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Adolescente Hoje Osório

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Prévia do material em texto

Luiz Carlos Osorio
adolescente hoje
2 Edição
 N14
PORTO ALEGRE /
J
da Editora Artes M Sul Ltda.. 1959
Capa:
M Rohnclt
SupLr chtori
Pau o ( o Lc du r
Digi:itaç;i . a rtc c
A( E — Assessoria O r ica e Editorial 1 ida
Impressão e acabamento
Editora Gráfica Metrópole S.A.
Reservados todos os direitos de puhltcaç a
EDITORA ARTES MEDICAS SUL LTDA.
Av. Jerônimo dc Ornelas. h70 Fones (0512(30-3444 e 30-2375
Loja centro: Rua General Vitorino. 277 — Fone (0512)25-5143
9(1(140 Porto Alegre. RS — Brasil
IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
 
Sumário
- Introdução: As razões deste livro .
- O que é a adolescência, afinal’
- A crise adolescente e a questão da identidade
- O adolescente, a família e a sociedade
- Os grandes dilemas do adolescente contemporâneo O dilema existencial
O dilema vocacional
O dilema sexual Drogadicção: O dilema tóxico
- Conflito de gerações e os ritos de iniciação
- O adolescente “problema” Adolescência normal e patológica
Conduta e psicopatologia do adolescente
O adolescente “problema”: como abordá-lo
8 - Em busca da adolescência perdida: o mito fáustico
9 - O adolescente do ano 2.000: uma visão prospectiva
Apêndice: Conversando com adolescentes, pais e professores (perguntas e respostas)
Epílogo
Bibliografia
2
3
4
5
6
7
7
10
14
27
34
34
38
41
43
46
 
53
53
55
57
61
64
69
97
102
 
Introdução: as razões deste livro
1
É verdadeiramente um grande prazer interrogar as próprias
coisas em lugar de ler a bibliografia já existente “(da carta de FREUDa PFISTER, em 12/julho/1909)
Quais as motivações para se escrever uni livro?
Bem diferentes hão de ser certamente as de um autor de livros técnicos e as de um escritor
de obras ficcionais, ainda que em sua essência todas se srcinem de uma mesma fonte, qual
seja, o narcisismo humano, e todas desagüem num mesmo estuário: deixar algo que nos
sobreviva ou, ao menos, fazer algo que nos torne “notáveis” (no sentido de “tornar-se
notados”) a nossos contemporâneos. Da pretensão de alcançar o primeiro destes objetivos
os autores de livros técnicos teriam que dissuadir-se, já que a atual progressão geométrica
dos avanços tecnológicos torna rapidamente obsolescentes nossos conhecimentos; e da
notabilidade precisaria abrir mão quem se propõe a escrever um livro que, como
constatarão, renega até mesmo seu remoto paren tesco com uma obra técnica. Portanto,
 para que possam entendê-lo, necessito aludir a outras motivações, bem como a algumasvicissitudes de sua elaboração.
Há sete anos atrás, ao concluir um pequeno compêndio sobre as aborda gens psicoterápicas
do adolescente, dispus-me a dar-lhe seqüência num opús culo destinado ao “público leigo”
e onde pudesse expor algumas idéias emer gentes durante a elaboração do então recém-
 publicado livrinho. Destinar-se-ia basicamente a pais e a seus filhos adolescentes, com a
intenção de ajudá-los na compreensão mútua. Cheguei mesmo a iniciá-lo, sob o título que
ora encima um dos capítulos deste livro: “Em busca da adolescência perdida”. Interrompi-o
 prematuramente, à raiz de dois sentimentos predominantes: a impressão de que resultaria
num injustificável vade-mecum e a certeza de
Adolescente Hofe / 7
que pouco ou nada acrescentaria ao já conhecido sobre a matéria. Embora estes dois
sentimentos ainda persistam mesmo agora que estou a concluí-lo, este livro passou a ser
uma espécie de fantasma que precisava exorcizar antes de poder levar a cabo novos
 projetos. Sempre que me dispunha a iniciar um artigo de mais fôlego sobre outra matéria ou
um livro sobre diferente área de interesse de meu cotidiano profissional, a temática da
adolescência se interpunha entre a vontade e a tarefa, como a exigir o cumprimento de uma
antiga dívida não resgatada.
Aqui estou, pois, para me livrar do compromisso auto-imposto, sentin do-me tal qual Jacó
após os sete anos adicionais de pastoreio pela mão de
Raquel, livre, enfim, para realizar as bodas sonhadas.
“Não há tolice que se diga agora
Que não tenha sido dita por
Um sábio grego de outrora”.
 
