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LUGARES DA HOSPITALIDADE - ISABEL BAPTISTA

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Lugares de Hospitalidade – Isabel Baptista 
 
Definindo hospitalidade como um modo privilegiado de encontro 
interpessoal marcado pela atitude de acolhimento em relação ao outro, é 
importante sublinhar aqui a dimensão ética desse encontro, na linha do que é 
advogado por Emmanuel Levinas. Na obra de referencia do filósofo, totalidade 
e Infinito, a hospitalidade surge justificada Como um dos traços fundamentais 
da subjetividade humana na medida em que representa a disponibilidade da 
consciência para acolher a realidade do fora de si. Quando esta realidade se 
refere coisas do mundo, a natureza ou aos objetos, a abertura da consciência, 
pode traduzir-se em conhecimento, alimentação ou posse. Mas quando se 
refere à exterioridade testemunhada por outra pessoa, a abertura da 
consciência só pode afirmar-se como hospitalidade. 
 
Na presença de outro ser humano, estamos face a um outro mundo 
interior, povoado de segredos, de memórias, de temores e de sonhos. O 
mistério que é próprio da subjetividade humana nuca poderá ser possuído 
como coisa ou alimento, o que não significa que não se pode (ou deve) tentar a 
relação com esse mistério, procurando criar lugares de comunicação, de 
contato e de proximidade. Pelo contrario, só com uma relação de proximidade 
é possível abraçar verdadeiramente a aventura da descoberta, da realização e 
de superação de nós mesmos. A hospitalidade então se apresenta como 
experiência fundamental, constitutiva da própria subjetividade, devendo como 
tal ser potenciada em todas as suas modalidades e em todos os contextos de 
vida. 
Contrariando a concepção cartesiana, segundo a qual a abertura a 
diversidade é deduzível da própria identidade em resultado do dialogo da alma 
consigo mesma, Levinas (1998) defende que é a presença de outrem, ou seja, 
a exterioridade absoluta, que provoca o desejo metafisico, esse tipo de desejo 
que não Babe o que deseja. Um desejo impossível de confundir com aquele 
que emerge da esfera da necessidade, na qual nos ocupamos em procurar ser 
felizes. Aqui o desejo surge como resposta a uma falta ou a um vazio. No 
contato com o mistério de outrem, o desejo surge como algo infinitamente 
major, como sublime excesso, permitindo a consciência realizar essa 
experiência impossível, esse fato surpreendente de conter mais do que pode 
conter. 
 
Importa realçar que a procura pela felicidade é, nesta perspectiva, 
considerada não só legítima, mas absolutamente necessária. É importante ter 
prazer, desenvolvendo uma relação alegre com o mundo e com a vida. Para 
Levinas, - vida é, antes de tudo, amor pela vida. O humano começa na 
intencionalidade da fruição e na dependência feliz em relação as coisas do 
mundo. E fruir significa sentir a vida com tudo o que ela tem de prazer (ou de 
dor). A consciência do mundo já é consciência per meio desse mundo, por 
meio de todas as dores e de todas as alegrias ligadas ao sentimento de estar 
vivo, presente neste mundo como um ser concreto, que tem fome, sede e 
necessidade de abrigo, coma um ser que ri e que chora. Mas o mundo é uma 
grande casa a ser partilhada solidariamente por uma multiplicidade de 
humanos. E a partir da consciência deste faro que a procura pela felicidade 
perde a sua inocência. A inocência acaba quando voltamos, deliberadamente, 
as costas ao apelo do outro. 
Ao tentar sublinhar a dimensão ética da hospitalidade procura-se 
evidenciar a necessidade de criar e alimentar lugares de hospitalidade onde, do 
nosso ponto de, vista, surgem à consciência de um destino comum e o sentido 
de responsabilidade que motiva a ação solidaria. Sem a capacidade de sermos 
tocados, física e espiritualmente, pelos acontecimentos que expõem a 
vulnerabilidade do outro, qualquer esforço racional será inútil. As tragédias 
humanas que continuam a marcar o nosso tempo lembram-nos exatamente 
isso. E a hospitalidade, por ser experiência de contato e de relação, permite 
que essa sensibilidade se tome passível. 
Deste modo, a noção de hospitalidade fundamenta não só a recusa de 
uma subjetividade autossuficiente, fechada sobre si mesma, conforme foi 
exaltado pela modernidade, mas também contraria a visão de uma 
subjetividade estilhaçada, fragilizada na sua capacidade de desejar e de atuar, 
como aquela que é apresentada hoje, no horizonte conceitual da chamada pós-
modernidade. 
 
