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AUTARQUIA EDUCACIONAL DE BELO JARDIM – AEB FACULDADE DE BELO JARDIM – FBJ CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM LETRAS /INGLÊS DALIANY JARDELE DA SILVA FELIPE COSTA UMA ANÁLISE SOCIAL DO BICHO QUE É GENTE EM VIDAS SECAS DE GRACILIANO RAMOS BELO JARDIM – PE 2019 DALIANY JARDELE DA SILVA FELIPE COSTA UMA ANÁLISE SOCIAL DO BICHO QUE É GENTE EM VIDAS SECAS DE GRACILIANO RAMOS Monografia apresentada ao curso de Licenciatura Plena em Letras com habilitação em Inglês da Faculdade de Belo Jardim – FBJ em cumprimento às exigências para obtenção do título de Graduado. Orientador: Ms. José Sandro dos Santos BELO JARDIM – PE 2019 DALIANY JARDELE DA SILVA FELIPE COSTA UMA ANÁLISE SOCIAL DO BICHO QUE É GENTE EM VIDAS SECAS DE GRACILIANO RAMOS Aprovada _____/_____/_____ BANCA EXAMINADORA Prof. Ms. José Sandro dos Santos (orientador) Mestre - UFPB Prof. Ms. Cícero José da Silva Mestre - UFPB Prof. Ms. João José Batista Filho Mestre - UFPB CONCEITO FINAL: _________________________________ AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente ao meu amado Deus, a quem devo a vida, que em todo tempo sempre esteve comigo, como amigo, pai e consolador; dando-me ânimo, força para vencer os obstáculos, conhecimento, sabedoria e esperança nessa trajetória tão difícil. Fazendo-me entender que as dificuldades vêm para nos fazer fortes e que vitória só tem aquele que luta, por isso lutei contra eu mesma para conseguir concluir todo o curso, pois compreendo que algo maior e melhor Deus tem preparado. Ao meu digníssimo esposo, amigo e companheiro, Alex Rafael, que eu tanto amo, o qual me serviu de expiração, apoiou-me durante todo o curso, acreditou no meu sucesso, e por incansáveis vezes deu-me palavras de ânimo. À minha mãe, essa joia preciosa que muito amo, a qual confiou em mim e por inúmeras vezes orou pela minha vida. À minha amada sogra e amiga que escutou minhas aflições, ajudou-me com palavras e em oração. A toda minha família (meu pai, meus avós, tias, tios, irmã, irmãos, cunhado, sogro) que, sempre quando precisei de ajuda, nunca disseram não, faziam o possível para corresponder as minhas necessidades, dando-me o maior apoio. À minha amiga, Ana Cláudia, que juntas passamos por muitos momentos de alegria e angústia, mas sempre uma dava ânimo à outra para que, unidas, também conseguíssemos a vitória. Não poderia deixar de agradecer a Bárbara Soares que tanto me ajudou nos instantes finais desse percurso. Aos ilustres professores que contribuíram com o meu sucesso, dando-me o suporte intelectual e até mesmo conselhos para a vida. Ao meu excelentíssimo orientador, José Sandro, que me guiou nesse processo de criação tão complexo, tendo paciência comigo, pois chegaram momentos que pensei não ser capaz de conseguir. Com esse mestre muito aprendi, não só na área acadêmica, sua história de vida e superação, serviu-me de exemplo e motivação para continuar. Aos digníssimos mestres, Cícero José e João Batista, com os quais também pude descobrir o vasto caminho do conhecimento, o que aprendi nas ministrações de suas aulas e conversas quero levar para o resto da minha vida. Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer. Graciliano Ramos RESUMO A literatura regionalista em seus primórdios não era tão aceita, porque tratava os sertanejos e suas relações sociais de forma pitoresca, escondendo a realidade destes. Passados os anos, na década de 30, essa situação mudou, o mundo pôde conhecer um novo estilo literário das obras regionais através do denominado “romance de 30”. Os escritores que compunham esse período traziam à narrativa temas relacionados ao cotidiano das pessoas, encorpado de uma linguagem simples, objetiva e de grande teor crítico social. Dessa forma, o presente trabalho traz uma análise social de caráter bibliográfico do romance Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, o qual fala sobre os problemas enfrentados pelos nordestinos nos períodos de estiagem, tratando, nas entrelinhas, do texto temas universais, tais como: a construção da identidade e do comportamento humano, as dificuldades das relações humanas, a exclusão social, a injustiça, o desinteresse público, a exploração e a subalternização da classe baixa. Utilizando como princípios analíticos os recursos operadores da narrativa de BONNICI; ZOLIN (2005). A partir dessa análise pode-se observar a importância do romance de trinta para a tomada de consciência acerca dos problemas sociais que afligem os sertanejos, modificando a sua identidade e o seu comportamento como um ser racional. Para fomentar a pesquisa, dando-lhe maior caráter científico, usou-se como teorias basilares: ASSIS (1994), WILDE (2000), NUNES (2013), ALENCAR (2009), FILHO (2008), GANCHO (2006), ROSENFELD (1968), HEMINGWAY (2013), CARDOSO (1990), LAFETÁ (2000), ANDRADE (1978), MICELI (1979), CANDIDO (2000), LINS (1943), TRAVASSOS (2013), SANT’ANNA (1973), WEBER (2004), LACAZ-RUIZ (1998). PALAVRAS CHAVE: Graciliano Ramos; Literatura Regionalista; Sertanejo; Vidas Secas. ABSTRACT Regionalist literature in its early days was not so well accepted, because it treated the sertanejos and their social relations in a picturesque way, hiding the reality of them. Over the years, in the 1930s, this situation changed, the world was able to know a new literary style of regional works through the so-called "novel of 30". The writers who composed this period brought to the narrative subjects related to the daily life of the people, full of simple, objective language and of great social critical content.In this way, the present work brings a social analysis of bibliographical character of the novel Vidas Secas (1938) of Graciliano Ramos, which talks about the problems faced by the Northeasterns in the periods of drought, dealing, in the lines, with universal themes, such as : the construction of identity and human behavior, the difficulties of human relations, social exclusion, injustice, public disinterest, exploitation and subalternization of the lower class. Using as analytical principles the operative resources of the BONNICI narrative; ZOLIN (2005). From this analysis one can observe the importance of the novel of thirty for the awareness about the social problems that afflict the sertanejos, modifying their identity and their behavior as a rational being. To foster research, giving it greater scientific character, it was used as basic theories: ASSIS (1994), WILDE (2000), NUNES (2013), ALENCAR (2009), FILHO (2008), GANCHO (2006), ROSENFELD (1968), HEMINGWAY (2013), CARDOSO (1990), LAFETÁ (2000), ANDRADE (1978), MICELI (1979), CANDIDO (2000), LINS (1943), TRAVASSOS (2013), SANT’ANNA (1973), WEBER (2004), LACAZ-RUIZ (1998). . KEYWORDS:Graciliano Ramos; Regionalist literature; Sertanejo; Vidas Secas. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09 1. OPERADORES DE LEITURA DO TEXTO NARRATIVO.........................................12 1.1. Narração: tipos de narrador e o foco narrativo.............................................................15 1.2. O tempo na narrativa.....................................................................................................16 1.3. O impacto e relevância do espaço e do ambiente na narrativa.....................................19 1.4. Personagens na narrativa..............................................................................................20 1.5. O diálogo da consciência: tipos de monólogos.............................................................22 2. BRASIL EM MEADOS DO SÉCULO XX: TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS, SOCIAIS E ESTÉTICA.........................................................................................................25 2.1. Inovação literária: modernismo.....................................................................................27 2.2. Construção estética e ideológica: o romance regionalista de 30..................................30 2.3. A dicotomia de Graciliano: sujeito e escritor...............................................................32 2.4. O reflexo de Graciliano em suas obras.........................................................................34 3. 