Esta máxima em versos do nosso anjo Malaquias tem me servido, ao longo dos anos, de
oportuno lenitivo contra a dorida falta de srcinalidade constatada a cada novo ímpeto de
 pretensa criatividade. O que os leitores encontrarão nas páginas que seguem só vem
confirmar esta assertiva. Os conceitos nelas emitidos, em sua imensa maioria, provêm de
autores com quem ou com cuja obra convivi nestas duas décadas em que tenho procurado
“ouvir e entender adolescentes”. Tais conceitos, convalidados na prática de todos nós que
trabalhamos com adolescentes, foram de tal forma se incorpo rando à minha identidade
 profissional que já não consigo, muitas vezes, deter minar sua srcem ou autoria. Não
obstante, como é mister “dar o seu a cujo é” — como diria um dos eméritos tribunos de
nossa república — ao final do livro fiz uma listagem de leituras de sustentação para fazer
 justiça à procedência das idéias aqui expostas, de tal sorte que não me seja equivoca- mente
imputado o crime de apropriação indébita do pensamento alheio. Há um motivo adicional
 para tal procedimento: não sendo esta, como já se afir mou, uma obra técnica, resultaria
tediosa sua leitura com a intercalação de citações bibliográficas. Assim, me limitarei a
mencionar no texto a autoria de conceitos de obrigatória referência por sua srcinalidade ou
relevância.
Mas afinal — estarão a me indagar, a esta altura, os leitores — qual o propósito desta obra
se tudo indica não ser ela senão um confessado plágio de idéias alheias? Pois eu lhes diria,então, que o autor não está acome tido da tanta humildade ou falsa modéstia que não possa
reconhecer a si mesmo (já que outros talvez não o venham a fazer!) o mérito de haver
enrique cido tais idéias com o aporte das suas e, sobretudo, do que apreendeu, mais do que
nos livros ou convivência com colegas, nas suas vivências com adoles centes destas e de
outras plagas, seus respectivos ambientes sócio-familiares e o contexto cultural deste átimo
da história universal em que nos tocou a todos viver.
8 / Linz Carks Osorio
E sem mais explicações ou justificativas, que, quando demasiadas, se tornam enfadonhas,
deixo-os entregues agora à avaliação pessoal dos objetivos deste livro. Dá-los-ei por
alcançados se puderem concluir, com algum proveito e prazer, sua leitura.
Adolescente Hoje / 9
 
O que é a adolescência, afinal?
2
A adolescência é uma etapa evolutiva peculiar ao ser humano. Nela culmina todo o
 processo maturativo biopsicossocial do indivíduo. Por isto, não podemos compreender a
adolescência estudando separadamente os aspec tos biológicos, psicológicos, sociais ouculturais. Eles são indissociáveis e é justamente o conjunto de suas características que
confere unidade ao fenômeno da adolescência.
Até há algum tempo atrás, a adolescência era considerada meramente uma etapa de
transição entre a infância e a idade adulta. Sua caracterização era feita a partir dos
comemorativos biológicos que marcavam esse momento evolutivo do ser humano. O
adolescente, se do sexo masculino, era descrito como um indivíduo desengonçado, que
estava mudando de voz e deixando entrever o buço em meio a uma constelação de
espinhas; se do sexo feminino, uma criatura igualmente desproporcionada, o torso arqueado
 para esconder o desabrochar dos seios e as faces ruborizadas ao menor galanteio, como
ordenava o pudor e a boa moral caseira.
A puberdade ou adolescência era, pois, assinalada por modificações físi cas, especialmente
os denominados caracteres sexuais secundários (surgimento dos pêlos. mudança de voz,crescimento das glândulas mamárias, etc...) e, quando muito, pela menção a certas
incômodas “mudanças de temperamento”.
 Nas últimas décadas, contudo, a adolescência vem sendo considerada o momento crucial do
desenvolvimento do indivíduo, aquele que marca não só a aquisição da imagem corporal
definitiva como também a estruturação final da personalidade.E uma idade não só com
características biológicas próprias, mas com uma psicologia e até mesmo uma sociologia
 peculiar. Não
é sem razão que se afirma que todas as grandes mudanças culturais da história da
humanidade ocorrem no limiar entre a adolescência e a idade adulta!
O adolescente não pode ser estudado apenas sob a ótica de suas modifi cações corporais,
 pois se é verdade que nelas se radicam as angústias básicas da puberdade, não é menos
certo, contudo, que sem o adequado entendimento da “crise de valores” por que passa o
 jovem jamais lograremos compreender o real significado da transformação da “criança” em
“adulto”.
PUBERDADE E ADOLESCÊNCIA
Embora alguns considerem a PUBERDADE (do lat. pubertate — sinal depêlos, barba,
 penugem) como uma primeira fase ou momento da ADOLES CENCIA (do lat. adolescere-
crescer), a tendência universal é reservar o termo PUBERDADE para as modificações
 biológicas dessa faixa etária e ADOLESCENCIA para as transformações psicossociais que
as acompanham. Como dissemos anteriormente, o fenômeno da PUBERDADE-ADOLES
CENCIA não pode ser estudado dissociadamente e apenas fazemos menção aqui à distinção
dos termos com fins de maior clareza expositiva.
A PUBERDADE, como a própria etimologia do termo sugere, inicia-se com o crescimentodos pêlos, particularmente em certas regiões do corpo, tais como as axilas e região pubiana,
tanto nos meninos como nas meninas, como resultado da ação hormonal que desencadeia o
 
