Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 PIOVESAN, Flávia e SILVA, Roberto B. Dias da. “Igualdade e diferença: o direito à livre orientação sexual na Corte Européia de Direitos Humanos e no Judiciário brasileiro”. In VIEIRA, José Ribas (Org.). 20 da Constituição cidadã de 1988: efetivação ou impasse institucional? Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 341-367. [a paginação original está indicada entre colchetes – ao citar o trabalho, pede-se usá-las] IGUALDADE E DIFERENÇA: O DIREITO À LIVRE ORIENTAÇÃO SEXUAL NA CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS E NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO Flávia Piovesan Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg - 2007), procuradora do Estado de São Paulo, membro do CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network. Roberto B. Dias da Silva Mestre e doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Direito Constitucional da mesma Universidade, nos cursos de graduação e especialização. 2 1. Introdução Como revisitar a concepção da igualdade à luz do direito à diferença e do direito ao reconhecimento de identidades? De que modo os sistemas global, regional e local, cada qual ao seu modo, têm enfrentado a temática da igualdade e da diferença? Qual [342] é o alcance do direito à igualdade e da cláusula da não discriminação considerando as especificidades de cada sistema? Qual tem sido a experiência das Cortes nacionais, especialmente do Supremo Tribunal Federal, ao tratar do direito à igualdade e à diferença, sobretudo após a promulgação da Constituição Federal de 1988? A partir de um diálogo global, inter-regional e nacional, quais são as perspectivas para avançar na proteção do direito à igualdade e à diferença? São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior enfocar os direitos à igualdade e à diferença sob as perspectivas global, regional e nacional, adotando como case study o direito à livre orientação sexual, sob a análise comparativa da jurisprudência nacional e da Corte Européia de Direitos Humanos, fomentando, assim, um diálogo emancipatório sob a ótica dos direitos humanos. 2. Revisitando a concepção da igualdade à luz do direito à diferença A ética dos direitos humanos é a ética que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas de forma livre, autônoma e plena. É a ética orientada pela afirmação da dignidade e pela prevenção ao sofrimento humano. Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores,1 compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela 1 Joaquín Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p. 7. 3 dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana. Ao longo da história, as mais graves violações aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do "eu versus o outro", em que a diversidade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença se tornava visível para conceber o "outro" como um ser menor em dignidade e direitos, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartável, um ser supérfluo, objeto de compra e venda (como na escravidão) ou de campos de extermínio (como no nazismo). Nesta direção, além da escravidão e do nazismo, merecem destaque as violações do sexismo, do racismo, da xenofobia, da homofobia e de outras práticas de intolerância.2 O temor à diferença é fator que permite compreender a primeira fase de proteção dos direitos humanos, marcada pela tônica da proteção geral e abstrata, com base na igualdade formal, eis que o legado do nazismo pautou-se na diferença como base para as políticas de extermínio, sob o lema da prevalência e da superioridade da raça pura ariana e da eliminação das demais. [343] Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Neste cenário, as mulheres, as crianças, as populações afro-descendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. 2 Como leciona Amartya Sen, "identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and terror". O autor ainda tece aguda crítica ao que denomina como “serious miniaturization of human beings”, quando é negado o reconhecimento da pluralidade de identidades humanas, na medida em que as pessoas são “diversily different” (Amartya Sen, Identity and Violence: The illusion of destiny, New York/London, W. W. Norton & Company, 2006, p. XIII e XIV e p. 4). 4 Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para a abolição de privilégios); b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios). Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status.”3 Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao reconhecimento. Atente-se que esta feição bidimensional da justiça mantém uma relação dinâmica e dialética, ou [344] seja, os dois termos relacionam-se e interagem mutuamente, na medida em que a discriminação implica pobreza e a pobreza implica discriminação. 3 Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que nãoconsegue tomar um táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. [...] Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca ambas em um marco mais amplo”. (Nancy Fraser, Redistribución, reconocimiento y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe Mundial sobre la Cultura, 2000-2001, p.55-56). Ver ainda da mesma autora o artigo “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a Postsocialist age” em seu livro Justice Interruptus. Critical reflections on the "Postsocialist" condition, NY/London, Routledge, 1997. Sobre a matéria, consultar Axel Honneth, The Struggle for Recognition: The moral grammar of social conflicts, Cambridge/Massachussets, MIT Press, 1996; Nancy Fraser e Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange, London/NY, verso, 2003; Charles Taylor, “The politics of recognition”, in: Charles Taylor et. al., Multiculturalism – Examining the politics of recognition, Princeton, Princeton University Press, 1994; Iris Young, Justice and the politics of difference, Princenton, Princenton University Press, 1990; Amy Gutmann, Multiculturalism: examining the politics of recognition, Princenton, Princenton University Press, 1994. 5 Boaventura de Souza Santos acrescenta que “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.4 Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade às diferenças. É essencial distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material busca construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade. O reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. A emergência conceitual do direito à diferença e do reconhecimento de identidades é capaz de refletir a crescente voz dos movimentos sociais e o surgimento de uma sociedade civil plural e diversa no marco do multiculturalismo.5 Este estudo permitirá analisar o modo pelo qual o sistema global, os diversos sistemas regionais, bem como o sistema constitucional brasileiro de proteção dos direitos humanos incorporam o valor da diversidade, bem como adotam instrumentos específicos voltados à proteção dos grupos socialmente mais vulneráveis, em especial no que toca ao direito à livre orientação sexual. 3. Proteção dos direitos à igualdade e à diferença no sistema global Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser 4 “Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade”. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitanismo multicultural, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do mesmo autor “Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”, op. cit. p. 429-461. 