3. UMA ANÁLISE SOCIAL DO BICHO QUE É GENTE..............................................38 3.1. O romance regionalistaa de 30 como ferramenta de conscientização política e social....................................................................................................................................39 3.2 Vidas Secas, bem mais que uma ficção .........................................................................41 3.3. As personagens de Vidas Secas analisadas sob uma perspectiva social.......................44 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................55 9 INTRODUÇÃO O homem enquanto ser racional e social sente a necessidade de relaciona-se, logo é através da formação em sociedade que isso acontece. Contudo, essa organização apresenta algumas estratificações, que separa o homem por classes sociais, dando-lhe atribuições conforme o seu poder aquisitivo, o grau de escolaridade e localidade habitacional, ou seja, tudo está vinculado aos status. Em decorrência disso surgem os problemas concernentes às relações humanas que ora exalta esse homem, concedendo-lhe privilégios, ora marginaliza-o, a ponto de deixá-lo inferior aos demais. Esse processo é conhecido como construção social, a qual cria, a partir desses fatores já mencionados, a identidade das pessoas. Ao observarmos aqueles que ocupam posições privilegiadas, não veremos os mesmos apresentarem quaisquer dificuldades ao se relacionarem, mas as pessoas pobres, excludentes, sofrem as consequências desse sistema desigualitário, por conta da imagem estereotipada que é construída das mesmas. Por exemplo, os sertanejos que residem na zona rural são animalizados, tratados como bichos, definição esta que repercute no comportamento destes, os quais se mostram mais conservadores, recatados, de poucas palavras, porque vivem isolados em seu mundo, em virtude do preconceito social que os reprimem, subalternizam e criam a divisão do homem da cidade e o bicho do campo, essa situação é bem deprimente, pois condiciona o ser humano à desumanidade, a viver em seu cotidiano escanteados e indiferentes, reflexos esses que são sentidos seja de forma psicológica, física, ética ou moral. Visando analisar essas relações sociais, o trabalho em tela utiliza uma pesquisa de caráter bibliográfico dos personagens da obra Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, a qual, de forma ficcional, narra a história de uma família de retirantes que vivem semelhantes a bichos no sertão brasileiro, são afligidos pela seca, explorados, injustiçados e esquecidos pela classe operante. Fica evidente que, ao trazer esses conflitos sociais para o romance com personagens tão significativos, o autor não só representa a pobreza e a exclusão social destes nordestinos, mas toda a classe pobre que vivencia essas situações em seu cotidiano, e que, apesar dos avanços científicos, tecnológicos, a sociedade parece não progredir, pois em pleno século XXI, nada mudou, essa narrativa parece ter sido produzida recentemente. Para realizar esse estudo usaram-se, como princípios analíticos, os recursos operadores da narrativa de BONNICI; ZOLIN (2005), devido à complexidade e abrangência da pesquisa usufruímos também como teorias basilares a falas de ASSIS (1994), WILDE (2000), NUNES (2013) ALENCAR (2009), FILHO (2008), GANCHO (2006), ROSENFELD (1968), HEMINGWAY 10 (2013), CARDOSO (1990), LAFETÁ (2000), ANDRADE (1978), MICELI (1979), CANDIDO (2000), LINS (1943), TRAVASSOS (2013), SANT’ANNA (1973). Em detrimento dessa realidade cruel e pouco abordada subtende-se que a promoção de trabalhos, com valor científico, voltados para temas que denunciam os problemas sociais, possa corroborar com a conscientização social, tanto por parte dos acadêmicos, quanto dos poderes públicos responsáveis por manter a ordem social no país, havendo a partir daí a possibilidade de modificar a vida dessas pessoas, dando-lhes melhores condições humanas e devolvendo os direitos e a identidade que outrora lhes foram tirados. O presente trabalho encontrasse subdividido em três capítulos e, para melhor organizá-los, também foram inseridos tópicos com temas correlacionados. Assim, o primeiro capítulo trata acerca das ferramentas de análise do texto literário, as quais auxiliam na compreensão das estruturas narrativas, o mesmo foi dividido em seis subtópicos. O primeiro trata acerca dos operadores de leitura do texto, introdução, desenvolvimento, conclusão, as partes descritivas e interpretativas, a subjetividade inserida em alguns pontos da narrativa; no segundo é enfatizado a questão do tempo linguístico, o subjetivo (psicológico), e o objetivo (tempo real); o terceiro aborda os tipos de narrador que direciona o leitor a focalizar determinada ideologia no texto; o quarto fala da relevância e do impacto que o espaço e o ambiente construídos na história podem causar nas personagens; o quinto discorre acerca da importância e dos tipos de personagens que compõe um romance, para concluir, no sexto foi exemplificado os tipos de diálogo da consciência. No segundo capítulo foi realizado uma breve explanação do contexto histórico das décadas de 20 e 30, enfatizando os motivos que corroboraram para a mudança ideológica artística, a qual culminou no surgimento de uma nova escola literária, o Modernismo. Logo após foram mencionadas as principais características que marcaram esse movimento, bem como o novo estilo do romance regionalista de 30. Por fim situei o escritor Graciliano Ramos (1892-1953) nesse período, exemplificando suas obras. O final do capítulo ficou composto em cinco subtópicos, sendo no primeiro realizada uma breve explanação do Brasil em meados do século XX, ressaltando as transformações políticas, sociais e estéticas; no segundo mencionou-se as inovações literárias decorrentes da inauguração do modernismo; já o terceiroenfatiza a construção estética e ideológica com enfoque no romance de 30; o quarto evidencia a vida de Graciliano Ramos e a sua relação como escritor; por fim o capítulo encerra demostrando os reflexos de Graciliano em suas obras. O último capítulo, é concernente à análise social das personagens de Vidas Secas, mas antes de chegar até a análise realizada apenas no último subtópico foi mencionada a 11 situação de miserabilidade das pessoas que residem no Sertão Nordestino, as quais vivem em condições desumanas, tratadas como verdadeiros bichos do mato; também foi abordada a relevância do romance de 30, em virtude da crítica que o mesmo apresenta aos problemas sociais vigentes, que o torna uma ferramenta eficaz de denúncia a esses conflitos sendo também uma forma de conscientizar os poderes públicos e a classe alta. Por fim o trabalho termina com a análise do ponto de vista social, utilizando para tal fim os recursos operadores da narrativa, esmiunçados no primeiro capítulo. Esse estudo proporcionou a compreensão quanto à construção da identidade que transforma o homem dando-lhe características animalescas, e o coloca em condição desfavorável diante da sociedade; como também o comportamento humano e os conflitos que perpassam as relações sociais já enfatizados no romance de 30, que ultrapassa os paradigmas ficcionais e denuncia a realidade cruel do cotidiano dos sertanejos que sofrem as mazelas da seca e o desinteresse político. 12 1. OPERADORES DE LEITURA DO TEXTO NARRATIVO Neste capítulo, discorreremos acerca dos recursos da narrativa que auxiliam no processo de construção, intencionalidade e compreensão do texto literário. A princípio é de suma importância atentarmo-nos para a composição do gênero narrativo e as divisões que englobam e norteiam o conflito dramático, sendo elas: introdução, desenvolvimento e conclusão. Essa primeira etapa caracteriza-se por uma explanação (síntese) superficial da história; a segunda é constituída pelo aprofundamento do texto, momento este, que o autor esmiunça todo o contexto da intriga outrora iniciada; por fim, o terceiro e último ponto é marcado com o encerramento da construção literária, o qual apresenta as soluções e conclusões de todos os dilemas, mistérios e enigmas abordados na narrativa. Vale ressaltar que essas divisões supracitadas não seguem uma ordem padrão nas obras literárias, um pode preceder o outro sem que ocorra uma organização sequencial, tal situação é exemplificada no romance de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas1, o qual inicia o seu enredo com a conclusão da narrativa e logo após passa a discorrer o contexto do conflito dramático. Vejamos um trecho: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco. É observável nessa parte que o personagem Brás Cubas esclarece ao leitor o que lhe motivou a começar a contar sua história a partir do seu triste fim (morte), além disso, ele se caracteriza, como um defunto autor, ou seja, um morto contando sua trajetória enquanto estava em vida, o que contribui para aumentar a subjetividade da narrativa, pois o mesmo tem a liberdade de acrescer ou diminuir os fatos, conforme lhe apraz. Ao fazer isso ele acaba por aumentar o interesse do leitor para com a narrativa, em virtude do diferencial, do novo, do fora do comum, ele acaba por chamar mais a atenção; assim como o próprio Cubas enfatiza, “isso é galante”, em outras palavras, charmoso. Ao levar o estilo dessa obra em consideração, podemos pressupor que o antecipar ou retardar da conclusão de uma história depende dos 1 ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.25. 