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Analise Institucional e Práticas de Pesquisa lourau

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RENÉ LOURAU NA UERJ 
 
 
 
1993 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL 
E PRÁTICAS DE PESQUISA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE 
DO ESTADO DO 
RIO DE JANEIRO 
 
UNIVERSIDADE DO 
ESTADO DO RIO DE JANEIRO 
 
Reitor 
Hesio Cordeiro 
 
Vice-Reitor 
José.Alexandre.Assed 
 
Sub- Reitora de Graduação 
Sandra Maria Correia de Sá Carneiro 
 
Sub-Reitor de Pós Graduação e Pesquisa 
Roberto ]osé Á vila Cavalcanti Bezerra 
 
Sub-Reitor para Assu ntos Comunitários 
Ricardo Vieiralves de Castro 
 
Diretora do Departamento de Extensão 
Ellen Márcia Peres 
 
Coordenadora de Programas de Extensão 
Liany Bonilla da Silveira Comino 
 
Coordenador de Interação Comunitária 
João Costa Batista 
 
Coordenador de Atividades de Extensão no Interior 
João José.Abrahão Covarnez 
 
Coordenadora da Divisão de Apoio a Projetos e Programas de 
Extensão 
Lúcia Maia 
APRESENTAÇÃO 
 
 
 
 
 
No período de 26 a 30 de abril de 1993, a convite do 
Departamento de Psicologia Social e Institucional/Instituto de 
Psicologia, a UERJ recebeu René Lourau, certamente o mais 
conhecido "praticante”- como ele mesmo gosta de se autonomear, 
cônscio e crítico das conotações religiosas do termo - da Análise 
Institucional. 
Durante estes cinco dias, o curso por ele ministrado e que 
transcrevemos neste volume, intitulado Análise Institucional e 
Práticas de Pesquisa, reuniu mais de 150 pessoas, evidenciando 
mais uma vez a ressonância que o Institucionalismo possui no Rio 
de Janeiro, fenômeno que o próprio Lourau analisa em seu, agora, 
texto. 
Acerca do mesmo, vale uma observação. Tendo sido o 
evento cuidadosamente gravado, procurou-se ao máximo 
preservar o tom coloquial das exposições de Lourau e dos debates 
com os presentes, eliminando apenas as eventualmente agradáveis 
redundâncias da fala que se transformam em inevitáveis 
aborrecimentos na escrita. 
Sobre o acontecimento-curso, algumas considerações mais 
detalhadas. Julgamos que a universidade pública deva fomentar o 
internacionalismo do pensamento. Para tanto, é desejável e mesmo 
indispensável que possa receber aqueles convidados estrangeiros 
cuja produção seja capaz de expandir, fecundar e confrontar-se 
com a nossa. Por isso mesmo, o curso foi oferecido gratuitamente 
a rodos os interessados e integralmente traduzido. Aos que 
supostamente se paralisam ante as eventuais dificuldades para 
organizar um encontro deste tipo, levantando as cansadas 
alegações de impossibilidades de trabalhar com grandes grupos 
heterogêneos ou de encontrar tradutores habilitados, respondemos 
com este curso e a presente publicação. A divulgação por folders 
ou pelo velho telefone multiplicou presenças e entusiasmos. 
Quatro tradutores não especializados tornaram palestras e debates 
acessíveis a rodos. 
A presente publicação dá continuidade a este movimento: 
análise generalizada e coletiva das instituições em jogo em todos 
os processos sociais, análise em ato das implicações dos 
"praticantes". 
Heliana de Barros Conde Rodrigues 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PRIMEIRO ENCONTRO 
(26.04.93) 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 7 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Boa noite. Começarei propondo um pequeno programa 
que vocês poderão modificar. Não será uma autogestão total mas, 
talvez, um início de co-gestão. A autogestão pedagógica é um 
empreendimento muito difícil e nós não a poderemos improvisar 
no pequeno intervalo temporal de uma semana. 
Neste nosso encontro, pensei em fazer urna apresentação 
geral da Análise Institucional, pontuando um aspecto muito 
importante que chamo de Novo Campo de Coerência. 
Toda nova disciplina ou novo espaço de saber entra em 
contradição com o saber então instituído. Isso acontece, por 
exemplo, com as disciplinas ministradas nas universidades. Essas 
se batem, a todo momento, contra novas disciplinas que lutam 
para se instituir. A Análise Institucional, qual as disciplinas que a 
precederam, tem forças de teor instituinte e entra, portanto, em 
contradição com o já instituído. Partindo de tal perspectiva, hoje 
desejo começar a expor conceitos paradigmáticos da Análise 
Institucional. No encontro de amanhã proponho abordar conceitos 
mais operacionais, embora essa distinção não seja absoluta. 
Falarei, então, de minhas pesquisas concretas sob o nome de 
Socioanálise. 
Para o encontro de quarta-feira, penso num tema mais espe-
cífico, a Psicoterapia Institucional, que me permitirá enfocar, rapi- 
8 PRIMEIRO ENCONTRO 
damente, urna das dificuldades encontradas, em Análise 
Institucional, quanto ao conceito de contratransferência 
institucional. Tentaremos, inclusive, apreciar a relação entre este 
conceito e o de implicação. 
Poderemos abordar as relações existentes entre a Análise 
Institucional e outras disciplinas, na quinta-feira. Por exemplo, 
com a Psicologia Social ou com a Psicanálise aplicada à pesquisa 
(e não referente à clínica), de George Devereux. Sou um 
sociólogo, não um clínico. Será possível, ainda, destacar as 
relações entre a Análise Institucional e a Sociologia, 
principalmenre a Sociologia de campo, e a Filosofia. Tudo isso de 
forma extremamente rápida, infelizmente, a menos que queiram 
insistir em algum desses pontos. Por mim, poderíamos discutir, 
durante cinco meses, a relação entre a Análise Institucional e a 
dialética de Hegel. Mas, infelizmente, não será possível. 
Pensei deixar para o último dia, sexta-feira, a discussão 
sobre as pesquisas em curso no departamento que me convidou, o 
de Psicologia Social e Institucional. Poderemos ver se faremos 
isso ou outra coisa. 
(Neste momento, o professor Lourau indaga se os presentes 
querem perguntar ou acrescentar algo. Não há resposta.) 
Para precisar o novo campo de coerência representado pela 
Análise Institucional, darei dois exemplos, por certo bem 
conhecidos de vocês. Em primeiro lugar, a aparição e o triunfo do 
campo de coerência sociológico; em segundo, a aparição e o 
triunfo do campo de coerência psicanalítico. Dois exemplos, entre 
muitos possíveis. 
O campo de coerência da Sociologia surgiu em contradição 
com a Sociologia ministrada, à época, nas universidades; ou seja, 
em contradição com o saber eminentemente teórico da Sociologia 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 9 
universitária. Lembremo-nos que os primeiros sociólogos fizeram 
escândalo e foram acusados das piores intenções contra a ordem 
moral. Eles destronaram a religião ... e a Filosofia. 
As novas explicações para o social que, hoje, formam um 
novo campo de coerência, não foram aceitas pelo instituído de 
então. Durkheirn, por exemplo, teve inúmeras dificuldades para 
impor seu trabalho. Não se pode confundir Durkheim com seus 
discípulos do século seguinte, pois, não tendo quaisquer 
dificuldades para impor o campo de coerência sociológico, já 
faziam parte do ora instituído. Durkheim foi instituinte. Seu 
campo de coerência aparecia à época como "loucura". O mesmo 
aconteceu a Freud quando propôs a Psicanálise: seu campo de 
coerência foi percebido, qual o de Durkheim, como incoerente. Já 
foi "loucura" pretender, como Freud, que a sexualidade tivesse um 
papel essencial em toda e qualquer atividade humana. 
Sem querer nos comparar a esses dois exemplos famosos, 
vale, contudo, dizer que há alguma semelhança entre o surgimento 
do campo da Análise Institucional e a aparição da Sociologia ou 
da Psicanálise. A Análise Institucional teve muitos inícios e, 
tambérn por essa amplitude, há severas dificuldades para se 
perceberseu campo de coerência. Creio ser mais fácil reconhecer 
e identificar o já conhecido, ou o instituído. Quanto ao "novo" - o 
"estranho", o "desconhecido" -, sempre temos podido isolá-lo 
como incoerente (e assim, ainda hoje, o fazemos). 
Qual é o escândalo da Análise Institucional? Talvez o de 
propor a noção de implicação. 
Quase todas as ciências estão baseadas na noção de não im-
plicação ou desimplicação. As "teorias da objetividade" se basei-
am na "teoria" da neutralidade. É claro que 
também outras disciplinas criticam essa idéia 
de objetividade; em particular, a Psicanáli- 
10 PRIMEIRO ENCONTRO 
se. De certa maneira, a Análise Institucional se situa no 
prolongamento do "escândalo psicanalítico" e, ao mesmo tempo, 
tenta explorar um outro campo de coerência, o de urna certa 
sociologia. 
Sabemos que a Psicanálise e algumas tendências da 
Sociologia e da Antropologia há muito se interrogam sobre a 
posição do pesquisador frente à sua produção. Portanto, não 
somos nem completamente novos nem originais. Propomos, ao 
contrário da idéia de "originalidade das idéias", a multi-
referencialidade. Esta não é sinônimo de pluridisciplinaridade; não 
é urna mera coleção de disciplinas justapostas. Refere-se ao apelo 
a diferentes métodos e ao uso de certos conceitos já existentes, a 
fim de construir um novo campo de coerência. 
Outras disciplinas também fizeram esse tipo de trabalho. 
Cito, por exemplo, a Psicoterapia Institucional que, de 
alguma forma, tomou de empréstimo a Pavlov alguns conceitos. A 
Análise Institucional, por sua vez, pediu de empréstimo o conceito 
de analisador a pesquisadores como Felix Guattari e, assim 
fazendo, também "emprestou" - ou "roubou", de maneira bizarra - 
o conceito de analisador a Pavlov. Aproveitamos o "furto" 
realizado por 
. nossos amigos da Psicoterapia Institucional, e eu diria, 
com bastante eficácia, em "nosso" conceito de analisador. 
Em um primeiro ponto de vista, a Análise Institucional 
pretende trabalhar a contradição, seguir uma lógica dialética em 
oposição à lógica identitária característica das demais ciências - à 
exceção da Psicanálise. Tenta analisar, em permanência, as suas 
próprias contradições, visto que só funciona dentro dessas 
(exatamente como qualquer ciência). Mas, reconhece isso; as 
outras ... não o procuram fazer. Nosso campo de coerência se 
apóia, essencialmente, na categoria de contradição. Os referenciais 
desse estão tanto em Hegel como em algumas formulações da 
lógica moderna. 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 11 
A primeira contradição da Análise Institucional aparece na 
preocupação que ternos, por um lado, com a coerência e, por 
outro, com a multi-referencialidade. Por um lado, podem nos 
acusar de dogmatismo; por outro, podem também nos acusar, só 
que de ecletismo. 
O segundo nível de contradição existe dentro de nossa teoria 
da instituição. Á diferença da Sociologia, e da Psicanálise, não 
consideramos a instituição um "prédio". Infelizmente, a idéia de 
instituição como algo objetivo domina quase todas as ciências 
sociais. Por exemplo, na França, e talvez no Brasil, os psicólogos 
dizem: "eu trabalho em uma instituição", como uma forma de 
capitalizar prestígio. Isso é um absurdo! Com o sentido que estão 
dando a esse termo, os operários também trabalham em 
instituição. E então, que status privilegiado requerem os 
"trabalhadores das (em) instituições"? Se utilizarmos o modelo de 
instituição desses psicólogos, podemos afirmar que uma fábrica é 
uma instituição, urna escola é urna instituição, quaisquer quatro 
paredes/muros ou, mesmo, qualquer forma de organização 
material ou jurídica é urna instituição. 
Esse uso abusivo da palavra instituição tem origem na teo-
logia cristã, no meu país e no de vocês também. Para nós, todavia, 
da Análise Institucional, instituição não é uma coisa observável, 
mas uma dinâmica contraditória construindo-se na (e em) histó-
ria, ou tempo. Tempo pode ser, por exemplo, dez anos para a 
institucionalização de crianças deficientes ou dois mil anos para a 
institucionalização da Igreja Católica. O tempo, o social-histórico, 
é sempre primordial, pois tomamos instituição como dinamismo, 
movimento; jamais como imobilidade. Até instituições como 
Igreja e Exército estão sempre em movimento, mesmo que não 
tenhamos essa impressão. O instituído, o status quo, atua com um 
12 PRIMEIRO ENCONTRO 
jogo de forças extremamente violento para produzir uma certa 
imobilidade; especialmente nos dois exemplos que acabei de dar. 
O que aprendemos, durante esses vinte anos de trabalho, foi 
conhecer melhor o instituído e os diversos níveis contraditórios na 
instituição. E é a isso que visa toda análise institucional, toda 
Socioanálise. 
Não podemos nos contentar em ver apenas as grandes 
contradições. Há que se observar a contradição no interior do 
instituído e, inclusive, a contradição no interior do instituinte. Por 
volta de 1968, tínhamos uma visão um tanto maniqueísta da 
instituição. O instituído era imóvel como a morte e sempre mau; o 
instituinte era vivo como um jovem, menino ou menina, e sempre 
muito bom. Teóricos como Georges Lapassade e Felix Guattari 
foram, em parte, responsáveis por tal visão. Eu também tenho 
responsabilidade sobre isso. 
Outra contradição paradigmática surge com relação ao 
conceito de institucionalização. A institucionalização é o devir, a 
história, o produto contraditório do instituinte e do instituído, em 
luta permanente, em constante contradição com as forças de 
autodissolução. A partir do estudo de alguns grupos instituintes 
(que têm, por característica, uma vida curtal, temos investigado 
essas forças de autodissolução. Utilizamo-nos, em geral, de grupos 
de avant-garde - vanguardas político-artístico-culturais; grupos 
onde arte, política, cultura e ciência se misturam. Esses costumam 
ser extremamente diferentes uns dos outros, mas todos afirmam a 
importância da autodissolução. 
Em meu livro - A autodissolução das vanguardas1 - 
escolhi, como material para a pesquisa, variados manifestos de 
 