5 A título exemplificativo, se em 1948 apenas 41 ONGs tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, em 2004 este número alcançava aproximadamente 2350 ONGs com status consultivo. Consultar Gay J. McDougall, Decade for NGO Struggle, In: Human Rights Brief – 10th Anniversary, American University Washington College of Law, Center for Human Rights and Humanitarian Law, v. 11, issue 3 (spring 2004), p. 13. 6 introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.6 Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. [345] A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução.7 Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania.8 Neste contexto, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e 6 A Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5º, afirma: "Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase." 7. Nas palavras de Thomas Buergenthal: “O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse (Thomas Buergenthal, International human rights, p. 17). Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstrado comprometimento com valores que transcendem os valores puramente “estatais”, notadamente os direitos humanos, e tem desenvolvido um impressionante sistema normativo de proteção desses direitos”. (International law, p. 2). Ainda sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos, observa Celso Lafer: “Configurou-se como a primeira resposta jurídica da comunidade internacional ao fato de que o direito ex parte populi de todo ser humano à hospitabilidade universal só começaria a viabilizar-se se o ‘direito a ter direitos’, para falar com Hannah Arendt, tivesse uma tutela internacional, homologadora do ponto de vista da humanidade. Foi assim que começou efetivamente a ser delimitada a ‘razão de estado’ e corroída a competência reservada da soberania dos governantes, em matéria de direitos humanos, encetando-se a sua vinculação aos temas da democracia e da paz”. (Prefácio ao livro Os direitos humanos como tema global, p. XXVI). 8 Sobre essa questão, ver Andrew Hurrell, “Power, principles and prudence: protecting human rights in a deeply divided world”, In: Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human Rights in Global Politics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 277. 7 indivisibilidadedestes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acer-[346]ca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos — do “mínimo ético irredutível”.9 Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com os sistemas regionais, por sua vez, integrados pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de 9 Cabe destacar que, até junho de 2006, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 156 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 153 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 141 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 170 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 183 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 192 Estados-partes. Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties, http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf 8 proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e a principiologia próprias do Direito dos Direitos Humanos. Sob o prisma do sistema global de proteção, constata-se que o direito à igualdade e a proibição da discriminação foram enfaticamente consagrados pela Declaração Universal de 1948, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A Declaração Universal de 1948, em seu artigo I, desde logo enuncia que "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade". Prossegue, no artigo II, a endossar que "toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Estabelece o artigo VII a concepção da igualdade formal, prescrevendo que "todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei". Portanto, se o primeiro artigo da Declaração afirma o direito à igualdade, o segundo artigo adiciona a cláusula da proibição da discriminação de qualquer espécie, como corolário do princípio da igualdade. O binômio da igualdade e da não discriminação, assegurado pela Declaração, sob a inspiração da concepção formal de igualdade, impactará a feição de todo sistema normativo global de proteção dos direitos humanos. Com efeito, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, já em seu artigo 2º (1), consagra que "os Estados-partes no Pacto comprometem-se a garantir [347] a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou 9 qualquer outra situação". Uma vez mais, afirma-se a cláusula da proibição da discriminação para o exercício dos direitos humanos. A relevância de tal cláusula é acentuada pelo artigo 4º do Pacto, ao prever um núcleo inderrogável de direitos, a ser preservado ainda que em situações excepcionais e ameaçadoras, admitindo-se, contudo, a adoção de medidas restritivas de direitos estritamente necessárias, "desde que tais medidas não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social". A concepção da igualdade formal, tal como na Declaração, é prevista pelo Pacto, em seu artigo 26, ao determinar que "todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. [...] a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem [348] nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".10 Quanto à proteção das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, assegura o Pacto às pessoas a elas pertencentes o direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua (artigo 27).11 Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em seu artigo 2º, estabelece que os Estados- 10 O Comitê de Direitos Humanos, em sua Recomendação Geral nº 18, a respeito do artigo 26, entende que o princípio da não discriminação é um princípio fundamental previsto no próprio Pacto, condição e pressuposto para o pleno exercício dos direitos humanos nele enunciados. No entender do Comitê: "A não discriminação, assim como a igualdade perante a lei e a igual proteção da lei sem nenhuma discriminação, constituem um princípio básico e geral, relacionado à proteção dos direitos humanos". No mesmo sentido, destaca a Recomendação Geral nº 14 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada em 1993: "Non-discrimination, together with equality before the law and equal protection of the law without any discrimination, constitutes a basic principle in the protection of human rights". 11 A Recomendação Geral nº 23 se refere ao artigo 27 do Pacto, com o objetivo de proteger as minorias étnicas. O Comitê faz uma diferenciação entre o direito protegido no artigo 27 e os direitos protegidos nos artigos 2ºe 26. Os artigos 2º e 26 tratam da não discriminação e da igualdade perante a lei, independentemente do indivíduo pertencer a uma minoria étnica ou não. As pessoas às quais se destina o artigo 27 são aquelas que pertencem a um grupo e têm uma cultura, religião e/ou língua comum. Apesar dos direitos protegidos pelo artigo 27 serem individuais, eles dependem da existência de uma minoria étnica, ou seja, de uma coletividade. A Recomendação n.23, assim como a n.18, prevê a possibilidade de ações afirmativas que garantam a igualdade dessas minorias étnicas, respeitando o disposto nos artigos 2º e 26 do Pacto. 