 processo puberal; estas e outras modificações corporais que então ocorrem dão-se
 principalmente a partir do desenvolvimento das gônadas, ou seja, dos testículos nos
meninos e dos ovários nas meninas. E esse amadurecimento das células germinativas
masculinas e femininas que possibilita o surgimento de dois eventos que corro boram ao
advento da PUBERDADE: a menarca ou primeira menstruação, na menina, e a primeira
ejaculação ou emissão de esperma no menimo, indícios exteriores da capacitação biológica
 para as funções de procriação. Isto dar-se-ia por volta dos 12 aos 15 anos, em termos
médios.
 Nem sempre o início da ADOLESCENCIA coincide com o da PUBER DADE; tanto pode
 precedê-la como sucedê-la. E se o advento da PUBER DADE tem a assinalá-lo evidências
físicas bem definidas, o mesmo não ocorre com a ADOLESCENCIA.
O fenômeno da PUBERDADE é universal e seu início cronológico, em condições de
normalidade física, coincide em todos os povos e latitudes (com raríssimas exceções, como
o caso dos pigmeus. púberes já por volta dos oito anos de idade, mas cuja expectativa de
vida também é menor do que no restante da espécie humana). A ADOLESCENCIA. por
seu turno. embora um fenômeno igualmente universal, tem características bastante pecu
liares conforme o ambiente sócio-cultural do indivíduo. Portanto, determinar seu início é
tarefa singularmente complexa e que não pode apoiar-se apenas em certa constância doselementos psicológicos, todos eles, contudo. apon
10 / Luiz carlos Osono
Adolescente Hoje / 11
tando na direção de um objetivo axial, que é o estabelecimento da identidade pessoal, tema
do qual nos ocuparemos mais adiante.
Já não se aceita atualmente o vezo simplista de tomar o despertar da sexualidade como
identificatório do desabrochar da ADOLESCENCIA, uma vez que FREUD demonstrou
que a sexualidade não surge ex-abrupto nesse momento da vida; nem, tampouco, se poderia
adotar a indevida generalização que atribui ao surgimento do interesse pelo sexo oposto o
elemento nuclear do processo adolescente.
Como já foi acentuado, a ADOLESCENCIA é um complexo psicossocial, assentado em
uma base biológica, cuja caracterização pode ser sumariada nos seguintes itens, que serão
objeto de estudo mais detalhado posteriormente:
1) redefinição da imagem corporal, consubstanciada na perda do corpo infantil e da
conseqüente aquisição do corpo adulto (em particular, dos carac teres sexuais secundários);
2) culminação do processo de separação/individuação e substituição do vínculo de
dependência simbiótica com os pais da infância por relações objetais de autonomia plena;
3) elaboração de lutos referentes à perda da condição infantil;
4) estabelecimento de uma escala de valores ou código de ética próprio;
5) busca de pautas de identificação no grupo de iguais;
6) estabelecimento de um padrão de luta/fuga no relacionamento com a geração precedente;
7) aceitação tácita dos ritos de iniciação como condição de ingresso ao status adulto;
 
8) assunção de funções ou papéis sexuais auto-outorgados, ou seja, con soante inclinações
 pessoais independentemente das expectativas familiares e eventualmente (homossexuais)
até mesmo das imposições biológicas do gênero a que pertence.
Quanto ao término da PUBERDADE e da ADOLESCENCIA, podería mos dizer o
seguinte:A PUBERDADE estaria concluída, e com ela o crescimento físico e o amadurecimento
gonodal (que permite a plena execução das funções repro dutivas), em torno dos 18 anos,
coincidindo com a soldadura das cartilagens de conjugação das epífises dos ossos longos, o
que determina o fim do cresci mento esquelético.
O término da ADOLESCENCIA, a exemplo de seu início, é bem mais difícil de determinar
e novamente obedece a uma série de fatores de natureza sócio-cultural. Tentando
discriminar quais os elementos mais universais na atualidade que nos possibilitariam
assinalar o término da ADOLESCENCIA, relacionamos o preenchimento das seguintes
condições:
1) Estabelecimento de uma identidade sexual e possibilidade de estabe lecer relações
afetivas estáveis.
2) Capacidade de assumir compromissos profissionais e manter-se (“inde pendência
econômica”).
3) Aquisição de um sistema de valores pessoais (“moral própria”).
4) Relação de reciprocidade com a geração precedente (sobretudo com os pais).
Em termos etários, isto ocorreria por volta dos 25 anos na classe média brasileira, com
variações para mais ou para menos consoante as condições sócio-econômicas da família de
srcem do adolescente.
ADOLESCÊNCIA HOJE
Por que a adolescência passou a ocupar, em nossos dias, o centro do interesse especulativo
e das preocupações dos profissionais da área das ciências humanas?
O interesse universal pelo estudo da adolescência atualmente advém de duas circunstâncias principais:
1 - A explosão demográfica de pós-guerra, que trouxe como imediata conseqüência o
significativo crescimento percentual da população jovem mun dial. Basta que se lembre que
nos últimos 25 anos a população do Brasil duplicou para que se perceba quão significativo
é o contingente de jovens em nosso país. Estima-se que hoje cerca de 1/4 da população
 brasileira é constituída de adolescentes.
2 - A ampliação da faixa etária com as características da adolescência. Assim, se antes a
adolescência era tida meramente como aquela etapa de transição entre a infância e a idade
adulta que coincidia com os limites bioló gicos da puberdade, atualmente a adolescência é
definida por elementos que, embora balisados pelas características psicológicas do
momento evolutivo em questão, são marcadamente influenciados pelas contingências
sócio-culturais circunstantes.
 
Assim, o estudo da adolescência hoje extrapola o interesse cognitivo sobre uma etapa
evolutiva do ser humano para, através dele, procurar entender todo um processo de
aquisições e motivações da sociedade em que vivemos.
12 / Luiz Carlos Osor:o
Adolescente Hoje / 13
 