1
 LOURAU, R. L'autodissolution des avant-gardes. Paris, Galilée, 1980. 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 13 
.autodissolução. O grupo de rock Sex Pistols, por exemplo, 
produziu um texto de sociologia magnífico, no momento de sua 
autodissoluçâo; assim como os surrealistas, a Internacional 
Situacionista, alguns grupos trotskistas, maoístas, anarquistas ... 
Igualmente rico é o texto de autodissolução da Escola Freudiana 
de Paris. Jacques Lacan me deu a autorização para reproduzi-lo 
em meu livro. Há também um texto, curto e bom, pertencente a 
uma sociedade de proteção aos animais, assinado por Brigitte 
Bardot (não pedi autorização para reproduzi-lo, pois ela já o 
publicara em jornal). 
O movimento, ou força de autodissolução, está sempre 
presente na instituição, embora esta possa ter a aparência de 
permanente e sólida. 
Há dez anos, quando me dediquei a essa pesquisa, a 
institucionalização do Partido Comunista Bolchevista da, então, 
União Soviética parecia um fenômeno natural e eterno. Em meu 
estudo, fiz uma brincadeira a esse respeito, perguntando: "quando 
o processo de autodissolução do Partido Comunista Bolchevista 
acontecerá?". Era um humor completamente abstrato, pensava. 
Exatamente dez anos depois, essa autodissolução foi instituída. 
Outro nível de contradição relevante para a Análise Institu-
cional é a existente na parte política de seu projeto. Para nós, o 
que se passa em algum momento da História - seja no Kremlin, 
por volta de 1920; na Espanha, de 36 e 37 (coletivização da indús-
tria, agricultura e serviços); ou na Argélia, nos anos de 62/63, 
apenas para citar alguns exemplosconhecidos -é importante como 
ponto de referência. A Análise Institucional não esconde que é 
política, porém tampouco oculta que em sua "política" está, como 
motriz, o conceito de autogestão. Ressalto, ainda, que este concei- 
14 PRIMEIRO ENCONTRO 
to é um dos mais contraditórios. Faço especial referência à 
autogestão pedagógica. 
Nós funcionamos, todos, em todos os lugares, sob a 
heterogestão; ou seja, "geridos" por "outrem". E a vivemos, 
geralmente, como coisa natural. A ciência política e todas as 
novas ciências da racionalidade econômica seguem por essa via. 
Pretendendo-se científicas, aceitam a instituído como natural, 
como se os homens tivessem uma natureza de escravos, como se 
sonhassem estar sempre submetidos a outros homens, e como se 
estes outros homens fossem super-homens... como se houvesse 
uma raça de homens superiores que naturalmente detém a 
propriedade privada da gestão "do mundo". As ciências são 
extremamente racistas. Consideram existentes duas raças de seres 
humanos: os dominantes e os dominados. A isso, se acrescente o 
racismo sexual: as mulheres como dominados. Esta afirmação 
talvez surpreenda; no entanto, é a verdade nua e crua. Nós 
aceitamos, eu e vocês, essas coisas racistas e inaceitáveis. 
Aceitamos todas as racionalizações da heterogestão e, em geral, a 
pensamos insuperável. Talvez porque não tenhamos, ainda, 
conseguido efetivamente inventar a autogestão. A autogestão que 
existe, a que tem podido existir, acontece dentro de uma 
contradição total, já que a vida cotidiana, a minha e também a de 
vocês, se passa no terreno da heterogestão. 
Gostaria agora de frisar uma outra contradição essencial, já 
citada anteriormenre. Refere-se à noção de implicação. 
Cotidianamente, preferimos não nos colocar muitos problemas e, 
"permitindo" que se dê a heterogestão, "confiamos" a "autogestão'' 
a outras pessoas. Isto alguns - Marx, por exemplo - chamam 
"alienação". Amamos nossa "alienação". Sentimos que é muito 
dolorosa a análise de nossas implicações; ou melhor, a análise dos 
"lugares" que ocupamos, ativamente, neste mundo. Ou, por exern- 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 15 
plo, em nosso local de trabalho. Um coletivo de trabalho urge que 
"ocultemos" de nós mesmos, digamos, 80% de seu funcionamento 
real (ou "relacional"). Inclusive, necessita desse "ocultamento" 
para funcionar. É a verdade, a realidade. Não é mau, apenas, 
contraditório. 
Tomando-me como exemplo: existe o risco de o professor 
estrangeiro se perceber como desimplicado, ou "irresponsável" – 
ao menos quanto à sua vida pessoal que pensa ter "deixado" em 
seu país de origem –, quando visita um outro país. Mas é claro 
que, mesmo "percebendo-me irresponsável", sou responsável pelo 
que faço aqui com vocês. Posso, porém, numa comparação 
exagerada, agir como no "mundo dos sonhos". Neste caso, todas 
as implicações de minha vida cotidiana na França são abolidas, 
suprimidas, à exceção de algumas poucas questões. Por exemplo, 
penso ter de telefonar para meu filho e minha filha. Eles ficariam 
muito contentes se eu lhes telefonasse do Brasil. Esta é uma 
implicação libidinal importante, mas muito limitada. 
Com relação à minha vida profissional, sinto-me livre, 
liberado da pressão dos colegas e alunos da Universidade de Paris 
VIII, onde trabalho. Estou "desimplicado" com relação a eles. 
Posso dizer besteiras, como jamais ousaria fazer na frente deles. 
Isso é verdade, por exemplo, em relação às duas pesquisas em que 
trabalhava antes de pegar o avião para cá. Sobre estas, poderei, 
talvez, falar melhor no próximo encontro. A primeira é em um 
Instituto Médico Educativo, que atende a crianças débeis. Dou 
supervisão à equipe de técnicos. A segunda é um trabalho de 
consultoria num colégio nos arredores de Paris, situado numa zona 
sensível, com muita violência – um ambiente de grandes 
diferenças étnicas e culturais – e problemas que, 
acredito, são também familiares ao país de vocês. 
Esse tipo de trabalho demanda e produz muitas 
16 PRIMEIRO ENCONTRO 
implicações. Verão que me conduzirei com "fugas" para discuti-
las. 
Uma outra contradição referente à implicação remete à 
pesquisa propriamente dita. Sabe-se, hoje, que o cientista confere 
à ciência os seus próprios valores, independente da posição 
ideológica que possui (seja esquerda, direita ou centro). Logo, a 
neutralidade axiológica, a decantada "objetividade", não existe. 
Mas a ciência necessita que ela "exista" e os cientistas, por vezes, 
nos fazem crer nessa "existência". Também eu, inúmeras vezes, 
acabo caindo nessa dupla armadilha. Sinto-me forçado, obrigado a 
parecer e a fazer acreditar na "neutralidade". Ao mesmo tempo, 
uma voz interior me acusa e alerta: "és um cretino, um imbecil!". 
Funcionamos com essa voz interior e, não raro, ensurdecemos a 
ela; caso contrário, certamente, ficaríamos definitivamente 
ensandecidos. 
Nesse sentido, a História – e em particular, a história das 
ciências – nos mostra as implicações do pesquisador em situação 
de pesquisa como o essencial do trabalho científico (mesmo tais 
implicações sendo negadas). Por exemplo, os pesquisadores do 
programa de energia atômica nuclear puderam negar, durante 
muito tempo, suas implicações e dizer: "isso não existe". Mas, 
alguns anos após Hiroshima, os mesmos escreveram mil páginas 
de confissão, onde afirmavam: "somos idiotas". E era tarde 
demais. Sequer era "científico". A Análise Institucional tenta, 
timidamente, ser um pouco mais científica. Quer dizer, tenta não 
fazer um isolamento entre o ato de pesquisar e o momento em que 
a pesquisa acontece na construção do conhecimento. Quando 
falamos em implicação com uma pesquisa, nos referimos ao 
conjunto de condições da pesquisa. Condições inclusive materiais, 
onde o dinheiro tem uma participação tão "econômica" quanto 
"libidinal". 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 17 
Hoje pela manhã, na televisão, um político brasileiro dizia 
que a política permite gozar de algumas vantagens. A palavra 
gozo me chamou a atenção, pois se aplica ao poder político e, 
igualmente, ao científico – já que a ciência é um instrumento de 
poder político. Por conseguinte, as implicações políticas e 
libidinais e, é claro, materiais (financeiras) são uma realidade no 
ato científico. Isto não é nenhuma abstração inventada pela 
Análise Institucional. Penso que tais implicações sempre fazem 
parte do processo de pesquisa, conforme o conhecemos, por mais 
difícil que seja analisá-las. Reconheço, contudo, que existem 
contradições entre este projeto científico/político de análise das 
implicações e o sentido "positivo" ou "positivista" de ciência. 
Podemos ilustrar melhor a teoria da implicação através de 
um pesquisador que, de alguma forma, teve uma participação 
indireta no Brasil e tem o seu templo aqui no Rio: Augusto 
Comte. Parece engraçado, mas Comte e o Positivismo nos 
ensinam muito sobre a teoria da implicação. Antes de passar às 
questões, gostaria de concluir minha exposição falando um pouco 
sobre isso. Não o previ no programa, mas me veio à cabeça ao 
final, da palestra. Gostamos de improvisação em Análise 
Institucional. E nosso lado "músicos de jazz"... Pena os músicos 
de jazz não serem, necessariamente, "institucionalistas". Ninguém 
é perfeito... Comte oferece um exemplo paradoxal, contraditório, 
que convém à Análise Institucional. Como bem sabem, inventou 
não só a Sociologia como a palavra sociologia. Há, ainda hoje, 
uma certa tendência das ciências sociais de se referirem a ele. É 
curioso observar o lema positivista da bandeira brasileira. 
Denuncia, sem dúvida, uma influência deste pensamento sobre a 
República do Brasil, em 1889. 
Havia dito que o instituído é muito violento, nem um pouco 
tranqüilo. O instituído nas ciênciassociais não escapa a essa 
18 PRIMEIRO ENCONTRO 
regra – nós ainda queremos esconder algumas "coisas incômodas". 
Por exemplo, o escândalo de Augusto Comte na "segunda fase", 
quando descobriu a importância do amor, criando um indesejável 
paradoxo com relação ao "primeiro Comte" – que eliminara de 
seu modelo científico o papel da subjetividade. Comte encontrou 
inúmeras dificuldades ao tentar fazer uma síntese entre os dois 
momentos de sua obra. Talvez porque essa fosse impossível. 
A Análise Institucional não pretende "sintetizar" melhor do 
que Augusto Comte. As tentativas do Freudo-marxisrno, de certa 
forma, tampouco chegaram a conseguir tal síntese. Nem a 
Psicossociologia construiu um campo de coerência unificado ou 
uniforme. Os jogos entre método objetivo e método subjetivo nos 
aparecem, em geral, como um campo de multi-referencialidade. E 
é por isso que Comte tem muitos méritos. Pelo menos, para nós. 
O mais interessante é tentar descobrir como Comte 
construiu o segundo método, o subjetivo. O primeiro o havia 
deixado louco. Ele sempre teve alguns "problemas mentais" ... E 
depois, o acontecimento decisivo: por volta de 48 anos, descobre o 
amor. Até então, freqüentara somente prostíbulos. Mas, de repente 
... o grande amor! O amor louco pela jovem irmã de um de seus 
discípulos! Podemos fazer interpretações freudianas 
imediatamente. Clotilde, a jovem namorada, infelizmente morreu 
muito nova. E Comte ficou desesperado. Ao mesmo tempo, 
sublimou, como diriam os psicanalistas, fazendo uma grande 
virada em toda a sua obra. É um exemplo, acredito, bastante raro 
na história das ciências. 
A construção do paradoxo em Comte se parece um pouco 
com a situação concreta da Análise Institucional. Isso não quer 
dizer que sejamos todos loucos; sequer sempre amorosos, infeliz-
mente. Mas que o amor e a loucura são "engrenagens" imprescin- 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 19 
díveis às mudanças. Talvez o surrealismo tenha contribuído para 
que aprendêssemos isso: é uma das nossas mais apreciadas 
referências. Gostaria ainda, posteriormente, de pensar um pouco 
mais com vocês sobre o exemplo de Comte e, quem sabe, 
construir relações entre este e a enorme dificuldade que os 
diferentes setores de ciências humanas têm para conviver com a 
multi-referencialidade. 
Uma vez mais, quero afirmar que a Análise Institucional 
não pretende fazer milagres. Apenas considera muito importante, 
para a construção de um novo campo de coerência, uma relação 
efetiva, e nítida, com a libido e com os sentimentos em geral. A 
teoria da implicação, nós veremos, tem qualquer coisa que flerta 
com a loucura. 
Agora, seria interessante discutir as perguntas que vocês, 
porventura, tenham a formular. 
 