13 princípios do grau de subjetividade que o autor deseja inserir na trama, além de partir da definição de feio e bonito que cada um tem. Outro elemento basilar na narrativa é a intriga (conflito dramático). Ela é a força motriz de todo o desenrolar da história, a qual comporta o ponto culminante que ajuda a conceituá-la como uma narrativa, bem como nos diz Bonnici e Zolin2, “A especificidade da narrativa parece ser o tratamento conferido ao conflito dramático que lhe é intrínseco. Sem conflito dramático, não há narrativa, mas ele não é um dado exclusivo da narrativa”. Percebe- se que o conflito dramático é um dos pontos primordiais para a definição desse gênero literário, o qual funciona como termômetro da narrativa, mas, por se tratar de uma classe complexa, composta por inúmeros operadores que auxiliam na sua composição e análise, fica explícita que a identificação desse operador no texto é apenas a descoberta da “ponta do iceberg”, ou seja, o começo dessa exegese3, logo será de grande relevância levantar outros elementos que, agregados, contribuem para o aprofundamento desse estudo. Um método eficaz é a decomposição e a divisão das partículas presentes na história, denominadas análise descritiva e análise interpretativa. A primeira é responsável por dissecar o texto, transformando as partes maiores em menores, o que torna possível a identificação precisa desses elementos, ligando-os ao seu gênero literário. Diferente da análise interpretativa, que não está presa à estrutura do texto (elementos) ou ao seu gênero, mas volta- se para as relações de sentido dentro desse corpo que forma o texto (conteúdo). Em uma análise de qualquer produção literária aplica-se tanto a análise descritiva quanto a interpretativa, tendo em vista que essa categoria textual apresenta uma estrutura dupla, a qual se preocupa com a história narrada (descritiva), composta por elementos que a define como gênero narrativo; e com o conteúdo (interpretativa) que se delimita nas relações de sentido, grau de ambiguidade e tensão, os quais são recursos basilares para o enriquecimento do conflito dramático, pois as lacunas deixadas de propósito pelo escritor suscitará maior interesse no leitor, o qual também ficará incumbido, dentro dos parâmetros interpretativos estabelecidos pelo texto (margem delimitadora), de preencher esses espaços vazios, utilizando a própria subjetividade. Essa situação Machado de Assis4 já falava em suas obras, vejamos: 2 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2ª ed. Maringá: Eduem, 2005, p. 34. 3 Exegese: análise, explicação ou interpretação de uma obra feita de maneira cuidadosa. Comentário cujo propósito é esclarecer ou interpretar detalhadamente um texto, uma expressão ou uma palavra. Etimologia (origem da palavra exegese). Do grego exégésis. 4ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Cotia: Ateliê Editorial, 2008, p. 213. 14 Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor.... Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livrosomissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. Assis esclarece, nessas poucas linhas, algumas posições que um bom leitor assume a partir do momento que passa a ter contato com o texto. Esse escritor, que faz parte do cânone da literatura brasileira, tão sisudo em palavras, tinha experiências suficientes para falar com propriedade deste assunto, isso porque ora ele assumia a posição de escritor, o qual ficava incumbido de deixar, de forma proposital, os espaços vazios nas suas histórias para que o leitor, ao ler, pudesse preenchê-los, ora ocupava a posição de leitor, e sabia bem o momento certo de acrescer elementos extralinguísticos advindos e extraídos da sua subjetividade. Estratégia que ele deixa explícita no trecho acima inserido do livro Dom Casmurro, ao revelar que em textos alheios, era possível fantasiar objetos, sensações e sentimentos que nas folhas não estavam registrados, enfatiza o escritor. Essa etapa acima descrita pode ser definida como função interpretativa, o que deixa evidente que, para analisar o texto literário e dividi-lo em partículas menores, é de suma importância fazer uso das duplas análises, descritiva e interpretativa, que auxiliam na fragmentação do texto, Bonnici e Zolin5: A distinção entre a história narrada e o texto no qual ela se manifesta é fundamental. É preciso levá-la sempre em consideração, pois não basta “extrair”, após a leitura, a história narrada do texto que a veicula. No caso da narrativa literária, os dois aspectos estão sempre intimamente vinculados e exigem igual atenção do leitor. É necessário observar, analisar, interpretar e avaliar criticamente tanto a história que o texto narra como o modo pelo qual a narra. Isso exige uma atenção para a própria composição do texto, para o modo como os recursos linguísticos e os demais elementos constitutivos da narrativa estão, ali, organizados de modo particular. Todos e quaisquer elementos da narrativa são relevantes, principalmente porque se trata de uma categoria muito rica, complexa e cheia de componentes que, se dispensados, podem modificar sua essência a ponto de perder detalhes que fazem toda a diferença na obra. 5BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2ª ed. Maringá: Eduem, 2005, p. 34. 15 Por esse motivo as análises descritiva e interpretativa estão intrinsicamente ligadas, uma completando a outra. 1.1. Narração: tipos de narrador e o foco narrativo Dentro da estrutura que compõe a obra literária encontram-se alguns artifícios que corroboram e direcionam o leitor para um determinado “ponto de vista” (ideologia), os quais são inseridos no texto pelo próprio autor com a finalidade de focalizar certa temática (assunto). A partir desse pressuposto, subtende-se que, para chegar a esse referente, é de suma importância começar pelos princípios narrativos com os procedimentos metodológicos. Essa etapa é composta por autor, narrador e foco narrativo. O autor não pode, em hipótese alguma, ser confundido com o narrador, por apresentarem funções distintas. Em síntese, esse primeiro fica encarregado de criar, construir o texto literário, enquanto que o segundo é uma categoria de personagem, o narrador recebe classificações diferentes a partir do discurso que emprega ao narrar. Dentro dessa perspectiva o processo narrativo serão evidenciados dois tipos de narrador: o heterodiegético (função do estatuto narrativo) que narra sem participar da diegese (história contada), não atua como personagem (protagonista), sua atribuição consiste apenas em narrar os acontecimentos; e o extradiegético (função discursiva), o qual além de discorrer os fatos ocupando uma posição externa dos acontecimentos, insere também sua opinião na narrativa, dessa forma ele se sobressai como um narrador de 1º grau. A escolha do narrador irá determinar toda a diegese, pois, ao fazer isso, o foco narrativo (ideologia) entra em cena, e estes (narrador e o foco narrativo) trabalham em conjunto para focar e direcionar a história a um certo assunto que é de interesse enfatizar (colocar em evidência) a partir da posição que o narrador toma no texto. Bonnici e Zolin6 dizem que: “A focalização corresponde, como o próprio nome sugere, à posição adotada pelo narrador para narrar a história, ao seu ponto de vista. O foco narrativo é um recurso utilizado pelo narrador para enquadrar a história de um determinado ângulo ou ponto de vista”. Dentro desse processo e artifício narrativo, o qual induz o leitor a observar no texto exclusivamente o que é de interesse ressaltar, surge o foco narrativo, denominado “Onisciência seletiva 6 BONNICI; ZOLIN, op. cit., p 41. 16 múltipla”, o qual pode ser definido da seguinte forma: Onisciência porque nesse foco o narrador detém todas as informações sobre as personagens, tanto as externas, quanto as internas e as conta de forma momentânea, ou seja, à medida que elas pensam e sentem o narrador esmiunça com propriedade tudo o que está acontecendo; e o termo múltipla que está relacionado ao fato desse narrador não deter apenas conhecimentos de uma única personagem, mas estar vinculado às demais. Umas das características desse narrador de onisciência múltipla é o emprego do discurso indireto-livre, que é responsável por promover um efeito de eliminação da figura do narrador, assim ele não só assume uma mera posição de contar a história, mas sua função fica mascarada pelos subsídios introspectivos que o mesmo dá ao leitor acerca das personagens, em detrimento dessa sondagem que ele apresenta, os diálogos dos protagonistas parecem se misturar com as descrições das emoções e provoca uma certa confusão na cabeça do legente (se é o narrador ou a personagem que está dialogando), esse recurso o direciona cada vez mais para o foco narrativo colocado em evidência. Oscar Wilde ao escrever O Retrato de Dorian Gray7, mostra na prática como ocorre a aplicação dos três processos supramencionados, isso porque ao construir essa obra, o autor empregou o narrador de onisciência múltipla do tipo heterodiegético, com o foco narrativo direcionado a promiscuidade, degradação social, moral e ética de Dorian Gray, o qual narra a história com muita propriedade e se detém tanto a fatos exteriores quanto aos interiores. Sem participar como figurante cumpre unicamente o papel de narrador, perscruta todos os pensamentos e sensações vivenciados pelas personagens, com intuito de acentuar a subjetividade da narrativa e promover uma escrita mais rebuscada, faz uso do discurso indireto-livre, o qual exige mais atenção por parte do leitor, visto que as falas do mesmo parecem misturar-se com as das personagens. 