Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
RENÉ LOURAU NA UERJ 1993 ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Hesio Cordeiro Vice-Reitor José.Alexandre.Assed Sub- Reitora de Graduação Sandra Maria Correia de Sá Carneiro Sub-Reitor de Pós Graduação e Pesquisa Roberto ]osé Á vila Cavalcanti Bezerra Sub-Reitor para Assu ntos Comunitários Ricardo Vieiralves de Castro Diretora do Departamento de Extensão Ellen Márcia Peres Coordenadora de Programas de Extensão Liany Bonilla da Silveira Comino Coordenador de Interação Comunitária João Costa Batista Coordenador de Atividades de Extensão no Interior João José.Abrahão Covarnez Coordenadora da Divisão de Apoio a Projetos e Programas de Extensão Lúcia Maia APRESENTAÇÃO No período de 26 a 30 de abril de 1993, a convite do Departamento de Psicologia Social e Institucional/Instituto de Psicologia, a UERJ recebeu René Lourau, certamente o mais conhecido "praticante”- como ele mesmo gosta de se autonomear, cônscio e crítico das conotações religiosas do termo - da Análise Institucional. Durante estes cinco dias, o curso por ele ministrado e que transcrevemos neste volume, intitulado Análise Institucional e Práticas de Pesquisa, reuniu mais de 150 pessoas, evidenciando mais uma vez a ressonância que o Institucionalismo possui no Rio de Janeiro, fenômeno que o próprio Lourau analisa em seu, agora, texto. Acerca do mesmo, vale uma observação. Tendo sido o evento cuidadosamente gravado, procurou-se ao máximo preservar o tom coloquial das exposições de Lourau e dos debates com os presentes, eliminando apenas as eventualmente agradáveis redundâncias da fala que se transformam em inevitáveis aborrecimentos na escrita. Sobre o acontecimento-curso, algumas considerações mais detalhadas. Julgamos que a universidade pública deva fomentar o internacionalismo do pensamento. Para tanto, é desejável e mesmo indispensável que possa receber aqueles convidados estrangeiros cuja produção seja capaz de expandir, fecundar e confrontar-se com a nossa. Por isso mesmo, o curso foi oferecido gratuitamente a rodos os interessados e integralmente traduzido. Aos que supostamente se paralisam ante as eventuais dificuldades para organizar um encontro deste tipo, levantando as cansadas alegações de impossibilidades de trabalhar com grandes grupos heterogêneos ou de encontrar tradutores habilitados, respondemos com este curso e a presente publicação. A divulgação por folders ou pelo velho telefone multiplicou presenças e entusiasmos. Quatro tradutores não especializados tornaram palestras e debates acessíveis a rodos. A presente publicação dá continuidade a este movimento: análise generalizada e coletiva das instituições em jogo em todos os processos sociais, análise em ato das implicações dos "praticantes". Heliana de Barros Conde Rodrigues PRIMEIRO ENCONTRO (26.04.93) ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 7 Boa noite. Começarei propondo um pequeno programa que vocês poderão modificar. Não será uma autogestão total mas, talvez, um início de co-gestão. A autogestão pedagógica é um empreendimento muito difícil e nós não a poderemos improvisar no pequeno intervalo temporal de uma semana. Neste nosso encontro, pensei em fazer urna apresentação geral da Análise Institucional, pontuando um aspecto muito importante que chamo de Novo Campo de Coerência. Toda nova disciplina ou novo espaço de saber entra em contradição com o saber então instituído. Isso acontece, por exemplo, com as disciplinas ministradas nas universidades. Essas se batem, a todo momento, contra novas disciplinas que lutam para se instituir. A Análise Institucional, qual as disciplinas que a precederam, tem forças de teor instituinte e entra, portanto, em contradição com o já instituído. Partindo de tal perspectiva, hoje desejo começar a expor conceitos paradigmáticos da Análise Institucional. No encontro de amanhã proponho abordar conceitos mais operacionais, embora essa distinção não seja absoluta. Falarei, então, de minhas pesquisas concretas sob o nome de Socioanálise. Para o encontro de quarta-feira, penso num tema mais espe- cífico, a Psicoterapia Institucional, que me permitirá enfocar, rapi- 8 PRIMEIRO ENCONTRO damente, urna das dificuldades encontradas, em Análise Institucional, quanto ao conceito de contratransferência institucional. Tentaremos, inclusive, apreciar a relação entre este conceito e o de implicação. Poderemos abordar as relações existentes entre a Análise Institucional e outras disciplinas, na quinta-feira. Por exemplo, com a Psicologia Social ou com a Psicanálise aplicada à pesquisa (e não referente à clínica), de George Devereux. Sou um sociólogo, não um clínico. Será possível, ainda, destacar as relações entre a Análise Institucional e a Sociologia, principalmenre a Sociologia de campo, e a Filosofia. Tudo isso de forma extremamente rápida, infelizmente, a menos que queiram insistir em algum desses pontos. Por mim, poderíamos discutir, durante cinco meses, a relação entre a Análise Institucional e a dialética de Hegel. Mas, infelizmente, não será possível. Pensei deixar para o último dia, sexta-feira, a discussão sobre as pesquisas em curso no departamento que me convidou, o de Psicologia Social e Institucional. Poderemos ver se faremos isso ou outra coisa. (Neste momento, o professor Lourau indaga se os presentes querem perguntar ou acrescentar algo. Não há resposta.) Para precisar o novo campo de coerência representado pela Análise Institucional, darei dois exemplos, por certo bem conhecidos de vocês. Em primeiro lugar, a aparição e o triunfo do campo de coerência sociológico; em segundo, a aparição e o triunfo do campo de coerência psicanalítico. Dois exemplos, entre muitos possíveis. O campo de coerência da Sociologia surgiu em contradição com a Sociologia ministrada, à época, nas universidades; ou seja, em contradição com o saber eminentemente teórico da Sociologia ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 9 universitária. Lembremo-nos que os primeiros sociólogos fizeram escândalo e foram acusados das piores intenções contra a ordem moral. Eles destronaram a religião ... e a Filosofia. As novas explicações para o social que, hoje, formam um novo campo de coerência, não foram aceitas pelo instituído de então. Durkheirn, por exemplo, teve inúmeras dificuldades para impor seu trabalho. Não se pode confundir Durkheim com seus discípulos do século seguinte, pois, não tendo quaisquer dificuldades para impor o campo de coerência sociológico, já faziam parte do ora instituído. Durkheim foi instituinte. Seu campo de coerência aparecia à época como "loucura". O mesmo aconteceu a Freud quando propôs a Psicanálise: seu campo de coerência foi percebido, qual o de Durkheim, como incoerente. Já foi "loucura" pretender, como Freud, que a sexualidade tivesse um papel essencial em toda e qualquer atividade humana. Sem querer nos comparar a esses dois exemplos famosos, vale, contudo, dizer que há alguma semelhança entre o surgimento do campo da Análise Institucional e a aparição da Sociologia ou da Psicanálise. A Análise Institucional teve muitos inícios e, tambérn por essa amplitude, há severas dificuldades para se perceberseu campo de coerência. Creio ser mais fácil reconhecer e identificar o já conhecido, ou o instituído. Quanto ao "novo" - o "estranho", o "desconhecido" -, sempre temos podido isolá-lo como incoerente (e assim, ainda hoje, o fazemos). Qual é o escândalo da Análise Institucional? Talvez o de propor a noção de implicação. Quase todas as ciências estão baseadas na noção de não im- plicação ou desimplicação. As "teorias da objetividade" se basei- am na "teoria" da neutralidade. É claro que também outras disciplinas criticam essa idéia de objetividade; em particular, a Psicanáli- 10 PRIMEIRO ENCONTRO se. De certa maneira, a Análise Institucional se situa no prolongamento do "escândalo psicanalítico" e, ao mesmo tempo, tenta explorar um outro campo de coerência, o de urna certa sociologia. Sabemos que a Psicanálise e algumas tendências da Sociologia e da Antropologia há muito se interrogam sobre a posição do pesquisador frente à sua produção. Portanto, não somos nem completamente novos nem originais. Propomos, ao contrário da idéia de "originalidade das idéias", a multi- referencialidade. Esta não é sinônimo de pluridisciplinaridade; não é urna mera coleção de disciplinas justapostas. Refere-se ao apelo a diferentes métodos e ao uso de certos conceitos já existentes, a fim de construir um novo campo de coerência. Outras disciplinas também fizeram esse tipo de trabalho. Cito, por exemplo, a Psicoterapia Institucional que, de alguma forma, tomou de empréstimo a Pavlov alguns conceitos. A Análise Institucional, por sua vez, pediu de empréstimo o conceito de analisador a pesquisadores como Felix Guattari e, assim fazendo, também "emprestou" - ou "roubou", de maneira bizarra - o conceito de analisador a Pavlov. Aproveitamos o "furto" realizado por . nossos amigos da Psicoterapia Institucional, e eu diria, com bastante eficácia, em "nosso" conceito de analisador. Em um primeiro ponto de vista, a Análise Institucional pretende trabalhar a contradição, seguir uma lógica dialética em oposição à lógica identitária característica das demais ciências - à exceção da Psicanálise. Tenta analisar, em permanência, as suas próprias contradições, visto que só funciona dentro dessas (exatamente como qualquer ciência). Mas, reconhece isso; as outras ... não o procuram fazer. Nosso campo de coerência se apóia, essencialmente, na categoria de contradição. Os referenciais desse estão tanto em Hegel como em algumas formulações da lógica moderna. ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 11 A primeira contradição da Análise Institucional aparece na preocupação que ternos, por um lado, com a coerência e, por outro, com a multi-referencialidade. Por um lado, podem nos acusar de dogmatismo; por outro, podem também nos acusar, só que de ecletismo. O segundo nível de contradição existe dentro de nossa teoria da instituição. Á diferença da Sociologia, e da Psicanálise, não consideramos a instituição um "prédio". Infelizmente, a idéia de instituição como algo objetivo domina quase todas as ciências sociais. Por exemplo, na França, e talvez no Brasil, os psicólogos dizem: "eu trabalho em uma instituição", como uma forma de capitalizar prestígio. Isso é um absurdo! Com o sentido que estão dando a esse termo, os operários também trabalham em instituição. E então, que status privilegiado requerem os "trabalhadores das (em) instituições"? Se utilizarmos o modelo de instituição desses psicólogos, podemos afirmar que uma fábrica é uma instituição, urna escola é urna instituição, quaisquer quatro paredes/muros ou, mesmo, qualquer forma de organização material ou jurídica é urna instituição. Esse uso abusivo da palavra instituição tem origem na teo- logia cristã, no meu país e no de vocês também. Para nós, todavia, da Análise Institucional, instituição não é uma coisa observável, mas uma dinâmica contraditória construindo-se na (e em) histó- ria, ou tempo. Tempo pode ser, por exemplo, dez anos para a institucionalização de crianças deficientes ou dois mil anos para a institucionalização da Igreja Católica. O tempo, o social-histórico, é sempre primordial, pois tomamos instituição como dinamismo, movimento; jamais como imobilidade. Até instituições como Igreja e Exército estão sempre em movimento, mesmo que não tenhamos essa impressão. O instituído, o status quo, atua com um 12 PRIMEIRO ENCONTRO jogo de forças extremamente violento para produzir uma certa imobilidade; especialmente nos dois exemplos que acabei de dar. O que aprendemos, durante esses vinte anos de trabalho, foi conhecer melhor o instituído e os diversos níveis contraditórios na instituição. E é a isso que visa toda análise institucional, toda Socioanálise. Não podemos nos contentar em ver apenas as grandes contradições. Há que se observar a contradição no interior do instituído e, inclusive, a contradição no interior do instituinte. Por volta de 1968, tínhamos uma visão um tanto maniqueísta da instituição. O instituído era imóvel como a morte e sempre mau; o instituinte era vivo como um jovem, menino ou menina, e sempre muito bom. Teóricos como Georges Lapassade e Felix Guattari foram, em parte, responsáveis por tal visão. Eu também tenho responsabilidade sobre isso. Outra contradição paradigmática surge com relação ao conceito de institucionalização. A institucionalização é o devir, a história, o produto contraditório do instituinte e do instituído, em luta permanente, em constante contradição com as forças de autodissolução. A partir do estudo de alguns grupos instituintes (que têm, por característica, uma vida curtal, temos investigado essas forças de autodissolução. Utilizamo-nos, em geral, de grupos de avant-garde - vanguardas político-artístico-culturais; grupos onde arte, política, cultura e ciência se misturam. Esses costumam ser extremamente diferentes uns dos outros, mas todos afirmam a importância da autodissolução. Em meu livro - A autodissolução das vanguardas1 - escolhi, como material para a pesquisa, variados manifestos de 1 LOURAU, R. L'autodissolution des avant-gardes. Paris, Galilée, 1980. ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 13 .autodissolução. O grupo de rock Sex Pistols, por exemplo, produziu um texto de sociologia magnífico, no momento de sua autodissoluçâo; assim como os surrealistas, a Internacional Situacionista, alguns grupos trotskistas, maoístas, anarquistas ... Igualmente rico é o texto de autodissolução da Escola Freudiana de Paris. Jacques Lacan me deu a autorização para reproduzi-lo em meu livro. Há também um texto, curto e bom, pertencente a uma sociedade de proteção aos animais, assinado por Brigitte Bardot (não pedi autorização para reproduzi-lo, pois ela já o publicara em jornal). O movimento, ou força de autodissolução, está sempre presente na instituição, embora esta possa ter a aparência de permanente e sólida. Há dez anos, quando me dediquei a essa pesquisa, a institucionalização do Partido Comunista Bolchevista da, então, União Soviética parecia um fenômeno natural e eterno. Em meu estudo, fiz uma brincadeira a esse respeito, perguntando: "quando o processo de autodissolução do Partido Comunista Bolchevista acontecerá?". Era um humor completamente abstrato, pensava. Exatamente dez anos depois, essa autodissolução foi instituída. Outro nível de contradição relevante para a Análise Institu- cional é a existente na parte política de seu projeto. Para nós, o que se passa em algum momento da História - seja no Kremlin, por volta de 1920; na Espanha, de 36 e 37 (coletivização da indús- tria, agricultura e serviços); ou na Argélia, nos anos de 62/63, apenas para citar alguns exemplosconhecidos -é importante como ponto de referência. A Análise Institucional não esconde que é política, porém tampouco oculta que em sua "política" está, como motriz, o conceito de autogestão. Ressalto, ainda, que este concei- 14 PRIMEIRO ENCONTRO to é um dos mais contraditórios. Faço especial referência à autogestão pedagógica. Nós funcionamos, todos, em todos os lugares, sob a heterogestão; ou seja, "geridos" por "outrem". E a vivemos, geralmente, como coisa natural. A ciência política e todas as novas ciências da racionalidade econômica seguem por essa via. Pretendendo-se científicas, aceitam a instituído como natural, como se os homens tivessem uma natureza de escravos, como se sonhassem estar sempre submetidos a outros homens, e como se estes outros homens fossem super-homens... como se houvesse uma raça de homens superiores que naturalmente detém a propriedade privada da gestão "do mundo". As ciências são extremamente racistas. Consideram existentes duas raças de seres humanos: os dominantes e os dominados. A isso, se acrescente o racismo sexual: as mulheres como dominados. Esta afirmação talvez surpreenda; no entanto, é a verdade nua e crua. Nós aceitamos, eu e vocês, essas coisas racistas e inaceitáveis. Aceitamos todas as racionalizações da heterogestão e, em geral, a pensamos insuperável. Talvez porque não tenhamos, ainda, conseguido efetivamente inventar a autogestão. A autogestão que existe, a que tem podido existir, acontece dentro de uma contradição total, já que a vida cotidiana, a minha e também a de vocês, se passa no terreno da heterogestão. Gostaria agora de frisar uma outra contradição essencial, já citada anteriormenre. Refere-se à noção de implicação. Cotidianamente, preferimos não nos colocar muitos problemas e, "permitindo" que se dê a heterogestão, "confiamos" a "autogestão'' a outras pessoas. Isto alguns - Marx, por exemplo - chamam "alienação". Amamos nossa "alienação". Sentimos que é muito dolorosa a análise de nossas implicações; ou melhor, a análise dos "lugares" que ocupamos, ativamente, neste mundo. Ou, por exern- ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 15 plo, em nosso local de trabalho. Um coletivo de trabalho urge que "ocultemos" de nós mesmos, digamos, 80% de seu funcionamento real (ou "relacional"). Inclusive, necessita desse "ocultamento" para funcionar. É a verdade, a realidade. Não é mau, apenas, contraditório. Tomando-me como exemplo: existe o risco de o professor estrangeiro se perceber como desimplicado, ou "irresponsável" – ao menos quanto à sua vida pessoal que pensa ter "deixado" em seu país de origem –, quando visita um outro país. Mas é claro que, mesmo "percebendo-me irresponsável", sou responsável pelo que faço aqui com vocês. Posso, porém, numa comparação exagerada, agir como no "mundo dos sonhos". Neste caso, todas as implicações de minha vida cotidiana na França são abolidas, suprimidas, à exceção de algumas poucas questões. Por exemplo, penso ter de telefonar para meu filho e minha filha. Eles ficariam muito contentes se eu lhes telefonasse do Brasil. Esta é uma implicação libidinal importante, mas muito limitada. Com relação à minha vida profissional, sinto-me livre, liberado da pressão dos colegas e alunos da Universidade de Paris VIII, onde trabalho. Estou "desimplicado" com relação a eles. Posso dizer besteiras, como jamais ousaria fazer na frente deles. Isso é verdade, por exemplo, em relação às duas pesquisas em que trabalhava antes de pegar o avião para cá. Sobre estas, poderei, talvez, falar melhor no próximo encontro. A primeira é em um Instituto Médico Educativo, que atende a crianças débeis. Dou supervisão à equipe de técnicos. A segunda é um trabalho de consultoria num colégio nos arredores de Paris, situado numa zona sensível, com muita violência – um ambiente de grandes diferenças étnicas e culturais – e problemas que, acredito, são também familiares ao país de vocês. Esse tipo de trabalho demanda e produz muitas 16 PRIMEIRO ENCONTRO implicações. Verão que me conduzirei com "fugas" para discuti- las. Uma outra contradição referente à implicação remete à pesquisa propriamente