A crise adolescente e
a questão da identidade
 No capítulo anterior procuramos conceituar operativamente a ADOLES CENCIA e
 justificar o interesse contemporâneo por seu estudo. Vamos agora seguir um pouco adiante
na elucidação de alguns mecanismos psicossociais que identificam o perfil básico de umadolescente. Antes, contudo, assim como fizemos com a expressão ADOLESCENCIA, é
 preciso delinearmos melhor o significado dos termos a que nos referiremos a seguir, CRISE
E IDENTIDADE, ambos contendo certo caráter ambíguo, contraditório ou polêmico,
gerando por vezes sentidosequívocos.
A expressão CRISE (do gr. krisis - ato ou faculdade de distinguir, escolher, decidir e/ou
resolver), como lembra ERIKSON, já não padece em nossos dias do significado de
catástrofe iminente que em certo momento pareceu constituir um obstáculo à compreensão
do termo. Atualmente aceita-se que a CRISE designa um ponto conjuntural necessário ao
desenvolvimento, tanto dos indivíduos como de suas instituições. As crises ensejam o
acúmulo de experiência e uma melhor definição de objetivos.
A adolescência é uma crise vital como o são tantas outras ao longo da evolução do
indivíduo (o desmame, o início da socialização ao término da primeira infância, oclimatério, etc..). Para melhor definir o sentido não patológico do termo, ERIKSON
chamou a adolescência de crise normativa, isto é, momento evolutivo assinalado por um
 processo normativo, de organi zação ou estruturação do indivíduo.
E por IDENTIDADE, o que entendemos?
IDENTIDADE é, resumidamente, a consciência que o indivíduo tem de si mesmo como um
“ser no mundo”.
Esclarecendo melhor, a identidade é o conhecimento por parte de cada indivíduo da
condição de ser uma unidade pessoal ou entidade separada e distinta dos outros,
 permitindo-lhe reconhecer-se o mesmo a cada instante de sua evolução ontológica e
correspondendo, no plano social, à resultante de todas as identificações prévias feitas até o
momento considerado. O conceito operativo de identidade está formulado a partir das
noções dos vínculos de integração espacial, temporal e social do sentimento de identidade,
introdu zidos na literatura por GRINBERG.
O vínculo de integração espacial está relacionado com a imagem corporal, ou seja, a
representação que o indivíduo tem de seu próprio corpo com características que o tornam
único.
O vínculo de integração temporal corresponderia à capacidade do indiví duo de recordar-se
no passado e imaginar-se no futuro, ou seja, é a base do “sentimento da mesmidade”, que é
a capacidade de seguir sentindo-se o mesmo ao longo da vida, apesar do influxo das
mudanças que ocorram interna ou externamente.
O vínculo da integração social diz respeito às inter-relações pessoais inicial- mente com as
figuras parentais e posteriormente com todas as figuras de relevância afetiva para o
indivíduo no decurso de sua existência.Poderíamos ainda acrescentar que o sentimento de identidade é função de um equilíbrio
dinâmico entre os três vértices do triângulo abaixo:
 
O que eu penso que sou
O que eu penso que os outros pensam que sou
Do ponto de vista psicológico considera-se que a tarefa básica da adoles cência é a
aquisição desse sentimento de identidade pessoal. Por isso, diz-se que a crise evolutiva do
 processo adolescente é sobretudo uma crise de iden tidade.
O ADOLESCENTE E SEU CORPO: A IDENTIDADE SEXUAL
Pari passu com as modificações biológicas que caracterizam o processo puberal, o
adolescente experimenta toda uma série de eventos psicológicos que culminam naquilo que
denominamos a aquisição de sua identidade sexual, ou seja, das características mentais do
sexo que lhe corresponde e que nem sempre é aquele ao qual pertence (homossexuais).
3
O que os outros pensam que sou
14 / Luiz C rios Osorio
Adolescente [ / 15
A sexualidade é, sobretudo, um elemento estruturador da identidade do adolescente. E essa
função estruturante é, em grande parte, realizada através da representação mental que o
adolescente tem de seu corpo, ou sej a, através de sua imagem corporal.
A imagem corporal é uma representação condensada das experiências passadas e presentes,
reais ou fantasiadas, do corpo do indivíduo. Ela involucra aspectos conscientes e
inconscientes.
A estrutura da imagem corporal é determinada por:
a) percepção subjetiva da aparência e habilidade à função;
 b) fatores psicológicos internalizados;
c) fatores sociológicos (a imagem corporal é também função dos papéis que ao corpo são
atribuídos pela cultura prevalente num momento dado).
A medida que o corpo vai se transformando e adquirindo os contornos definitivos do
adulto, o adolescente vai gradualmente plasmando a imagem corporal definitiva de seu
sexo. Como na sua mente há uma espécie de “protó tipo idealizado” dessa imagem corporal
(formado a partir dos valores estéticos com respeito a forma humana que lhe são
transmitidos), via de regra ocorre um conflito entre a imagem “fantasiada” desse modelo
idealizado e a imagem “real” do seu corpo em transformação. Essa é a raiz das ansiedades
do adoles cente com respeito a seus atributos físicos e a desejada capacidade de atrair o
sexo oposto, isto é, a vertente somática de seus conflitos na esfera sexual.
E reconhecida a insatisfação dos adolescentes com sua aparência física. A percepção das
constantes mudanças ocorridas no corpo é a responsável pela freqüência com que ocorrem
os sentimentos de estranheza do próprio “self”na adolescência.
As ansiedades peculiares à adolescência têm seu fulcro na preocupação do púbere com seudesenvolvimento físico, especialmente no que diz respeito aos caracteres sexuais
 
