
Habermas Pinzani, Alessandro (2009, Artmed)
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antes de poder objetivar-se em sua primeira manifestação vital \u2013 seja esta em palavras, em atitudes ou em ações\u201d (CI 169 s. [EuI 198]). E a hermenêutica como método se coloca em primeiro plano como apropriação dos \u201cconteúdos semânticos legados por tradição\u201d (CIs 173 [EuI 204]), dirigida a expressões verbais, a ações e a expressões vivenciais. Estas três classes de \u201cmanifestações vitais\u201d (CI 175 [EuI 206 s.]) antecipam os três tipos de pretensões de validade que desempenharão um papel central na teoria discursiva de Habermas, a saber: pretensões de verdade de enunciados, pretensões de validade de normas e pretensões de verossimilhança de expressões dramáticas. Na sua análise da posição de Dilthey, Habermas retoma considerações que ele tinha formulado no âmbito do debate sobre o positivismo: as ciên- cias hermenêuticas e as ciências empírico-analíticas se deixam conduzir por interesses cognitivos; mas, enquanto estas últimas visam o domínio técnico de processos naturais, as primeiras \u201cprocuram assegurar a intersubjetivida- de da compreensão nas formas correntes da comunicação e garantir uma ação sob normas que sejam universais\u201d. O interesse cognitivo prático das ciências do espírito consiste em garantir \u201ca possibilidade de um acordo sem coação e de um reconhecimento mútuo sem violência\u201d (CI 186 [EuI 221 s]), que deem coesão a uma determinada forma de vida. A diferença entre ciências naturais e do espírito corresponde, então, à diferença entre agir instrumental e comunicativo. Em ambos os casos, o que está em questão é a reprodução e autoconstituição da espécie humana, a qual \u2013 conforme as teses já formuladas por Habermas em \u201cTécnica e ciência como \u2018Ideologia\u2019\u201d \u2013 acontece no nível antropológico nas formas do trabalho e da interação (CI 217 [EuI 242]). A estas duas categorias correspondem os interesses que guiam o conhecimento das ciências naturais e do espírito, interesses que Peirce e Dilthey tornaram claros sem, contudo, elaborar o correspon- dente conceito (CI 218 [EuI 243]). A causa disso, segundo Habermas, está no fato de eles não conceberem sua metodologia como autorreflexão da ciência (CI 219 [EuI 244]). A autorreflexão está, portanto, intimamente ligada à emancipação, já que representa uma \u201clibertação da dependência dogmática\u201d (CI 228 [EuI 256]). Por isso, é preciso reconhecer um interesse 64 Alessandro Pinzani cognitivo emancipatório que existe legitimamente ao lado do interesse técnico das ciências naturais e do prático das ciências do espírito. \u201cComo o único exemplo disponível de uma ciência que reivindica metodicamente o exercício autorreflexivo\u201d, Habermas menciona a psicanálise freudiana (CI 233 [EuI 262]). Ela é, por um lado, autorreflexão enquanto é metate- oria, reflexão sobre seu próprio status como ciência e sobre \u201cas condições de possibilidade do conhecimento psicanalítico\u201d (CI 269 [EuI 310]). Por outro lado, ela é autorreflexão enquanto atividade de interpretação de um sujeito que estuda a si mesmo. É precisamente essa característica que interessa a Habermas. O nosso autor estabelece um paralelo entre psicanálise e hermenêuti- ca: central para ambas é uma interpretação que é, ao mesmo tempo, uma apropriação e uma crítica, cuja tarefa é restabelecer \u201co texto mutilado da tradição\u201d (CI 235 [EuI 265]), ainda que, no caso da psicanálise, o texto em questão sejam as memórias do paciente, de maneira que as mutilações não são \u201cdeficiências acidentais\u201d (ibid.), mas possuem sentido em si, já que tornam visível, de certa forma, o autoengano do sujeito e o torna acessí- vel à análise. O que é decisivo é que, na terapia psicanalítica, é o próprio sujeito que cumpre o trabalho de clarificação. \u201cO ato de compreender [...] é autorreflexão\u201d (CI 246 [EuI 280]). Além disso, o conhecimento da aná- lise é atividade crítica no sentido de levar o sujeito a uma transformação existencial. Essa