal e temporal, em estruturas subcorticias como a amígdala e o hipocampo. Assim, investigações por técnicas avançadas de neuroimagem e análise com- portamental constituem um dos aspectos mais relevantes da pesquisa contemporânea sobre os psicopatas. Estudos revelaram que os psicopatas apresentam alterações de regiões cerebrais específicas que medeiam os comportamentos sociais complexos.v' Tais pesquisas estão centradas em duas fontes gerais de informação. A mais tradi- cional parte de investigações comportamentais e neurofisiológicas em psicopatas. A outra se baseia na observação de indivíduos previamente normais, que, como no caso de Cage, após sofrerem lesões em locais estratégicos do cérebro, desenvolve- ram condutas antissociais. Essas lesões compreendem doenças cerebrovasculares, traumatismos crânio-encefálicos, doenças degenerativas e tumores. A importância da condição, mais conhecida como "sociopatia adquirida", reside no fato de que a conduta antissocial emerge como mudança de personalidade em indivíduos até então normais e produtivos. O exame de neuroimagem funcional em indivíduos normais engajados na efe- tuação de julgamentos morais revela a ativação das mesmas áreas cerebrais que, quando lesadas, dão origem à condição de sociopatia adquirida. Essas áreas compre- endem o pólo e a base dos lobos frontais e a parte mais anterior dos lobos temporais, principalmente o direito. Tais resultados, embora ainda preliminares, indicam que o cérebro humano é dotado de redes neurais diretamente envolvidas com o julgamento moral (Raine, 2002).206 Estudos cada vez mais recentes mostram o envolvimento do córtex pré-frontal no comportamento antissocial, indicando redução do metabolismo em regiões fron- tais."? Além do envolvimento do lobo frontal, especialmente regiões medi ais e late- rais, também têm sido descritas reduções do metabolismo em estruturas subcorticais do sistema límbico, amígdala, hipocampo e núcleo caudado'". 204 DAMASIO, Antonio R. Em busca de Espinosa: prazer ~ dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 54. 205 DAMASIO, Antonio R. Em busca de .... , 2004, p. 54. 206 RAINE, A. SANMARTÍN, J. Violencia y Psicopatia. Barcelona: Ariel, 2002. 207 KOSSON, David S. et al. The realibility and validity ofthe Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL:YV) in Noincarcerated Adolescent Males. Psychological Assessment, Canadá, v. 14, n. 1, p. 97-109, 2002. 208 SODERSTROM, H.; SJODIN, A.; CARLSTEDT, A.; FORSMANN, A. Adult psychopathic personality with childhood-onset hyperactivity and conduct disorder: A central problem constellation in forensic psychiatry. Psychia- try Research, 121,271-280,2004. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO .I I I 'I I 163 Localizada na profundidade de cada lobo temporal anterior, a amígdala funcio- na de modo íntimo com o hipotálamo. Está envolvida na produção de uma resposta ao medo e a outras emoções negativas, na qualidade de centro identificador do pe- rigo. Nos seres humanos, a lesão da amígdala provoca a perda do sentido afetivo da percepção de uma informação externa, como a visão de uma pessoa conhecida ou querida. Ele sabe quem está vendo, mas não sabe se gosta ou não da pessoa que vê. A amígdala compõe a região límbica que exerce um papel transcendente na agressi- vidade. Raine e Sanmartín.s" estudando uma amostra de criminosos impulsivos, de- monstrou que o córtex pré-frontal dos participantes apresentava taxas de atividade menores do que das pessoas normais, e essa linha de investigação tem sido estendida para indivíduos com Transtorno de Personalidade Antissocial. (TPAS). Do ponto de vista neuroanatômico, as pesquisas com imagem indicaram uma ampliação do corpo caloso,"? uma redução do volume do hipocampo posterior,"! uma exagerada assimetria direito-esquerdo no hipocampo anterior.?" e reduzido vo- lume cortical do lobo pré-frontal.v' Pesquisas recentes sugerem, ainda, um défice na ativação do hemisfério es- querdo de indivíduos psicopatas, indicando que essas pessoas tendem a cometer mais erros e a responder de forma mais lenta a tarefas apresentadas do que indivíduos não psicopatas. Ainda não são claros, no entanto, os mecanismos que levam a isso.?" A região frontal do cérebro é composta de diversas áreas, com funções espe- cíficas, que, no entanto, não trabalham sozinhas, sendo interdependentes. A região frontal é responsável por diversos comportamentos associados às relações sociais, ao autocontrole, ao julgamento, ao planejamento e ao equilíbrio entre necessidades pessoais e necessidades sociais.?" Pacientes com lesões nesta região apresentam prejuízos significativos em sua capacidade de decisão, execução de tarefas, capacidade de planejamento para o mo- mento presente e questões futuras.?" Embora tais lesões não necessariamente estejam associadas a comportamento violento, muitos trabalhos têm estudado a relação entre certas áreas cerebrais - especialmente o lobo frontal- e homicídios."