 É certo que deixar que o nosso lugar seja invalidado por um hóspede 
representa sempre um risco e uma incomodidade Neste sentido, a 
hospitalidade constitui sempre uma experiência dessa posição de 
vulnerabilidade. Mas isso não significa passividade ou indiferença. Na relação 
de hospitalidade, a consciência recebe a que vem de fora com a deferência e a 
cortesia que são devidas a um hospede, oferecendo-lhe a ser melhor sem, no 
entanto, desrespeitar sua condição de outro. Pelo contrario, essa condição é 
valorizada ao ponto de nos sentirmos cumplices do destine do outro. 
 
Radicada nesses pressupostos antropológicos, hospitalidade surge como 
um acontecimento ético por excelência devo do dever respeito a todas as 
práticas de acolhimento e de civilidade que permitem tornar a cidade um lugar 
mais humane. 
Assim, a noção de hospitalidade marca uma distancia critica em relação a 
Um tempo desencantado e cético, caracterizado pelas ideias de crise, de caos 
e de ruptura social. 
Em um mundo problemático e inseguro coma o atual, a dificuldade em 
assumir o presente surge como um problema-, 'humano impossível de ignorar. 
A revolução tecnológica ampliou extraordinariamente as possibilidades 
humanas de conhecimento e de domínio, mas contribuiu, por outro lado, para 
agravar os fatores de imprevisibilidade e de complexidade que tomam a 
aventura ontológica particularmente difícil e incerta. 
O curioso é que, paradoxalmente, o mundo contemporâneo parece 
exaltar a possibilidade de uma permanência na inocência do ser, aquém do 
bem e do mal. E o que acontece com o fenômeno da publicidade, que oferece 
insistentemente a promessa de uma fruição sem limites. Inquieta aqui a forma 
como o egoísmo positivo, próprio de uma relação feliz com o mundo, parece 
dar Lugar a um individualismo exacerbado, não no direito a felicidade, mas na 
exaltação de seu Dever. Da dependência harmoniosa em relação às coisas 
que alimentam, passamos a uma submissão obsessiva em relação as coisas 
que escravizam e alienam. Estamos perante aquilo que Drucker (1996) 
denunciou como a tentação da inocência, enquanto: 
 
doença do individualismo que consiste em querer escapar 
as consequências dos seus atos, a essa tentativa de gozar 
dos benefícios da liberdade sem sofrer qualquer dos 
inconvenientes que que estão associados. 
 