dita. Sabe-se, hoje, que o cientista confere à ciência os seus próprios valores, independente da posição ideológica que possui (seja esquerda, direita ou centro). Logo, a neutralidade axiológica, a decantada "objetividade", não existe. Mas a ciência necessita que ela "exista" e os cientistas, por vezes, nos fazem crer nessa "existência". Também eu, inúmeras vezes, acabo caindo nessa dupla armadilha. Sinto-me forçado, obrigado a parecer e a fazer acreditar na "neutralidade". Ao mesmo tempo, uma voz interior me acusa e alerta: "és um cretino, um imbecil!". Funcionamos com essa voz interior e, não raro, ensurdecemos a ela; caso contrário, certamente, ficaríamos definitivamente ensandecidos. Nesse sentido, a História – e em particular, a história das ciências – nos mostra as implicações do pesquisador em situação de pesquisa como o essencial do trabalho científico (mesmo tais implicações sendo negadas). Por exemplo, os pesquisadores do programa de energia atômica nuclear puderam negar, durante muito tempo, suas implicações e dizer: "isso não existe". Mas, alguns anos após Hiroshima, os mesmos escreveram mil páginas de confissão, onde afirmavam: "somos idiotas". E era tarde demais. Sequer era "científico". A Análise Institucional tenta, timidamente, ser um pouco mais científica. Quer dizer, tenta não fazer um isolamento entre o ato de pesquisar e o momento em que a pesquisa acontece na construção do conhecimento. Quando falamos em implicação com uma pesquisa, nos referimos ao conjunto de condições da pesquisa. Condições inclusive materiais, onde o dinheiro tem uma participação tão "econômica" quanto "libidinal". ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 17 Hoje pela manhã, na televisão, um político brasileiro dizia que a política permite gozar de algumas vantagens. A palavra gozo me chamou a atenção, pois se aplica ao poder político e, igualmente, ao científico – já que a ciência é um instrumento de poder político. Por conseguinte, as implicações políticas e libidinais e, é claro, materiais (financeiras) são uma realidade no ato científico. Isto não é nenhuma abstração inventada pela Análise Institucional. Penso que tais implicações sempre fazem parte do processo de pesquisa, conforme o conhecemos, por mais difícil que seja analisá-las. Reconheço, contudo, que existem contradições entre este projeto científico/político de análise das implicações e o sentido "positivo" ou "positivista" de ciência. Podemos ilustrar melhor a teoria da implicação através de um pesquisador que, de alguma forma, teve uma participação indireta no Brasil e tem o seu templo aqui no Rio: Augusto Comte. Parece engraçado, mas Comte e o Positivismo nos ensinam muito sobre a teoria da implicação. Antes de passar às questões, gostaria de concluir minha exposição falando um pouco sobre isso. Não o previ no programa, mas me veio à cabeça ao final, da palestra. Gostamos de improvisação em Análise Institucional. E nosso lado "músicos de jazz"... Pena os músicos de jazz não serem, necessariamente, "institucionalistas". Ninguém é perfeito... Comte oferece um exemplo paradoxal, contraditório, que convém à Análise Institucional. Como bem sabem, inventou não só a Sociologia como a palavra sociologia. Há, ainda hoje, uma certa tendência das ciências sociais de se referirem a ele. É curioso observar o lema positivista da bandeira brasileira. Denuncia, sem dúvida, uma influência deste pensamento sobre a República do Brasil, em 1889. Havia dito que o instituído é muito violento, nem um pouco tranqüilo. O instituído nas ciênciassociais não escapa a essa 18 PRIMEIRO ENCONTRO regra – nós ainda queremos esconder algumas "coisas incômodas". Por exemplo, o escândalo de Augusto Comte na "segunda fase", quando descobriu a importância do amor, criando um indesejável paradoxo com relação ao "primeiro Comte" – que eliminara de seu modelo científico o papel da subjetividade. Comte encontrou inúmeras dificuldades ao tentar fazer uma síntese entre os dois momentos de sua obra. Talvez porque essa fosse impossível. A Análise Institucional não pretende "sintetizar" melhor do que Augusto Comte. As tentativas do Freudo-marxisrno, de certa forma, tampouco chegaram a conseguir tal síntese. Nem a Psicossociologia construiu um campo de coerência unificado ou uniforme. Os jogos entre método objetivo e método subjetivo nos aparecem, em geral, como um campo de multi-referencialidade. E é por isso que Comte tem muitos méritos. Pelo menos, para nós. O mais interessante é tentar descobrir como Comte construiu o segundo método, o subjetivo. O primeiro o havia deixado louco. Ele sempre teve alguns "problemas mentais" ... E depois, o acontecimento decisivo: por volta de 48 anos, descobre o amor. Até então, freqüentara somente prostíbulos. Mas, de repente ... o grande amor! O amor louco pela jovem irmã de um de seus discípulos! Podemos fazer interpretações freudianas imediatamente. Clotilde, a jovem namorada, infelizmente morreu muito nova. E Comte ficou desesperado. Ao mesmo tempo, sublimou, como diriam os psicanalistas, fazendo uma grande virada em toda a sua obra. É um exemplo, acredito, bastante raro na história das ciências. A construção do paradoxo em Comte se parece um pouco com a situação concreta da Análise Institucional. Isso não quer dizer que sejamos todos loucos; sequer sempre amorosos, infeliz- mente. Mas que o amor e a loucura são "engrenagens" imprescin- ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 19 díveis às mudanças. Talvez o surrealismo tenha contribuído para que aprendêssemos isso: é uma das nossas mais apreciadas referências. Gostaria ainda, posteriormente, de pensar um pouco mais com vocês sobre o exemplo de Comte e, quem sabe, construir relações entre este e a enorme dificuldade que os diferentes setores de ciências humanas têm para conviver com a multi-referencialidade. Uma vez mais, quero afirmar que a Análise Institucional não pretende fazer milagres. Apenas considera muito importante, para a construção de um novo campo de coerência, uma relação efetiva, e nítida, com a libido e com os sentimentos em geral. A teoria da implicação, nós veremos, tem qualquer coisa que flerta com a loucura. Agora, seria interessante discutir as perguntas que vocês, porventura, tenham a formular. Pergunta: Qual é a relação entre o sujeito do inconsciente, o sujeito da análise e a instituição? Isso não é uma exclusão? Como podemos articulá-los? (A pergunta viera formulada, por escrito, em francês. A tradutora pede que a responsável pela questão a formule em português, para todos. Descobre-se que tal pessoa já não se encontra no recinto.) Lourau: A pessoa nos propôs refletir sobre sua questão, durante sua ausência. O que acham? (Murmúrios dos presentes apontam a que se passe a novas questões.) Bem, então, prossigamos. Pergunta: Como você vê o fato de a Análise Institucional se desenvolver mais aqui, na América Latina, do que na Europa? 20 PRIMEIRO ENCONTRO Lourau: Talvez seja abusar dos paradoxos dizer que a Análi-se Institucional é mais desenvolvida na América Latina do que na Europa. Isto é um pouco verdade, mas não tanto, na América Latina há uma penetração da Análise Institucional nas profissões de psicologia que não existe em nenhum país da Europa, nem mesmo na França. Talvez, por serem os principais pesquisadores franceses institucionalistas – se deixarmos de lado os primeiros, que foram todos psiquiatras –, em sua maioria, de formação política e/ou sociológica. Na Europa, não temos muito diálogo com os "psi"; na América Latina, no entanto, sentimos um grande interesse, por parte desses profissionais, na Análise Institucional. Minha hipótese é de que isto se deve, em parte, à questão política. Em países que conheceram regimes autoritários, parece que se reuniram condições para psicologizar a política e, assim, negá- la. Alguns psicólogos, na América Latina – quem sabe, os mais lúcidos –,tendo consciência dessa situação, procuraram, e procuram talvez, meios diversos para se repolitizar. Agrada-me pensar que a Análise Institucional foi, e é, um desses meios, e que tem desempenhado um papel, poderíamos dizer, de politização daquilo que estaria sendo por demais psicologizado. Uma outra explicação poderia ser a influência do Marxismo na América Latina. Parece-me, e talvez me engane, que o Marxismo não teve, aqui, urna função educativa tão vasta quanto na Europa. Embora possa estar equivocado, assim sinto após algumas visitas a países da América Latina – México, Argentina, Uruguai e Brasil. A Análise Institucional serviria, penso, um pouco como um "substituto'' do Marxismo; mesmo não sendo uma teoria marxista, o reconhecemos, dentro da linha da multi- referencialidade, como uma de nossas referências. Uma referência entre outras, porém imprescindível. Em particular, todo o relati- ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 21 vo à Teoria do Estado nos marcou muito, através da obra de Henri Lefebvre. O sociólogo Lefebvre foi meu mestre, ainda que eu nunca tenha sido comunista e ele o tenha sido durante toda a sua vida. Seu marxismo aberto e anti-dogmático nos ajudou bastante. Na América Latina, talvez não tenham conhecido muito esse "marxismo da liberdade". Talvez tenham sido mais influenciados pelo neo-dogmatismo marxista; quiçá, o de Louis A1thusser. Não podemos julgar, tão facilmente, como as influências desempenham papéis num continente ou noutro. Pergunta: Durante sua explanação, você citou a teoria da alienação