? 209 RAINE, A.; SANMARTÍN, J Violencia ..., 2002. 210 RAINE, A. LENCZ, T., TAYLOR, K. HELLIGE, J. B., BIHRLE, S. LACASSE, L., et aI. Corpus callousum abnormalities in psychopathic antisocial individuais. Archives of General Psychiatry, 60, 1134-1142,2003. 211 LAAKSO, M. P., VAURIO, O., KOIVISTO, E., SAVOLAINEN, L., ERONEN, M. & ARONEN, H. J. Psy- chopathy and the posterior hippocampus. Behavioural Brain Research, 118, 187-193,2001. 212 RAINE, A. SANMARTÍN, 1. Violencia y Psicopatia. Ariel. 2 ed. Barcelona. 2002. 213 YANG, Y., RAINE, A., LENCZ, T., LACAS SE, L. & COLLETTI, P. Volume reduction in prefrontal gray matter in unsuccessful criminal psychopaths. Biological Psychiatry, 57,1109-1116,2005. 214 KOSSON, David S. et aloThe realibility and validity of the Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL:YV) in Noincarcerated Adolescent Males. Psychological Assessment, Canadá, v. 14, n. 1, p. 97-109, 2002. 215 SABBATINI, Renato M.E. O cérebro do psicopata. Disponivel em: http://www.cerebromente.org.br/n07/doen- cas/index_p.htrnl. Acesso em: 15 jan. 2010. 216 DAMAS 10, Antonio R. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.p 151. 217 DEL-PINO, Viviane; WERLANG, Blanca, S. G. Homicídio e lobo frontal: revisão da literatura. Revista Intera- ção em Psicologia, Curitiba, v. 1, n. 10, p. 127-137. jan./jun. 2006. 164 JORGE TRINDADE o cérebro humano possui sistemas dedicados a dimensões pessoais e sociais do raciocínio. Entre as funções especificamente humanas, encontra-se a capacidade de elaborar planos, em um ambiente social complexo, a responsabilidade perante si mesmo e aos demais, a comportar-se segundo princípios éticos e a capacidade de organizar-se, sob o controle do livre-arbftrio.?" Por muito tempo, atribuiu-se a causa do défice de planejamento e tomada de decisões, apresentadas por tais pacientes, a perturbações cognitivas, de aprendizagem ou memória. Segundo Damásio.?" pacientes com tais lesões, entretanto, são capazes de raciocinar e resolver problemas hipotéticos complexos, demonstrando que essas funções estão preservadas. Em situações reais, porém, eles não conseguem colocar em ação o que demonstram ter capacidade para resolver no laboratório. A partir desta observação, Damásio-" formulou a "hipótese dos marcadores somáticos", em que o défice essencial estaria ligado a uma perturbação da emoção. Quando se enfrentam determinadas situações, a emoção e o sentimento desem-penham papel auxiliar, porém, fundamental, no raciocínio. À medida se que acumu- lam vivências, o cérebro vai armazenando informações acerca dessas experiências. Armazena-se uma representação mental, tanto das opções de ação quanto de seus possíveis resultados. Registram-se, também, emoções e sentimentos que acompanha- ram as ações do passado. Pessoas com lesões frontais, no entanto, não conseguem ativar memórias emocionais que auxiliam a tomada de uma decisão eficiente, entre diversas opções existentes. Quando se está diante de uma situação que exige fazer uma escolha, diversos sinais são produzidos e captados, de forma consciente ou não, entre eles, sinais emo- cionais. Esses sinais emocionais aparecem geralmente antes que o próprio raciocínio tenha aconselhado claramente a não fazer uma determinada escolha. É claro que o sinal emocional também pode produzir o contrário de um alarme e levar o indivíduo a fazer uma determinada escolha ainda mais rapidamente com base no fato de que, no passado, uma escolha deste mesmo tipo o levou a bom termo. Embora a psicopatia seja o resultado da interação de distintos fatores biológi- cos e sociais, o impacto da ação dos psicopatas sobre o meio social foi responsável pela ideia de ofensa às normas sociais e jurídicas que lhe valeu a denominação de sociopatas. De fato, psicopatas cometem um grande número de delitos violentos que desconsertam a humanidade. A realidade é que os psicopatas costumam ser violentos, e muitos delinquentes violentos são psicopatas (Hare e Mcpherson, 1984).221 Pela crueldade com que agem e pela forma como capturam suas vítimas como se fossem verdadeiras presas, são percebidos como predadores, destrutivos e responsáveis por uma grande parcela dos delitos graves que atingem medularmente as relações sociais. 218GARRIDO, Vicente. o Psicopata: um camaleão na sociedade atual. São Paulo: Paulinas, 2005. 219 DAMASIO, A. R. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 220Idem, p. 155. 221 HARE; McPHERSON, L. E. Violent and aggressive behavior by criminal psychopaths. International Joumal of Law and Psychiatry, 7, 35-50, 1984. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO 165 ., .r \.~. ," .