Pergunta: Qual é a relação entre o sujeito do inconsciente, 
o sujeito da análise e a instituição? Isso não é uma exclusão? 
Como podemos articulá-los? (A pergunta viera formulada, por 
escrito, em francês. A tradutora pede que a responsável pela 
questão a formule em português, para todos. Descobre-se que tal 
pessoa já não se encontra no recinto.) 
 
Lourau: A pessoa nos propôs refletir sobre sua questão, 
durante sua ausência. O que acham? (Murmúrios dos presentes 
apontam a que se passe a novas questões.) Bem, então, 
prossigamos. 
 
Pergunta: Como você vê o fato de a Análise Institucional se 
desenvolver mais aqui, na América Latina, do que na Europa? 
20 PRIMEIRO ENCONTRO 
Lourau: Talvez seja abusar dos paradoxos dizer que a 
Análi-se Institucional é mais desenvolvida na América Latina do 
que na Europa. Isto é um pouco verdade, mas não tanto, na 
América Latina há uma penetração da Análise Institucional nas 
profissões de psicologia que não existe em nenhum país da 
Europa, nem mesmo na França. Talvez, por serem os principais 
pesquisadores franceses institucionalistas – se deixarmos de lado 
os primeiros, que foram todos psiquiatras –, em sua maioria, de 
formação política e/ou sociológica. Na Europa, não temos muito 
diálogo com os "psi"; na América Latina, no entanto, sentimos um 
grande interesse, por parte desses profissionais, na Análise 
Institucional. Minha hipótese é de que isto se deve, em parte, à 
questão política. 
Em países que conheceram regimes autoritários, parece que 
se reuniram condições para psicologizar a política e, assim, negá-
la. Alguns psicólogos, na América Latina – quem sabe, os mais 
lúcidos –,tendo consciência dessa situação, procuraram, e 
procuram talvez, meios diversos para se repolitizar. Agrada-me 
pensar que a Análise Institucional foi, e é, um desses meios, e que 
tem desempenhado um papel, poderíamos dizer, de politização 
daquilo que estaria sendo por demais psicologizado. 
Uma outra explicação poderia ser a influência do Marxismo 
na América Latina. Parece-me, e talvez me engane, que o 
Marxismo não teve, aqui, urna função educativa tão vasta quanto 
na Europa. Embora possa estar equivocado, assim sinto após 
algumas visitas a países da América Latina – México, Argentina, 
Uruguai e Brasil. A Análise Institucional serviria, penso, um 
pouco como um "substituto'' do Marxismo; mesmo não sendo uma 
teoria marxista, o reconhecemos, dentro da linha da multi-
referencialidade, como uma de nossas referências. Uma referência 
entre outras, porém imprescindível. Em particular, todo o relati- 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 21 
vo à Teoria do Estado nos marcou muito, através da obra de Henri 
Lefebvre. O sociólogo Lefebvre foi meu mestre, ainda que eu 
nunca tenha sido comunista e ele o tenha sido durante toda a sua 
vida. Seu marxismo aberto e anti-dogmático nos ajudou bastante. 
Na América Latina, talvez não tenham conhecido muito 
esse "marxismo da liberdade". Talvez tenham sido mais 
influenciados pelo neo-dogmatismo marxista; quiçá, o de Louis 
A1thusser. Não podemos julgar, tão facilmente, como as 
influências desempenham papéis num continente ou noutro. 
 