marxista. Como ela está relacionada à Análise Institucional? Lourau: Essa pergunta tem muita relação com a minha resposta anterior, pois Lefebvre trabalhou exaustivamente o conceito de alienação. Não integramos completamente esse conceito à Análise Institucional, mas trabalhamos, e com severidade, todos os teóricos marxistas da alienação, assim como, é claro, Hegel, que é a origem dessa teoria e não era marxista. A alienação se refere a um fenômeno real, como assinalei, diversas vezes, ao dizer que nós estamos, todos, dentro da heterogestão. É uma maneira de descrever nossas condições de existência e, particularmente, a condição da pesquisa para o pesquisador, da educação para o educador, etc... A separação, identificada à alienação, não foi estudada pelos marxistas como o foi por nós, pois o marxismo não possui o conceito de instituição. O Marxismo – falo de urna forma vaga, caricatural – considera o fenômeno da alienação de um modo muito geral, somente em termos da relação entre classes sociais. Do meu ponto de vista, tal concepção, apesar de exata, não nos permite análises concretas, 22 PRIMEIRO ENCONTRO favorecendo discursos também muito gerais. Para o Marxismo, a instituição não é relevante: faz parte da superestrutura e não tem existência real, sendo apenas reflexo da base econômica. Quanto a essa divisão entre superestrutura e infra-estrutura, nos opomos ao marxismo. A instituição tem uma base material e é terrivelmente importante. Instituição não é um sinônimo de idéia. Teremos oportunidade de ver isso melhor nos próximos encontros. Existe um momento de ideologia nas instituições, usando-se o termo no sentido dialético hegeliano: é o momento da universalidade. Existe também o momento da particularidade– a primeira negação –, onde apreendemos a questão da base social e das relações entre as classes sociais. Até aí, estamos de acordo com Marx. Mas o terceiro momento não foi percebido por Marx, nem pelos marxistas. Não perceberam a importância da base material. O marxismo se diz materialista, mas é idealista, infelizmente. Pergunta: Você coloca a autogestão como um modo de operar legítimo, contraposto a um modo ilegítimo, a heterogestão. Existe um projeto de revolução que implemente a hegemonia da autogestão? Seria, dentro da lógica dessa normatização, feio, imoral ou ilegal, que em determinada circunstância se escolhesse operar num modelo de heterogestão? Lourau: Não existe questão de legitimidade e ilegitimidade quanto à hetero/autogestão. Se dei a impressão de falar nesses termos, ou operar tais separações, cometi um erro. Afirmei que há uma contradição entre autogestão e heterogestão; que vivemos na heterogestão, o que nos aliena, nos priva de nossa autonomia, de nossa liberdade. Talvez essa seja uma maneira de denominá-la "ilegítima". Mas, para pensarmos numa autogestão legítima ou numa ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 23 heterogestão ilegítima, é importante que aprofundemos tais qualificações. Elas têm um "ar jurídico" que me incomoda. Ao mesmo tempo, entendo o sentido da questão. Quanto à existência de um programa revolucionário Contendo a idéia de autogestão, imagino que tenhamos as mesmas informações. Existem, em diversos países, movimentos e partidos políticos que falam da história da autogestão. Penso existirem no Brasil também. Acredito em micromovimentos autogestionários no Brasil, como em outros países da América Latina. Em Montevidéu, no Uruguai, por exemplo, existe uma comunidade anarquista, onde irei passar alguns dias na próxima semana, que pratica a autogestão, ou tenta praticá-la, tendo esta elementos de loucura e misticismo. Eles têm, inclusive, uma editora e publicam livros sobre autogestão. E também irão publicar um livro meu, brevemente. Na Europa, são principalmente as correntes anarquistas que conservam esse projeto em seu programa. Na França, os partidos de esquerda ofereceram projetos de autogestão como um programa de governo, nas eleições de 1981. Programa este que levou, então, a esquerda ao poder. Mas não foi uma coisa realmente seria. SEGUNDO ENCONTRO (27.04.93) ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 27 Boa noite. Podemos começar, por favor. Ontem apresen- tei a Análise Institucional como tendo uma lógica da contradição - dialética, não identitária -, e introduzi algumas das principais contradições que formam a base de nossa teoria. Vou recordá-las, sem maiores comentários. Primeiramente, a contradição na construção de um campo de coerência. Um campo de coerência novo em relação ao que está instituído na ciência, e multi-referenciado nesse mesmo insti- tuído. Com relação a essa multi-referencialidade, evidencia-se a recusa de um ponto de vista único. A segunda contradição situa-se entre o instituído e o instituinte. Assinalei que há contradição no interior do instituído e também no interior do instituinte. A terceira, localizei-a entre a institucionalização – pro- cesso normal do que "vem a ser" socialmente (e isso vale, por exemplo, tanto para um time de futebol quanto para uma soci- edade psicanalítica) - e o processo de autodissolução – dinâ- mica, em geral invisível, que aparece freqüentemente provo- cando uma enorme e, não raro, total surpresa. Ilustrei com a exemplo do Partido Comunista Bolchevista, da extinta União Soviética. 28 SEGUNDO ENCONTRO Apontei ainda um outro nível de contradição dialética: entre a autogestão e a heterogestão. Enfim, o último exemplo de contradição dialética: a existente entre a implicação e a neutralidade axiológica do objetivisrno habitual. Esta combate a análise de nossas implicações concretas, seja na pesquisa, na formação, ou em toda e qualquer prática social cotidiana. Concluí com um exemplo de que gosto muito, relativo ao fundador da Sociologia, Augusto Comte. Frisei, então, a importância da ruptura entre o que Cornte chama métodos objetivo e subjetivo - este descoberto após se ter apaixonado perdidamente por Clotilde. Pretendi mostrar, com tal exemplo, a importância da libido em nossas implicações; certamente tão importante quanto o poder e o dinheiro. Hoje me propus a apresentar os conceitos operatórios da Análise Institucional. A apresentação vai caminhar em certa desordem, pois esses conceitos não têm uma ordem lógica, estando sempre em relação dialética uns com os outros. Para melhor introduzi-los, seria necessário um quadro com três dimensões. Vamos representá-los, portanto, numa ordem apenas didática. Uma primeira noção importante é a de intervenção, largamente falada, extremamente banal. Na França, usa-se essa palavra para quase todas as atividades. Talvez no Brasil também. Mas existe um significado mais preciso do termo intervenção, em algumas teorias da Psicologia Social e Sociologia. Neste último caso, falamos de uma sociologia de intervenção, em oposição à sociologia do discurso (presente apenas em livros e artigos). Intervenção significa, aqui, que a pesquisador é, ao mesmo tempo, técnico e praticante. O termo praticante deve ser entendido como na religião católica. O católico distingue praticantes e ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 29 não praticantes. Analogamente, posso dizer: Pierre Bourdieu é um sociólogo não praticante; eu sou um sociólogo praticante. O que entendemos por intervenção? Temos principalmente uma influência da intervenção psicossociológica, importada dos Estados Unidos, à época do Plano Marshall, Logicamente, não inventamos o método intervenção, mas propusemos outro tipo de intervenção psicossociológica, criticando os limites da habitual. A intervenção psicossociol6gica trabalha, em geral, com pequenos grupos. N6s também trabalhamos com pequenos grupos. Mas a Análise Institucional nasce precisamente da crítica à Psicossociologia (ou, vulgarmente, à psicologia dos pequenos grupos), já que Georges Lapassade fez aparecer o que, de alguma forma, estava escondido nesse modelo de análise de grupo. Ele reintroduziu uma coisa que estava fora dos grupos enquanto fora do campo da análise de grupo. E essa "coisa" era a instituição que faz, cria, molda, forma e é o grupo. Por exemplo, a não ser que passe pelo institucional, esse grupo que ora formamos não existe. A sua existência passa pelo institucional. Esse grupo pode ter também outras características. Podemos analisá-lo partindo de diversos paradigmas: paradigmas psicológicos, políticos, sistêrnicos, econômicos... No entanto, todas essas ações "expressam" (e se "expressam"), imprimem, precisamente, a dimensão institucional. O sentido do termo intervenção quando circunscrito à realidade dos grupos é a que chamamos de campo de intervenção. A intervenção socioanalítica se caracteriza pela consideração de um campo de análise e um campo de intervenção que não se confundem. O nosso modelo de análise de grupo se funda na compreensão de alguma coisa que é invisível e terrivelmente presente no grupo, como um espectro; isto é, a instituição. 