secundários. E comum encontrarmos distorções da ima gem corporal expressas em idéias
sobre o tamanho do pênis ou das mamas.
As vestes, concebidas como extensões ou prolongamentos do próprio corpo, adquirem
então uma importância toda peculiar. “Já que não posso alterar meu corpo, com o qual
estou descontente, modifico minhas roupa”, diz um adolescente.Para melhor entender-se as vicissitudes da aquisição do sentimento de identidade durante a
adolescência vamos nos valer aqui de um marco referen cial teórico, que se apóia na idéia
da universalidade da srcem simbiótica da condição humana e na concepção de um
 processo de separação/indivi dualização que começa logo após o nascimento e se estende
 por todo o desen volvimento ulterior do indivíduo.
O processo puberal, deflagrado pelas transformações biológicas que mar cam a passagem
da infância para a idade adulta, caracterizar-se-ia, no plano psicológico, por uma reedição
da diferenciação “eu - não eu” que identifica os primórdios da individuação ao longo da
 primeira infância.
MAI-ILER postula a existência de um estado indeferenciado inicial a partir do qual o
indivíduo terá que, gradativa e inexoravelmente, ir se diferen ciando para adquirir sua
identidade pessoal. A separação consistiria na saída da criança da fusão simbiótica com amãe e a individuação, desenvolvimento que a complementa, nas aquisições das
características pessoais que configuram a identidade do indivíduo.
Assim como o processo de discriminação “eu - não eu” não se faz ex-a brupto e segue o
 princípio epigenético das aquisições graduais e sucessivas sem que a rapidez do
desenvolvimento possa alterar essa sucessão, tal diferen ciação nunca se completa
inteiramente e certo grau de simbiotização se mantém indefinidamente. Durante o processo
 puberal, no entanto, acionado pela dife renciação somática que então ocorre, há uma
retomada do processo discrimi natório eu - não eu. Em razão das ansiedades mobilizadas
 pela ameaça da perda do vínculo simbiótico residual da infância, o adolescente tenta
restaurar a situação srcinal com a adesão a substitutos aleatórios dos primitivos objetos
 parentais. Isto explicaria, por exemplo, as identificações maciças dos jovens com seus
ídolos, o caráter possessivo de suas relações de amizade ou ainda a supervalorização doobjeto amado quando se apaixonam.
 Nos estados de enamoramento, peculiares à adolescência, com exagerada idealização do
objeto amado, haveria não somente um investimento libidinal maciço no objeto tomado
como ideal amoroso mas, sobretudo, um desejo de recuperar um estado de “fusão com o
outro” frente à ameaça de separação e perda “definitiva” do vínculo simbiótico inicial,
ameaça essa acarretada pela intensificação dos mecanismos de diferenciação que então
ocorrem.
Em contraposição a essa tendência simbiotizante ou de manutenção do estada srcinal de
fusão ou indiferenciação com a matriz familiar, háum impulso à diferenciação e
individuação gradativas, visando à aquisição e ao estabelecimento da identidade pessoal.
Como expressão desse impulso à dife renciação, temos todo espectro comportamental
adolescente inserido no con texto do que se convencionou denominar “conflito de
gerações”. Como pelas identificações prévias é justamente com os pais que a mente juvenil
está mais “fundida”, torna-se imperioso acentuar o confronto de idéias a nível familiar para
 
que se facilite o processo discriminatório sem o qual a identidade permanece num estado
caótico ou indiferenciado.
Ao se contrapor freqüentemente aos desejos e expectativas de seus pais, o adolescente nem
sempre estará, como se poderia supor a uma observação mais superficial, expressando uma
diferença de opiniões calcada no repúdio ao sistema de valores parentais e muito menosassinalando uma quebra no processo identificatório com seus genitores; está, muitas vezes,
 procurando através do mecanismo de oposição definir-se e a seus objetivos.
Por um raciocínio análogo, entender-se-iam os episódios de agressividade impulsiva dos
adolescentes. Assim como o amor idealizado dos jovens identi fica o desejo de fundir-se
novamente com o objetivo srcinal materno e está a serviço do vínculo simbiótico, os
acessos de fúria ou a propensão a divergir
 podem facilitar o processo de dessimbiotização. Se o amor une e funde, a contenda separa e
discrimina. E como o indivíduo define-se primordialmente pelo que não é, ao buscar no
controvérsia o que no outro se lhe opõe o adolescente vai desta forma rastreando o
reconhecimento de seu próprio eu.
As vivências de despersonalização, outro fenômeno comum na adoles cência, seriam uma
das manifestações clínicas mais vívidas dessa luta entre os impulsos antagônicos de
separação e fusão, onde, por momentos fugazes (adolescentes normais) ou duradouros
(adolescentes com distúrbios mentais), a busca do sentimento de identidade pessoal vê-se
ameaçada pela persistência ou retorno à condição simbiótica srcinal.
A adição a drogas, freqüentemente encontrável entre adolescentes, seria a expressão oral
dessa mesma tentativa de manter ou recuperar o vínculo simbiótico perdido. O próprio
hábito de mentir, tão comum entre adolescentes, seria, uma decorrência dessa necessidade
de diferenciar-se que tem o adoles cente. Mentindo, e acreditando em suas mentiras, o
adolescente cria a “sua” verdade — faz da substância da ilusão o alicerce de “sua”
realidade para contrapô-la à dos adultos.
 No processo puberal, que assinala um segundo momento evolutivo de
separação/individuação, predominam as angústias do tipo confusional geradas pelo conflito
entre a busca de identidade e a persistência dos vínculos simbió ticos remanescentes.
Por outro lado, os sentimentos de confusão quanto à identidade sexual e as correspondentes
fantasias ou temores homossexuais tão comuns entre os adolescentes, especialmente do
sexo masculino, evidenciariam a luta travada durante o processo puberal entre o impulso à
diferenciação sexual e a tendência oposta de conservar a indiferenciação anterior com vistas
a assegurar a manu tenção do par simbiótico srcinal, onde quem se ama é a projeção de si
 próprio, conforme o modelo narcísico descrito por FREUD.
A gíria como expressão da crise de identidade adolescente
Quando um adolescente diz “não adianta conversar com os velhos porque eles não me
entendem” está expressando algo mais do que uma diferença de opinião entre eles e os pais.
Há implícito aí todo um processo de defasagem lingüística e semântica entre as gerações eque acompanha a quebra do processo comunicante entre elas.
 