~ 'I,. .. I' " 'I' ;. =* 166 JORGE TRINDADE o psicopata segue uma escala de valores que não coincide com os valores so- ciais. Agindo por critério próprio, revela uma forma particular de valoração. Não é capaz de avaliar o custo de seu desejo egoísta. Para ele, o importante é satisfazer esse desejo a qualquer preço, "custe o que custar". Bem entendido, custe o que custar aos outros, desde que ele nada tenha de pagar ou, pelo menos, que saia em desmedida vantagem. O psicopata é um indivíduo egoísta, impulsivo, agressivo, sem sentimentos de culpa ou remorso em relação a comportamentos que seriam estarrecedores para os modelos da sociedade. Trata-se de um sujeito impulsivo e agressivo, desprovido de sentimento de vergonha, de remorso e de consideração pelos outros. Na realidade, a psicopatia é um transtorno no qual existe uma fundamental incapacidade de amar ou de estabelecer uma relação de confiança. Há falta de insight, de habilidade para controlar impulsos ou para postergar gratificações. Falta compromisso para o cum- primento das obrigações, mentira patológica, procura de emoções, julgamento pobre, desconsideração para as convenções sociais e comportamento antissocial são traços de funcionamento do sujeito psicopata. Outras características do psicopata costumam ser a brutalidade e a subtaneidade da manifestação agressiva, que pode ser comparada a uma explosão, a um curto- -circuito, e a frieza aparente como se o sujeito estivesse desprovido de emoção e se relacionasse com o objeto através da sua incorporação ou da sua destruição: "se não posso obtê-Io, vou destruí-lo" (Ey, 1978).222 Seu comportamento é planejado, instrumental e utilitário. Psicopatas agem como se estivessem realizando "um serviço" e poderão ser considerados bem-suce- didos quando e enquanto suas metas coincidirem com as do grupo, não pelo sentido de companheirismo, mas em função de interesses. Essa coincidência de propósitos poderá levar o psicopata, em momentos de êxtase coletivo, a ser idolatrado e perce- bido como destemido herói. Também por isso, psicopatas não se sentem responsáveis por seus atos. Sua defesa é aloplástica: colocam sistematicamente a culpa de seus erros nos outros. Por isso, não conseguem aprender com a experiência e constroem uma vida pobre porque repetem os mesmos comportamentos, uma vez que nada há a consertar ou aprimorar. Isso lhes retira qualquer dimensão de futuro. São imediatistas, razão pela qual não conseguem sustentar planos nem a longo nem a médio prazo. Confundem o futuro com o presente. Para o psicopata, o sentimento de solidariedade é rigorosamente desconhecido, e o outro é despido de alteridade, no sentido de que ele não o percebe como pessoa, sujeito de sentimentos diferentes dos seus, que merecem e devem ser respeitados. O outro somente faz sentido como algo a ser usado, como coisa ou objeto. São imediatistas e presenteístas. Por mais que busquem emoções fortes, e a ro- tina lhes estresse, psicopatas repetem comportamentos antissocias e também por isso são altamente predispostos à reincidência. Parece que a literatura sobre o tema chegou a um tempo de consenso sobre as principais características da psicopatia que giram em torno de três eixos da persona- lidade, a saber: 222EY, H.; BERNARD, P.; BRISSET, C. Manual de Psiquiatria. São Paulo: Masson do Brasil, 1960, p. 368. a) Relacionamento com os outros: No eixo do relacionamento interpessoal, costumam ser arrogantes, presunçosos, egoístas, dominantes, insensíveis, su- perficiais e manipuladores. b) Afetividade: No âmbito da efetividade, são incapazes de estabelecer víncu- los afetivos profundos e duradouros com os outros; Não possuem empatia, remorso ou sentimento de culpa. c) Comportamento: Na parte relacionada com o comportamento, são agressi- vos, impulsivos, irresponsáveis e violadores das convenções e das leis, agin- do com desrespeito pelos direitos dos outros. É frequente haver alguma sobreposição confusa entre psicopatia, comportamen- to antissocial e criminalidade. Na realidade, nem todos os psicopatas são obrigatoria- mente criminosos. Porém, quando o são, distinguem-se qualitativamente dos outros tipos de delinquentes. São mais frios, menos reativos, mais impulsivos e violentos, mas, principalmente, depredadores no sentido de que veem os outros como presas emocionais, físicas ou econômicas. Nesse sentido, observa-se que transtorno antissocial de personalidade, psicopa- tia, sociopatia e antissocialidade são expressões às vezes intercambiáveis, apesar das diferenças entre elas. O conceito de psicopatia, embora se sobreponha ao de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), com ele não se confunde tecnicamente. De acor- do com o Manual da Escala Hare, em versão brasileira de Morana (2004), os sujei- tos psicopatas preenchem os critérios para Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), mas nem todos os indivíduos com Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) preenchem os critérios para psicopatia. O construto de