1.2. O tempo na narrativa Em detrimento de tudo que já foi discorrido, é observável um fator comum em todos os recursos empregados na narrativa, de forma geral, os artifícios utilizados no texto literário se distinguem dos demais gênerostextuais por se tratar de uma escrita mais rebuscada 7 WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. RUIVO, Maria de Lurdes Sousa. 7ª ed. Portugal: Coleção Novis, 2000. 17 (detalhada), com um nível de complexidade maior, no qual as informações estão distribuídas de forma explícita e implícita, assim pressupõe que todo e qualquer recurso, por mais simples que seja, quando aplicado no romance passa por novos processos funcionais, um exemplo disso é o tempo na narrativa. Nunes8 fala que: “É mais fácil compreender as ligações do tempo com a música, por ser esta basicamente articulada segundo medidas temporais (ritmo, compasso, e andamento ou velocidade), do que com as formas narrativas, nas quais se apresenta quase sempre de modo implícito”. O tempo está intimamente ligado com todo o desenrolar da história, em certas situações como citou Nunes, ele não aparece de forma evidente, mas fica camuflado entre um capítulo e outro, na fala (tempo linguístico) e no pensamento (tempo psicológico) da personagem ou mesmo do narrador. Embora esse recurso possa parecer muito simples, o mesmo apresenta uma estrutura bem elaborada e contundente para o romance (texto narrativo) e se divide em várias categorias. Nesse estudo serão abordados quatro tipos diferentes de tempo, mas antes de adentrar nessas definições é indispensável compreender dois fundamentos que norteiam e classificam o tempo na narrativa como objetivo, subjetivo ou quando os dois são empregados na mesma narrativa e caminham juntos a ponto de deixar o texto ainda mais interessante e atraente ao leitor. A definição do tempo objetivo (tempo real) é demarcado na história de forma cronológica e externa a partir da passagem dos dias, meses, anos, de datas comemorativas, dos fenômenos climáticos, das estações do ano, tudo o que se remete à contagem e sucessão do tempo de maneira denotativa (objetiva) refere-se ao tempo cronológico. Diferente do tempo subjetivo (tempo imaginário), o qual se apresenta de forma interna, no decorrer do enredo as personagens o inibem dentro de uma perspectiva psicológica, conotativa, um minuto pode parecer tão longo se vivenciado sem interesse, a ponto de torna-se monótono, como também uma hora pode passar tão rápida e parecer curta se a personagem estiver vivendo-a intensamente, isso acontece porque a mesma está concentrada no momento e não lhe parece tedioso, mas atrativo; assim, o curso do tempo passa a ser contado dependendo das experiências, sensações, sentimentos, emoções ou estado de espírito9. Por mais que aparente ser uma ferramenta narrativa sem tanta relevância, o tempo está ligado ao curso da vida, a toda e quaisquer atividades ou artes desenvolvidas pelo homem, como por exemplo, a produção de um romance. Seus alicerces estão vinculados a ele, pois há necessidade de, no decorrer da história, contar os fatos e isso só é possível quando ocorre a inserção dele na diegese. É válido destacar que na narrativa, por se tratar de uma 8 NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo: Ed. Loyola, 2013, p. 8. 9 NUNES, op. cit., p. 19. 18 produção textual mais detalhada, é comum o escritor, ao produzir seu texto, empregar os dois tempos supramencionados. Após compreender esses elementos basilares do tempo fica mais coerente destacar as duas subdivisões que o organiza na narrativa, as quais promovem e permitem uma análise mais concisa e organizada dos fatos. Dispostos em: Tempo físico: este está ligado à ordem simultânea das coisas, a sucessão dele está suspendida e conectada em dois pontos fundamentais: causa e efeito, apesar dos acontecimentos ocorrerem no mesmo momento, existe um fenômeno que os ligam e impulsiona-os a seguir, a desenrolar-se, ou seja, um só existe porque houve uma causa (agente) que corroborou para que o efeito acontecesse, um sucede o outro seguindo uma ordem dos fatos, o qual não pode ser modificado. Um exemplo disso é a cana-de-açúcar, logo quando a espreme o seu caldo sai, mas para sair esse líquido é preciso comprimi-la, assim não é possível inverter o efeito de causa e consequência, pois o segundo depende do primeiro sem o qual seria impossível de existir. Tempo linguístico: nesse a contagem e progressão temporal está intrínseca aos tempos verbais, esses são responsáveis por exprimir no discurso o pretérito (passado, momento já vivenciado), presente (o que está acontecendo) e futuro (fatos que irão acontecer) interligados ao modo indicativo, subjuntivo, imperativo ou as formas nominais do infinitivo, gerúndio e particípio. Logo, a comunicação será uma ferramenta indispensável para o tempo linguístico. Em detrimento de tudo que já foi levantado acerca da amplitude e da importância do tempo na narrativa, o qual está em constante movimento e se apresenta de formas diversificadas (heterogêneas) sem perder a sua essência de sucessão e continuidade, Nunes10 afirma: A ideia de tempo é conceitualmente multíplice; o tempo é plural em vez de singular. Entretanto, suas várias modalidades não são díspares; embora com alcance diferente, a todas se aplicam as noções de ordem (sucessão, simultaneidade), duração e direção, que recobrem, em vez de uma identidade, relações variáveis entre acontecimentos, ora com apoio nos estados do mundo físico, ora nos estados vividos, ora na enunciação linguística, nas condições objetivas da cultura, nas visões de mundo e no desenvolvimento social e histórico. É válido salientar que nas conclusões supracitadas feitas por Nunes, fica explícito que o tempo independe de estar exposto de maneira objetiva ou subjetiva, ele é multíplice e 10 NUNES, op. cit., p. 23. 19 terá seus sentidos dentro do contexto, seja ele inserido de forma cronológica, psicológica, física ou linguística, contanto que não se perca a sua função. 1.3. O impacto e a relevância do espaço e do ambiente na narrativa O espaço pode apresentar na narrativa funções variadas, isso depende muito da forma como se emprega, podendo causar impacto direto no comportamento das personagens em determinadas situações, e também construir suas personalidades e características exteriores ou interiores, assim pressupõe-se que essas, só apresentam certas qualidades ou defeitos, porque houve um fator determinante: o espaço que corroborou para modificar esse perfil, comportamento. Observemos um trecho do livro de José de Alencar, Iracema11: Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Iracema é a personagem principal dessa obra, ela é uma índia que vive na mata, sua beleza sem igual parece ter sido extraída de seu habitat, a floresta. A forma como o narrador descreve seu nascimento, induz o leitor a compará-la com o espaço, pois transparece que a própria natureza, foi a sua genitora. Tudo nela faz alusão à fauna, à flora, aos rios, ou seja, sua identidade, as características físicas e psicológicas, as sensações e sentimentos foram criados a partir desse lugar. É relevante destacar que até as metáforas utilizadaspara descrevê-la remetem-se a esse cenário, onde passa toda a história. O grau de influência do espaço na história pode oscilar, ora ele é destaque, ora funciona meramente como localização. Filho12 fala sobre esse recurso com muita destreza e, tendo a finalidade de deixá-lo mais esclarecedor, divide-o por etapas funcionais e enfatiza que ele pode servir para caracterizar as personagens, situando-as no contexto socioeconômico e psicológico em que vivem, influenciá-las e também sofrer suas ações, propiciar a ação, situar a mesma geograficamente e representar os sentimentos vividos por elas. É nítido que na 11 ALENCAR, José de. Iracema. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 15. 