10 partes comprometem-se a garantir que os direitos nele previstos serão exercidos sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. Uma vez mais, consagra-se a cláusula da proibição da discriminação.12 Merece destaque a atuação construtiva dos Comitês de Direitos Humanos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em transcender os limites das cláusulas da igualdade formal e da proibição da discriminação enunciadas nos Pactos. A jurisprudência criativa destes Comitês, por meio da adoção de recomendações gerais, têm permitido delinear a concepção material de igualdade, com a distinção da igualdade de direito e de fato (de jure and de facto equality). É a partir desta distinção que é lançado o questionamento a respeito do papel do Estado, demandando-se, por vezes, se transite de uma posição de neutralidade para um protagonismo — por exemplo, mediante a adoção de ações afirmativas — capaz de aliviar e remediar o impacto não igualitário da legislação e de políticas públicas no exercício de direitos.13 De todo modo, em si mesmos, a Declaração Universal e os Pactos invocam a primeira fase de proteção dos direitos humanos, caracterizada pela tônica da proteção geral, genérica e abstrata, sob o lema da igualdade formal e da proibição da discriminação. A segunda fase de proteção, reflexo do processo de especificação do sujeito de direito, será marcada pela proteção específica e 12 O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em sua Recomendação Geral nº 16, adotada em 2005, realça que "guarantees of non-discrimination and equality in international human rights treaties mandate both de facto and de jure equality. De jure (or formal) equality and de facto (or substantive) equality are different but interconnected concepts. Formal equality assumes that equality is achieved if a law or policy treats men and women in a neutral manner. Substantive equality is concerned, in addition, with the effects of laws, policies and practices and with ensuring that they do not maintain, but rather alleviate, the inherent disadvantage that particular groups experience. Substantive equality for men and women will not be achieved simply through the enactment of laws or the adoption of policies that are, prima facie, gender-neutral. In implementing article 3, States parties should take into account that such laws, policies and practice can fail to address or even perpetuate inequality between men and women because they do not take account of existing economic, social and cultural inequalities, particularly those experienced by women". 13 Ao diferenciar a igualdade de direito e de fato, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais distingue a discriminação direta da denominada discriminação indireta, considerando a perspectiva de gênero. A Recomendação Geral nº 16, por seu turno, avança para a temática das ações afirmativas. 11 especial, a partir de tratados que objetivam eliminar todas as formas de discriminação que afetam de forma desproporcional determinados grupos, como as minorias étnico-raciais, as mulheres, dentre outros. Neste contexto é que se inserem a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979).14 Desde seu preâmbulo, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial assinala que qualquer “doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e [349] perigosa, inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”. Adiciona a urgência em se adotar todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater doutrinas e práticas racistas.15 Daí a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação, baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenham como escopo a exclusão. O combate à discriminação racial é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais. Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, todavia, por si só, é medida insuficiente. Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade como processo. Isto é, 14 No campo do sistema especial de proteção, merecem também menção a recente Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência (texto disponível em: <http://www.ohchr.org/english/law/disabilities-convention.htm> — acessado em 5 de outubro de 2007) e a Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e seus Familiares, de 1990. 15 O artigo 1º da Convenção define a discriminação racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais”. Vale dizer, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade. 12 para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica violenta exclusão e intolerância à diferença e diversidade. Assim, a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação. Por estas razões, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial prevê, no artigo 1º, § 4º, a possibilidade das ações afirmativas, mediante a adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais. As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias, que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmentevulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, dentre outros. Enquanto políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório, as ações afirmativas objetivam transformar a igualdade formal em igualdade material e substantiva, assegurando a diversidade e a pluralidade social. Devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo — no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório —, mas também prospectivo, no sentido de fomentar a transformação social, criando uma [350] nova realidade. Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve se moldar no respeito à diferença e à diversidade. Por meio delas, transita-se da igualdade formal para a igualdade material e substantiva. Importa acrescentar que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, ao definir a 13 discriminação contra a mulher (artigo 1º),16 adota como fonte inspiradora o artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, estabelecendo, de igual modo, em seu artigo 4º, § 1º, a possibilidade dos Estados-partes adotarem ações afirmativas, como medidas especiais e temporárias destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres.17 Cabe salientar que a Recomendação Geral nº XXV do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial alia a perspectiva racial à de gênero. Sob esta ótica, o Comitê entende que a discriminação racial atinge de forma diferenciada homens e mulheres, já que práticas de discriminação racial podem ser dirigidas a certos indivíduos especificamente em razão do seu sexo, como no caso da violência sexual praticada contra mulheres de determinada origem étnico-racial.18 O Comitê pretende monitorar como as mulheres que pertencem às minorias étnicas e raciais exercem seus direitos, avaliando a dimensão da discriminação racial a partir de uma perspectiva de gênero.19 Conclui-se que, no âmbito global, os primeiros instrumentos de proteção — a Declaração Universal e os dois Pactos que a sucederam — 16 Nos termos do artigo 1º da Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo". 17 A respeito da importância das ações afirmativas, destaca a Recomendação Geral nº 5 do Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher: “O Comitê sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher [...] recomenda que os Estados-partes façam maior uso de medidas especiais de caráter temporário como a ação afirmativa, o tratamento preferencial ou sistema de quotas para que a mulher se integre na educação, na economia, na política e no emprego”. Nos termos da Recomendação Geral nº 25 do mesmo Comitê: “Os Estados-partes deverão incluir em suas Constituições ou em sua legislação nacional disposições que permitam a adoção de medidas especiais de caráter temporário”. 18 Dispõe a Recomendação Geral nº XXV, adotada pelo Comitê em 2000: “The Committee notes that racial discrimination does not always affect women and men equally or in the same way. There are circumstances in which racial discrimination only or primarily affects women, or affects women in a different way, or to a different degree than men. Such racial discrimination will often escape detection if there is no explicit recognition or acknowledgement of the different life experiences of women and men, in areas of both public and private life". 