psicopatia, como avaliado pelo PCL-R,223é heterogêneo na co- bertura dos traços da personalidade desadaptada. Os dois fatores comumente iden- tificados com o PCL- R têm sido úteis na distinção entre os dois componentes da psicopatia, sendo possível que a substancial variança compartida pelos dois fatores represente as principais características do transtorno: o comportamento criminal e os traços afetivos e interpessoais de personalidade. O comportamento antissocial pode ser dividido em três grandes categorias: a) em termos de diagnóstico psicológico, o Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) e o Transtorno de Conduta(TC); b) em termos de violação de normas sociais e de normas legais; c) em termos de comportamentos agressivos. A essas categorias ainda se podem acrescentar dois outros aspectos: agressão e delinquência. O Transtorno de Personalidade Antissocial, tal como se encontra descrito na quarta edição do DSM-IV, está estritamente relacionado com o fator comportamental, mas não com o emocional, do PCL-R. Isso indica que os critérios para o diagnóstico do TPAS estão mais voltados para aspectos comportamentais, como, por exemplo, condutas agressivas em crianças e adultos e inobservância às normas em geral. O TPAS vem sendo relacionado com inúmeros fatores de risco, como condições do nas- 223PCL-R - Psychopathy Checklist-Revised. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO 167 cimento, comprometimento mental, pobreza, abuso físico e social, desestruturação familiar, má-influência de amigos e companheiros (Lykken, 2006).224 Em populações forenses, a prevalência do Transtorno de Personalidade Antissocial (TASP) é cerca de duas ou três vezes mais alta que a prevalência de psicopatia, como medida pelo PCL-R. O resultado é uma assimétrica associação entre PCL-R e TPAS, pois muitos criminosos com elevado escore no PCL-R preenchem os critério para TPAS, mas muitos desses com TPAS não perfazem altos escores no PCL-R. Muitas vezes a expressão psicopatia vem associada à ideia de serial killer, e psicopatas são mais severamente tratados pelos sistemas judiciais e sanitários, pre- viamente julgados na medida que estão identificados a criminosos cruéis, sem com- paixão e sem recuperação. Psicopatas constroem uma carreira criminosa marcada por crimes de toda a sor- te, principalmente crimes de natureza violenta e agressiva. O melhor conhecimento acerca do funcionamento e da estruturação psicopática pode ser uma importante con- tribuição na predição de futuros comportamentos violentos (Harris, Rice e Quinsey, 1993).225 Estudos mostraram que psicopatas reincidiram cerca de cinco vezes mais em crimes violentos do que não psicopatas em cinco anos de sua liberdade da prisão (Serin e Amos, 1995).226 Como já salientado, um potencial mediador entre psicopatia e violência é um nível preservado de inteligência. Psicopatas mais equipados pela inteligência/estão menos inclinados para recorrer ao comportamento violento, pois, na realidade, apre- sentam recursos alternativos subsidiados outros instrumentos cognitivos. Psicopatas menos inteligentes parecem utilizar mais mecanismos violentos para compensar um repertório empobrecido de habilidades. Estes também são mais suscetíveis a apresen- tarem um "mau resultado", porque, com pior capacidade de planejamento e de pre- meditação dos comportamentos antissociais, tomam decisões mais comprometidas e mais instrumentais do que psicopatas com melhor inteligência. Não raro, essas formas podem vir disfarçadas por um comportamento heroico (Lykken, 1995),227 uma espécie de liderança arrojada e destemida. Há que se recordar que Cleckley, em A Máscara da Insanidade (1941),228 definiu psicopatas não crimi- nosos como uma manifestação subclínica e uma expressão moderada do transtorno global. Dessa forma, partiu da premissa de que psicopatas não criminosos represen- tam uma espécie de psicopatia "menor", de reduzida severidade, de menor magnitude e frequência, sendo essa uma diferença mais de grau do que propriamente de tipo ou natureza. O psicopata bem-sucedido pode estar adaptado em algumas esferas, mas não em outros importantes domínios da vida, razão pela qual a conceitualização de psi- 224LYKKEN, D. T. Psychopatic Personality. The Sope ofthe Problem. In: PATRICK, C. J. Handbook of Psychopa- thy. New York - London: The Guilford Press, 2006. 225HARRIS, G. T.; RICE, M. E.; QUINSEY, V. L. Violent recidivism of mentaly disordered offenders: The develop- ment of a statisical prediction instrument. Criminal Justice and Behavior, 20,315-335, 1993. 226SERIN, R. c.; AMOS, N. L. The role of psychopathy in the assessment of dangerousness. International Journal of Law and Psychiatry, 18,231-238, 1995. 227 LIKKEN, D. T. The antisocial personalities. Mahwah, NJ: Erlbaum, 1995. 228CLECKLEY, H. The mask of sanity, St. Louis, MO: Mosby, 1941. 