A adolescência se caracteriza basicamente por uma série complementar de perdas e
aquisições: perda da hissexualidade infantil e a correspondente aquisição da sexualidade
adulta, perda do pressuposto de dependência infantil e aquisição da autonomia adulta e
também perda da comunicação ou linguagem infantil para adquirir uma comunicação ou
linguagem adulta.
KNOBEL diz, muito acertadamente, que “não se pode dizer simples mente que o
adolescente busca ter uma identidade. Ele já tem uma, a identi
dade adolescente, que é justamente a que lhe permite seguir o curso de seu
desenvolvimento”.
 Na mesma linha de raciocínio poderíamos dizer que o adolescente não está só abandonando
o modo de comunicação infantil por uma forma adulta de expressão, mas tem uma
identidade lingüística e semântica peculiar à sua condição de adolescente. E a gíria é a
representação verbal da identidade adolescente, com todo o polimorfismo e transitoriedade
tão característicos do próprio processo puberal.
A gíria é uma “perversão” da linguagem. Usamos o termo “perversão” deliberadamente
 para aludir analogicamente ao que se passa no desenvol vimento sexual infantil. A
disposição perversa polimorfa define a sexualidade infantil assim como a gíria o faz com alinguagem adolescente. No adulto normal o emprego de expressões de gíria é circunstancial
e quando sistemático corresponde a um desvio do comportamento lingüístico do indivíduo.
Abs traindo a influência dos fatores sócio-culturais, poderíamos dizer que o uso de termos
de gíria pelo adulto corresponde a substitutos parciais e aleatórios de uma comunicação
verbal plena e satisfatória. No adolescente, contudo, é uma forma de expressão peculiar à
sua identidade lingüística.
Assim como o adolescente, na ansiosa busca de sua identidade emergente, estabelece, por
vezes, pseudo-identificações, as quais incorpora parcialmente ou abandona posteriormente,
da mesma forma ele adquire modismos lingüís ticos que lhe servem transitória e
 precariamente para veicular idéias e senti mentos que de outra forma não encontrariam
expressão verbalizada.
A gíria é também um subproduto da cultura adolescente. Ainda quando a consideramosuma forma de expressão verbal peculiar ao marginal ou delin qüente adulto, seu significado
 psicodinâmico é o mesmo, ou seja, traduz a luta pela preservação de uma identidade grupal
na qual se funde e busca sustentação a frágil identidade individual de seus membros.
A gíria constitui a expressão verbal do processo de diferenciação do adolescente, de seu afã
de reconhecer-se e a seu grupo de iguais como porta dores de uma identidade própria e
distinta da identidade dos pais e do mundo adulto em geral.
 Nessa procura de uma identidade lingüística o adolescente faz um verda deiro processo de
“adicção” às novas palavras ou expressões que surgem. Experimenta novos vocábulos
como experimenta novas drogas. Por outro lado, o sentido ambíguo com que nascem
muitas dessas expressões identificam o próprio caráter ambivalente das relações objetais do
adolescente. Um termo hoje empregado com um significado encomioso, amanhã o é
 pejorativamente e vice-versa.
A gíria adolescente adquire em caráter hermético e imcompreensível para os adultos na
medida em que está a serviço das defesas contra as tentativas desses de violentar a “torre de
 
marfim” habitada pelos pensamentos e ernoçoes dos adolescentes. E como se quisessem
criar um microcosmos linguístico to
1 1 Luiz C Osoria
Ádole5cente Ho;e / 19
O Caráter Universal da Crise de Identidade Adolescente
mando como modelo os símbolos verbais propostos pela linguagem dos adultos,
manipulando-os, no entanto, dentro de um novo esquema semântico.
As progressões e regressões do processo puberal estão representados no léxico adolescente.
Assim, ao lado do forte contingente de vocábulos que denunciam os remanescentes orais,
anais ou fálicos do linguajar infantil, encontramos nas possibilidades expressivas de certos
neologismos e figuras de linguagem empregados pelos adolescentes todo o potencial
criativo identifi cável com a sexualidade adulta.
A observação clínica do fenômeno da gíria e sua significação psicopa tológica entre os
adolescentes nos permite constatar que o índice de saturação de termos de gíria na
linguagem dos adolescentes conserva certa relação com o grau de predisposiçãoa “atuar”
os conflitos em lugar de expressá-los verbal mente. A gíria seria, por assim dizer, amodalidade verbal da tendência dos adolescentes a evidenciar seus conflitos através de
 perturbações na conduta. Como contrapartida, encontramos uma diminuição do emprego de
termos de gíria em adolescentes na medida em que conseguem verbalizar seus conflitos e
conscientizar o conteúdo de suas fantasias.
Para finalizar diríamos, como os teóricos da comunicação, que as gírias também
“metacomunicam”: a mensagem que transcende seu sentido pura mente lingüístico reside
 juntamente no seu significado como expressão verbal da crise de identidade adolescente.
O “Grupo de Iguais” como Continente
da Crise de Identidade Adolescente
“L’Adolescent se rend différent de ladulte mais ii n’est point ‘srcinal parmi ses pareils qui
lui ressemhlent comme des frères”(BELA GRUNBERGER)
O “grupo de iguais” é a caixa de ressonância ou continente para as ansiedades existenciais
do adolescente. Na medida em que, pela necessidade de cristalizar suas identidades adultas
e afirmar-se como indivíduos autônomos, deixam de utilizar os pais ou sub-rogados desses
(tais como os professores e adultos em geral)) como modelos de identificação, têm os
adolescentes necessidade de buscar novas pautas identificatórias no seu grupo de iguais,
cujos líderes tomam provisoriamente o lugar das imagos parentais idealizadas. Isto
explicaria a natural e espontânea tendência à formação de grupos entre adolescentes, pois
nos grupos surge um clima propício ao intercâmbio e con fronto de experiências que
 permite a seus componentes uma melhor identifi cação dos limites entre o eu e o outro,
através da compreensão das motivações conscientes e inconscientes dos diferentes modos
de sentir, pensar e agir, favorecendo a resolução da crise de identidade, fulcro da problemática adoles cente.
 