30 SEGUNDO ENCONTRO Nosso método de intervenção consiste em criar um dispositivo de análise social coletiva. Pontuamos o sentido do termo socioanálise no dispositivo de intervenção. O que é, então, esse dispositivo? Consiste em analisar coletivamente uma situação coletiva. Nesse sentido, o socioanalista tem trabalhos a fazer que não são, necessariamente,os de interpretação. Alguns, preferencialmente, se utilizam da interpretação; outros quase não a usam. Como em todas as linhas, há vários caminhos. Quando falo do trabalho socioanalítico, refiro-me à necessidade, à tentativa de se colocar em cena o dispositivo. Somos um tanto obsessivos nessa questão do dispositivo; descobrimo-lo como um instrumento de análise extraordinário. O dispositivo pode ser, por exemplo, a formação de uma Assembléia Geral, onde todas as pessoas envolvidas no processo de intervenção possam estar presentes. Todas as pessoas envolvidas, juntas num único lugar, onde iremos intervir. Essa Assembléia Geral não é necessariamente igual à dos sindicatos e partidos políticos. Hoje, pela manhã, houve uma assembléia geral nesta universidade, e não foi socioanalítica. Talvez pudesse ter se tornado uma Assembléia Geral socioanalítica, se os organizadores tivessem chamado uma equipe de socioanalistas. Certamente há muitos nesta universidade, além de um socioanalista francês. Mas não houve qualquer pedido de socioanálise. A equipe organizadora da Assembléia Geral ficou como único mestre do dispositivo. Na Assembléia Geral socioanalítica, há um dispositivo em triângulo. Existem: as pessoas que, a princípio, apenas vêm à Assembléia - os participantes -, a equipe organizadora, e a equipe de interventores (socioanalistas), São as relações entre esses três grupos que estudamos. O que propomos é a análise dessa relação, ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 31 sob a forma de uma discussão coletiva. Geralmente é muito difícil realizá-la. Há sólidas resistências à análise coletiva em todo trabalho de intervenção. Essa resistência pode vir do grande grupo, chamado grupo-cliente, que é sempre dividido, nunca homogêneo, e tem as suas próprias contradições. Essa resistência pode vir da equipe que organizou o encontro, o acontecimento, que passou a encomenda de análise aos socioanalistas. E essa resistência pode vir... dos socioanalistas, Encomenda é um conceito operatório em socioanálise. Em outros métodos, contudo, vamos encontrar também análises de encomenda. A encomenda tem origem em demandas. Em uma socioanálise, por exemplo, em demandas individuais e dos grupos que compõem o grande grupo da intervenção em processo. Os responsáveis, as pessoas que têm autoridade para requerer uma intervenção que, enfim, passam a encomenda, também têm demandas individuais. Portanto, existe uma grande diversidade e muitas contradições entre todas as demandas possíveis da população envolvida. Para ocorrer um pedido de socioanálise, o grupo de organizadores, num primeiro momento, deve traduzir essas diversas demandas numa encomenda que lhes permita entrar em contato com a equipe de socioanalistas. Desde o início há, portanto, uma traição a tais demandas. A equipe de organizadores inicia seu trabalho construindo a encomenda. Esta encomenda é discutida com a equipe de interventores (os socioanalistas), antes que se comece efetivamente a intervenção. Sabemos, por experiência, que antes de iniciada a intervenção, todo o ocorrido entre essas duas equipes, em geral, fica em segredo. A socioanálise consiste em tornar público esse segredo. Diante da Assembléia Geral socioanalítica, a equipe-cliente (os 32 SEGUNDO ENCONTRO organizadores) e a equipe de interventores restituem em detalhe - o que pode ser muito longo - o processo da encomenda. Há sempre conflitos entre essas duas equipes (equipe- cliente e equipe-interventora). O clima socioanalítico é, por característica, muito tenso. Os organizadores (equipe-clienre) podem ter o interesse em ocultar alguns "pequenos e irrelevantes detalhes". Por exemplo, sobre dinheiro e poder no estabelecimento. Os socioanalistas podem querer também esconder "coisas", já que não são de uma moralidade ou santidade incontestáveis. A análise coletiva começa a partir da primeira restituição. No que se refere à Assembléia Geral, freqüentemente pessoas ficam ausentes, ainda que sejam muito importantes para o trabalho. Não raro, nada se faz para que compareçam ou participem do processo de intervenção. Essa é uma das bem conhecidas formas de resistência à socioanálise. Nesse caso, a equipe dos socioanalistas pode intervir diretamente - de maneira muito enérgica, mas pacífica - para que se tente achar essas pessoas e fazê-las estar presentes. Trata-se de um trabalho quase material. É preciso que o dispositivo Assembléia funcione e que, a partir de então, possamos analisar a situação. Esses pequenos acontecimentos, sociais ou materiais, ocorrem não importa em qual assembléia geral. Normalmente, são tratados nos corredores ou escritórios, de forma burocratizada. A Socioanálise luta contra essa "resistência burocrática". É óbvio que a burocracia é sempre o mais forte, mas o confronto com esta, em geral, é muito instrutivo. Gostaria de frisar, antes de passarmos às perguntas, que a colocação em cena do dispositivo Assembléia Geral, da restituição da encomenda, da negociação entre equipe-cliente e equipe de interventores, o trabalho para que a Assembléia Geral seja a mais ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 33 geral possível - mesmo que tal desejo comporte um ideal inacessível - são, em resumo, apenas alguns exemplos do que ocorre no processo de intervenção. Pergunta: Você falou sobre a diferença entre encomenda e demandas. Estas últimas não podem ser vistas como produzidas pela própria intervenção? Lourau: Creio que podemos responder sim, e não. Há demandas que preexistern ao trabalho socioanalítico. No entanto, ao pensar uma encomenda de intervenção, consideramos as demandas como "modificadas", pois influenciadas por essa nova situação; ou seja, elas têm, agora, relação com o projeto de convidar certa equipe de interventores. Outra etapa do processo, capaz de modificar e produzir demandas, é o momento de negociação entre a equipe-cliente e a equipe-interventora. Pensamos que a intervenção começa no instante preciso em que um membro da equipe-cliente retira do gancho o seu telefone, para ver se uma equipe de socioanalistas pode vir fazer uma intervenção. Esse primeiro gesto não é inocente; é fatal. Creio, por conseguinte, que não só é a encomenda produzida pela intervenção, mas que, em grande parte, também várias demandas são elaboradas por esse mesmo processo. É um caso não idêntico, mas similar, àquele da situação psicanalítica, mesmo que essas duas situações (intervenção socioanalítica e intervenção psicanalítica) sejam extremamente diferentes material e socialmente. Freqüenternenre frisamos que a presença de dispositivos criando o trabalho psicanalítico é um pomo em comum entre a Psicanálise e a Socioanálise. Trata-se, em ambos os casos, de situações completamenre artificiais. Mas, uma assembléia geral sindical também é artificial. A palavra artificial não tem um sentido pejorati- 34 SEGUNDO ENCONTRO vo. A Socioanálise se propõe, tão somente, a analisar todos esses artifícios, ou dispositivos. Gostaria ainda de tecer algumas considerações suplementares, em torno da questão encomenda- demandas, de forma a ampliar nosso campo de reflexões. O trabalho socioanalítico pode parecer monótono, mecânico, mas na realidade, como afirmei, é sempre muito conflituoso, já que contradições, ocultas até então, podem surgir, por exemplo, quando uma pessoa toma conhecimento de uma nova informação, uma coisa que ela "não deveria saber" e que estava escondida. Poderão acontecer coisas produzidas por indivíduos, isoladamente, ou ligadas a fenômenos de grupo. O emergir desses acontecimentos pode ser provocado, simplesmente, pelo modo de regulação da Assembléia Geral.E a Socioanáljse propõe sempre a autogestão. Desta forma, a princípio, nunca podemos prever o que irá ocorrer no processo da intervenção. A autogestão é um suporte, um instrumento valiosíssimo à análise. Não se trata, aqui, de uma autogestão real; não é a autogestão dos agricultores da Argélia. É uma autogestão-artifício, que faz parte do dispositivo Assembléia. No clima habitualmente emocional da Assembléia Geral, podem acontecer fenômenos de extremismo, tanto emocional corno político. Tais fenômenos podem igualmente existir também nas assembléias não socioanalíticas, de tipo sindical, estudantil, parlamentar, popular, etc. ... Todos os psicossociólogos deveriam estudar em profundidade essa história. O processo revolucionário em algumas assembléias é de uma riqueza extraordinária e, em certo sentido, tem vários pontos em comum com a intervenção socioanalítica. No entanto, quando se instaura, no processo histórico, um clima revolucionário - e pudemos constatar isso, em 1968, na França - não se fazem necessários os socioanalistas. Na ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 35 realidade, para nós seria a desemprego total. Aquilo que se passa espontaneamente num clima revolucionário, quanto ao funcionamento de uma assembléia, talvez seja o que tentamos reproduzir com um simulacro. A nossa referência política são, sempre, os movimentos revolucionários de massa. Aqueles acontecimentos que podem agitar a Assembléia Geral socioanalítica permitindo fazer surgir, com mais força, urna análise; que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição "invisível"; a esse tipo de acontecimentos chamamos ANALISADORES. Pergunta: Gostaria que fosse esclarecido, através de um exemplo, como é feito o processo de trazer pessoas ausentes de um modo enérgico. Pareceu-me um modo ligeiramente autoritário, já que parto do fato de serem as pessoas livres à não participação. Lourau: Creio, mesmo, ter iniciado minha exposição dizendo que as pessoa, são livres. Os socioanalistas não têm qualquer mandato institucional de poder. Não têm sequer o poder de constrangimento. O contrato com a equipe-cliente se baseia numa regra de maximizar a análise coletiva, sem isso não há a Socioanálise. Quando disse que fazemos muita força para realizar o dispositivo Assembléia Geral, fiz referência à energia que nós, de alguma forma, gastamos no esforço de fazer o mais coletiva possível a análise - não havia qualquer conotação policialesca. Não obrigamos quem quer que seja a ficar, sequer a estar, na Assembléia. A palavra enérgico pode produzir a confusão. Trata- se, porém, de energia dentro do trabalho de análise. Configura a que chamo de sobreimplicação, que é um elemento subjetivo na análise das implicações. Isso que podemos nomear como investimento psicológico, costumo traduzir por gasto de energia. 