168 JORGE TRINDADE copatia em sujeitos não criminosos ainda permanece uma tarefa muito difícil. Parece mesmo que as manifestações adaptativas e desadaptativas constituem dois lados de uma mesma moeda. Psicopatas não criminosos podem também apresentar uma forma de tática, intimidação e autopromoção, mentira e manipulação, através das quais eles podem tirar vantagem sem um necessário confronto com a polícia ou com a justiça. Um teste para medir Psicopatia A partir das evidências entre crime e psicopatia, principalmente crimes violen- tos, Hare desenvolveu, em 1980, o PCL (Psychopathy Checklist) e, mais tarde, em 1991, o PCL-R (Psychopathy Checklist-Revisedi, os quais permitiram estabelecer relações consistentes acerca dessa relação. No momento, parece haver consenso de que o PCL-R é o mais adequado ins- trumento, sob a forma de escala, para avaliar psicopatia e identificar fatores de risco de violência. Com demonstrada confiabilidade, tem sido adotado em diversos países como instrumento de eleição para a pesquisa e para o estudo clínico da psicopatia, como escala de predição de recidivismo, violência e intervenção terapêutica. A escala é organizada em vinte (20) itens: Itens e Fatores da Escala de Hare Fator 1 Fator 2 1· loquacidade e charme superficial 3· necessidade de estimulação/tendência ao tédio 2· superestima 9· estilo de vida parasitário 4· mentira patológica 10· descontroles comporta mentais 5· vigarice/manipulação 12· transtornos de conduta na infância 6· ausência de remorso ou culpa 13· ausência de metas realistas e de longo prazo 7· insensibilidade afetivo·emocional 14· impulsividade 8· indiferença/talta de empatia 15· irresponsabilidade 16· incapacidade de aceitar responsabilidade pelos próprios atos 18· delinquência juvenil 11· promiscuidade sexual 19· revogação da liberdade condicional 17- muitas relações sexuais de curta duração 20· versatilidade criminal PCL-R = Psychopathy Checklist-Revised, Por outro lado, como identificar adolescentes com traços psicopáticos constitui importante tarefa para o entendimento dos fatores que contribuem para o desenvol- vimento da psicopatia do sujeito adulto, foi constituída a Escala Hare-Versão Jovem (Psychopathy Checklist: Youth Version - PCL: YV), destinada a avaliar indicadores psi- copáticos em adolescentes masculinos e femininos, com idade entre 12 e 18 anos. Segundo Morana (2004),229 a Escala Hare tem se mostrado muito eficaz na iden- tificação da condição de psicopatia, sendo unanimemente considerado o instrumento mais fidedigno para identificar psciopatas, principalmente no contexto forense, e ve- rificar, além de comportamentos, os traços de personalidade prototípicos de psico- patia. 229MORANA, H. C. P. Disponível em www.casadopsicologo.com.br. Acessado em 02.07.2004. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO :~ '., I. I' 'I' 1" I" I,,., " 'I, 169 Objetivando operacionalizar o constructo psicopatia, essa escala foi desenvolvi- da a partir das dezesseis características que definem o perfil do psicopata de Cleckley. Dela constam vinte itens, que são pontuados conforme a adaptação do indivíduo a determinado traço, recorrendo a um instrumento do tipo entrevista semiestruturada. Cada item da escala é pontuado de acordo com uma escala numérica ordinal de três pontos (O, 1 ou 2), tendo em vista o grau em que o comportamento condiz com as descrições do item. Assim, cada um dos itens do PCL- R é pontuado da seguinte forma: O para "Não"; 1 para "TalvezlEm alguns aspectos"; e 2 para "Sim". Uma elevada pontuação no PCL- R sugere probabilidade elevada de reincidir na conduta criminosa, sendoque o ponto de corte para identificar psicopatia é tradicionalmente trinta pontos. Índices menores, entre quinze e vinte e nove, indicam "traços" sugesti- vos de personalidade psicopática. A pontuação total pode variar de O a 40: as pontuações do Fator 1, de O a 16; e as pontuações do Fator 2, de O a 18, sendo os demais pontos referentes aos itens de promiscuidade sexual, muitas relações conjugais de curta duração e versatilidade criminal. Trata-se, assim, de um checklist de vinte itens, em que um resultado acima de trinta pontos traduziria um psicopata típico. Como se percebe, o levantamento da escala PCL-R baseia-se em dois fatores estruturais. O Fator 1 relaciona-se aos traços afetivos e interpessoais do examinando e é definido por características dos traços de personalidade que compõem o perfil psi- copático, incluindo superficialidade, falsidade, insensibilidade/crueldade, ausência de afeto, culpa, remorso ou empatia entre outros. O Fator 2 analisa o aspecto compor- tamental de psicopatia e é definido por comportamentos associados à instabilidade condutual, à impulsividade e ao estilo de vida antissocial. Nesse aspecto, o Transtorno de Personalidade Antissocial estaria mais relacionado ao Fator 2 do PCL-R. Na elevação do Fator 1 sobre o