Pergunta: Durante sua explanação, você citou a teoria da 
alienação marxista. Como ela está relacionada à Análise 
Institucional? 
 
Lourau: Essa pergunta tem muita relação com a minha 
resposta anterior, pois Lefebvre trabalhou exaustivamente o 
conceito de alienação. Não integramos completamente esse 
conceito à Análise Institucional, mas trabalhamos, e com 
severidade, todos os teóricos marxistas da alienação, assim como, 
é claro, Hegel, que é a origem dessa teoria e não era marxista. 
A alienação se refere a um fenômeno real, como assinalei, 
diversas vezes, ao dizer que nós estamos, todos, dentro da 
heterogestão. É uma maneira de descrever nossas condições de 
existência e, particularmente, a condição da pesquisa para o 
pesquisador, da educação para o educador, etc... A separação, 
identificada à alienação, não foi estudada pelos marxistas como o 
foi por nós, pois o marxismo não possui o conceito de instituição. 
O Marxismo – falo de urna forma vaga, caricatural – considera o 
fenômeno da alienação de um modo muito geral, somente em 
termos da relação entre classes sociais. Do meu ponto de vista, tal 
concepção, apesar de exata, não nos permite análises concretas, 
22 PRIMEIRO ENCONTRO 
favorecendo discursos também muito gerais. Para o Marxismo, a 
instituição não é relevante: faz parte da superestrutura e não tem 
existência real, sendo apenas reflexo da base econômica. Quanto a 
essa divisão entre superestrutura e infra-estrutura, nos opomos ao 
marxismo. A instituição tem uma base material e é terrivelmente 
importante. Instituição não é um sinônimo de idéia. Teremos 
oportunidade de ver isso melhor nos próximos encontros. 
Existe um momento de ideologia nas instituições, usando-se 
o termo no sentido dialético hegeliano: é o momento da 
universalidade. Existe também o momento da particularidade– a 
primeira negação –, onde apreendemos a questão da base social e 
das relações entre as classes sociais. Até aí, estamos de acordo 
com Marx. Mas o terceiro momento não foi percebido por Marx, 
nem pelos marxistas. Não perceberam a importância da base 
material. O marxismo se diz materialista, mas é idealista, 
infelizmente. 
 
Pergunta: Você coloca a autogestão como um modo de 
operar legítimo, contraposto a um modo ilegítimo, a heterogestão. 
Existe um projeto de revolução que implemente a hegemonia da 
autogestão? Seria, dentro da lógica dessa normatização, feio, 
imoral ou ilegal, que em determinada circunstância se escolhesse 
operar num modelo de heterogestão? 
 
Lourau: Não existe questão de legitimidade e ilegitimidade 
quanto à hetero/autogestão. Se dei a impressão de falar nesses 
termos, ou operar tais separações, cometi um erro. Afirmei que há 
uma contradição entre autogestão e heterogestão; que vivemos na 
heterogestão, o que nos aliena, nos priva de nossa autonomia, de 
nossa liberdade. Talvez essa seja uma maneira de denominá-la 
"ilegítima". Mas, para pensarmos numa autogestão legítima ou 
numa 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 23 
heterogestão ilegítima, é importante que aprofundemos tais 
qualificações. Elas têm um "ar jurídico" que me incomoda. Ao 
mesmo tempo, entendo o sentido da questão. 
Quanto à existência de um programa revolucionário 
Contendo a idéia de autogestão, imagino que tenhamos as mesmas 
informações. Existem, em diversos países, movimentos e partidos 
políticos que falam da história da autogestão. Penso existirem no 
Brasil também. Acredito em micromovimentos autogestionários 
no Brasil, como em outros países da América Latina. Em 
Montevidéu, no Uruguai, por exemplo, existe uma comunidade 
anarquista, onde irei passar alguns dias na próxima semana, que 
pratica a autogestão, ou tenta praticá-la, tendo esta elementos de 
loucura e misticismo. Eles têm, inclusive, uma editora e publicam 
livros sobre autogestão. E também irão publicar um livro meu, 
brevemente. 
Na Europa, são principalmente as correntes anarquistas que 
conservam esse projeto em seu programa. Na França, os partidos 
de esquerda ofereceram projetos de autogestão como um 
programa de governo, nas eleições de 1981. Programa este que 
levou, então, a esquerda ao poder. Mas não foi uma coisa 
realmente seria. 
 
 
 
 
SEGUNDO ENCONTRO 
(27.04.93) 
 
 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 27 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Boa noite. Podemos começar, por favor. Ontem apresen- 
tei a Análise Institucional como tendo uma lógica da contradição - 
dialética, não identitária -, e introduzi algumas das principais 
contradições que formam a base de nossa teoria. Vou recordá-las, 
sem maiores comentários. 
Primeiramente, a contradição na construção de um campo 
de coerência. Um campo de coerência novo em relação ao que 
está instituído na ciência, e multi-referenciado nesse mesmo insti-
tuído. Com relação a essa multi-referencialidade, evidencia-se a 
recusa de um ponto de vista único. 
A segunda contradição situa-se entre o instituído e o 
instituinte. Assinalei que há contradição no interior do instituído e 
também no interior do instituinte. 
A terceira, localizei-a entre a institucionalização – pro- 
cesso normal do que "vem a ser" socialmente (e isso vale, por 
exemplo, tanto para um time de futebol quanto para uma soci-
edade psicanalítica) - e o processo de autodissolução – dinâ- 
mica, em geral invisível, que aparece freqüentemente provo- 
cando uma enorme e, não raro, total surpresa. Ilustrei com a 
exemplo do Partido Comunista Bolchevista, da extinta União 
Soviética. 
28 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
Apontei ainda um outro nível de contradição dialética: entre 
a autogestão e a heterogestão. 
Enfim, o último exemplo de contradição dialética: a 
existente entre a implicação e a neutralidade axiológica do 
objetivisrno habitual. Esta combate a análise de nossas 
implicações concretas, seja na pesquisa, na formação, ou em toda 
e qualquer prática social cotidiana. 
Concluí com um exemplo de que gosto muito, relativo ao 
fundador da Sociologia, Augusto Comte. Frisei, então, a 
importância da ruptura entre o que Cornte chama métodos 
objetivo e subjetivo - este descoberto após se ter apaixonado 
perdidamente por Clotilde. Pretendi mostrar, com tal exemplo, a 
importância da libido em nossas implicações; certamente tão 
importante quanto o poder e o dinheiro. 
Hoje me propus a apresentar os conceitos operatórios da 
Análise Institucional. A apresentação vai caminhar em certa 
desordem, pois esses conceitos não têm uma ordem lógica, 
estando sempre em relação dialética uns com os outros. Para 
melhor introduzi-los, seria necessário um quadro com três 
dimensões. Vamos representá-los, portanto, numa ordem apenas 
didática. 
Uma primeira noção importante é a de intervenção, 
largamente falada, extremamente banal. Na França, usa-se essa 
palavra para quase todas as atividades. Talvez no Brasil também. 
Mas existe um significado mais preciso do termo intervenção, em 
algumas teorias da Psicologia Social e Sociologia. Neste último 
caso, falamos de uma sociologia de intervenção, em oposição à 
sociologia do discurso (presente apenas em livros e artigos). 
Intervenção significa, aqui, que a pesquisador é, ao mesmo 
tempo, técnico e praticante. O termo praticante deve ser entendido 
como na religião católica. O católico distingue praticantes e 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 29 
 
não praticantes. Analogamente, posso dizer: Pierre Bourdieu 
é um sociólogo não praticante; eu sou um sociólogo praticante. 
O que entendemos por intervenção? Temos principalmente 
uma influência da intervenção psicossociológica, importada dos 
Estados Unidos, à época do Plano Marshall, Logicamente, não 
inventamos o método intervenção, mas propusemos outro tipo de 
intervenção psicossociológica, criticando os limites da habitual. 
A intervenção psicossociol6gica trabalha, em geral, com 
pequenos grupos. N6s também trabalhamos com pequenos grupos. 
Mas a Análise Institucional nasce precisamente da crítica à 
Psicossociologia (ou, vulgarmente, à psicologia dos pequenos 
grupos), já que Georges Lapassade fez aparecer o que, de alguma 
forma, estava escondido nesse modelo de análise de grupo. Ele 
reintroduziu uma coisa que estava fora dos grupos enquanto fora 
do campo da análise de grupo. E essa "coisa" era a instituição que 
faz, cria, molda, forma e é o grupo. 
Por exemplo, a não ser que passe pelo institucional, esse 
grupo que ora formamos não existe. A sua existência passa pelo 
institucional. Esse grupo pode ter também outras características. 
Podemos analisá-lo partindo de diversos paradigmas: paradigmas 
psicológicos, políticos, sistêrnicos, econômicos... No entanto, 
todas essas ações "expressam" (e se "expressam"), imprimem, 
precisamente, a dimensão institucional. 
O sentido do termo intervenção quando circunscrito à 
realidade dos grupos é a que chamamos de campo de intervenção. 
A intervenção socioanalítica se caracteriza pela consideração de 
um campo de análise e um campo de intervenção que não se 
confundem. O nosso modelo de análise de grupo se funda na 
compreensão de alguma coisa que é invisível e terrivelmente 
presente no grupo, como um espectro; isto é, a instituição. 
30 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
Nosso método de intervenção consiste em criar um 
dispositivo de análise social coletiva. Pontuamos o sentido do 
termo socioanálise no dispositivo de intervenção. 
O que é, então, esse dispositivo? Consiste em analisar 
coletivamente uma situação coletiva. Nesse sentido, o 
socioanalista tem trabalhos a fazer que não são, necessariamente,os de interpretação. Alguns, preferencialmente, se utilizam da 
interpretação; outros quase não a usam. Como em todas as linhas, 
há vários caminhos. 
Quando falo do trabalho socioanalítico, refiro-me à 
necessidade, à tentativa de se colocar em cena o dispositivo. 
Somos um tanto obsessivos nessa questão do dispositivo; 
descobrimo-lo como um instrumento de análise extraordinário. O 
dispositivo pode ser, por exemplo, a formação de uma Assembléia 
Geral, onde todas as pessoas envolvidas no processo de 
intervenção possam estar presentes. Todas as pessoas envolvidas, 
juntas num único lugar, onde iremos intervir. Essa Assembléia 
Geral não é necessariamente igual à dos sindicatos e partidos 
políticos. 
Hoje, pela manhã, houve uma assembléia geral nesta 
universidade, e não foi socioanalítica. Talvez pudesse ter se 
tornado uma Assembléia Geral socioanalítica, se os organizadores 
tivessem chamado uma equipe de socioanalistas. Certamente há 
muitos nesta universidade, além de um socioanalista francês. Mas 
não houve qualquer pedido de socioanálise. A equipe 
organizadora da Assembléia Geral ficou como único mestre do 
dispositivo. 
Na Assembléia Geral socioanalítica, há um dispositivo em 
triângulo. Existem: as pessoas que, a princípio, apenas vêm à 
Assembléia - os participantes -, a equipe organizadora, e a equipe 
de interventores (socioanalistas), São as relações entre esses três 
grupos que estudamos. O que propomos é a análise dessa relação, 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 31 
 