12 FILHO, Ozíris Borges. Espaço e Literatura: introdução à topoanálise. São Paulo: UFTM, 2008. 20 narrativa este pode apresentar funções múltiplas, o que o leva a ocupar inúmeras posições, e faz dele um recurso essencial para a narrativa. Entretanto o mesmo não se apresenta de forma isolada, podendo também aparece vinculado ao ambiente. No momento em que os personagens estão em determinados espaços e acontece um clímax (repercussão no enredo), o ambiente acaba por modificar o mesmo no que diz respeito às condições climáticas, físicas e psicológicas, isso porque se cria um clima tenso, psicologicamente pesado ou enfadonho, corroborando para uma ligação intrínseca do espaço, ambiente e clima, este último compõe o segundo, pois faz parte de sua essência. Gancho,13 explica como ocorre essa associação, interligando-os também com o tempo: É o espaço carregado de características socioeconômicas, morais, psicológicas, em que vivem os personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescido de um clima. Clima é o conjunto de determinantes que cercam os personagens, que poderiam ser resumidas às seguintes condições: Socioeconômicas; Morais; Religiosas; Psicológicas. Fica explícito que esses recursos trabalham em concordância no romance, juntos o transformam e lhe dão novos sentidos, até porque, quando esses fenômenos acontecem, novas características, sentimentos, sensações, temperamentos, crenças e culturas surgem, em detrimento da modificação causada pelos mesmos. 1.4. Personagens na narrativa As personagens compõem uma das partes indispensáveis na narrativa, é o que diz Bonnici e Zolin14 “... É sobre ela que recai, normalmente, a maior atenção dispensada pelo leitor, dada a ilusão de semelhança que tal elemento cria com a noção de pessoa.” Isso porque o texto literário trabalha dentro de uma perspectiva verossímil (parte do real para o ficcional), em detrimento dessa característica, as mesmas, quando criadas, passam pelo procedimento de materialização do real para o imaginário, por se tratar de personagens fictícias podem 13 GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar Narrativas. 7ª ed. São Paulo: Ática: Série Princípios, 2006, p. 14. 14 BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2ª ed. Maringá: Eduem, 2005, p. 38. 21 representar de forma superficial, ou não, alguma situação da realidade, seja de uma sociedade, família, pessoa, até mesmo de questões culturais; além disso, elas estão intrínsecas aos acontecimentos e são tão bem distribuídas no romance que chegam ao ponto de criar uma aproximação do leitor com a obra, isso porque mexe com o seu subconsciente e o mesmo encontra nelas a oportunidade de sentir e imaginar suas fantasias, devaneios que, se vividos na realidade, poderia causar polêmicas, transtornos e infringir as regras da ética e moral que norteiam a vida social. Portanto, entende-se diante do que já foi discorrido, que essa utopia formulada por quem lê em consonância com a sua subjetividade, só é possível em detrimento da relação estreita criada entre ambas as partes, pois os protagonistas lhes servem como espelho fictício. Rosenfeld15 explicita essa situação da seguinte forma: [...] Graças à seleção dos aspectos esquemáticos preparados e ao “potencial” das zonas indeterminadas, as personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a sua concreção individual; e mercê desse fato liga-se, na experiência estética, à contemplação, a intensa participação emocional. Assim, o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas que a sua vida pessoal dificilmente lhe permite viver e contemplar, pela crescente redução de possibilidades [...]. É precisamente a ficção que possibilita viver e contemplar tais possibilidades, graças ao modo irreal de suas camadas profundas, graças aos quase- juízos que fingem referir-se a realidades sem realmente se referirem a seres reais; e graças ao modo de aparecer concreto e quase-sensível deste mundo imaginário nas camadas exteriores. As personagens não chegam à história como quem cai de paraquedas em uma floresta, para fazerem sentido na narrativa, passam por um processo minucioso de criação, com o intuito de deixá-la mais interessante e voltar o olhar do leitor para um ponto central em comum. Elas são, por sua vez, divididas dependendo da atuação que desenvolvem na diegese e do grau de relevância que as mesmas apresentam no conflito dramático. Ao levar em consideração esses critérios já expostos pode-se assim classificá-las: Principal: como o próprio nome já a define, é assim nomeada por ser a peça central, a força motriz da diegese, do conflito. Um romance, pode conter uma ou mais personagens principais, as quais, são tão fundamentais, que as outras só aparecem na narrativa por necessidade delas. Umas das suas características é que aparecem com mais frequência (se sobressaem) no desenrolar da história, o enredo gira em torno delas, além disso, atraem para si a atenção dos leitores. Metaforicamente esse processo funciona e se divide da seguinte forma: imagine uma colmeia (narrativa), nela moram muitas abelhas (personagens), as operárias 15 ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In CANDIDO, Antonio. Personagem de Ficção. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1968, p. 40. 22 e a rainha, apesar de dividirem o mesmo espaço, apenas uma é o destaque entre todas, sem ela seria impossível acontecer o andamento da colmeia, tudo depende da sua vitalidade, pois a mesma é a genitora, assim ela recebe o papel principal (rainha) e as operárias o secundário. Secundária: aparece na história, mas seu papel é indiferente, inferior, não assume a posição principal, apesar de somar com as personagens principais, não apresenta um grau elevado de importância no texto literário, fica à margem. Personagem Tipo: esse se define não por seu grau de participação ou relevância na diegese, mas por meio de determinada categoria social, sua identificação dá-se pela posição social que ela ocupa, não possui nome pessoal, pode apresentar-se como: a professora, o juiz, o ladrão e assim por diante. Personagem Estereótipo: pode-se dizer que essa categoria de personagem derivasse da personagem tipo, mas com um diferencial, além dela englobar a posição social, também soma consigo uma acumulação de adjetivos que estão associados ao seu comportamento ou as suas características sejam elas internas e/ou externas. Um exemplo seria “a professora, de blusa vermelha, com bolsa de lado, voz suave, e cabelos curtos”. Quanto maior for a quantidade de particularidades, atributos e destaque que a personagem recebe ou apresentana história, mais detalhada e completa será a sua classificação, como fora observado acima, essa por sua vez, funciona dentro de um sistema de hierarquia estabelecido através dos níveis de complexidade, sendo uma a extensão da outra. 1.5. O diálogo da consciência: tipos de monólogos Nos textos literários é comum as personagens, ao se relacionarem, empregarem os mais diferentes diálogos, os quais podem ser definidos de modo geral como uma conversa entre uma, duas ou mais pessoas, animais ou objetos, depende da história, já que se trata de uma produção fictícia, esses integram a história deixando-a mais interessante e verossímil, dentre eles o primeiro outrora citado se sobressai entre os demais, isso porque acontece de forma diferenciada, enquanto o segundo e o terceiro seguem a ordem natural das coisas, composto pela figura do locutor eu, e o interlocutor assumido pelo tu. O primeiro denominado monólogo: trata, portanto de um diálogo interiorizado, psíquico, mental, nele não há a 23 preocupação com a verbalização, tendo em vista que essa ação do falar pouco acontece, até porque aqui só uma pessoa fala, questiona consigo mesma, o locutor é o eu e o interlocutor é o eu interior. Nesse trabalho de análise é essencial adentrar por esse viés, com o intuito de conhecer e compreender como esse processo acontece e quais suas diferenças, o que irá proporcionar um estudo mais detalhado. Para melhor explicá-lo serão abordados quatro tipos de diálogos da consciência, que podem aparecer na mesma obra apresentando suas peculiaridades, em níveis mais elevados, os quais são: o monólogo, monólogo interior, análise mental e o fluxo de consciência. O monólogo é um diálogo mais pertinente ao gênero dramático, mas em alguns casos aparecem em outros gêneros, nele o questionar não ocorre apenas na mente, transcorre o exterior a ponto de a personagem falar só, em alto e bom som. Diferente do monólogo interior, o qual se restringe à conversa psíquica, a personagem conversa sem expor sua fala, tudo passa no consciente, na obra O velho e o mar de Ernest Hemingway16, Santiago, personagem principal costuma utilizar com frequência o monólogo interior, em