19 As Recomendações nº 18 e nº 28 do Comitê de Direitos Humanos dispõem sobre o dever do Estado de adotar medidas (legislativas, administrativas e judiciais) que visem a garantir a não discriminação, sugerindo inclusive a adoção de ações afirmativas por parte do Estado para diminuir ou eliminar as causas que perpetuem a discriminação. Na permanência de causas discriminatórias, as ações afirmativas são consideradas uma medida legítima e necessária para o Comitê de Direitos Humanos. 14 incorporam uma concepção for-[351]mal de igualdade, sob o binômio da igualdade e da não discriminação, assegurando uma proteção geral, genérica e abstrata. Já os instrumentos internacionais que integram o sistema especial de proteção invocam uma proteção específica e concreta, que, transcendendo a concepção meramente formal e abstrata de igualdade, objetivam o alcance da igualdade material e substantiva, por meio, por exemplo, de ações afirmativas, com vistas a acelerar o processo de construção da igualdade em prol de grupos socialmente vulneráveis. Da esfera global transita-se à esfera regional de proteção, com a finalidade de analisar como os sistemas regionais enfocam os direitos à igualdade e à diferença. 4. Proteção dos direitos à igualdade e à diferença nos sistemas regionais europeu, interamericano e africano Tal como o sistema global, os sistemas regionais europeu, interamericano e africano, por meio de seus principais tratados, consagram o binômio da igualdade e da não discriminação. Cada qual dos sistemas regionais de proteção apresenta um aparato jurídico próprio.20 O sistema europeu conta com a Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950, que estabeleceu originariamente a Comissão e a Corte Européia de Direitos Humanos, sendo que, com o Protocolo nº 11, em vigor desde novembro de 1998, houve a fusão da Comissão com a Corte, com vistas à maior justicialização do sistema europeu, mediante uma Corte reformada e permanente.21 Já o sistema interamericano tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que prevê a Comissão Interamericana de 20 Para uma análise comparativa dos sistemas regionais, ver Flávia Piovesan, Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano, São Paulo, ed. Saraiva, 2006. 21. O Protocolo nº 11 objetivou simplificar e diminuir a duração dos processos, reforçando o caráter judicial do sistema e tornando-o obrigatório. A Corte Européia é composta por tantos juízes quantos forem os Estados-partes, os quais exercerão o mandato a título pessoal, e não como representantes do Estado. Sobre as atividades da Corte Européia, ver European Court of Human Rights (disponível em http://www.echr.coe.int/echr/ — acesso em 5 de outubro de 2007). 15 Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Por fim, o sistema africano apresenta como principal instrumento a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981, que, por sua vez, institui a Comissão Africana de Direitos Humanos, tendo sido posteriormente criada a Corte Africana de Direitos Humanos, mediante um Protocolo à Carta, que entrou em vigor em 2004.22 Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas, ao revés, são complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Vale dizer, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos [352] indivíduos protegidos.23 O propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos — garantindo os mesmos direitos — é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos.Ao enfocar o modo pelo qual os direitos à igualdade e à diferença são dispostos pelos sistemas regionais, constata-se que a Convenção Européia de 1950, em seu artigo 14, consagra a cláusula da proibição da discriminação, ressaltando que "o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento ou qualquer outra situação". A cláusula da proibição da discriminação é também enunciada enfaticamente pela Convenção Americana de 1969, ao estabelecer o dever dos Estados-partes de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra 22. De acordo com artigo 34 (3), o Protocolo entrará em vigor no 30º dia após o depósito do 15º instrumento de ratificação por Estado membro da Organização da Unidade Africana. Em 25 de janeiro de 2004, o Protocolo entrou em vigor. 23. Na explicação de Henry Steiner: “Hoje não tem havido grandes conflitos de interpretação entre os regimes regionais e o regime das Nações Unidas. Teoricamente, os conflitos devem ser evitados mediante a aplicação das seguintes regras: 1) os parâmetros da Declaração Universal e de qualquer outro tratado das Nações Unidas acolhido por um país devem ser respeitados; 2) os parâmetros de direitos humanos que integram os princípios gerais de Direito Internacional devem ser também observados; e 3) quando os parâmetros conflitam, o que for mais favorável ao indivíduo deve prevalecer”. (Steiner, op. cit., supra, p. 401). 16 natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social (artigo 1º). À cláusula da não discriminação soma-se o princípio da igualdade formal, por meio do qual "todas as pessoas são iguais perante a lei, tendo direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei" (artigo 24). Assim como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana, ao admitir a suspensão de garantias e a restrição a direitos em casos de guerra, perigo público, ou outra emergência, explicitamente adverte que tal suspensão não poderá, de forma alguma, implicar discriminação fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social, enunciando, ainda, um núcleo inderrogável de direitos (artigo 27). Por sua vez, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981, em seu artigo 2º, assegura a toda pessoa o direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na Carta, sem nenhuma distinção, nomeadamente de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Tal como na Convenção Americana de Direitos Humanos, à cláusula da não discriminação conjuga-se o princípio da igualdade formal, previsto pelo artigo 3º da Carta, por meio do qual "todas as pessoas beneficiam-se de uma total igualdade perante a lei. Todas as pessoas têm direito a uma igual proteção da lei". A análise dos sistemas regionais, no que tange ao direito à igualdade e ao direito à diferença, assemelha-se à análise do sistema global. Também no âmbito regional os [353] primeiros instrumentos de proteção incorporam uma concepção formal de igualdade, sob o binômio da igualdade e da não discriminação, assegurando uma proteção geral, genérica e abstrata. Posteriormente, cada qual destes sistemas será ampliado mediante a adoção de tratados regionais específicos, que enfocam a temática da proteção dos direitos humanos das mulheres, das crianças, das 17 pessoas com deficiência, dentre outros — reflexo do processo de especificação do sujeito de direito.24 5. Proteção dos direitos à igualdade e à diferença no sistema constitucional brasileiro Sem ingressar na questão da incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro — por força do artigo 5º, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal —,25 é possível afirmar que o atual texto constitucional contempla as três vertentes da concepção de igualdade mencionadas no início deste artigo. Com efeito, a igualdade formal, prevista na fórmula “todos são iguais perante a lei”, está contemplada no caput do artigo 5º. Por seu turno, a igualdade distributiva, como ideal de justiça social, vem contemplada logo a seguir, quando o mesmo caput estabelece a garantia de inviolabilidade do direito à igualdade.26 Como menciona Oscar Vilhena Vieira, esse dispositivo constitucionalizou “duas faces do princípio da igualdade”: a igualdade como imparcialidade e a igualdade distributiva.27 Mas a Constituição brasileira vai além, pois também leva em consideração a igualdade material ao reconhecer as identidades, dando 24 A título de exemplo, no sistema regional interamericano destacam-se: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994); a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999); o anteprojeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e todas as formas de Discriminação e Intolerância; e o projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. No sistema regional africano, cabe menção à Carta Africana sobre Direitos e Bem-Estar de Crianças (1990) e ao Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos sobre Direitos das Mulheres na África. No sistema regional europeu, merece destaque o Protocolo nº 7 à Convenção Européia a respeito do direito à igualdade entre os cônjuges e o Protocolo nº 12 a respeito do direito a não discriminação. 