sob a forma de uma discussão coletiva. Geralmente é muito difícil 
realizá-la. Há sólidas resistências à análise coletiva em todo 
trabalho de intervenção. Essa resistência pode vir do grande 
grupo, chamado grupo-cliente, que é sempre dividido, nunca 
homogêneo, e tem as suas próprias contradições. Essa resistência 
pode vir da equipe que organizou o encontro, o acontecimento, 
que passou a encomenda de análise aos socioanalistas. E essa 
resistência pode vir... dos socioanalistas, 
Encomenda é um conceito operatório em socioanálise. Em 
outros métodos, contudo, vamos encontrar também análises de 
encomenda. A encomenda tem origem em demandas. Em uma 
socioanálise, por exemplo, em demandas individuais e dos grupos 
que compõem o grande grupo da intervenção em processo. Os 
responsáveis, as pessoas que têm autoridade para requerer uma 
intervenção que, enfim, passam a encomenda, também têm 
demandas individuais. Portanto, existe uma grande diversidade e 
muitas contradições entre todas as demandas possíveis da 
população envolvida. Para ocorrer um pedido de socioanálise, o 
grupo de organizadores, num primeiro momento, deve traduzir 
essas diversas demandas numa encomenda que lhes permita entrar 
em contato com a equipe de socioanalistas. Desde o início há, 
portanto, uma traição a tais demandas. A equipe de organizadores 
inicia seu trabalho construindo a encomenda. Esta encomenda é 
discutida com a equipe de interventores (os socioanalistas), antes 
que se comece efetivamente a intervenção. Sabemos, por 
experiência, que antes de iniciada a intervenção, todo o ocorrido 
entre essas duas equipes, em geral, fica em segredo. 
A socioanálise consiste em tornar público esse segredo. 
Diante da Assembléia Geral socioanalítica, a equipe-cliente (os 
 
32 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
organizadores) e a equipe de interventores restituem em detalhe - 
o que pode ser muito longo - o processo da encomenda. 
Há sempre conflitos entre essas duas equipes (equipe- 
cliente e equipe-interventora). O clima socioanalítico é, por 
característica, muito tenso. Os organizadores (equipe-clienre) 
podem ter o interesse em ocultar alguns "pequenos e irrelevantes 
detalhes". Por exemplo, sobre dinheiro e poder no 
estabelecimento. Os socioanalistas podem querer também 
esconder "coisas", já que não são de uma moralidade ou santidade 
incontestáveis. A análise coletiva começa a partir da primeira 
restituição. 
No que se refere à Assembléia Geral, freqüentemente 
pessoas ficam ausentes, ainda que sejam muito importantes para o 
trabalho. Não raro, nada se faz para que compareçam ou 
participem do processo de intervenção. Essa é uma das bem 
conhecidas formas de resistência à socioanálise. 
Nesse caso, a equipe dos socioanalistas pode intervir 
diretamente - de maneira muito enérgica, mas pacífica - para que 
se tente achar essas pessoas e fazê-las estar presentes. Trata-se de 
um trabalho quase material. É preciso que o dispositivo 
Assembléia funcione e que, a partir de então, possamos analisar a 
situação. 
Esses pequenos acontecimentos, sociais ou materiais, 
ocorrem não importa em qual assembléia geral. Normalmente, são 
tratados nos corredores ou escritórios, de forma burocratizada. A 
Socioanálise luta contra essa "resistência burocrática". É óbvio 
que a burocracia é sempre o mais forte, mas o confronto com esta, 
em geral, é muito instrutivo. 
Gostaria de frisar, antes de passarmos às perguntas, que a 
colocação em cena do dispositivo Assembléia Geral, da restituição 
da encomenda, da negociação entre equipe-cliente e equipe de 
interventores, o trabalho para que a Assembléia Geral seja a mais 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 33 
 
geral possível - mesmo que tal desejo comporte um ideal 
inacessível - são, em resumo, apenas alguns exemplos do que 
ocorre no processo de intervenção. 
Pergunta: Você falou sobre a diferença entre encomenda e 
demandas. Estas últimas não podem ser vistas como produzidas 
pela própria intervenção? 
Lourau: Creio que podemos responder sim, e não. Há 
demandas que preexistern ao trabalho socioanalítico. No entanto, 
ao pensar uma encomenda de intervenção, consideramos as 
demandas como "modificadas", pois influenciadas por essa nova 
situação; ou seja, elas têm, agora, relação com o projeto de 
convidar certa equipe de interventores. 
Outra etapa do processo, capaz de modificar e produzir 
demandas, é o momento de negociação entre a equipe-cliente e a 
equipe-interventora. Pensamos que a intervenção começa no 
instante preciso em que um membro da equipe-cliente retira do 
gancho o seu telefone, para ver se uma equipe de socioanalistas 
pode vir fazer uma intervenção. Esse primeiro gesto não é 
inocente; é fatal. 
Creio, por conseguinte, que não só é a encomenda 
produzida pela intervenção, mas que, em grande parte, também 
várias demandas são elaboradas por esse mesmo processo. É um 
caso não idêntico, mas similar, àquele da situação psicanalítica, 
mesmo que essas duas situações (intervenção socioanalítica e 
intervenção psicanalítica) sejam extremamente diferentes material 
e socialmente. Freqüenternenre frisamos que a presença de 
dispositivos criando o trabalho psicanalítico é um pomo em 
comum entre a Psicanálise e a Socioanálise. Trata-se, em ambos 
os casos, de situações completamenre artificiais. Mas, uma 
assembléia geral sindical também é artificial. 
A palavra artificial não tem um sentido pejorati- 
 
34 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
vo. A Socioanálise se propõe, tão somente, a analisar todos esses 
artifícios, ou dispositivos. Gostaria ainda de tecer algumas 
considerações suplementares, em torno da questão encomenda-
demandas, de forma a ampliar nosso campo de reflexões. 
O trabalho socioanalítico pode parecer monótono, 
mecânico, mas na realidade, como afirmei, é sempre muito 
conflituoso, já que contradições, ocultas até então, podem surgir, 
por exemplo, quando uma pessoa toma conhecimento de uma 
nova informação, uma coisa que ela "não deveria saber" e que 
estava escondida. Poderão acontecer coisas produzidas por 
indivíduos, isoladamente, ou ligadas a fenômenos de grupo. O 
emergir desses acontecimentos pode ser provocado, simplesmente, 
pelo modo de regulação da Assembléia Geral.E a Socioanáljse 
propõe sempre a autogestão. Desta forma, a princípio, nunca 
podemos prever o que irá ocorrer no processo da intervenção. A 
autogestão é um suporte, um instrumento valiosíssimo à análise. 
Não se trata, aqui, de uma autogestão real; não é a autogestão dos 
agricultores da Argélia. É uma autogestão-artifício, que faz parte 
do dispositivo Assembléia. 
No clima habitualmente emocional da Assembléia Geral, 
podem acontecer fenômenos de extremismo, tanto emocional 
corno político. Tais fenômenos podem igualmente existir também 
nas assembléias não socioanalíticas, de tipo sindical, estudantil, 
parlamentar, popular, etc. ... Todos os psicossociólogos deveriam 
estudar em profundidade essa história. O processo revolucionário 
em algumas assembléias é de uma riqueza extraordinária e, em 
certo sentido, tem vários pontos em comum com a intervenção 
socioanalítica. No entanto, quando se instaura, no processo 
histórico, um clima revolucionário - e pudemos constatar isso, em 
1968, na França - não se fazem necessários os socioanalistas. Na 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 35 
 
realidade, para nós seria a desemprego total. Aquilo que se passa 
espontaneamente num clima revolucionário, quanto ao 
funcionamento de uma assembléia, talvez seja o que tentamos 
reproduzir com um simulacro. A nossa referência política são, 
sempre, os movimentos revolucionários de massa. 
Aqueles acontecimentos que podem agitar a Assembléia 
Geral socioanalítica permitindo fazer surgir, com mais força, urna 
análise; que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição 
"invisível"; a esse tipo de acontecimentos chamamos 
ANALISADORES. 
 
Pergunta: Gostaria que fosse esclarecido, através de um 
exemplo, como é feito o processo de trazer pessoas ausentes de 
um modo enérgico. Pareceu-me um modo ligeiramente 
autoritário, já que parto do fato de serem as pessoas livres à não 
participação. 
 