36 SEGUNDO ENCONTRO Pergunta: Você disse que os interventores são praticantes e que têm pontos de vista próprios; como a equipe de socioanálise se posiciona diante de demandas contrárias, de diferentes interesses? Lourau: É uma pergunta muito importante. A análise das implicações é o cerne do trabalho socioanalítico, e não consiste somente em analisar os outros, mas em analisar a si mesmo a todo momento, inclusive no momento da própria intervenção. As implicações em jogo podem ser claramente libidinais, por exemplo. Tanto num pequeno grupo quanto num grande, os afetos heterossexuais e homossexuais estão presentes o tempo todo, em qualquer situação da vida. Podem ocorrer também variadas seduções visando o exercício de uma certa hegemonia de poderes, tanto dentro do grupo de interventores como na relação deste com os demais grupos da intervenção. As implicações ideológicas e políticas estão, é claro, presentes a todo momento. Comumente estamos imersos em graves contradições: a equipe-cliente - que nos chamou, nos convidou, nos aceitou para fazer o trabalho e nos pagou; em geral constituída de pessoas que conhecem nossos pressupostos políticos e ideológicos e, necessariamente, não se contrapõem a estes - na situação concreta de intervenção, pode vir a se antagonizar conosco. Pode-se ter um acordo ideológico, e também referências políticas comuns e, no entanto, a situação de intervenção - que cria necessariamente tensões e conflitos - pode, de alguma forma, nos afastar durante o trabalho. Situação ainda muito comum é a contradição entre a ideologia dominante da equipe-cliente - que faz parte do grupo- cliente - e a dos demais participantes deste grupo-cliente, que denominamos "a base". Esta é uma situação real no interior da situação artificial criada pelo dispositivo. Face à mesma, ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 37 freqüentemente os socioanalistas escolhem seu campo. Não é fácil, mas como não acreditamos na neutralidade axiológica, nem no apoliticismo, somos levados a tomar posição. É também comum, nas intervenções socioanalíticas, ocorrer um fenômeno, à primeira vista contraditório, que denominamos caixa preta. A mesma equipe-cliente que nos passou a encomenda de intervenção se reúne em separado (caixa preta), por exemplo uma hora antes da Assembléia, como se preparando para "conduzir", "prever" ou "se defender" dos acontecimentos que, porventura, sejam "disparados" pelo dispositivo. De igual maneira, nós, os interventores, sentimos necessidade de uma reunião em separado (caixa preta) para avaliação de estratégias, análise das implicações e comentários gerais sobre o trabalho. As duas equipes (equipe-cliente e socioanalistas) podem, ainda, se encontrar em separado do restante do grupo para falar de algumas dificuldades. A esse acontecimento demos o nome de caixa vermelha. Tanto a caixa preta quanto a vermelha encontram- se, hoje, incorporadas ao trabalho socioanalítico. Mas, apesar de tais reuniões - ou "encontros" -, é na Assembléia Geral que verdadeiramente se dá a trabalho de análise. É nela que emergem publicamente os confrontos, independentemente das caixas preta ou vermelha. Confrontos, inclusive, entre os próprios socioanalistas - às vezes, até de ordem política. O importante é a análise se tornar o mais pública e coletiva possível. E nem tudo é possível... Há resistências a se revelar e a se coletivizar “alguns segredos”, mesmo estes não sendo com relação a pertencer à máfia. Há militantes que até têm um lado um pouco "mafioso", que gostam d'O SEGREDO. Freqüentemente encontramos esse "prazer" no segredo relacionado à educação católica e/ou protestante, à moral do pecado e do íntimo. 38 SEGUNDO ENCONTRO Retomando a questão anterior, não podemos forçar as pes- soas a ir à Assembléia, ou a falar. Mas podemos analisar a blo- queio produzido pela situação de segredo, ou mesmo, de ausên- cia. Em todo caso, é muito difícil lidar com tais situações. Ainda mais se há divergências dentro da equipe socioanalítica. Como sabem, não temos uma linha política única. Alguns de nós são mais próximos do partido socialista; outros, de uma linha marxis- ta/trotskista; outros ainda, como eu, do pensamento libertário... Muitas vezes há divergências, mas tampouco tentamos, forçada- mente, criar consensos. Os conflitos geridos na Assembléia Geral costumam reper- cutir dentro da equipe de interventores, assim como as questões de dinheiro e de libido. Podem, inclusive, criar muitos aconteci- mentos engraçados, mas não temos tempo para que possa contá- los a vocês. Pergunta: Você falou da assembléia socioanalítica como um dispositivo. Gostaria de saber se vão ser citados outros dispositivos, ou se a assembléia é a único ou mais importante dispositivo. Lourau: É necessário que se faça uma distinção entre a intervenção brevee a longa. No início de nosso movimento, fazía- mos sobretudo intervenções breves, nas quais a construção da As- sembléia Geral era um ponto tão fundamental que resumia, no fundo, toda a intervenção. Hoje, nas intervenções de longa dura- ção, é apenas uma etapa da intervenção, e nada mais. Porém, é uma etapa indispensável. Já citei alguns de meus trabalhos recentes como, por exem- plo, a intervenção em um instituto para crianças inadaptadas. Não falarei sobre o momento de elaboração da encomenda, porque isso seria muito longo. Constituímos uma equipe-cliente – prefe- rencialmente acreditamos que assim o fizemos. Como é costume ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 39 acontecer de tempos em tempos, a equipe-cliente se autodissolveu - não antes de ter conseguido, com sucesso, reunir uma Assembléia Geral. Desta, saiu um projeto de uma nova equipe. A partir desse ponto, imprimiu-se ao trabalho uma dada regularidade temporal. Vou ao estabelecimento uma vez por mês, falamos de uma futura Assembléia Geral, mas não funcionamos permanentemente com esse dispositivo. Funcionamos, antes, com um grupo-cliente composto por voluntários. Não temos como precisar, caso a caso, o quão "voluntária" é a inserção nesse grupo, pois esta se encontra marcada por uma forte instituição francesa a da formação continuada - e se vincula a perspectivas econômico- profissionais. Compreendemos que a caráter "voluntário" desse grupo se encontra tão atravessado por tais contradições, que não sabemos - e essa é uma das questões de análise - se os membros do grupo (funcionários do estabelecimento citado) se sentem obrigados, individualmente, a vir às reuniões porque estas ocorrem no tempo da formação permanente - ou contínua -, ou se vêm por razões outras, diversas. É uma difícil análise das implicações. Percebe-se as pessoas motivadas para constituir uma Assembléia Geral, e resistindo à análise das implicações, ao "estar" no grupo, ao trabalho de intervenção e, paradoxalmente, à própria demanda de Assembléia Geral. Assim sendo, há uma permanente autodissolução dessa equipe-cliente, entre constantes "comparecimentos" e "faltas". Encontramo-nos, ainda hoje, como numa situação inicial, onde a relação equipe de socioanalistas/intervenção é efetuada unicamente pela direção do estabelecimento. Temos ainda uma outra complicação: desde a primeira Assembléia Geral, um grupo de pessoas se recusou a participar da socioanálise. Portanto, a esse grupo-cliente, não estando "comple- 40 SEGUNDO ENCONTRO to", faltaria uma certa "transversalidade" , como diria Guattari. A categoria que nos boicotou não aceitando participar da socioanálise é composta pelo grupo médico do estabelecimento. Parece que têm "alergia" à Socioanálise. Como não sou médico, não posso cuidar dessa "alergia". Também não posso, é claro, fazê-los comparecer à força. No entanto, tais questões têm colocado em segundo plano a dispositivo Assembléia Geral. Em resumo, a Assembléia Geral, numa intervenção de longa duração, é um instrumento periódico e, na socioanálise breve, um instrumento condensador e potencializador do processo. Pergunta: O que você acha da possibilidade de intervenção em instituições onde se estivesse trabalhando como funcionário contratado; onde não houvesse quaisquer encomendas de socioanálise, mas a referencial teórico/prático do funcionário em questão [osse a Análise Institucional? Como ficaria a situação das implicações, incluindo os perigos de perseguição e de violência simbólica? Lourau: Essa pergunta aborda o problema da socioanálise interna, que ainda não tive tempo de falar. Estamos muito dividi- dos com relação a essa questão. Num certo sentido, concordamos com a possibilidade de a "análise interna" se efetivar concreta- mente mas, apesar de considerá-la possível, algo me preocupa: a supressão da triangulação sobre a qual falei