A adolescência — entendendo-se aqui o termo, conforme sugerimos, como o conjunto de
transformações psicológicas que acompanham o fenômeno biológico da puberdade — é a
resultante de um paralelogramo de forças, onde os fatores intrapsíquicos e sócio-culturais
constituem os vetores que o compõem.
Todas as considerações feitas até agora seriam parciais e aleatórias se não tomássemos emconsideração as distintas realidades existenciais dos jovens de diferentes latitudes e
culturas.
Quando estamos falando de adolescentes, na verdade apenas estamos considerando os
 jovens cuja preocupação com a sobrevivência imediata é secundária. Quem sabe incorrendo
em certo exagero poder-se-ia dizer que a adolescência é um privilégio das classes mais
abastadas. Esse período de moratória ou preparação para a idade adulta é um “luxo” não
 permitido àqueles que estão empenhados na encarniçada luta por sua subsistência. Estes
apenas experimentam a puberdade, enquanto inevitável processo de transfor mações
corporais, mas não se lhes concede a oportunidade de vivenciar o processo de elaboração
das perdas infantis e assimilação das aquisições adultas que caracterizam a adolescência do
 ponto de vista psicológico. Para tanto, é preciso dispor de um espaço-tempo a que não têm
acesso os que estão confinados pela geografia da fome e da miséria.
Portanto, quando nos referimos à crise de identidade do adolescente contemporâneo
estamos na verdade considerando os processos de transfor mação psicológica que
experimentam aqueles jovens que pertencem aos extra tos sócio-econômicos mais
diferenciados, que têm o que comer, o que vestir e podem, então, usufruir as demais
 prerrogativas da condição humana quando satisfeitas suas necessidades mais elementares.
Discute-se se o processo adolescente é universal, isto é, se ocorre em suas linhas gerais em
todo e qualquer adolescente, independente da matriz sócio-cultural à que pertence. Eu diria
que sim, que é universal, desde que se considere a ressalva apresentada no parágrafo
anterior. Mesmo em condi ções de vida extremamente adversas, desde que assegurada a
satisfação das necessidades básicas de alimentação e agasalho, podemos encontrar a seqüên
cia dos eventos psicodinãmicos que configuram o processo adolescente e a crise de
identidade que o caracteriza. Uma confirmação desta assertiva pode mos ter analisando, por
exemplo, o diário de ANNE FRANK, um dos mais ilustrativos registros de que se temnotícia de um processo adolescente, viven ciado em toda a sua plenitude. mesmo sob a
vigéncia de condições de vida tão anômalas quanto o foram o confinamento num refúgio
 para escapar à sanha anti-sionista dos nazistas na ocupada Holanda dos anos 41-44.
 Num diário escrito dos 13 aos 15 anos e que viria a se constituir numa pequena obra-prima,
ANNE FRANK, uma adolescente judia cuja fortaleza moral sob uma manto de aparente
fragilidade é a própria imagem de sua
2(1 / Luiz ( ()50r10
AdoIesct.’nti Ho; / 21
gente, nos descreve o desenvolvimento de seu processo puberal. No seu relato espontâneo
sob a forma de confidências a Kitty, amiga imaginária que perso nifica seu alter ego no
sempiterno colóquio do mundo interno adolescente, revela-se todo o espectro vivencial deuma adolescente de sua como de todas as épocas e circunstâncias; a análise de seu diário
íntimo comprova-nos que, mesmo sob condições de vida tão adversas como as vigentes no
 
“anexo secreto” onde ela, sua família e alguns amigos refugiaram-se dos nazistas durante
aqueles dois anos, a ocorrência e seqüência evolutiva dos eventos psicodinâ micos que
configuram o processo puberal não se alteram. Ali, na evocação continuada de suas
fantasias e nos meandros de seu cotidiano existencial, encontramos toda a gama de
situações que caracterizam a vigência da crise adolescente: do recrudescimento do conflito
edipiano à cristalização da identi dade puberal através da redefinição da imagem corporal,
da elaboração dos lutos pela perda da condição infantil à dissolução do vínculo simbiótico
com a família, do estabelecimento de um padrão de luta/fuga com a geração anterior ao
surgimento de uma escala de valores próprios, enfim, todos os elementos que identificam a
“mutação” adolescente. Um estudo pormenorizado do pro cesso puberal, conforme ANNE
FRANK o vivenciou e descreveu com rara autenticidade em seu diário, é desde logo tarefa
que vai além dos objetivos e limites deste livro. Não obstante, cremos que a transcrição de
alguns trechos do referido diário darão melhor testemunho de muitas das afirmações feitas
ao longo deste estudo do que qualquer digressão teórica que pudéssemos agora fazer à
guisa de concluí-lo.
O desabrochar da puberdade, a descoberta dos mistérios biológicos que
a natureza ocultou no escrínio de seu corpo, o modo como vivencia e aceita
a emergência de sua ainda difusa e perturbadora sexualidade feminina, assim
são descritos por ANNE:
“Penso que é tão maravilhoso o que me acontece — não só o que aparece em meu corpo,
mas o que se realiza por dentro... Cada vez que tenho menstruação — e isto só aconteceu
três vezes! — sinto que apesar de toda a dor, desconforto e sujeira, possuo um segredo
delicado e é por isso que, embora de certo modo não passe de uma maçada, eu anseio pelo
tempo em que sentirei dentro de mim aquele segredo... Depois que vim para cá, logo ao
fazer 14 anos comecei a pensar em mim, mais cedo que a maioria das meninas, e a perceber
que era uma “pessoa”. As vezes deitada na cama de noite, tenho um desejo terrível de
apalpar meus seios e escutar as batidas calmas e rítmicas de ri Vi no espelho o meu rosto;
está bem diferente. Meus olhos es e profundos, minhas faces estão rosadas e — coisa que
há sema não acontece — minha boca está mais macia... Sinto dentro de mim a prima vera,sinto a primavera que desperta em todo o meu corpo e na minha alma... Estou tão confusa,
não sei o que fazer, só sei que sinto em mim um querer!
As oscilações do sentimento de identidade que caracterizam o processo puberal e que se
 polarizam na dicotomia criança-adulto, trazendo muitas vezes ao adolescente a sensaçãode
ser duas (Ou mais) pessoas distintas, reve lam-se nos seguintes fragmentos de seu diário:
“Um dia Anne é tão ajuizada que consentem que tudo saiba; e no dia seguinte ouço que
Anne é uma cabrita estouvada que não sabe nada e imagina que apreendeu maravilhas nos
livros... As vezes tenho um jeito esquisito: consigo ver a mim mesma como se fosse pelos
olhos de outra pessoa. Então, observo os negócios de uma certa “Anne” e percorro as
 páginas de sua vida como se fosse uma estranha... de súbito foi-se embora a Anne de
costume e uma segunda Anne tomou seu lugar, uma segunda Anne que nada tem de
estouvada e brincalhona e só deseja ser muito meiga e amar... Já lhe disse antes que possuo,
 por assim dizer, personalidade dupla. Em metade encarna-se minha alegria exuberante que
faz graça de tudo, meu entusiasmo e sobretudo o modo por que levo tudo com pouco caso.
Aqui inclui-se o caso de não me ofender um “flirt”, um beijo, um abraço, uma pilhéria suja.
 