25 Para uma análise das posições doutrinárias e da jurisprudência acerca desta questão, conferir Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 60 e seguintes. Ver, também, Celso de Albuquerque Mello, “O § 2º do art. 5º da Constituição Federal”. In: Ricardo Lobo Torres (Org.), Teoria dos direitos fundamentais, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1-33; Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 616-619 e 662-664; Oscar Vilhena Vieira, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 43. 26 O artigo 3º, inciso III, da Constituição, explicita como um dos objetivos da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das igualdades sociais e regionais. 27 Oscar Vilhena Vieira, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 287. 18 guarida à igualdade orientada pelos critérios de gênero, idade, raça, etnia e orientação sexual, dentre outros. Em relação a [354] tal aspecto, vale lembrar dispositivos constitucionais que protegem este ideal de justiça, como os estampados nos artigos 3º, inciso IV;28 5º, inciso XLII;29 7º, inciso XX;30 37, inciso VIII;31 227 a 23232. Contudo, a igualdade como imparcialidade e como reconhecimento das identidades não poderia ser levada a sério sem a separação entre Estado e Igreja, no âmbito do ordenamento jurídico interno. Só é possível falar em igualdade, nos termos expostos acima, se o Estado for erguido em bases laicas, sem que isso, por outro lado, signifique a exclusão do debate político e democrático as opiniões religiosas. A questão é que estas devem ser traduzidas em argumentos quem pressuponham a laicidadeestatal. Parece induvidoso que a religião, assim como as mais diversas forças sociais e políticas, além das históricas, influenciam a formação do Direito.33 Levando essa concepção ao extremo, Ferdnand Lassalle, no século XIX, afirmava que a Constituição, em essência, é a somatória dos fatores reais de poder que regem uma nação.34 E o mesmo autor asseverava que, se os fatores reais de poder forem escritos em uma folha de papel, ou seja, adquirirem expressão escrita, passarão a ser verdadeiros direitos.35 Ainda segundo Lassalle, uma Constituição escrita é “boa e duradoura” quando “corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país”. No entanto, adverte que onde “a 28 Este dispositivo está assim redigido: “Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 29 “XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. 30 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. 31 “VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. 32 Esses dispositivos tratam da proteção da criança, do adolescente, do idoso e dos índios. 33 Antonio Reposo e Lucio Pegoraro, ao tratarem das fontes do Direito e dos modos contemporâneos da produção dele, fazem a relação entre religião e direito, abordando o direito canônico, hebraico, muçulmano, hindu, chinês e japonês (Antonio Reposo e Lucio Pegoraro. “Le fonti del diritto”. In: Giuseppe Morbidelli et. al. Diritto costituzionale italiano e comparato, Bologna: Monduzzi, 1995, p. 155 e seguintes). 34 Ferdinand Lassalle, A essência da Constituição, 5ª ed. Trad. Walter Stönner, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 17. 35 Ferdinand Lassalle, A essência da Constituição, p. 17-18. 19 constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país”.36 [355] De fato, a religião pode ser considerada como um “fator real de poder”, nos termos da concepção de Lassalle. Mas, a partir do momento em que uma determinada nação decide, livremente, pela laicidade, deixando de lado uma religião oficial — como ocorreu no Brasil, quando da proclamação da República —, esse fator de poder não está autorizado, por meio da força do Estado, a obrigar as pessoas. Mônica de Melo, abordando essa questão sob o ponto de vista democrático, explica o seguinte: “Não se ignora que as religiões possuem códigos de valores que encontram respaldo na comunidade e que estão entranhados em sua cultura e vivência e que, por muitas vezes, o próprio Direito, nas suas mais diversas expressões — lei, doutrina e decisão judicial — os assume e os reconhece. Porém, sempre há de haver um limite para as decisões da maioria, ou seja, ainda que tenhamos uma maioria religiosa expressiva numericamente, bem organizada e que elege representantes no Parlamento, no Executivo entre outras instâncias, capaz, de forma legítima, de fazer predominar sua orientação moral, a minoria tem que encontrar na Constituição proteção para a defesa de seus direitos e de sua liberdade e a possibilidade de resistir a padrões morais de uma maioria eventual.”37 Portanto, com a secularização estatal, os dogmas de igrejas de quaisquer credos não podem impor, coercitivamente, uma conduta ou uma 36 Ferdinand Lassalle, A essência da Constituição, p. 33. Konrad Hesse discorda dessa posição adotada por Lassalle: “A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassalle. Ela não se afigura ‘impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de poder’, tal como ensinado por Georg Jellinek e como, hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se pretende cético. A Constituição não está desvinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição não deve ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Ao contrário, existem pressupostos realizáveis (realizierbare Voraussetzungen) que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força normativa da Constituição”. (Konrad Hesse, A força normativa da constituição, Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 25.) 37 Mônica de Melo, “O Estado laico e a defesa dos direitos fundamentais: democracia, liberdade de crença e consciência e o direito à vida”. In: Roberto B. Dias da Silva (Org.), Direito constitucional: temas atuais – Homenagem à Professora Leda Pereira da Mota, São Paulo: Método, 2007, p. 144. 