anteriormente. A au- sência de um interventor "de fora" - que possa não estar total- mente comprometido com qualquer dos vários grupos que fazem funcionar a estabelecimento - pode favorecer a criação de uma falsa equipe de interventores no interior desse mesmo estabeleci- mento. É claro que essa equipe de interventores interna tem chan- ces de ser composta por pessoas que comumente detêm a poder no ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 41 dito estabelecimento e, sob esta perspectiva, a questão do poder ficaria como algo inanalisável. Se retornarmos à situação original da Psicoterapia Institu- cional, onde a análise do hospital psiquiátrico era dirigida pelos médicos-funcionários - todos psiquiatras, "comandantes do navio" e, freqüentemente, autoposicionados antes e acima de Deus -, encontraremos graves inconvenientes à defesa da análise interna. Ademais, essa pergunta fala de um possível risco para aqueles que, de alguma forma, têm a iniciativa de fazer uma análise "interna" institucional. Isto nos faz retornar ainda ao argumento que acabei de usar. As pessoas que se arriscam a fazer tal análise não sendo protegidas pela triangulação, não pertencendo ao staff do estabelecimento ou não estando comprometidas com rivalidades pelo poder, individuais ou grupais, dentro do estabelecimento ou incidindo sobre este (caso comum nas intervenções realizadas para e/ou pelo Estado), podem sofrer diretamente a repressão das autoridades. Em geral, a análise interna acaba se transformando numa luta interna pelo poder. Posso citar uma tentativa de análise interna que conheço bem, da qual participei, e que foi um fracasso total. Ocorreu em março de 1968, na Universidade de Nanterre, dentro do Departamento de Sociologia, de onde partiu a movimento de 68. À época, eu trabalhava neste Departamento e era assistente de Henri Lefebvre. Junto com alguns outros assistentes de Sociologia, Psicologia e Filosofia - e, também, com psicanalistas da corrente de Psicoterapia Institucional -, tive a idéia de lançar uma análise interna da universidade. A universidade estava em crise, havia muita violência entre grupos fascistas e de extrema esquerda. Nós, então, estabelecemos um dispositivo que, no pri- 42 SEGUNDO ENCONTRO meiro momento, remava pôr em análise todas as categorias sócioprofissionais da universidade: estudantes, professores, pessoas ligadas à administração: assim como os sindicatos, partidos políticos, grupos religiosos ... que atravessavam tanto estudantes quanto professores e grupo administrativo. Enviamos uma carta-convite a todos. Propúnhamos uma Assembléia Geral para dali a 15 dias, e nos propúnhamos como socioanalistas internos (apesar de tal conceito, à época, ainda não ter sido inventado). Enviamos cerca de 500 convites e obtivemos apenas duas respostas. A primeira veio do Reitor e de sua equipe da direção; a segunda, proponho que adivinhem. Tentem. Do Danny Cohn-Bendit e de seu pequeno grupo anarquista. É claro, ficamos muito surpresos; era um quadro de absurdo e de humor e, naturalmente, as duas respostas foram positivas. Óbvio, não era o suficiente para colocar em ação a dispositivo Assembléia Geral. Fomos, entretanto, novamente surpreendidos. No momento escolhido por nós para a Assembléia, a Movimento de 68 saía de Nanterre e eclodia em todas as cidades da França. O clima revolucionário estava lá e não esperou por nosso convite de análise interna. É a lembrança de um fracasso, mas, mesmo assim, é uma boa lembrança. Foi um fracasso por não termos conseguido reunir a Assembléia que prevíramos. Somente obtivéramos duas respostas ... um fracasso "técnico". Pausa. (Chega à mesa um texto, sem autor identificado, trazendo a questão que se segue). Pergunta: Ao mesmo tempo em que parece reafirmar aexistência de uma missão revolucionária da Análise Institucional - como, por exemplo, a missão de lutar contra a resistência da burocracia -, ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 43 você insiste, por outro lado, numa caracterização de nova ciência para análise social, como método novo, conceitos e paradigmas que se contrapõem aos da velha ciência. Por que devemos confiar nos propósitos dessa nova ciência? Qual a garantia de que esses novos especialistas realizaram a análise de suas implicações ou permitiram que elas fossem analisadas, se são eles que detêm o saber especializado de fazer a assembléia acontecer ou de criar uma autogestão artificial? Será que não estamos diante de uma nova modalidade de neutralidade axiológica? Assinado: Fluxo Anônimo. Lourau: Esse pequeno texto é uma excelente análise da situação atual da Análise Institucional na França. Felicito a senhor Fluxo Anônimo e gostaria de conhecê-lo. (O professor Lourau interroga com os olhos a platéia e todos se inquietam esperando a identificação do autor do texto. Nada ocorre. O palestrante maneia a cabeça, abandona dramaticamente os braços ao longo do corpo, emite um profundo suspiro e, se acomodando novamente ao assento, afirma espirituoso: "Ele é livre ... ". A questão, e a forma como esta foi apresentada, pareceu imprimir-lhe uma nova paixão.) Debates e conflitos bastante duros nos agitam quando pensamos tal questão. Trata-se da institucionalização de nossa corrente de pesquisa, de seu sucesso relativo, principalmente nas instituições universitária e editorial. Tudo isso oferece, talvez, uma imagem nova de nosso trabalho. Como diz a senhor Fluxo, podemos ter confiança numa corrente de "análise institucional" que avança para a sua institucionalização? Não creio que devamos negar essa contradição, mas expô-la, tornando-a, inclusive, mais concreta e viva ao falarmos das novas dificuldades no mercado de trabalho francês. 44 SEGUNDO ENCONTRO Como sabem, a França também convive com o desemprego. Este, sem dúvida, atinge também aos trabalhadores intelectuais. Alguns entre nós, institucionalistas, procuram se profissionalizar; em particular, nas empresas e indústrias. Por exemplo, há uma equipe trabalhando regularmente numa central nuclear. (Estas são muito importantes na França. Creio ser a país com o maior número de centrais nucleares do mundo atual.) Tais institucionalistas são objeto de críticas, algumas silenciosas e outras não tanto, por pane de outros institucionalistas. Trata-se de gerir a contradição, uma vez mais. Tenho ocupado um lugar bastante exposto nessa contradição: vejo-me obrigado a estabelecer um certo equilíbrio entre essas duas tendências. Por minha reputação - consideram-me um tanto puro e duro politicamente -, sou reclamado como uma espécie de "guardião da ortodoxia" e, no entanto, sinto um enorme interesse pelo que fazem alguns institucionalistas que compõem essa tendência moderna, dita "oportunista". Creio terem toda a razão para fazer a que fazem. Logo, a questão é pensar e analisar a contradição, e não ficar placidamente construindo pensamentos maniqueístas do tipo bom e mau. É necessário não se deixar perder as implicações sócio-econômicas, que são reais e estão dadas. Meu principal interesse por essa tendência "oportunista" deriva de pensar a Análise Institucional como, efetivamente, passível de trazer contribuições à gestão das empresas; contudo, além dessa questão teórico-política relacionada à amplitude de ação de nossa corrente, há em meu interesse outras fortes implicações libidinais. Atualmente, alguns de meus antigos alunos de Nanterre, de 1968, trabalham como socioanalistas para empresas, ou criaram suas próprias empresas. Sem dúvida, a formação e a saúde foram nossos dois primeiros terrenos de experimentação, mas isso não significa que ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 45 precisemos ficar presos às "origens" por toda a eternidade. As empresas formam hoje um novo "terreno" e, acredito, tão interessante quanto aqueles que tradicionalmente temos explorado. Estou de acordo com a análise do senhor Fluxo, mas a Análise Institucional está também atada ao fluxo da realidade. Coordenadora: Como estamos a quinze minutos do encerramento, talvez possam ser formuladas novas perguntas. Não necessariamente apenas por escrito, vocês também podem falar. Pergunta: O senhor falou em alienação, num dado momento de suas aulas. Existe relação entre este conceito e o de desimplicação? Lourau: Desimplicação e alienação falam de dois campos de coerência diferentes. Não pegamos de empréstimo o conceito de alienação da teoria marxista, porque não houve necessidade; já tínhamos o equivalente num outro sistema de referência (falei, ontem à noite, no conceito de analisador passando de Pavlov para a Psicoterapia lnstitucional e, depois, para a Análise Institucional). O conceito de alienação - bem marcado por seu contexto teórico - talvez tenha sido muito mal utilizado pelos marxistas que a esvaziaram bastante de significado (acontece ... quando se usa a conceito para qualquer coisa). Tornou-se um conceito muito amplo, como uma blusa bem larga ... Como dizem os filósofos, perdeu em compreensão e ganhou muito em extensão; é a obesidade do conceito. Talvez, por isso, não utilizemos diretamente essa palavra, alienação. 