Fator 2, pressupõe-se que a reabilitação do su- jeito será mais problemática, já que este fator mede os traços dimensionais da perso- nalidade relacionados com o comprometimento de caráter. O inverso seria verdadeiro para o Fator 2, uma vez que pontuações elevadas nesse fator revelariam compor- tamento antissocial derivado de traços como instabilidade e impulsividade que, de alguma forma, seriam acessíveis a intervenções medicamentosas. Como no Brasil não há pena perpétua nem legislação específica para psicopa- tas, o PCL-R seria importante para estimar o risco de reincidência dos psicopatas. Nesse aspecto, estabeleceu-se o ponto de corte 23 (vinte e três), tendo sido verificado que, a partir desse ponto, já se manifestam as características prototípicas da psicopa- tia. Contudo, independente do valor do ponto de corte atribuído, um escore elevado do PCL-R indica maior probabilidade de o sujeito reincidir na atividade criminosa. Na busca de maior segurança, e para uma análise mais individualizada da perso- nalidade do sujeito, a utilização do PCL-R pode ser associada à prova de Rorschach, quando, então, haveria maior credibilidade, não somente no tocante à reabilitação, mas também em relação às perspectivas de tratamento e reincidência criminal. O Teste de Rorschach é de difícil aplicação e exige do especialista formação especializada. Desde a sua aplicação até a elaboração do laudo final são necessárias várias horas de trabalho, prolongado esforço de concentração e anos de supervisão. 170 JORGE TRINDADE A Prova de Rorschach foi elaborada por Hermann Rorschach, em 1921. É apli- cada individualmente e consiste em dez lâminas com borrões de tinta que obedecem a características específicas quanto à proporção, angularidade, luminosidade, equilí- brio espacial, cores e pregnância formal. As características assim elaboradas visam a proporcionar a rápida associação, intencional ou involuntária, do sujeito periciado com imagens mentais, as quais integram um complexo de representações que envol- vem ideias ou afetos. O convite à contemplação e à associação aos borrões impressos nas lâminas é feito por meio da apresentação unitária de cada prancha. Solicita-se ao avaliando que verbalize com o que acredita serem parecidos os borrões de tinta. Ativam-se, assim, frente às manchas, hipóteses de respostas, estimulando-se as funções psíquicas da percepção, simbolização, linguagem, crítica e atenção. As respostas ao Rorschach revelam o status da representação da realidade em cada indivíduo, avaliando a dinâmica de personalidade particular de cada pessoa, à medida que evidencia dados a respeito do desenvolvimento psíquico, das funções e dos sistemas cerebrais, e dos recursos intelectuais envolvidos na construção das diferentes imagens. Sua finalidade não é atribuir um diagnóstico psiquiátrico, mas contextualizar os distúrbios psíquicos, compreender o valor e o significado de um sintoma clínico e orientar para o tratamento mais adequado. O PCL-R e a Prova de Rorschach avaliam diferentes dimensões da personalida- de e, dessa maneira, podem ser complementares. A escala de Hare, tal como recentemente validada no Brasil por Morana (2004)230, é de grande valia para psicólogos e psiquiatras forenses no diagnóstico e avaliação da psicopatia, constituindo uma ajuda técnica para que magistrados possam adotar medidas legais com mais segurança em suas decisões. Critérios de probabilidade de reincidência criminal podem ser evidenciados por meio da aplicação de PCL-R à população carcerária e, a partir daí, possibilitar que sujeitos com menor potencial recidivo não sejam prejudicados em seu processo de re- abilitação pela convivência e influência perniciosas com indivíduos que apresentam personalidade psicopática. Assim sendo, no âmbito forense, a escala de Hare apresenta-se como um impor- tante elemento de seleção, inclusive para embasar decisões relacionadas à concessão de benefícios penitenciários e evitar resoluções que coloquem em risco a integridade física dos próprios encarcerados, dos funcionários e da sociedade. Por seu poder preditivo de violência e de recidividade, o PCL-R reveste-se de grande valor para o estabelecimento de subgrupos de indivíduos violentos, permitin- do não só um maior aprofundamento da pesquisa, quanto um manejo mais adequado desses indivíduos por parte do sistema jurídico penal. Tratamento Até agora se acredita que não existe evidência de que os tratamentos aplicados a psicopatas tenham mostrado eficiência real na redução da violência ou da crimina- 230MORANA, H. C. P. Disponível em www.casadopsicologo.com.br. Acessado em 02.07.2004. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO 171 I, r , " <'" lidade. De fato, alguns tipos de tratamentos que são efetivos para outros criminosos são até mesmo contraindicados para psicopatas. Conforme já assinalado, a psicopatia representa uma ameaça para o outro, para a família, para a sociedade, para a justiça e para a democracia, e até o presente mo- mento a ciência não dispõe de um tratamento ótimo para controlar os psicopatas, pre- valecendo a crença generalizada de que não há nada que se possa fazer para resolver definitivamente o problema. Salekin, Rogers e Sewe1l231já demonstraram que psicopatas desestruturam as próprias instituições de tratamento, burlam as normas de disciplina contribuindo para aumentar a fragilidade do sistema, e instalam um ambiente negativo onde quer que se encontrem. Para dar um breve panorama sobre a crença ou descrença acerca da eficácia do tratamento de psicopatas, pode-se dizer que a década de setenta foi marcada por um grande ceticismo, prevalecendo a ideia de que "nada funciona" (Logan, 1991).232 Porém, estudos mais recentes estão permitindo uma lenta e progressiva mudança, e o pensamento vem se deslocando da máxima niilista de que "nada funciona" para uma pergunta mais realista: "o que e quanto funciona". Com isso, pretende-se pôr em questão não somente da eficácia do tratamento, mas também a relação entre custo e benefício do tratamento. Sem dúvida, a psicopatia se enquadra naquelas situações difíceis de tratar, e por isso diminuir os seus efeitos negativos já representa algum ganho social importante. Outro aspecto que assume especial relevo no que diz respeito ao tratamento de psicopatas é que algumas abordagens podem agravar a condição que se pretende me- lhorar. Determinados programas podem fornecer ao psicopata um aprimoramento na sua técnica de manipular, iludir, enganar e aproveitar-se dos outros (Hare, 1998),233 gerando mais malefício do que benefício. De tudo, sabe-se que análises comparativas entreindivíduos tratados e não tra- tados sugerem que estes reincidem menos, sendo a terapia cognitvivo-comportamen- tal a que parece oferecer resultados melhores. Abordagens pouco estruturadas, não diretivas, de apoio ou de compreensão psicodinâmica são menos indicadas do que aquelas que integram elementos de reestruturação cognitiva, solução de problemas, controle do comportamento e aprendizagem de habilidades sociais. De igual modo, medidas puramente punitivas e dissuasórias têm mostrado pou- co efeito sobre a reincidência e, às vezes, resultado até mesmo negativo (Redondo e outros, 1999).234 A questão que sobressai novamente é que psicopatas não se intimi- dam com a severidade do castigo nem aprendem com a experiência. 231SALEKIN, R. T.; ROGERS, R.; SEWELL, K. W. A review and meta-analysis ofthe Psychopathy 1996. 232LOGAN, C. H; GAES, G.; HARER, M.; INNES, C.A.; KARACKI, L.; SA YLOR, W.G. Can meta-ana1ysis save correctiona1 rehabilitation? Washington DC, Federal Bureau of Prisions. 1991. SEL, F. Treatment and management of psychopaths. In. DJ. Cooke, A.e.Forth;R.D.Hare (Eds.), Psycopathy: The ory, research, and implications for society (p. 303-354). Dordrecht, The Netherlands: Kluwer, 1998. 233HARE, R. D. Without conscience: The disturbing. World of the psychophats among us. New Cork: Guilford Presse, 1998. 234REDONDO, S; SÁNCHEZ-MECA, J. B. GARRIDO, V. The influence of treatment programmes osn the recidi- vism of juvenile as adult offenders: An Europe meta-analytic review. In: Psychology, Crime and Law, 5, p. 251-278, 1999. 172 JORGE TRINDADE Para os psicopatas, essas considerações podem se estender ao sistema peniten- ciário e às chamadas penas alternativas. Para eles vigora a necessidade de proteção social mais diretamente relacionada com a justiça criminal. Um aspecto interessante é que, por condições biopsicossociais, a atividade dos psicopatas entra em remissão em torno dos quarenta e cinco anos, o que é considera- do por alguns como uma "idade avançada" (Hare, 1984).235 Avançada no sentido de que, até atingirem essa idade, os psicopatas já produziram uma gama infinita de com- portamentos devastadores, quer dizer, provocaram muita destruição e construíram uma verdadeira carreira criminal, que, às vezes, ostentam como galardão e status, modelos a serem seguidos pelos outros. Olhando para os elementos de natureza puramente biológica que predispõem o sujeito psicopata, o tratamento farrnacológico poderia se afigurar como uma alter- nativa promissora. Morana (2003)236 refere que estudos de neuropsicofarmacologia sugerem que a intervenção psicofarmacológica pode ser positiva para o tratamento dos transtornos da personalidade. No entanto, na falta de drogas específicas, destaca-se o uso de substâncias capa- zes de inibir o comportamento impulsivo e agressivo, que podem estar relacionados com uma baixa atividade serotoninérgica. Por outro lado, os sedativos são contra- indicados para as pessoas de personalidade psicopática, sendo que os benzodiazepí- nicos podem desencadear comportamento agressivo e descontrolado. Os inibidores da recaptação da serotonina (fluoxetina