quase todo o romance é fácil identificar trechos em que ele está conversando sozinho. Nos momentos que isso acontece o velho parece agir naturalmente, fala de estratégias para pescar o tão sonhado peixe, de suas fantasias, aflições, da sua vida solitária, do rapaz Manolin que tanto ama e questiona acerca de sua força e coragem. Segue o exemplo: Olhou então para trás, e viu que não havia terra à vista. "Não tem importância, pensou. Posso sempre voltar guiado pelo clarão de Havana. Ainda há mais duas horas até o sol se pôr e talvez que ele venha ao cimo antes disso. Se não vier, talvez venha com a lua. Se também não vier, talvez venha com o nascer do sol. Não sinto cãibras e estou em forma. Quem tem o anzol na boca é ele. Mas que peixe, para puxar assim! Deve ter a boca cerrada no fio. Quem me dera vê-lo. Quem me dera vê-lo, ao menos uma vez, para saber com quem tenho de me haver". Nesse trecho a personagem produz o monólogo interior de forma muito espontânea, isso acontece porque antes de empregá-lo, houve uma preocupação por parte do autor que, ao construir a história, contextualizou e o localizou nessa realidade: ter uma vida solitária e estar na maioria das vezes só. Assim, para Santiago, conversar consigo é como dialogar com outra pessoa. Logo, com o leitor acontece o mesmo advento, ao ler, o mesmo se familiariza com a narrativa e seus monólogos, em virtude da formulação que foi criada em sua mente, e passa 16 HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. Trad. FERRO, Fernando de Castro. 78ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013, p. 18. 24 também a encarar essa questão discursiva da consciência de modo automático. Em decorrência do que já foi exposto é relevante frisar o tamanho da complexidade dos recursos narrativos, aos quais não basta apenas identificá-los. Para se ter uma exegese é de suma importância levar em consideração os elementos que estão subalternos (contexto) aos de maior grau (monólogos). Dessa forma, suas utilidades farão mais sentido e as lacunas presentes nas entrelinhas serão preenchidas. Já a análise mental é bem parecida com o monólogo antes mencionado, a característica que os difere é o fato de neste a personagem além de articular o locutor e o interlocutor com o pronome eu, a mesma da vazão a uma dupla perspectiva de conversar e questionar o motivo que a levou a uma dada situação do conflito dramático, sem perder a consciência, mas o faz de maneira reflexiva, estratégica, daí o nome análise mental. Por fim, o mais minucioso e múltiplo: o fluxo de consciência, esse engloba três características, a conversa, o questionar e o delírio, ao levar em consideração esses pontos basilares, pode-se assim descrevê-lo: de início ocorre a conversa sem o interlocutor tu, mas formada pelo eu. Logo após começa o questionar, a reflexão por parte da personagem para saber o motivo que a levou àquele quadro dramático, a ponto da mesma perder a consciência, o equilíbrio e o controle da situação psíquica, o que provoca o delírio. Em virtude de tudo que já foi exposto, é entendível que esses operadores de análise são de suma importância para se chegar à exegese da narrativa, pois os mesmos proporcionam a identificação de cada estrutura que compõe o romance, o que permite esmiuçá-lo para melhor compreensão e estudo. 25 2. BRASIL EM MEADOS DO SÉCULO XX: TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS, SOCIAIS E ESTÉTICAS Para analisar uma obra literária o percurso torna-se mais proveitoso quando tomamos conhecimento do contexto histórico que motivou o escritor a escrever sobre determinado assunto. Tomando por base esse viés, é de grande relevância levantarmos alguns acontecimentos que marcaram a literatura brasileira até chegar à fase do autor responsável por escrever romances de caráter crítico social bem contundentes para a vida em sociedade. A primeira metade do século XX, especificamente as décadas de 20 e 30, foi um período de grande efervescência no Brasil, tudo estava um verdadeiro colapso. Para começar, a coluna, a base que sustentava o país, estava em seu momento mais crítico da história, isso porque a Europa estava recuperando-se da Primeira Guerra Mundial e já se preparando para uma segunda, esta situação abalava toda a economia mundial, assim eclodiam nos países inúmeras crises econômicas, políticas e sociais. O Brasil logo sentiu esse impacto e, embora estivesse passando por um período aparentemente próspero, com as exportações direcionadas para o exterior, a industrialização crescia no país de forma exorbitante acarretando problemas sociais, já que vários trabalhadores perdiam seus espaços nas manufaturas sendo substituídos pelas máquinas. O governo das oligarquias, Minas Gerias e São Paulo, também conhecida como a República do Café com Leite (República Velha), passava por um momento delicado, havia oposições dentro do sistema de alianças para eleger um novo presidente, além disso, a produção cafeeira sofria com a superprodução, por conta do advento da crise econômica mundial, época esta marcada pela paralização dos ingleses na compra do produto, fator que acentuou o aumento dos estoques do café que deveria ser exportados para os EUA, o que motivou os produtores a tomarem uma medida urgente, queimando inúmeras toneladas do produto, com o objetivo de tentar solucionar o problema por meio da valorização da lei da ofertae da procura. Para intensificar ainda mais a situação, em 1929 ocorreu a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, com esses impasses no exterior o Brasil, por uma relação de subordinação, entrou em declínio. Assim o historiador e cientista político Boris Fausto17 afirma: 17 CARDOSO, Ferdinando Henrique; FAUSTO, Boris. Corpo e Alma do Brasil – Brasil em Perspectiva. 19º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 230. 26 A forma pela qual se concretizou a relação de dependência entre os grupos financeiros e a burguesia do café tornou-a especialmente vulnerável às crises internacionais. O nível de renda dependia dos preços alcançados no mercado mundial, o que não constituía novidade na estrutura econômica do país através da obtenção de recursos vindos do exterior, que viriam a desaparecer diante de uma crise. A economia do Brasil nunca foi estabilizada e segura, isso porque não foi independente, autônoma. No período da República Velha, quando tudo parecia ir bem com a exportação do café, a crise que iniciou na Europa e propagou-se pelo mundo foi suficiente para desestabilizar os cafezais e com isso todos os órgãos da sociedade sofreram, acarretando o desemprego e vários outros problemas sociais. O clima era angustiante, corria-se o risco de estourar uma guerra civil, várias revoltas instalaram-se no país entre as classes agrária e burguesa. Logo após veio a Revolta de 30 (golpe de Estado), a qual promoveu a implantação do Estado Novo, com um regime ditatorial, que teve por presidente da República Getúlio Dornelles Vargas. A nação brasileira ficou totalmente desestruturada, com mudanças radicais em todos os setores, dentre elas, a formação de um novo grupo de trabalhadores, o chamado proletariado, o qual apresentava uma mão de obra diferenciada daquela que outrora era encontrada e oferecida no mercado de trabalho, esse acontecimento foi suficiente para estratificar as camadas sociais, as quais passariam a disputar vagas de emprego nas indústrias, ficando em desvantagem a classe agrária que tinha sua habilidade voltada para o campo. A modernidade instaurava-se de forma acelerada, sem que houvesse tempo de aprimorar as estruturas comunitárias e econômicas para recebê-la, a situação só se agravava, o ambiente ficava ainda mais tenso, o aumento do índice de desemprego, falta de moradia devido à crise ocupacional, sistema de saúde precário, carência de políticas públicas para tentar apaziguar a onda de problemas que vinham assolando principalmente as classes menos favorecidas, funcionários submetidos a condições desumanas nas fábricas e tantos outros transtornos que perpetuavam a vida das pessoas em meados do século XX. Diante desse cenário a única saída que restou foi aceitar a inovação, houve a necessidade de propor para a sociedade brasileira uma nova roupagem em todos os segmentos, com a finalidade de mudar o quadro e dar voz ao que havia se perdido. Muitas foram as transformações advindas nesse período, contudo nos deteremos apenas em uma, no que diz respeito ao artístico literário dentro de uma dupla perspectiva, a ideológica e a estética. 