46 SEGUNDO ENCONTRO A desimplicação ou não-implicação, do mesmo modo que a sobre-implicação, exprime, para nós, movimentos dinâmicos, sejam positivos ou negativos. No entanto, a noção de alienação parece não mais ter esse dinamismo e descrever a situação real como uma coisa imóvel. Contudo, penso que a falta de dinamismo de tal conceito date de, talvez, menos de um século. O conceito envelheceu, como nós; talvez apenas um pouco mais rápido... Pergunta: Você falava da dificuldade de se fazer uma socioanálise a partir do lugar de funcionário do estabelecimento. Sua argumentação me pareceu entrar em conflito com a questão que você coloca depois - essa sim, a meu ver, uma coisa quase impossível de ocorrer: fazer socioanálise partindo do ponto de vista de uma empresa nuclear ou de uma multinacional qualquer; fazer socioanálise tendo sido chamado, contratado como um socioanalista. Parece-me relativamente possível alguém, tendo sido contratado para fazer Desenvolvimento Organizacional propor Socioanálise; no entanto, alguém contratado como interventor por uma estatal ou multinacional - pelo menos do que conheço de nossa realidade, pode até ser diferente na França -, necessariamente, só poderá fazer D. 0., seja numa iBM ou em qualquer outra empresa instalada no Brasil. Como você responde a isso? Lourau: Na verdade, retomamos a questão da encomenda. Encomendas bastante diferentes e diversas, não propriamente de Socioanálise, mas podendo nos levar a fazer alguma coisa que se assemelhe à Socioanálise. Voltemos, por exemplo, ao início de nossa experimentação, quando a Socioanálise não existia no mercado. Sem a definição (oferta), não pode haver a encomenda. ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 47 Tínhamos, até então, encomendas de consultoria, de formação, de coisas que, enfim, existiam no mercado. Aos poucos, construímos, praticamos e teorizamos o desvio dessa já dada encomenda. Transformamos encomenda em um conceito operacional e a análise desta passou a ser imprescindível à Socioanálise. Acredito que isso tenha relação com a questão apresentada. Há muitas aberturas e possibilidades de se tentar a socioanálise a partir de encomendas que não são propriamente de Análise Institucional. Seria importante, creio, precisar tais possibilidades.Pergunta: Só um esclarecimento. Quando se falou do conceito de alienação, você respondeu à questão formulada, como analista institucional ou como analista institucional específico da tendência libertária? Lourau: Acredito que só Deus saiba quem falou pela minha boca! Mais não posso dizer! ... Tenho uma boa formação marxista mas, antes de tudo, uma boa formação intelectual. Ontem, aliás, falei sobre o meu mestre Henri Lefebvre. Não sou marxista praticante, nem membro de nenhum partido, seja marxista, trotskista ou comunista ... Minha cultura marxista é de grande riqueza para mim e, no entanto, sempre fui um feroz crítico do marxismo - certamente trazendo algum desprazer, totalmente involuntário, a meu mestre. Uma vez, me permiti criticar Lênin diante dele. Ficou enraivecido e foi muito grosseiro. Disse-me: "Lênin, meu cu". Isso significava não ter eu qualquer direito a criticar Lênin. É verdade que o que denomino "tendência libertária" me ajudou, e ajuda, a compreender Marx e o marxismo. Sou resolutamente a favor de Bakunin 48 SEGUNDO ENCONTRO contra Marx. Faço alusão à história do grande conflito entre Bakunin e Marx, onde Marx saiu vitorioso, infelizmente. TERCEIRO ENCONTRO (28.04.93) ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 51 Começamos? Lembro que, na primeira aula, expus os conceitos paradigmáticos da Análise Institucional; recordo ainda que todos os conceitos socioanalíticos estão marcados pela contradição. Por exemplo, institucionalização e autodissolução. No encontro de ontem, falamos principalmente de conceitos operatórios em Socioanálise. Gostaria de fazer uma observação a esse respeito. Observei que muitas das perguntas não se referiam a conceitos operatórios; que vocês preferiram levantar questões gerais a abordá-los. Creio ter sido assim devido à minha exposição; foi muito cansativa. Hoje, estou me propondo a voltar a discutir um desses conceitos: a restituição. Sobre esta falei pouco, no entanto, é muito útil para apresentar aquilo que denomino técnica do diário de pesquisa. Tal técnica não se refere especificamente à pesquisa, mas ao processo do pesquisar. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, todos aqui estiveram ou estarão envolvidos na descrição e redação de uma pesquisa. A restituição, enquanto conceito socioanalítico, supõe que se deva, e se possa, falar de algumas coisas que, em geral, são deixadas à sombra. Essas coisas seriam as comumente silenciadas, faladas apenas em corredores, cafés, ou na intimidade do casal. De 52 TERCEIRO ENCONTRO fato, para nós, tais "coisas" são aquela "fala" institucional que não pode ser "ouvida" de forma pública. Há, freqüentemente, um aspecto de indiscrição no conceito de restituição e, mesmo, o risco de se cair na denúncia meramente recriminatória. É preciso estar muito atento quando se maneja essa técnica e a melhor maneira de combater seus riscos - a mera indiscrição, a acusação revanchista, as denúncias impotetizantes, as alianças espúrias e, até, irrefletidas ... - é aplicá-la a si mesmo. Ou seja, deve-se enunciar "coisas", e não denunciar outrem. Nesse sentido, farei uma restituição sobre as minhas tarefas de hoje. Esta manhã, fui convidado a ir à Petrobrás. Perguntei-me, diversas vezes se, indo, não traía a ortodoxia da Análise Institucional; se não estaria me arriscando a me vender à grande empresa pública de seu país. Devo dizer que não recebi tostão pela visita, portanto estou "duro", mas bastante tranqüilo com relação à ortodoxia. Após o almoço, trabalhei no Instituto de Medicina Social da UERJ. Não era nenhuma empresa, pública ou privada, logo, não tive problemas por estar ali. E também não fui pago por esse trabalho. . Como vêem, a restituição na socioanálise, para ser verdadeiramente construtiva, supõe o respeito a certas regras. Entre estas, certamente, as regras ontológicas da discrição, e as regras técnicas relativas à escolha do momento oportuno para a restituição. É um pouco como na vida cotidiana, quando escolhemos o que deve ser dito das coisas que pensamos (e quando). Realmente nunca dizemos tudo a que pensamos, não importa em qual situação. Nas intervenções, procuramos, em geral, reservar o início de cada sessão para a restituição. Se a sessão for pela manhã, faz-se a restituição logo após a almoço (inclusive de acontecimentos ocor- ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 53 ridos durante a momento do intervalo ou à refeição, que tenham sido considerados pertinentes ao trabalho por qualquer pessoa do grupo). No início da sessão do dia seguinte, fazemos a restituição do sucedido na noite anterior, considerando todo e qualquer acontecimento, inclusive sonhos, como possível material. Se as pessoas resolverem contar as suas aventuras eróticas, podem também fazê-lo. Nem sempre isso é penineme à socioanálise, mas ... Os sonhos, ao contrário, têm se revelado um excelente material à restituição. Pessoalmente, gosto muito de contar, como pane da restituição, meus sonhos ao grupo. Uma última coisa sobre a restituição como dispositivo socioanalítico: não se trata de simples informação. Não raro, para causar fortes efeitos no grupo, a ação de restituir independe da aparente importância do conteúdo da restituição. Às vezes é mais fácil a análise realmente dar a partida, se produzir, mediante a restituição de um acontecimento aparentemente banal. Bom, isso é o que podemos falar da restituição na técnica socioanalítica. Num segundo momento, gostaria de ampliar a noção, lembrando de coisas que vocês talvez conheçam; ou seja, o papel, cada vez maior, da restituição em trabalhos de campo das ciências humanas e sociais. Quer dizer, trabalho de pessoas concretas, como nós; no caso, sociólogos e psicólogos. Restituir às pessoas com quem trabalhamos a saber científico que se permitiu construir é uma idéia relativamente recente que, por muito tempo, escapou completamente aos pesquisadores. Os primeiros sociólogos de campo não se preocupavam em restituir à população estudada os resultados da pesquisa. Ou, simplesmente, falar da importância que teve essa população para a produção científica. Fazendo uma analogia, diria que também Freud não se deu conta da co-produção das mulheres histéricas na 54 TERCEIRO ENCONTRO teoria psicanalítica. E isto, mesmo tendo confessado – como outros psicanalistas confessaram - que, sem algumas de suas clientes, ele não poderia ter produzido sua teoria; que alguns dos conceitos psicanalíticos não foram produzidos por teoria, mas no diva - como, por exemplo, a famoso conceito de cura pela palavra, claramente produzido por uma de suas primeiras pacientes. A restituição apareceu como um verdadeiro problema no âmbito da etnologia de campo. Esta tem suas origens na etnologia colonialista e não se dá conta de que só poderia ser produzida (ter sua gênese teórico-social) numa situação colonialista em fase de destruição. Mais um saber, completamente político, pretendendo- se "neutro" ... O político que "invadia o científico" não era percebido por etnólogos ou demais pesquisadores de campo. Para que se realizasse uma verdadeira revolução epistemológica - introduzindo, na pesquisa de campo, a restituição do resultado à população estudada -, foi preciso um outro acontecimento político. Digo "outro", porque a epistemologia é, antes de tudo, política. Esse acontecimento político foi a processo de descolonização, ocorrido no mundo inteiro, modificando, na produção do saber antropológico, as sempre presentes e neglicenciadas relações de poder entre ciência e colonialismo. A descolonização produziu
Compartilhar