transformação é precedida pela \u201cexperiência da dor e da carência\u201d e pelo \u201cinteresse pela remoção do estado pesaroso\u201d (CI 251 [EuI 286]) \u2013 em suma: o interesse pela emancipação, pela autolibertação. Nesse sentido, esse tipo de crítica representa um modelo para uma teoria social crítica, cujo interesse emancipatório consiste na eliminação da dor e da carência sociais. Cada interpretação pertinente \u2013 quer no âmbito da psicanálise, quer em geral no âmbito das ciências do espírito \u2013 restabelece, portanto, \u201cuma intersubjetividade perturbada da compreensão mútua\u201d (CI 277 [EuI 319]). Ela acontece sempre \u201cna moldura de uma comunicação inerente à lingua- gem cotidiana\u201d e leva à exposição narrativa de uma história individual (CI 281 [EuI 324]). O interesse pelo conhecimento da terapia psicanalítica é, portanto, ao mesmo tempo um interesse pela emancipação \u2013 do sujeito individual, mas também da sociedade, já que Freud prevê uma aplicação da psicanálise a esta última.7 O interesse cognitivo emancipatório deve levar à formação de uma teoria social crítica que \u2013 analogamente à psicanálise freudiana \u2013 iden- tifique as patologias sociais e contribua com isso à sua eliminação. Tais patologias são concebidas por Habermas primariamente como patologias da reprodução simbolicamente mediada da sociedade. Uma teoria crítica do social deveria, portanto, ser em primeiro lugar uma teoria da interação simbólica. 65 Habermas O DEBAtE COm lUHmANN Habermas retoma temáticas da sua polêmica com o positivismo no debate com Niklas Luhmann, que os dois pensadores efetuaram em uma série de ensaios que foram reunidos em 1971 em um livro com o título Teoria da sociedade ou tecnologia social. Na impossibilidade de oferecer uma reconstrução minuciosa desse debate e da teoria de Luhmann, altamente complexa, nos limitaremos, nesse contexto, a algumas rápidas observações sobre os pontos mais relevantes desse debate. Habermas considera a teoria sistêmica da sociedade de Luhmann como a herdeira das teorias sociais positivistas por ele tão criticadas, já que ela exerce uma função de legitimação do poder no contexto de um sistema político baseado na despolitização dos cidadãos. Luhmann introduziria uma \u201canálise de cunho sociotecnológico\u201d no lugar de discursos práticos e pretenderia acabar com qualquer tendência à democratização em nome de uma racionalização das decisões que visa a eficiência. A teoria de Luhmann representaria, \u201cpor assim dizer, a forma mais alta de uma consciência tec- nocrática que permite hoje definir a priori questões práticas como questões técnicas e que, com isso, se subtrai a uma discussão pública e livre\u201d (TGS 145). Segundo Habermas, o sociólogo de Bielefeld veria a sociedade como um sistema fechado em si mesmo que se autorreproduz (autopoético) e que inclui todos os outros sistemas sociais (o direito, a economia, a religião, a política, etc.). Os sistemas são unidades estruturadas de forma invariável no tempo, que se mantêm em um ambiente complexo e mutável pelo fato de diferenciar-se continuamente deste último, ou seja, de estabilizar uma diferenciação entre interno e externo. A conservação do sistema pressupõe a conservação dos seus limites. Para alcançar esse fim, ele deve reduzir a complexidade. Já que o ambiente é sempre mais complexo do que o siste- ma, os sistemas formam e mantêm \u201cilhas de complexidade menor\u201d. Eles devem ser complexos o bastante para responder com reações de autocon- servação a transformações do ambiente que lhes dizem respeito (TGS 146 ss.). Segundo Habermas, esse modelo é \u201cevidentemente adequado para as atividades dos sistemas orgânicos\u201d, mas inutilizável em relação a uma teoria geral da sociedade. Diferentemente de um organismo, um sistema social não é imutável: \u201cUm asno não pode transformar-se em uma cobra [...]. Um ordenamento social, pelo contrário, pode experimentar transformações estruturais profundas, sem perder sua identidade e sua continuidade estru- tural\u201d \u2013 ele pode, por