Lourau: Creio, mesmo, ter iniciado minha exposição 
dizendo que as pessoa, são livres. Os socioanalistas não têm 
qualquer mandato institucional de poder. Não têm sequer o poder 
de constrangimento. O contrato com a equipe-cliente se baseia 
numa regra de maximizar a análise coletiva, sem isso não há a 
Socioanálise. Quando disse que fazemos muita força para realizar 
o dispositivo Assembléia Geral, fiz referência à energia que nós, 
de alguma forma, gastamos no esforço de fazer o mais coletiva 
possível a análise - não havia qualquer conotação policialesca. 
Não obrigamos quem quer que seja a ficar, sequer a estar, na 
Assembléia. A palavra enérgico pode produzir a confusão. Trata-
se, porém, de energia dentro do trabalho de análise. Configura a 
que chamo de sobreimplicação, que é um elemento subjetivo na 
análise das implicações. Isso que podemos nomear como 
investimento psicológico, costumo traduzir por gasto de energia. 
36 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
Pergunta: Você disse que os interventores são praticantes e 
que têm pontos de vista próprios; como a equipe de socioanálise 
se posiciona diante de demandas contrárias, de diferentes 
interesses? 
 
Lourau: É uma pergunta muito importante. A análise das 
implicações é o cerne do trabalho socioanalítico, e não consiste 
somente em analisar os outros, mas em analisar a si mesmo a todo 
momento, inclusive no momento da própria intervenção. As 
implicações em jogo podem ser claramente libidinais, por 
exemplo. Tanto num pequeno grupo quanto num grande, os afetos 
heterossexuais e homossexuais estão presentes o tempo todo, em 
qualquer situação da vida. Podem ocorrer também variadas 
seduções visando o exercício de uma certa hegemonia de poderes, 
tanto dentro do grupo de interventores como na relação deste com 
os demais grupos da intervenção. As implicações ideológicas e 
políticas estão, é claro, presentes a todo momento. 
Comumente estamos imersos em graves contradições: a 
equipe-cliente - que nos chamou, nos convidou, nos aceitou para 
fazer o trabalho e nos pagou; em geral constituída de pessoas que 
conhecem nossos pressupostos políticos e ideológicos e, 
necessariamente, não se contrapõem a estes - na situação concreta 
de intervenção, pode vir a se antagonizar conosco. Pode-se ter um 
acordo ideológico, e também referências políticas comuns e, no 
entanto, a situação de intervenção - que cria necessariamente 
tensões e conflitos - pode, de alguma forma, nos afastar durante o 
trabalho. Situação ainda muito comum é a contradição entre a 
ideologia dominante da equipe-cliente - que faz parte do grupo-
cliente - e a dos demais participantes deste grupo-cliente, que 
denominamos "a base". Esta é uma situação real no interior da 
situação artificial criada pelo dispositivo. Face à mesma, 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 37 
 
freqüentemente os socioanalistas escolhem seu campo. Não é 
fácil, mas como não acreditamos na neutralidade axiológica, nem 
no apoliticismo, somos levados a tomar posição. 
É também comum, nas intervenções socioanalíticas, ocorrer 
um fenômeno, à primeira vista contraditório, que denominamos 
caixa preta. A mesma equipe-cliente que nos passou a encomenda 
de intervenção se reúne em separado (caixa preta), por exemplo 
uma hora antes da Assembléia, como se preparando para 
"conduzir", "prever" ou "se defender" dos acontecimentos que, 
porventura, sejam "disparados" pelo dispositivo. De igual 
maneira, nós, os interventores, sentimos necessidade de uma 
reunião em separado (caixa preta) para avaliação de estratégias, 
análise das implicações e comentários gerais sobre o trabalho. 
As duas equipes (equipe-cliente e socioanalistas) podem, 
ainda, se encontrar em separado do restante do grupo para falar de 
algumas dificuldades. A esse acontecimento demos o nome de 
caixa vermelha. Tanto a caixa preta quanto a vermelha encontram-
se, hoje, incorporadas ao trabalho socioanalítico. 
Mas, apesar de tais reuniões - ou "encontros" -, é na 
Assembléia Geral que verdadeiramente se dá a trabalho de análise. 
É nela que emergem publicamente os confrontos, 
independentemente das caixas preta ou vermelha. Confrontos, 
inclusive, entre os próprios socioanalistas - às vezes, até de ordem 
política. O importante é a análise se tornar o mais pública e 
coletiva possível. E nem tudo é possível... Há resistências a se 
revelar e a se coletivizar “alguns segredos”, mesmo estes não 
sendo com relação a pertencer à máfia. Há militantes que até têm 
um lado um pouco "mafioso", que gostam d'O SEGREDO. 
Freqüentemente encontramos esse "prazer" no segredo 
relacionado à educação católica e/ou protestante, à moral do 
pecado e do íntimo. 
38 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
Retomando a questão anterior, não podemos forçar as pes-
soas a ir à Assembléia, ou a falar. Mas podemos analisar a blo-
queio produzido pela situação de segredo, ou mesmo, de ausên-
cia. Em todo caso, é muito difícil lidar com tais situações. Ainda 
mais se há divergências dentro da equipe socioanalítica. Como 
sabem, não temos uma linha política única. Alguns de nós são 
mais próximos do partido socialista; outros, de uma linha marxis-
ta/trotskista; outros ainda, como eu, do pensamento libertário... 
Muitas vezes há divergências, mas tampouco tentamos, forçada-
mente, criar consensos. 
Os conflitos geridos na Assembléia Geral costumam reper-
cutir dentro da equipe de interventores, assim como as questões de 
dinheiro e de libido. Podem, inclusive, criar muitos aconteci-
mentos engraçados, mas não temos tempo para que possa contá-
los a vocês. 
Pergunta: Você falou da assembléia socioanalítica como 
um dispositivo. Gostaria de saber se vão ser citados outros 
dispositivos, ou se a assembléia é a único ou mais importante 
dispositivo. 
Lourau: É necessário que se faça uma distinção entre a 
intervenção brevee a longa. No início de nosso movimento, fazía-
mos sobretudo intervenções breves, nas quais a construção da As-
sembléia Geral era um ponto tão fundamental que resumia, no 
fundo, toda a intervenção. Hoje, nas intervenções de longa dura-
ção, é apenas uma etapa da intervenção, e nada mais. Porém, é 
uma etapa indispensável. 
Já citei alguns de meus trabalhos recentes como, por exem-
plo, a intervenção em um instituto para crianças inadaptadas. Não 
falarei sobre o momento de elaboração da encomenda, porque isso 
seria muito longo. Constituímos uma equipe-cliente – prefe-
rencialmente acreditamos que assim o fizemos. Como é costume 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 39 
 
acontecer de tempos em tempos, a equipe-cliente se autodissolveu 
- não antes de ter conseguido, com sucesso, reunir uma 
Assembléia Geral. Desta, saiu um projeto de uma nova equipe. 
A partir desse ponto, imprimiu-se ao trabalho uma dada 
regularidade temporal. Vou ao estabelecimento uma vez por mês, 
falamos de uma futura Assembléia Geral, mas não funcionamos 
permanentemente com esse dispositivo. Funcionamos, antes, com 
um grupo-cliente composto por voluntários. Não temos como 
precisar, caso a caso, o quão "voluntária" é a inserção nesse grupo, 
pois esta se encontra marcada por uma forte instituição francesa a 
da formação continuada - e se vincula a perspectivas econômico-
profissionais. Compreendemos que a caráter "voluntário" desse 
grupo se encontra tão atravessado por tais contradições, que não 
sabemos - e essa é uma das questões de análise - se os membros 
do grupo (funcionários do estabelecimento citado) se sentem 
obrigados, individualmente, a vir às reuniões porque estas 
ocorrem no tempo da formação permanente - ou contínua -, ou se 
vêm por razões outras, diversas. É uma difícil análise das 
implicações. 
Percebe-se as pessoas motivadas para constituir uma 
Assembléia Geral, e resistindo à análise das implicações, ao 
"estar" no grupo, ao trabalho de intervenção e, paradoxalmente, à 
própria demanda de Assembléia Geral. Assim sendo, há uma 
permanente autodissolução dessa equipe-cliente, entre constantes 
"comparecimentos" e "faltas". Encontramo-nos, ainda hoje, como 
numa situação inicial, onde a relação equipe de 
socioanalistas/intervenção é efetuada unicamente pela direção do 
estabelecimento. 
Temos ainda uma outra complicação: desde a primeira 
Assembléia Geral, um grupo de pessoas se recusou a participar da 
socioanálise. Portanto, a esse grupo-cliente, não estando "comple- 
 
40 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
to", faltaria uma certa "transversalidade" , como diria Guattari. A 
categoria que nos boicotou não aceitando participar da 
socioanálise é composta pelo grupo médico do estabelecimento. 
Parece que têm "alergia" à Socioanálise. Como não sou médico, 
não posso cuidar dessa "alergia". Também não posso, é claro, 
fazê-los comparecer à força. No entanto, tais questões têm 
colocado em segundo plano a dispositivo Assembléia Geral. 
Em resumo, a Assembléia Geral, numa intervenção de longa 
duração, é um instrumento periódico e, na socioanálise breve, um 
instrumento condensador e potencializador do processo. 
 
Pergunta: O que você acha da possibilidade de intervenção 
em instituições onde se estivesse trabalhando como funcionário 
contratado; onde não houvesse quaisquer encomendas de 
socioanálise, mas a referencial teórico/prático do funcionário em 
questão [osse a Análise Institucional? Como ficaria a situação 
das implicações, incluindo os perigos de perseguição e de 
violência simbólica? 
 