20 abstenção a quem quer que seja, por meio do Estado.38 A confusão entre Estado e religião “implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabilizam qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática”, ou seja, a “ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de [356] qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não têm o direito de pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico.”39 A liberdade de crença, intrinsecamente ligada à liberdade de consciência — apesar da maior amplitude desta última40 —, não significa somente que todos podem livremente exercer o direito de crer em algo ou em alguém, mas que as pessoas também têm o direito de não crer em nada ou em ninguém, sem qualquer intervenção do Estado, a não ser para garantir o exercício desses direitos de crentes, deístas, ateus e agnósticos.41 38 Flávia Piovesan, com base em Aníbal Faundes e José Barzelatto, relata um diálogo entre o ex-presidente francês Valéry Giscard D´Estaind e o Papa João Paulo II em que aquele se dizia cristão e, portanto, entendia legítimo que a Igreja Católica pedisse a seus fiéis o respeito a certas proibições, mas como presidente de uma República cujo Estado é laico, não poderia admitir que tais proibições religiosas pudessem ser impostas como lei, com sanções penais, ao conjunto do corpo social. O mesmo Papa, em 1º de janeiro de 1991, reconhece que as normas religiosas, quando se tornam leis civis, podem constranger a liberdade religiosa e restringir ou negar outros direitos humanos. Além disso, a intolerância advinda do fundamentalismo leva a abusos, razão pela qual a liberdade de consciência de cada pessoa deve ser respeitada como forma de preservação da paz. (Flávia Piovesan, “Direitos sexuais e reprodutivos: aborto inseguro como violação aos direitos humanos”. In: Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (Coords.), Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 68, nota de rodapé n. 36). 39 Flávia Piovesan, Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano, p. 20. 40 Verificar, nesse sentido, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, TomoIV, p. 365- 366: “A liberdade religiosa aparece indissociável, como não podia deixar de ser, da liberdade de consciência. No entanto, não se lhe assimila, visto que, por um lado, a liberdade de consciência é mais ampla e compreende quer a liberdade de ter ou não ter religião (e de ter qualquer religião) quer a liberdade de convicções de natureza não religiosa (filosófica, designadamente); e, por outro lado, a liberdade de consciência revela, por definição, só do foro individual, ao passo que a liberdade religiosa possui (como já se acentuou) também a dimensão social e institucional”. 41 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, Tomo IV, p. 365. Conferir, também, Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, Trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 236: “é sempre não só garantida a liberdade positiva, de confessar uma fé, de manifestar uma opinião, de formar uma associação, e assim por diante, mas do mesmo modo, a liberdade negativa, de não confessar uma fé, de não manifestar uma opinião, de não aderir a uma associação, e assim por diante”. 21 Acerca desse ponto, Jorge Miranda,42 após reconhecer que “a liberdade religiosa está no cerne da problemática dos direitos fundamentais”, explica que a “liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres.” José Afonso da Silva também é enfático ao abordar essa mesma questão e afirmar que, na “liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros.”43 Vale acrescentar a essas assertivas finais de José Afonso da Silva que a liberdade de crença, além de não compreender a possibilidade de embaraço ao livre exercício de [357] qualquer religião, também não compreende o direito de embaraçar a liberdade de descrença e a liberdade de não aderir a religião alguma.44 42 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, Tomo IV, p. 357-359. 43 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 252. 44 Discussões interessantes surgiram tanto no Brasil quanto na França e na Alemanha acerca da utilização de símbolos religiosos em órgãos estatais. O Tribunal Constitucional Alemão, analisando a tensão entre a liberdade de crença positiva e negativa, especialmente com base na neutralidade religioso-política, proibiu a “colocação de cruzes ou crucifixos em espaços escolares públicos” (Robert Alexy, “Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no Estado de Direito Democrático”, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 217, p. 69-70, jul./set. 1999). Na França, o Senado proibiu, em março de 2004, a presença de símbolos religiosos nas escolas estatais do país, como as cruzes cristãs, os turbantes usados pelo seguidores da religião Sikh e os véus utilizados pelas mulheres muçulmanas. Verificar as seguintes notícias: a) Chacra, Gustavo. Muçulmanas do Brasil condenam proibição do véu. Disponível na internet via http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u69258.shtml. Acesso em 15 de fevereiro de 2004; b) Senado da França proíbe símbolos religiosos em 22 Isso permite afirmar que a laicidade traz, em seu âmago, não só a idéia de liberdade, mas também a de igualdade, pois, como explica Mônica de Melo, um “Estado que se assenta no princípio democrático e na defesa de direitos fundamentais para todos indistintamente, de forma universal, não pode patrocinar ou assumir uma determinada religião”.45 Ademais, o pluralismo inerente a um Estado Democrático como o brasileiro não admite a imposição de uma única forma de pensar ou agir, mesmo porque há em nossa Constituição a previsão da liberdade de expressão e de pensamento, da inviolabilidade de consciência e de crença, bem como da proteção à intimidade, à vida privada, à imagem e à honra das pessoas (art. 5º, incisos IV a X). Portanto, com a laicidade estatal, as religiões podem, no máximo, impor sanções religiosas a seus seguidores. Contudo, não se pode exigir a mesma conduta do Estado, que deve garantir o exercício da liberdade constitucional de crença e de culto — incluindo a liberdade de não crer e de não seguir qualquer religião —, além de permitir que as pessoas ajam ou se omitam segundo suas crenças ou com base na absoluta ausência delas. E isso é fundamental para a proteção da igualdade constitucionalmente protegida. [358] 6. Direitos à igualdade e à diferença: análise de casos sobre o direito à livre orientação sexual Para o estudo de casos relacionados aos direitos à igualdade e à diferença, optou-se por analisar questões sobre o direito à livre orientação escolas. Disponível na internet, em 4 de março de 2004, no site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2004/03/printable/040304_veurg.shtml; c) Chirac defende lei contra véu na escola, Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 2003, p. A- 17. No Brasil, em setembro de 2005, o juiz Roberto Arriada Lorea, da 2ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central de Proto Alegre, Rio Grande do Sul, sugeriu que os tribunais retirassem os crucifixos que mantêm nas salas de audiência (verificar a notícia veiculadas pela internet nos sites http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/19279.shtml e http://conjur.estadao.com.br/static/text/37946,1, este acessado em 17 de setembro de 2005 e aquele, em 9 de dezembro de 2006). Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça, por maioria de votos, entendeu que “o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio da laicidade do Estado”, ao apreciar os Pedidos de Providência 1344, 1345, 1346 e 1362, como noticiou o site Consultor Jurídico, acessado em 1º de junho de 2007 (http://conjur.estadao.com.br/static/text/56091,1). 45 Mônica de Melo, “O Estado laico e a defesa dos direitos fundamentais: democracia, liberdade de crença e consciência e o direito à vida”, p. 144. 