Zygmunt Bauman, enfatizando o caráter fragmentário é descontinuo da 
vida contemporânea, alerta igualmente para essa tentação da inocência. 
Segundo ele, a vida tende hoje a ser vivida em fragmentos, por episódios, 
como sequencia de acontecimentos soltos, totalmente desgarrados do tempo. 
Uma vida liberta, portanto, de quaisquer constrangimentos de ordem moral e 
de qualquer interrogação sobre as consequências dos atos pessoais. O autor 
elege quatro figuras ilustrativas desse estilo de vida (o ocioso, o turista, o 
jogador e o vagabundo). Em todas elas encontramos a pretensão de inocência 
que justifica estratégias de vida irresponsáveis e individualistas. A vida é (ou 
deveria ser) uma festa permanente. O importante é goza-la intensamente, 
coma urn recreio de infância sem fim. E quando a vida é assim considerada e 
quando ela é, afinal, apenas uma aventura, as possíveis consequências 
tornam-se irrelevantes. 
 Tanto do ponto de vista antropológico quanto ao ponto de vista ético, a 
permanência no patamar da inocência absoluta é insustentável. A hospitalidade 
permite, precisamente, romper com o ciclo egoísta, porque a partir do momento 
que outrem faz asua entrada na esfera do mesmo, o egoísmo só e possível 
como consciência e escolha deliberadas, portanto, com egoísmo inocente. 
Fazendo a vida depender de uma procura desenfreada pela felicidade, o 
individualismo conduz a perversão do ideal iluminista, fundamentado na 
afirmação da autonomia racional do homem. Por outro lado, esta concepção de 
felicidade aparentemente se aproxima do hedonismo clássico quo, postulando 
o prazer como fundamento da felicidade, mantinha, todavia a exigência 
platônica de estabilidade e de equilíbrio. Para os epicuristas, o prazer 
significava harmonia e paz com o mundo, mas a concepção contemporânea 
ignora os princípios da prudência e da moderação. Inspirada nos princípios do 
utilitarismo exalta a procura pelo máximo de felicidade com o menor custo para 
o maro número de pessoas. Não admira, pois, que o preço a pagar seja a 
permanência insatisfação dos indivíduos. 
A perversão desses ideais clássicos pode ainda ser ilustrada pela 
sedução por situações limite e pela procura por sensações fortes e aventuras 
exóticas. A este tipo de individualismo, que justifica a atração por todas as 
experiências nas quais o indivíduo conta somente consigo, chama Alain 
Erherenberg (1991) individualismo radical. Acontece que o culto exacerbado 
das potencialidades individuais acaba por traduzir-se numa pressão imensa 
sobre o sujeito, desafiando a pôr-se constantemente à prova. Temos então 
imaturo perpétuo, segundo a expressão de outro autor, Jean-Peirre Boutinet 
(1998). O imaturo perpétuo é um adulto angustiado e fatigado, sempre com 
pressa e sempre em atraso face ás múltiplas exigências de uma sociedade que 
cobra sua juventude e sua energia produtiva impiedosamente. 
De que forma a hospitalidade pode contribuir para melhorar a qualidade 
de vida das pessoas e tornar o mundo um lugar mais humano? Esta é a 
questão central do ponto de vista ético. A hospitalidade pode dizer-se e 
manifestar-se por meio de muitas maneiras: pelas palavras, pelos gestos, pelas 
leis e pela pluralidade imensa de formas de gerir os tempos e os espaços que 
nos coube viver. Julgamos, por exemplo, que o sentido de humanidade 
reclamado por um mundo violento, incerto, desencantado e cético é 
indissociável de uma ligação positiva a um lugar, de uma referência afetiva aos 
espaços onde se dorme, onde se come, onde se anda, onde se trabalha e 
onde se partilham alegrias e tristezas. A este tipo de lugares chama Marc Augé 
de lugares antropológicos, por oposição aos não-lugares, que são espaços de 
passagem desprovidos de identidade e memória. Parafraseando o autor, em 
um mundo onde se nasce na clínica, se morre no hospital e onde se 
multiplicam, em modalidades luxuosas e inumanas, os locais de trânsito e as 
ocupações provisórias, os espaços tendem a deixar de serem lugares de 
reconhecimento, de proximidade e de encontro. 
As práticas da hospitalidade contribuem decisivamente para dar uma 
configuração antropológica aos chamados não-lugares, potencializando a 
humanização de espaços de transito como estações de trem, aeroportos, 
hotéis, cafés, centros comerciais, parques, praças públicas e todos os outros 
territórios onde todos os dias se cruzam, na riqueza da sua diversidade e 
pluralidade, os destinos individuais. 
Constituindo, pois um modo privilegiado de relação com o outro, condição 
de urbanidade e de civilidade, as práticas de hospitalidade deverão marcar 
todas as situações da vida, ou seja, a hospitalidade não deverá ficar 
circunscrita à disponibilidade para receber o turista, o visitante que chega de 
fora e está provisoriamente na cidade. Pelas razões de ordem ética enunciada 
anteriormente, é necessário alargar a atitude de acolhimento e de cortesia a 
todo o próximo, seja ele vizinho, o colega de trabalho ou qualquer outro que no 
dia-a-dia cruza o nosso caminho. 
As sociedades urbanas, à medida que se desenvolvem e complexificam, 
vão perdendo o sentido da vida em comunidade, requerido por uma solidária 
convivência entre pessoas. É certo que o anonimato próprio da vida urbana 
oferece a vantagem de garantir certa privacidade, necessária também à 
afirmação de uma liberdade pessoal. Mas ao inviabilizar os tradicionais 
espaços de encontro, a vida urbana põe, por outro lado, em risco a emergência 
e a consolidação dos lações sociais. Não é por acaso que muitas vezes 
escolhemos a metáfora da selva para designar os modos de vida na cidade 
que , em muitos casos, tendem a reduzir-se à luta pela sobrevivência. Ora, as 
práticas de hospitalidade, ao mesmo tempo em que salvaguardam o direito à 
privacidade e à intimidade, potenciam a socialização dos indivíduos separados 
inevitavelmente pelo mistério das suas subjetividades. 
Acolher o outro como hospede significa que aceitamos recebê-lo em 
nosso território, e m nossa casa, colocando a sua disposição o melhor do que 
somos e possuímos. Contudo, nossa casa continua a ser isso mesmo, a nossa 
casa. Do mesmo modo, o outro mantem a liberdade do forasteiro, continuando 
a seduzir-nos com sua exterioridade e seu segredo. A hospitalidade permite 
celebrar uma distância e, ao mesmo tempo, uma proximidade, experiência 
imprescindível no processo de aprendizagem humana. Portanto, é urgente 
transformar os espaços urbanos em lugares de hospitalidade. Não uma 
hospitalidade convencional ou artificial, reduzida a um ritual de comércio e falta 
cortesia, mas uma hospitalidade ancorada no carinho e na sensibilidade que só 
podem ser dados por outra pessoa. 
 