27 2.1. Inovação literária: modernismo Foi nesse contexto social de grande tensão, em reposta a tudo que estava acontecendo, que ocorreu um dos adventos mais importante no campo artístico. A mudança era imprescindível, as pessoas já não davam tanto crédito aos movimentos artísticos vigentes, por serem ultrapassados e estarem fora da realidade, até porque toda a produção feita no Brasil nessa área não se passava de cópias autênticas da Europa. Os artistas queriam libertar- se das influências do parnasianismo, livrar-se dos “ismo” europeu, foi nesse cenário de insatisfação que surgiu uma nova escola literária: o modernismo, o qual é composto por três fases, no entanto nesse trabalho, em virtude do tema central escolhido, abordaremos apenas as duas primeiras, com enfoque para a segunda. Esse momento de inauguração teve como marco a inovação na Semana de Arte Moderna em 1922, no Teatro Municipal da cidade de São Paulo. Incentivados principalmente pela classe burguesa agrária e pela euforia instalada no país, artistas, músicos e escritores reuniram-se e mostraram para o mundo exposições de um movimento artístico revolucionário, radical, agressivo aos paradigmas presentes, ao formalismo, era um grito cultural, de denúncia, um movimento que ultrapassava os interesses estéticos, havia também por trás, de forma implícita, a formação de uma ideologia nacionalista resgatadora. Lafetá18, professor e crítico da literatura brasileira e analista dos escritores de caráter e teor crítico bem acentuado da primeira e segunda fase do modernismo, mais precisamente Mário de Andrade e Graciliano Ramos, fala sobre o modernismo: [...] inserindo-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional - característica da nossa literatura - não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão do país que subjazia à produção anterior à sua atividade. Ele afirma que o modernismo tinha como objetivo não apenas reformular os segmentos basilares da estética literária, mas também modificar a cultura, doutrina que era imposta na arte brasileira e a deixava subalterna, sem identidade, em detrimento disso, era essencial que a Semana de Arte Moderna, e consequentemente o movimento artístico, promovesse grande impacto na sociedade, por meio desse artifício seria possível mudar a realidade, além de provocar a ruptura da arte passadista, que há décadas vinha sendo 18LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidade; Ed 34, 2000, p. 21. 28 reproduzida. Mário de Andrade19 fala sobre essas modificações e a repercussão proveniente da inauguração dessa escola, a mesma em pouco tempo deu a arte conterrânea personalidade, recuperou a consciência cultural nacionalista deixada para trás há séculos. Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com a violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da inteligência nacional. Isto foi o movimento modernista, de que A Semana de Arte Moderna ficou sendo o bravo coletivo principal. A princípio tudo era muito novo, na realidade os próprios artistas não sabiam ao certo o que queriam, a única certeza impulsionadora era o desejo de mudança, assim a primeira fase foi marcada pela experimentação, vários grupos de artistas se juntaram e expuseram suas criações, apresentando um distinguidor entre todos os outros movimentos literários, nesse cada um seguia a sua própria ideologia, uns partiram para romper com a estética, outros se voltavam para as questões críticas, políticas e sociais, e havia aqueles que vestiam a camisa do nacionalismo, da cultura popular. Apesar de terem como principal objetivo romper as influências europeias, parnasianismo, simbolismo; as relações ainda eram muito presentes, a prova disso, foram as Vanguardas: manifestos realizados na Europa com caráter revolucionário,anárquico, destruidor para contrapor as ideias vigentes. Não obstante, o modernismo engloba em sua primeira fase esse modelo, mas não seguindo as mesmas ideologias, nesse compunham um sentimento nacionalista, de valorização cultural, atingir a consciência intelectual das diversas camadas existentes, seja de forma crítica (denúncia) ou inovadora, abrir caminho para a pesquisa estética e artística era a força idealizante desses manifestos. Antes desse acontecimento estrear os artistas brasileiros viviam em uma realidade muito monótona, passadista, descontextualizada, sem liberdade de criar, exprimir seus devaneios, até porque quando se falava de criação, logo vinha o clássico da Europa para ditar os princípios, estruturas formais a serem seguidas, essa situação ofuscava, reprimia o artista local e sua arte. É lícito afirmar que esses grupos da primeira geração muito se arriscaram em propor algo além do esperado, mexer com todas as estruturas sem saber que reações receberiam, poderia significar o fim de suas carreiras, caso não fossem bem sucedidos. Outra questão foi a 19 ANDRADE, Mário. O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. 6ª ed. São Paulo: Ed. Martins, 1978, p. 231. 29 forma como incorporaram suas ideias, de forma tão brusca, radical, em alguns casos extremistas, sem planejamento ou perspectivas coerentes, nada lhes era favorável, tudo conspirava para um trágico fim, contudo tiraram forças dessa triste realidade, sabiam que não poderiam se conformar, precisavam fazer alguma coisa, não suportavam mais ver seu país perdendo sua identidade, os anos passarem e o Brasil continuar com um espírito de colônia. Mário de Andrade20 fala sobre a finalidade que esses artistas tinham com a Semana de Arte Moderna e o que enfrentaram para conseguir esse progresso: “O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional (...) E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito às suas inquietações e pesquisas que não tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana, ele não pode nem imaginar a conquista enorme que representa (...) jamais não poderão suspeitar o a que nos sujeitamos, pra que eles pudessem viver hoje abertamente (...). A vaia a acesa, o insulto público, a carta anônima, a perseguição financeira (...). Muitas foram as dificuldades impostas, mas o movimento artístico aconteceu e veio para revolucionar. Dentre eles podemos destacar o Manifesto Pau- Brasil escrito por Oswald de Andrade, publicado no jornal Correio da Manhã, em 18 de março de 1924, que apresentava como proposta uma literatura autêntica brasileira de exportação, por isso a referência do título, tendo em vista que o pau-brasil foi o primeiro produto a ser exportado na época colonial com a chegada dos portugueses pela prática do escambo21. Esse mesmo escritor foi precursor do Manifesto Antropofágico exposto entre os anos de 1928 a 1929, teve como marco principal e símbolo o quadro Abaporu22 de Tarsila do Amaral, o qual representava o ato de fazer canibalismo (devorar) da cultura do outro e transformá-la, dando-lhe caráter nacionalista, era uma forma de preservar a arte local, sem desmerecer as influências trazidas de outros países, mas se fortalecer com ela, reciclá-la. Oswald23 diz: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” O Verde-Amarelo surgiu em 1926, liderado por Plínio Salgado em resposta ao Pau-Brasil, pois tinha um conservadorismo mais 20 ANDRADE, op. cit., p. 242/251. 21 Escambo: significa troca de mercadorias por trabalho. Ela é muito utilizada no contexto da exploração do pau- brasil (início do século XVI). Os portugueses davam bugigangas (apitos, espelhos, chocalhos) para os indígenas e, em troca de trabalho, os nativos deveriam cortar as árvores de pau-brasil e carregar os troncos até as caravelas portuguesas. 22 Abaporu: a palavra Abaporu vem do tupi-guarani, mais especificamente da união de três palavras desta língua: aba, pora e ú. A primeira quer dizer “homem”. A segunda, significa “gente”. Por fim, ú é um verbo que quer dizer “comer”. Assim, entende-se que Abaporu é um homem que come gente. O significado ...estava em consonância com o antropofagismo, muito comum no Modernismo Brasileiro. 23ANDRADE, Oswald de. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, Ano I, nº I, maio de 1928, p. 13. 30 extremo, ufanista, primitivo, totalmente patriota. Por fim o da Anta, na década de 30, o mesmo foi uma extensão do Verde-Amarelo, tinha por símbolo a anta, nele se pregava a idolatria da língua Tupi. Todos esses acontecimentos promoveram grande repercussão, abalaram os interesses ideológicos, tanto no campo literário, quanto no cultural, após o choque, do tom agressivo das vanguardas brasileiras, houve um despertar, as pessoas agora, estimuladas por elas, conheciam melhor suas raízes e não demorou muito tempo, os artistas modernistas assumiram o controle e instaurou-se no Brasil um novo movimento literário. Sérgio Miceli24 afirma que: O acesso dos modernistas às frentes de vanguardas europeias por força de sua proximidade social junto aos círculos intelectualizados da oligarquia foi, paradoxalmente, a condição que lhes permitiu assumir o papel de inovadores culturais e estéticos no campo literário local, tomando a dianteira. É observável que Miceli em sua fala enfatiza dois sistemas aparentemente contrários aos precursores do modernismo: a herança europeia, responsável por mascarar, despersonalizar a arte brasileira, a mesma é exemplificada no trecho acima em forma de Vanguarda. E a ligação com a classe nobre, dominante, composta pelos cafeicultores, os quais afligiam as camadas menos favorecidas, deixando-as na miserabilidade, impondo-as dependência econômica, política e social. Contudo os mesmos lhes serviram de peça chave, englobar os conhecimentos das vanguardas europeias, juntamente com o apoio da burguesia agrária, foram fatores decisivos que auxiliou os grupos a inaugurar o Modernismo no Brasil, pois de um lado tinham um modelo anarquista e do outro a liberdade e o incentivo para continuarem. 