Lourau: Essa pergunta aborda o problema da socioanálise 
interna, que ainda não tive tempo de falar. Estamos muito dividi-
dos com relação a essa questão. Num certo sentido, concordamos 
com a possibilidade de a "análise interna" se efetivar concreta-
mente mas, apesar de considerá-la possível, algo me preocupa: a 
supressão da triangulação sobre a qual falei anteriormente. A au-
sência de um interventor "de fora" - que possa não estar total-
mente comprometido com qualquer dos vários grupos que fazem 
funcionar a estabelecimento - pode favorecer a criação de uma 
falsa equipe de interventores no interior desse mesmo estabeleci-
mento. É claro que essa equipe de interventores interna tem chan-
ces de ser composta por pessoas que comumente detêm a poder no 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 41 
 
dito estabelecimento e, sob esta perspectiva, a questão do poder 
ficaria como algo inanalisável. 
Se retornarmos à situação original da Psicoterapia Institu-
cional, onde a análise do hospital psiquiátrico era dirigida pelos 
médicos-funcionários - todos psiquiatras, "comandantes do navio" 
e, freqüentemente, autoposicionados antes e acima de Deus -, 
encontraremos graves inconvenientes à defesa da análise interna. 
Ademais, essa pergunta fala de um possível risco para 
aqueles que, de alguma forma, têm a iniciativa de fazer uma 
análise "interna" institucional. Isto nos faz retornar ainda ao 
argumento que acabei de usar. As pessoas que se arriscam a fazer 
tal análise não sendo protegidas pela triangulação, não 
pertencendo ao staff do estabelecimento ou não estando 
comprometidas com rivalidades pelo poder, individuais ou 
grupais, dentro do estabelecimento ou incidindo sobre este (caso 
comum nas intervenções realizadas para e/ou pelo Estado), podem 
sofrer diretamente a repressão das autoridades. 
Em geral, a análise interna acaba se transformando numa 
luta interna pelo poder. Posso citar uma tentativa de análise 
interna que conheço bem, da qual participei, e que foi um fracasso 
total. Ocorreu em março de 1968, na Universidade de Nanterre, 
dentro do Departamento de Sociologia, de onde partiu a 
movimento de 68. À época, eu trabalhava neste Departamento e 
era assistente de Henri Lefebvre. Junto com alguns outros 
assistentes de Sociologia, Psicologia e Filosofia - e, também, com 
psicanalistas da corrente de Psicoterapia Institucional -, tive a 
idéia de lançar uma análise interna da universidade. A 
universidade estava em crise, havia muita violência entre grupos 
fascistas e de extrema esquerda. Nós, então, 
estabelecemos um dispositivo que, no pri- 
 
42 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
meiro momento, remava pôr em análise todas as categorias 
sócioprofissionais da universidade: estudantes, professores, 
pessoas ligadas à administração: assim como os sindicatos, 
partidos políticos, grupos religiosos ... que atravessavam tanto 
estudantes quanto professores e grupo administrativo. 
Enviamos uma carta-convite a todos. Propúnhamos uma 
Assembléia Geral para dali a 15 dias, e nos propúnhamos como 
socioanalistas internos (apesar de tal conceito, à época, ainda não 
ter sido inventado). Enviamos cerca de 500 convites e obtivemos 
apenas duas respostas. A primeira veio do Reitor e de sua equipe 
da direção; a segunda, proponho que adivinhem. Tentem. Do 
Danny Cohn-Bendit e de seu pequeno grupo anarquista. É claro, 
ficamos muito surpresos; era um quadro de absurdo e de humor e, 
naturalmente, as duas respostas foram positivas. Óbvio, não era o 
suficiente para colocar em ação a dispositivo Assembléia Geral. 
Fomos, entretanto, novamente surpreendidos. No momento 
escolhido por nós para a Assembléia, a Movimento de 68 saía de 
Nanterre e eclodia em todas as cidades da França. O clima 
revolucionário estava lá e não esperou por nosso convite de 
análise interna. É a lembrança de um fracasso, mas, mesmo assim, 
é uma boa lembrança. Foi um fracasso por não termos conseguido 
reunir a Assembléia que prevíramos. Somente obtivéramos duas 
respostas ... um fracasso "técnico". 
Pausa. 
(Chega à mesa um texto, sem autor identificado, trazendo a 
questão que se segue). 
 
Pergunta: Ao mesmo tempo em que parece reafirmar aexistência de uma missão revolucionária da Análise 
Institucional - como, por exemplo, a missão de 
lutar contra a resistência da burocracia -, 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 43 
 
você insiste, por outro lado, numa caracterização de nova ciência 
para análise social, como método novo, conceitos e paradigmas 
que se contrapõem aos da velha ciência. Por que devemos confiar 
nos propósitos dessa nova ciência? Qual a garantia de que esses 
novos especialistas realizaram a análise de suas implicações ou 
permitiram que elas fossem analisadas, se são eles que detêm o 
saber especializado de fazer a assembléia acontecer ou de criar 
uma autogestão artificial? Será que não estamos diante de uma 
nova modalidade de neutralidade axiológica? Assinado: Fluxo 
Anônimo. 
Lourau: Esse pequeno texto é uma excelente análise da 
situação atual da Análise Institucional na França. Felicito a senhor 
Fluxo Anônimo e gostaria de conhecê-lo. (O professor Lourau 
interroga com os olhos a platéia e todos se inquietam esperando a 
identificação do autor do texto. Nada ocorre. O palestrante maneia 
a cabeça, abandona dramaticamente os braços ao longo do corpo, 
emite um profundo suspiro e, se acomodando novamente ao 
assento, afirma espirituoso: "Ele é livre ... ". A questão, e a forma 
como esta foi apresentada, pareceu imprimir-lhe uma nova 
paixão.) 
Debates e conflitos bastante duros nos agitam quando 
pensamos tal questão. Trata-se da institucionalização de nossa 
corrente de pesquisa, de seu sucesso relativo, principalmente nas 
instituições universitária e editorial. Tudo isso oferece, talvez, 
uma imagem nova de nosso trabalho. Como diz a senhor Fluxo, 
podemos ter confiança numa corrente de "análise institucional" 
que avança para a sua institucionalização? Não creio que devamos 
negar essa contradição, mas expô-la, tornando-a, inclusive, mais 
concreta e viva ao falarmos das novas dificuldades no mercado de 
trabalho francês. 
44 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
Como sabem, a França também convive com o desemprego. 
Este, sem dúvida, atinge também aos trabalhadores intelectuais. 
Alguns entre nós, institucionalistas, procuram se profissionalizar; 
em particular, nas empresas e indústrias. Por exemplo, há uma 
equipe trabalhando regularmente numa central nuclear. (Estas são 
muito importantes na França. Creio ser a país com o maior 
número de centrais nucleares do mundo atual.) Tais 
institucionalistas são objeto de críticas, algumas silenciosas e 
outras não tanto, por pane de outros institucionalistas. Trata-se de 
gerir a contradição, uma vez mais. Tenho ocupado um lugar 
bastante exposto nessa contradição: vejo-me obrigado a 
estabelecer um certo equilíbrio entre essas duas tendências. Por 
minha reputação - consideram-me um tanto puro e duro 
politicamente -, sou reclamado como uma espécie de "guardião da 
ortodoxia" e, no entanto, sinto um enorme interesse pelo que 
fazem alguns institucionalistas que compõem essa tendência 
moderna, dita "oportunista". Creio terem toda a razão para fazer a 
que fazem. Logo, a questão é pensar e analisar a contradição, e 
não ficar placidamente construindo pensamentos maniqueístas do 
tipo bom e mau. É necessário não se deixar perder as implicações 
sócio-econômicas, que são reais e estão dadas. Meu principal 
interesse por essa tendência "oportunista" deriva de pensar a 
Análise Institucional como, efetivamente, passível de trazer 
contribuições à gestão das empresas; contudo, além dessa questão 
teórico-política relacionada à amplitude de ação de nossa corrente, 
há em meu interesse outras fortes implicações libidinais. 
Atualmente, alguns de meus antigos alunos de Nanterre, de 1968, 
trabalham como socioanalistas para empresas, ou criaram suas 
próprias empresas. 
Sem dúvida, a formação e a saúde foram nossos dois 
primeiros terrenos de experimentação, mas isso não significa que 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 45 
 
precisemos ficar presos às "origens" por toda a eternidade. As 
empresas formam hoje um novo "terreno" e, acredito, tão 
interessante quanto aqueles que tradicionalmente temos explorado. 
Estou de acordo com a análise do senhor Fluxo, mas a 
Análise Institucional está também atada ao fluxo da realidade. 
 
Coordenadora: 
 
Como estamos a quinze minutos do encerramento, talvez 
possam ser formuladas novas perguntas. Não necessariamente 
apenas por escrito, vocês também podem falar. 
 
Pergunta: O senhor falou em alienação, num dado 
momento de suas aulas. Existe relação entre este conceito e o de 
desimplicação? 
 
Lourau: Desimplicação e alienação falam de dois campos 
de coerência diferentes. Não pegamos de empréstimo o conceito 
de alienação da teoria marxista, porque não houve necessidade; já 
tínhamos o equivalente num outro sistema de referência (falei, 
ontem à noite, no conceito de analisador passando de Pavlov para 
a Psicoterapia lnstitucional e, depois, para a Análise Institucional). 
O conceito de alienação - bem marcado por seu contexto teórico - 
talvez tenha sido muito mal utilizado pelos marxistas que a 
esvaziaram bastante de significado (acontece ... quando se usa a 
conceito para qualquer coisa). Tornou-se um conceito muito 
amplo, como uma blusa bem larga ... Como dizem os filósofos, 
perdeu em compreensão e ganhou muito em extensão; é a 
obesidade do conceito. Talvez, por isso, não utilizemos 
diretamente essa palavra, alienação. 
46 SEGUNDO ENCONTRO 
 
 
A desimplicação ou não-implicação, do mesmo modo que a 
sobre-implicação, exprime, para nós, movimentos dinâmicos, 
sejam positivos ou negativos. No entanto, a noção de alienação 
parece não mais ter esse dinamismo e descrever a situação real 
como uma coisa imóvel. Contudo, penso que a falta de dinamismo 
de tal conceito date de, talvez, menos de um século. O conceito 
envelheceu, como nós; talvez apenas um pouco mais rápido... 
 