23 sexual levadas à apreciação da Corte Européia de Direitos Humanos e de Tribunais brasileiros, refletindo sobre a resposta do sistema e o repertório argumentativo desenvolvido. Esta análise será concentrada no sistema regional europeu e no ordenamento constitucional brasileiro, tendo em vista que a Corte Africana, recentemente instalada, não apresenta, até o momento, jurisprudência a respeito de qualquer tipo de violação à igualdade e o sistema interamericano, de igual modo, não contempla qualquer caso envolvendo discriminação fundada em orientação sexual. Os critérios a justificar tal seleção de casos para uma análise qualitativa — e não quantitativa — são os seguintes: a) traduzem novos desafios não contemplados pelos textos normativos; b) acenam à construção da concepção da igualdade material e do reconhecimento de identidades; e c) demandamcriatividade e ousadia por parte das Cortes, mediante o recurso à interpretação evolutiva, culminando em decisões paradigmáticas, que se referem a situações originalmente não previstas pelos tratados ou pela Constituição brasileira. Com efeito, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos, sociais e culturais, mas sem violar o texto normativo, é possível conferir à norma novos conteúdos, por meio da interpretação evolutiva. Com ela, evita-se que a idéia posta pelo texto da norma torne-se imune ao futuro e às novas gerações. Por meio da interpretação evolutiva é possível manter os tratados e a Constituição vivos e atuais, adaptando seu conteúdo a novas exigências e necessidades, sem contrariar seu texto.46 E esse desafio pode ser notado nos casos a seguir relatados. 46 Pietro Merola Chierchia traça as linhas essenciais para se entender a interpretação evolutiva: “Em primeiro lugar, a interpretação evolutiva surge como possibilidade de adaptação da norma às exigências histórico-sociais [...]. Fala-se ainda de interpretação evolutiva quando a norma a ser interpretada vem referida por todo o sistema, e subsistem os efeitos das transformações que são realizadas no ordenamento mediante a introdução de novas normas. Outra hipótese, enfim, é aquela de uma norma originariamente formulada com base em conceitos de conteúdo elástico ou indeterminado — como, por exemplo, os conceitos de ‘bom costume’ e de ‘ordem pública’ — capazes de assumir um conteúdo historicamente variável e de determinar, por isso, variações da área de operatividade da norma.” (L’Interpretazione sistematica della costituzione, Padova, Cedam, 1978.p. 65). 24 6.1. Corte Européia de Direitos Humanos 1) Caso Perkins e R. v. Reino Unido47 e Caso Beck, Copp e Bazeley v. Reino Unido48 Ambos os casos referem-se à demissão de homossexuais das forças armadas no Reino Unido, após investigação de suas vidas privadas. Os peticionários, todos nacio-[359]nais do Reino Unido, servindo nas forças armadas britânicas, foram demitidos com base em sua orientação sexual. O Sr. Perkins servia junto à Royal Navy como assistente médico desde 1991, sendo descrito como competente e com muito bom caráter. Admitiu sua condição de homossexual em uma entrevista, após as autoridades navais terem recebido a informação concernente à sua orientação sexual. A Sra. R., por sua vez, ingressou na Marinha (Royal Navy) em 1990, estagiando como operadora de rádio. Em 1992, foi aprovada em um exame de qualificação profissional para operadora de rádio "primeira classe", sendo o seu caráter reconhecido como muito bom. Depois que uma colega — para quem teria confidenciado ter tido uma breve relação lésbica com uma civil — informou as autoridades a respeito de sua homossexualidade, foi ela submetida a uma entrevista e demitida. O Sr. Beck ingressou na Royal Air Force (RAF) em 1976. Quando de sua demissão, em virtude de sua homossexualidade, era um analista de sistema de comunicações, com uma conduta profissional exemplar e altamente recomendado para promoção. Já o Sr. Copp ingressou na Army Medical Corps em 1978. Após receber uma promoção, sendo-lhe designado um posto na Alemanha em 1981, ele declarou sua homossexualidade, a fim de que não fosse separado de seu companheiro (um civil), tendo sido, por isso, demitido. 47 Casos n. 43208/98 e 44875/98, disponíveis em <http://www.echr.coe.int/> (acesso em 5 de outubro de 2007). 48 Casos nº 48535/99, 48536/99 e 48537/99, disponíveis em <http://www.echr.coe.int/> (acesso em 5 de outubro de 2007). 25 O Sr. Bazeley entrou na Royal Air Force em 1985. Quando de sua demissão, era assistente de vôo, considerado com bom potencial. Durante entrevista admitiu sua condição de homossexual, após sua carteira ter sido localizada contendo cartões de dois clubes homossexuais, tendo sido, por este motivo, também demitido. Sem qualquer sucesso, os peticionários adotaram todas as medidas internas, visando à reforma da decisão de demissão, sob o argumento de discriminação por orientação sexual. Alegaram ainda que a política do Ministério da Defesa do Reino Unido, relativa a não presença de homossexuais nas forças armadas, era "irracional" e contrária à Convenção Européia de Direitos Humanos. A Corte acolheu os dois casos, sob o fundamento de que a política de banir a presença de homossexuais nas forças armadas, mediante investigação na vida privada e sexualidade, constituía violação aos artigos 8º (direito ao respeito à vida privada) e 14 (proibição de discriminação) da Convenção Européia. Argumentou que tal prática constituía uma flagrante discriminação e indevida ingerência no direito ao respeito à vida privada, não justificável à luz do § 2º do artigo 8º da Convenção como uma medida "necessária em uma sociedade democrática". 2) Caso Christine Goodwin v. Reino Unido49 Trata-se de caso objetivando o reconhecimento legal de transexual que realizou operação de mudança do sexo masculino para feminino, bem como tratamento dife-[360]renciado especialmente na esfera trabalhista, seguridade social, pensão e casamento no Reino Unido. A peticionária, com registro de nascimento do sexo masculino, viveu como uma mulher de 1985 a 1990, submetendo-se a cirurgia para mudança de sexo pelo serviço nacional de saúde. Denuncia a falta de reconhecimento legal da mudança de sexo, aludindo existir documentos nos quais ainda constam seu sexo como sendo masculino, o que lhe causa dificuldades, constrangimentos e humilhações. Acrescenta não ter, ademais, 49 Caso nº 28957/95, Judgment 11.7.2002 [Grand Chamber], disponível em <http://www.echr.coe.int/> (acesso em 5 de outubro de 2007). 26 acesso à aposentadoria aos 60 anos (idade aplicável às mulheres). Como na esfera legal ainda é tida como homem, é obrigada a pagar contribuições até a idade de 65 anos. Também denuncia a violação ao direito ao casamento, restritivamente entendido como uma união entre um homem e uma mulher. A Corte assumiu a necessidade de recorrer à uma interpretação dinâmica e evolutiva, de modo a aplicar a Convenção à luz das condições da realidade atual. Ressaltou que a falta de consenso na sociedade a respeito do status de um transexual (pós-operação) não pode ser compreendida como uma mera inconveniência ou formalidade. Não parece lógico, entendeu a Corte, permitir que a aludida cirurgia seja feita pelo sistema nacional de saúde e depois negar suas implicações legais e impacto jurídico. Tal situação tem gerado à peticionária conseqüências de alta relevância. Afirmou a Corte existir uma tendência internacional em favor da aceitação social de transexuais, bem como do reconhecimento legal de sua nova identidade sexual (após a operação para a mudança de sexo). Argumentou que exceções têm sido admitidas no sistema de registro de nascimento, como, por exemplo, na hipótese de adoção ou legitimação de filhos. Adicionar uma nova exceção relativa aos transexuais não colocaria em risco o sistema de registros como um todo, nem traria prejuízos a terceiros. Realçou ser a essência real da Convenção assegurar o respeito à dignidade humana e à liberdades, o que abrangeria, no século XXI, o direito dos transexuais ao desenvolvimento pessoal e à segurança física e moral de forma plena, tal como assegurado às demais pessoas. A zona intermediária em que os transexuais pós-operados se situam não é mais sustentável. Ponderou