e congêneres) parecem ser os que oferecem melhores resultados. Mais relacionado com os delitos sexuais, os antagonistas da testosterona tam- bém acenam promissoramente (Hall, 1995, p. 802-809).237 Entretanto, o uso de fár- macos deve, sempre que possível, ser associado com alguma forma de psicoterapia, sendo, a de marco referencial cognitvo-comportamental aquela que oferece melhores resultados agregados a sujeitos psicopatas. Já salientamos, mas desejamos sublinhar, que os melhores programas para psi- copatas são os modelos planejados, bem estruturados e diretivos, que deixam pou- ca margem para manipulações. Programas terapêuticos flexíveis e tolerantes podem causar efeitos paradoxais e até mesmo resultados francamente negativos. Com efeito, psicopatas necessitam de uma supervisão rigorosa e intensiva. Qualquer falha no sistema de acompanhamento pode trazer resultados imprevisíveis. Isso exige programas bem delineados, fortemente estruturados, com etapas muito claras que, se descumpridas, devem fazer o sujeito retroceder a um regime de maior vigilância. Os modelos cognitivos, conforme já referido, são os que mais enquadram o psicopata e podem promover uma reestruturação no seu modo de processar infor- mações. Psicopatas não aderem voluntariamente a nenhum tipo de tratamento e, se e quando o fazem, é apenas para obter benefícios e vantagens secundárias. 235HARE, R. D.; Me PHERSON, L. E. Violent and aggressive behavior by criminal psychopaths. International Journal of Law and Psychiatry, 7, 35-50, 1984. 236MORANA, H. C. P. Identificação do Ponto de Corte para a Escala PCL-R, 2003. 237HALL, G. C. Sexual offender recidivism revisited: A meta-analysis of recent treatment studies. In: Joumal of Consulting and Clinical Psycology, 63, 5, 1995, p. 802-809. Manual de Psicologia Jurídica PARA OPERADORES DO DIREITO 173 , :~ • ""I: • "I: ,~ " I~,- I> • ~~ ., " t'\ Psicopatia e imputabilidade Psicopatas são sujeitos que não internalizaram a noção de lei, transgressão e culpa. Na realidade, os psicopatas sentem-se "além" das normas, quando, na verdade, são sujeitos "fora" e "aquém" do mundo da cultura. Pensar a psicopatia como uma incapacidade de internalizar valores e uma in- sujeição à norma aponta menos para uma doença nos moldes médico e psicológico e mais para uma constelação de caráter com precárias condições para realizar aqui- sições éticas. Assim como o conceito de delinquência juvenil varia sob a ótica de diferentes personagens, o conceito de psicopatia oscila de um prisma ao outro. Para o jurista, o psicopata é o transgressor da lei, autor do delito grave, que exige uma condenação severa. Para o sociólogo, o psicopata é um desadaptado social crônico em relação ao grupo. Para o filósofo, um ser antiético e sem valores. Para o psicólogo, o psicopata significa uma pessoa cujos traços de personalidade denotam prejuízos interpessoais, afetivos e condutuais. Para o homem comum, o psicopata pode representar tanto um modelo de homem destemido, quanto um herói a ser admirado e seguido, ou simples- mente um "bandido sem solução". Mesmo que a psicopatia seja considerada uma patologia social (pelo sociólogo), ética (pelo filósofo), de personalidade (pelo psicólogo), educacional (pelo professor), do ponto de vista médico (psiquiátrico) ela não parece configurar uma doença no sentido clássico. Nesse aspecto, há uma tendência universal de considerar psicopatas capazes de entender o caráter lícito ou ilícito dos atos que pratica e de dirigir suas ações (Trindade, J.; Beheregaray, A.; Cuneo, M., 2009).238 Em que pese a existência de posicionarnento jurisprudencial'" referindo a po- sição de que os psicopatas apresentam capacidade penal diminuída, imaginar a psi- copatia como uma doença mental clássica e incapacitante sob o aspecto cognitivo e volitivo, fazendo com que, sob o aspecto jurídico, o psicopata seja isento de pena, é o mesmo que privilegiar a sua conduta delitiva perpetrada ao longo da vida e validar seus atos. Por fim, caberia ilustrar a questão da psicopatia e imputabilidade, trazendo o posicionamento de Hare (2009).240 Opinião de Robert Hare: O senhor acredita, do ponto de vista jurídiCO, que os psicopatas são totalmente responsáveis por seus atos? "Eu diria que a resposta é sim". 238Para ampliar informações, ver: TRINDADE, J.; BEHEREGARA Y, A.; CUNEO, M. Psicopatia: a máscara da justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. 239 Personalidade psicopática não significa, necessariamente, que o agente sofre de moléstia mental, embora o colo- que na região fronteiriça de transição entre o psiquismo normal e as psicoses funcionais. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Criminal - Relator Des. Adriano Marrey - TR 496/304. 240HARE,R. D. Revista Veja: páginas amarelas, 10 de Abril de 2009. 174 JORGE TRINDADE
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