Pergunta: Você falava da dificuldade de se fazer uma 
socioanálise a partir do lugar de funcionário do estabelecimento. 
Sua argumentação me pareceu entrar em conflito com a questão 
que você coloca depois - essa sim, a meu ver, uma coisa quase 
impossível de ocorrer: fazer socioanálise partindo do ponto de 
vista de uma empresa nuclear ou de uma multinacional qualquer; 
fazer socioanálise tendo sido chamado, contratado como um 
socioanalista. Parece-me relativamente possível alguém, tendo 
sido contratado para fazer Desenvolvimento Organizacional 
propor Socioanálise; no entanto, alguém contratado como 
interventor por uma estatal ou multinacional - pelo menos do que 
conheço de nossa realidade, pode até ser diferente na França -, 
necessariamente, só poderá fazer D. 0., seja numa iBM ou em 
qualquer outra empresa instalada no Brasil. Como você responde 
a isso? 
 
Lourau: Na verdade, retomamos a questão da encomenda. 
Encomendas bastante diferentes e diversas, não propriamente de 
Socioanálise, mas podendo nos levar a fazer alguma coisa que se 
assemelhe à Socioanálise. Voltemos, por exemplo, ao início de 
nossa experimentação, quando a Socioanálise não existia no 
mercado. Sem a definição (oferta), não pode haver a encomenda. 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 47 
 
Tínhamos, até então, encomendas de consultoria, de 
formação, de coisas que, enfim, existiam no mercado. Aos poucos, 
construímos, praticamos e teorizamos o desvio dessa já dada 
encomenda. Transformamos encomenda em um conceito 
operacional e a análise desta passou a ser imprescindível à 
Socioanálise. Acredito que isso tenha relação com a questão 
apresentada. Há muitas aberturas e possibilidades de se tentar a 
socioanálise a partir de encomendas que não são propriamente de 
Análise Institucional. Seria importante, creio, precisar tais 
possibilidades.Pergunta: Só um esclarecimento. Quando se falou do 
conceito de alienação, você respondeu à questão formulada, como 
analista institucional ou como analista institucional específico da 
tendência libertária? 
 
Lourau: Acredito que só Deus saiba quem falou pela minha 
boca! Mais não posso dizer! ... Tenho uma boa formação marxista 
mas, antes de tudo, uma boa formação intelectual. Ontem, aliás, 
falei sobre o meu mestre Henri Lefebvre. Não sou marxista 
praticante, nem membro de nenhum partido, seja marxista, 
trotskista ou comunista ... Minha cultura marxista é de grande 
riqueza para mim e, no entanto, sempre fui um feroz crítico do 
marxismo - certamente trazendo algum desprazer, totalmente 
involuntário, a meu mestre. Uma vez, me permiti criticar Lênin 
diante dele. Ficou enraivecido e foi muito grosseiro. Disse-me: 
"Lênin, meu cu". Isso significava não ter eu qualquer direito a 
criticar Lênin. É verdade que o que denomino "tendência 
libertária" me ajudou, e ajuda, a compreender Marx 
 e o marxismo. Sou resolutamente a favor de Bakunin 
 
 
48 SEGUNDO ENCONTRO 
 
contra Marx. Faço alusão à história do grande conflito entre 
Bakunin e Marx, onde Marx saiu vitorioso, infelizmente.
 
 
 
 
 
 
TERCEIRO ENCONTRO 
(28.04.93) 
 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 51 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Começamos? Lembro que, na primeira aula, expus os 
conceitos paradigmáticos da Análise Institucional; recordo ainda 
que todos os conceitos socioanalíticos estão marcados pela 
contradição. Por exemplo, institucionalização e autodissolução. 
No encontro de ontem, falamos principalmente de conceitos 
operatórios em Socioanálise. Gostaria de fazer uma observação a 
esse respeito. Observei que muitas das perguntas não se referiam a 
conceitos operatórios; que vocês preferiram levantar questões 
gerais a abordá-los. Creio ter sido assim devido à minha 
exposição; foi muito cansativa. 
Hoje, estou me propondo a voltar a discutir um desses 
conceitos: a restituição. Sobre esta falei pouco, no entanto, é muito 
útil para apresentar aquilo que denomino técnica do diário de 
pesquisa. Tal técnica não se refere especificamente à pesquisa, 
mas ao processo do pesquisar. Acredito que, mais cedo ou mais 
tarde, todos aqui estiveram ou estarão envolvidos na descrição e 
redação de uma pesquisa. 
A restituição, enquanto conceito socioanalítico, supõe que 
se deva, e se possa, falar de algumas coisas que, em geral, são 
deixadas à sombra. Essas coisas seriam as comumente silenciadas, 
faladas apenas em corredores, cafés, ou na intimidade do casal. De 
52 TERCEIRO ENCONTRO 
 
fato, para nós, tais "coisas" são aquela "fala" institucional que não 
pode ser "ouvida" de forma pública. Há, freqüentemente, um 
aspecto de indiscrição no conceito de restituição e, mesmo, o risco 
de se cair na denúncia meramente recriminatória. É preciso estar 
muito atento quando se maneja essa técnica e a melhor maneira de 
combater seus riscos - a mera indiscrição, a acusação revanchista, 
as denúncias impotetizantes, as alianças espúrias e, até, irrefletidas 
... - é aplicá-la a si mesmo. Ou seja, deve-se enunciar "coisas", e 
não denunciar outrem. 
Nesse sentido, farei uma restituição sobre as minhas tarefas 
de hoje. Esta manhã, fui convidado a ir à Petrobrás. Perguntei-me, 
diversas vezes se, indo, não traía a ortodoxia da Análise 
Institucional; se não estaria me arriscando a me vender à grande 
empresa pública de seu país. Devo dizer que não recebi tostão pela 
visita, portanto estou "duro", mas bastante tranqüilo com relação à 
ortodoxia. 
Após o almoço, trabalhei no Instituto de Medicina Social da 
UERJ. Não era nenhuma empresa, pública ou privada, logo, não 
tive problemas por estar ali. E também não fui pago por esse 
trabalho. . 
Como vêem, a restituição na socioanálise, para ser 
verdadeiramente construtiva, supõe o respeito a certas regras. 
Entre estas, certamente, as regras ontológicas da discrição, e as 
regras técnicas relativas à escolha do momento oportuno para a 
restituição. É um pouco como na vida cotidiana, quando 
escolhemos o que deve ser dito das coisas que pensamos (e 
quando). Realmente nunca dizemos tudo a que pensamos, não 
importa em qual situação. 
Nas intervenções, procuramos, em geral, reservar o início de 
cada sessão para a restituição. Se a sessão for pela manhã, faz-se a 
restituição logo após a almoço (inclusive de acontecimentos ocor- 
ANÁLISE INSTITUCIONAL E PRÁTICAS DE PESQUISA 53 
ridos durante a momento do intervalo ou à refeição, que tenham 
sido considerados pertinentes ao trabalho por qualquer pessoa do 
grupo). No início da sessão do dia seguinte, fazemos a restituição 
do sucedido na noite anterior, considerando todo e qualquer 
acontecimento, inclusive sonhos, como possível material. Se as 
pessoas resolverem contar as suas aventuras eróticas, podem 
também fazê-lo. Nem sempre isso é penineme à socioanálise, mas 
... Os sonhos, ao contrário, têm se revelado um excelente material 
à restituição. Pessoalmente, gosto muito de contar, como pane da 
restituição, meus sonhos ao grupo. 
Uma última coisa sobre a restituição como dispositivo 
socioanalítico: não se trata de simples informação. Não raro, para 
causar fortes efeitos no grupo, a ação de restituir independe da 
aparente importância do conteúdo da restituição. Às vezes é mais 
fácil a análise realmente dar a partida, se produzir, mediante a 
restituição de um acontecimento aparentemente banal. Bom, isso é 
o que podemos falar da restituição na técnica socioanalítica. 
Num segundo momento, gostaria de ampliar a noção, 
lembrando de coisas que vocês talvez conheçam; ou seja, o papel, 
cada vez maior, da restituição em trabalhos de campo das ciências 
humanas e sociais. Quer dizer, trabalho de pessoas concretas, 
como nós; no caso, sociólogos e psicólogos. 
Restituir às pessoas com quem trabalhamos a saber 
científico que se permitiu construir é uma idéia relativamente 
recente que, por muito tempo, escapou completamente aos 
pesquisadores. 
Os primeiros sociólogos de campo não se preocupavam em 
restituir à população estudada os resultados da pesquisa. Ou, 
simplesmente, falar da importância que teve essa população para a 
produção científica. Fazendo uma analogia, diria que também 
Freud não se deu conta da co-produção das mulheres histéricas na 
 
54 TERCEIRO ENCONTRO 
 
teoria psicanalítica. E isto, mesmo tendo confessado – como 
outros psicanalistas confessaram - que, sem algumas de suas 
clientes, ele não poderia ter produzido sua teoria; que alguns dos 
conceitos psicanalíticos não foram produzidos por teoria, mas no 
diva - como, por exemplo, a famoso conceito de cura pela palavra, 
claramente produzido por uma de suas primeiras pacientes. 
A restituição apareceu como um verdadeiro problema no 
âmbito da etnologia de campo. Esta tem suas origens na etnologia 
colonialista e não se dá conta de que só poderia ser produzida (ter 
sua gênese teórico-social) numa situação colonialista em fase de 
destruição. Mais um saber, completamente político, pretendendo-
se "neutro" ... O político que "invadia o científico" não era 
percebido por etnólogos ou demais pesquisadores de campo. Para 
que se realizasse uma verdadeira revolução epistemológica - 
introduzindo, na pesquisa de campo, a restituição do resultado à 
população estudada -, foi preciso um outro acontecimento político. 
Digo "outro", porque a epistemologia é, antes de tudo, política. 
Esse acontecimento político foi a processo de descolonização, 
ocorrido no mundo inteiro, modificando, na produção do saber 
antropológico, as sempre presentes e neglicenciadas relações de 
poder entre ciência e colonialismo. A descolonização produziu

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