não haver qualquer suposto interesse público a caracterizar a chamada "margem de apreciação" para eventualmente legitimar a restrição do direito da peticionária. Na ponderaçãode bens, a Convenção mostrou-se absolutamente favorável ao direito da peticionária. No que tange ao direito de casamento da peticionária, observou a Corte que, embora o artigo 12 da Convenção trate do direito ao casamento com expressa referência ao direito "do homem e da mulher" de se casar e de constituir uma família, tal previsão não obsta a pretensão do aplicante de casar-se e formar uma família – até porque não pode ser 27 apenas considerado o critério puramente biológico para a definição dos sexos. A Convenção deve levar em consideração as profundas mudanças sofridas pela instituição do casamento, bem como os extraordinários avanços da medicina e da ciência no campo da transexualidade. Com fundamento no direito ao respeito à vida privada (artigo 8º da Convenção), a Corte sustentou que fatores biológicos não mais poderiam ser decisivos para negar o reconhecimento legal à mudança de sexo, nem tampouco privar a peticionária do direito ao casamento. [361] A Corte concluiu pela violação aos artigos 8º (direito ao respeito à vida privada e familiar), 12 (direito ao casamento e a fundar uma família) e 14 (proibição de discriminação), em prol do direito ao respeito à nova identidade sexual da peticionária. 3) Caso Grant v. Reino Unido50 Trata-se de caso objetivando o reconhecimento legal da mudança de sexo de transexual, bem como a concessão de aposentadoria, considerando a idade mínima aplicável a mulheres, com fundamento no artigo 8º da Convenção Européia (direito ao respeito pela vida privada e familiar). A peticionária é um indivíduo transexual, com 68 (sessenta e oito) anos, já submetido à operação para a mudança de sexo (masculino para feminino). Identifica-se como mulher desde 1963 para fins previdenciários, efetuando o pagamento das contribuições com base no critério aplicável às mulheres (até 1975, quando a diferença de valores foi abolida). Solicitou, assim, o direito à aposentadoria ao Estado quando alcançados os 60 anos, tendo sido seu pedido indeferido, sob o entendimento de que a idade mínima, no caso, seria 65 anos (idade para o sexo masculino). Foi interposto recurso da decisão, sem qualquer sucesso. Entendeu a Corte que, na hipótese, estaria caracterizada a violação ao artigo 8º da Convenção Européia, devido à falta de reconhecimento legal da mudança de sexo do peticionário. Adicionou 50 Caso nº 32570/03, Judgment 23.5.2006 [Section IV], disponível em <http://www.echr.coe.int/> (acesso em 5 de outubro de 2007). 28 inexistir qualquer justificativa para a negativa de tal reconhecimento, considerando a realização da operação para a mudança de sexo. Restaria, assim, configurada a afronta ao direito ao respeito à vida privada do peticionário, com fundamento nos artigos 8º e 14 da Convenção Européia. 6.2. O Judiciário brasileiro 1) Os transexuais e a retificação dos registros civis Os órgãos de cúpula do Judiciário brasileiro ainda não tiveram a oportunidade de se manifestar acerca dos direitos de os transexuais terem a retificação de seus assentamentos civis. Mas a mudança de sexo tem sido debatida perante diversos órgãos da Justiça estadual pelo menos desde a década de 1980. A jurisprudência, com certa hesitação,51 tem admitido a mudança do registro civil tanto no tocante ao nome quanto no que se refere 51 Verificar, por exemplo, os seguintes acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo, que admitiram a retificação do assento civil para dele constar outro prenome e outro sexo: Apelação Cível nº 86.851.4/7 (Relator Rodrigues de Carvalho, j. 10/02/2000, votação unânime); Apelação Cível nº 209.101-4/0-00 (Relator Elliot Akel, j. 09/04/2002; o voto vencido do Desembargador Guimarães e Souza admitia a mudança do prenome, mas entendia que no local destinado a especificar o sexo figurasse a condição de transexual). Conferir, também, algumas das decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre o assunto: Apelação Cível nº 585049927 (Relator Mário Rocha Lopes, j. 19/12/1985; nesse caso, houve o indeferimento da retificação do assento de nascimento ante a impossibilidade de mudança de sexo em razão da persistência das características somáticas que informaram o assento); Apelação Cível nº 596103135 (Relator Tael João Selistre, j. 12/09/1996; por maioria de votos o Tribunal entendeu que o pedido de autorização cirurgia para mudança de sexo e a conseqüente retificação do registro civil era juridicamente impossível); Apelação Cível nº 597134964 (Relator Tael João Selistre, j. 28/08/1997; o Tribunal, ao julgar esse recurso, entendeu, por maioria de votos, que, apesar de ter se submetido à cirurgia de mudança de sexo, o requerente continuava sendo, biológica e somaticamente, do sexo masculino, situação que inviabilizava a alteração do nome e do sexo em seu assento de nascimento, mesmo porque não havia qualquer erro ou falsidade no registro); Apelação Cível nº 597156728 (Relator Tael João Selistre, j. 18/12/1997; nesse caso, o Tribunal determinou a anotação de que o requerente modificou o prenome e passou a ser considerado como do sexo masculino em virtude de sua condição transexual, dando publicidade ao registro); Apelação Cível nº 70013909874 (Relatora Maria Berenice Dias, j. 05/04/2006; por maioria de votos, foi deferido o pedido apenas para autorizar a mudança do nome, mas não do sexo); Apelação Cível nº 70013580055 (Relator Claudir Fidelis Faccenda, j. 17/08/2006, votação unânime; nesse julgamento, admitiu-se a alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo e ao nome, em virtude da realização da cirurgia de redesignação sexual, vedando-se a extração de certidões referentes à situação anterior do requerente); Apelação Cível nº 70006828321 (Relatora Catarina Rita Krieger Martins, j. 11/12/2003, votação unânime; a decisão acolheu o pedido de alteração do nome 29 ao sexo, após cirurgia de alteração [362] do sexo biológico com vistas a compatibilizá-lo com o sexo psicológico. E o fundamento para tanto é que a retificação do registro civil, além de não trazer prejuízo para a sociedade, garante o respeito e repele a discriminação do transexual. Com acerto, a tendência é a de consolidação do entendimento segundo o qual o direito tem de ser dinâmico e não pode se calar diante de situações que causem constrangimentos às pessoas, ferindo a intimidade, a honra e a dignidade do ser humano. Nesse sentido, destacam-se duas decisões: uma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e outra do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em março de 1994, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul52 deferiu o pedido de retificação do registro civil de um transexual para determinar a alteração de nome e sexo, visto que, na falta de disposições normativas expressas, no Brasil, deve-se buscar o “direito vivo”. Na decisão, argumenta-se que “discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual”. E depois de assentar que “o direito à identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana”, o acórdão sustenta que a “identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma-se em estreita conexão com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade”. O Tribunal de Justiça de São Paulo,53 em março de 2001, determinou que o assento de nascimento de Adão Lucimar Donizete de Camargo fosse alterado para constar o [363] nome Lucimara Camargo, retificando-se também a indicação do sexo, de masculino para feminino. Tratava-se de um transexual que se submeteu a uma
Compartilhar