2.2. Construção estética e ideológica: o romance regionalista de 30 Após a literatura brasileira dar as boas-vindas na década de 20 à nova escola literária, o Modernismo nesse período ainda estava em sua primeira fase e apresentava-se de forma revolucionária, impactante em resposta a falta de originalidade e nacionalidade vigentes nas produções artísticas. Houve a necessidade de se criar uma segunda fase, instaurada na década de 30, etapa esta não mais marcada pela experimentação de outrora, ela seria de construção, a 24 MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil: (1920 – 1945). São Paulo: Difel, 1979, p. 15 31 fim de consolidar as ideologias lançadas a grosso modo sem qualquer organização e planejamento na fase anterior. Para compreender melhor as mudanças que ocorreram vamos dividi-las em dois campos da literatura: a poesia e a prosa de 30. Na poesia, os poetas não mais se detinham ao tradicionalismo, estruturado na estética parnasiana, a qual tinha como modelo os “belos sonetos rimados”, os intitulados “poemas perfeitos”, eles passarama ter liberdade para criar da forma como bem desejassem. Trabalhavam na maioria das vezes dentro da perspectiva dos versos livres25, com temas voltados para a fugacidade da vida, a psicanálise, o amor no âmbito mais realista e concretizável, isso porque a mulher não é endeusada e inatingível, temática social, concernente a questões políticas e do dia a dia das pessoas. Os escritores dessa época que alcançaram maior destaque e repercussão foram: Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Mário Quintana, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinícius de Moraes, os quais seguiam seus próprios princípios. A prosa denominada popularmente como “romance de 30” foi uma das produções mais marcantes e inovadoras desse período, isso porque os escritores estavam desbravando caminhos desconhecidos, adentravam por um viés pouco falado e traziam como protagonistas assuntos escanteados, os quais ninguém dava nenhum mérito. Por trás desse sentimento de construção cultural, política e social, havia finalidades: valorizar a cultura popular, a linguagem mais simples, retratar temas do cotidiano, mostrar o homem forte, guerreiro que vence a seca e luta pela sua sobrevivência, criticar a falta de políticas públicas, responsável por obrigar o nordestino a migrar do seu habitat no período das secas, situação esta que formava um ciclo vicioso, e o tornava nômade, não por escolha própria, mas pela necessidade. O mundo pôde conhecer na segunda fase do modernismo através dos livros, escritos por diversos romancistas de renome, o Nordeste mais de perto, exposto sem censura, vergonha ou medo, sendo retratado por diversos ângulos, uns se detinham em discorrer histórias relacionadas aos longos períodos de estiagem, este não escolhia vítimas, dele ninguém escapava, todos eram massacrados pela falta de chuvas, animais, pessoas, eles sabiam, na dura convivência, a força do Nordeste, essa era a sua marca registrada, além de destacar a relação intrínseca do homem nordestino com o sertão, a caatinga, o solo seco, 25 Também conhecidos como versos irregulares, os versos livres são aqueles que não apresentam um padrão definido de métrica, não obedecendo, portanto às formas fixas, apresentando-se de forma oposta aos versos regulares. Os textos poéticos que possuem versos livres, entretanto, contêm o fator mais importante das poesias, que é a musicalidade. Quando falamos em versos livres, diretamente estamos falando de uma importante característica da literatura moderna e contemporânea, tendo em vista que os autores que faziam uso destes versos tinham como objetivo a criação de algo novo, algo inovador que rompesse com os padrões clássicos das formas poéticas tradicionais. Ainda que os versos livres possam apresentar rimas, normalmente não o fazem, tampouco apresentam métrica, na maioria das vezes. 32 rachado, elementos esses que transformam sua feição dando-lhe uma personalidade específica. Os escritores não economizavam nos detalhes, os esmiunçavam por completo, as personagens carregavam em seu caráter, comportamento e até mesmo na forma de pensar traços desse lugar, tudo parecia estar estampado em seus rostos. Outros enveredavam por outra direção, enfatizando as tradições dessa região, a crença, a linguagem carregada de identidade, os ditos populares, o amor por sua terra. O que esses literatos fizeram foi de suma importância: resgataram valores que viviam apagados, esquecidos juntamente com a seca. Exaltaram o Nordeste, colocaram-no em cena, Antonio Candido26 enfatiza essa novidade advinda mediante as literaturas, as quais induziram pessoas dos quatros cantos da terra a olhar para essa região e entendê-la como ela é, assim ele diz: [...] 1930 foi a extensão das literaturas regionais e sua transformação (...) cujo âmbito e significação se tornaram nacionais (...). O romance do nordeste (...) com uma liberdade de narração e linguagem antes desconhecida (...); todo o país tomou consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua realidade viva pela literatura. Candido ao mencionar: “o romance do nordeste”, enfatiza uma situação bem pertinente, foi um impacto tão forte e de grande relevância o que veio revelar-se em 1930, que essas produções levaram consigo como título reconhecedor dessa fase o nome dessa região. Os escritores empenhados nessas criações foram: José Américo de Almeida (1887-1980), Raquel de Queiroz (1910-2003), Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901- 1957), Jorge Amado (1912-2001). Todos eles escreveram obras de caráter regionalista e de cunho crítico social. 2.3. A dicotomia de Graciliano: sujeito e escritor Muitos foram os autores que contribuíram com a propagação do romance regionalista de 30, mas houve um com maior notoriedade entre todos: Graciliano Ramos, um nordestino, nascido no estado de Alagoas, na cidade de Quebrângulo no dia 27 de outubro de 1892, filho de pais tradicionais, rígidos, com quinze irmãos pertencentes a uma família de classe média, 26 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 2000, p. 187. 33 passou quase toda vida nos sertões nordestinos, conhecia essa região, os costumes desse povo, a educação e a política mais do que ninguém. Após concluir o Ensino Médio, logo foi trabalhar, não iniciou a princípio sua carreira de escritor, esse ofício só veio desabrochar mais tarde, passou por várias profissões: revisor de jornais, jornalista, comerciante, diretor de imprensa, inspetor federal de ensino e ocupou cargos políticos. Passou nove meses encarcerado durante a ditadura de Getúlio Vargas acusado de ser comunista, nesses intervalos, entre um acontecimento e outro, escrevia um livro, era sem dúvida um homem muito exigente, levava suas histórias e personagens a sério, pois fazia seu trabalho com seriedade, colocava neles o que sentia, inclusive em certo dia Graciliano Ramos27 escreveu uma carta endereçada a sua irmã Marili Ramos, nela dava sua opinião acerca de um conto intitulado Mariana, escrito por ela, menciona que a mesma precisava colocar seu sentimento nas personagens, dar mais vida, realidade. Vejamos um trecho: [...] Aqui em casa gostaram muito do conto, foram excessivos, não vou tão longe. Achei-o apresentável, mas, em vez de elogiá-lo, acho melhor exibir os defeitos dele. Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores de menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. (grifo nosso) Além disso, não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresente-se como é nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar à técnica seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde; indispensável muita observação. Precocidade em literatura é impossível: isto não é música [...]. Revele-se toda. A sua personagem deve ser você. Essa forma de se expressar, objetivo, às vezes duro, sincero, é típico do sujeito Graciliano, não é estranho vê-lo, nessa carta, deixar os elogios para outro momento, mais pertinente,
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