Assim, é imperativo investir, por exemplo, na qualidade relacional dos 
espaços ditos intermédios como creches, hospitais, escolas e outras 
instituições sociais. Situados entre o público e o privado, estes espaços 
constituem lugares de eleição para a mediação humana e, nessa medida, para 
a promoção dos valores necessários a vida em comum. 
 
Valorizada a partir de um sentido ético, a hospitalidade remete para 
necessidade de dar respostas às interpelações incomodas daqueles que falam 
de exclusão. Não se pode esquecer que para muitas pessoas, o mundo 
continua a ser urn lugar terrivelmente hostil. Também por isso e importante 
promover as condições de vida que nos permite fazer do mundo uma casa para 
todos os seres humanos, sem exclusões. Porque, come lembra Adalberto Dias 
de Carvalho (2000), "se vivemos todos, numa dada época, num mesmo 
presente, não usufruímos por isso, contudo, necessariamente, da 
contemporaneidade a que esse presente cronológico nos pode dar acesso". 
A consciência desse faro justifica que, sem deixar de procurar a felicidade 
pessoal a que cada um tem direito, não se pode cair na tentação da inocência 
e ignorar que o mundo é também a morada de outros sujeitos a quem nos 
ligam (ou devem ligar) os laces de proximidade, de responsabilidade e de 
solidariedade. Não é mais possível continuar a viver por episódios ou em 
fragmentos, segundo a análise de Bauman a que fizemos referenda. O mundo 
deve ser transformado num lugar mais humane, num lugar de hospitalidade. 
 
REFERENCIAS 
AUGE, M. Nao-lugares. Lisboa, Bertrand, 1994. 
BAPTISTA, I. Erica e educacão. Porto, Universidade Portucalense, 1998. 
As cidades e os rostos da hospitalidade. In: Revista de Educação Social. 
Porto, Universidade Portucalense, 1999. 
A contemporaneidade coma exigência ética (no prelo). 
BAUMAN, Z. Life in fragments. Oxford, Blackwell, 1995. BOUTINET, J.P. 
L'immaturite de la vie adulte. PUF, 1998

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