Este lado, quase sempre, está à espreita e empurra o outro que é muito melhor, mais
 profundo e mais puro. Você precisa compreender que ninguém conhece o melhor lado de
Anne e por isso a maior parte das pessoas me acha insuportável”.
A ciclotimia e a labilidade emocional que caracterizam os estados afetivos típicos da
adolescência aparecem assim retratados:As vezes os nervos me dominam; aos domingos, especialmente, sinto-me deprimida...
vagueio de um quarto para outro, escada acima, escada abaixo, sentindo-me como pássaro
cantor a quem arrancaram as asas e que se atira, em escuridão completa, contra as grades da
gaiola. ‘Vai lá para fora, dá risada, respira ar fresco’, grita dentro de mim uma voz; eu,
 porém, não sinto a vibração responsiva e vou dormir, deitada no divã, para que o tempo, a
quietude e o medo terrível passem mais depres sa, uma vez que não há maneira de os
matar... Brilha o sol, o céu está profundamente azul, a brisa é deliciosa e eu tenho vontade,
tanta, tanta vontade — de tudo. De falar, de liberdade, de amizade, de estar só. E tanto
queria.., chorar! Parece que rebento e sinto que isto havia de melhorar com o choro; mas
não posso, estou inquieta, vou de um quarto para outro, respiro pela fresta de uma janela
fechada, sinto bater meu coração como se dissesse: ‘não poderá você satisfazer meus
anseios algum dia’.”
 Nos trechos seguintes encontraremos delineado o recrudescimento do conflito edipiano na
adolescente Anne:
“... eu adoro Papai. É meu ideal. Não amo ninguém no mundo, só a ele... Quero de papai
algo que ele não pode me dar. Não tenho nem
22 / Luiz Carlos Osorio
Adolescente Hoje / 23
nunca tive ciúmes de Margot Não invejo a boniteza, a beleza dela. E que eu só preciso
muito do verdadeiro amor de Papai: não só como filha dele, mas como eu mesma — eu,
Anne,”
“... Mummy é que às vezes me trata como se eu fôsse nenê — coisa que eu não suporto...
somos polos opostos em tudo, portanto é natural que entremos em choque... existe dentroda minha cabeça uma imagem
 — a imagem do que deveria ser a perfeita mãe e esposa; ora, na que preciso chamar de mãe
não vejo sombra daquela imagem.”
“... as tentativas da sra. Van Daan para flertar com Papai são fonte de contínua irritação
 para mim. Alisa o rosto e o cabelo dele, puxa a saia para cima, diz umas frases com
intenção de fazer espírito para atrair a atenção de Pim Pim, graças a Deus, não vê nela
graça nem atrativo algum, por isso não corresponde”.
Através da evolução de seu relacionamento com Peter e das modificações na imagem que
dele faz, podemos acompanhar o gradativo interesse heteros sexual de Anne e como
encaminha a resolução de sua fixação edipiana no pai pela troca de objeto amoroso, que
 prenuncia o advento da sexualidade adulta.
Vejamos como Anne nos descreve inicialmente Peter: “Peter não tem ainda dezesseis anos;
é um rapaz molenga, acanhado e sem jeito. Não se pode esperar grande coisa como
 
companhia”. Dias após: “Não consigo mesmo gostar de Peter; é um rapaz muito
aborrecido. Atira-se na cama, cheio de preguiça, trabalha um momento na carpintaria e logo
volta a cochilar mais um pouco. E um tolo! “Ano e meio depois: “Meu desejo de falar com
alguém tão intenso se tornou que, não sei como, deu-me na cabeça de escolher o Peter”.
Semanas se passam e: “Vinha-me uma impressão esquisita cada vez que contemplava seus
 profundos olhos azuis... Eu lia seus pensamentos inter nos... Via em seu rosto um traço de
virilidade; reparando em seus modos retraídos, senti-me muito meiga... Oh! pudesse eu
aninhar a cabeça no ombro dele — não me sentir mais tão desesperadamente só e
abandonada!... Creio estar bem perto de me apaixonar por ele”. Mais algumas semanas e
chega ao clímax de seu enamoramento por Peter: “Estou a transbordar de Peter e não faço
senão olhar para ele... Ele veio para junto de mim, atirei-lhe os braços à volta do pescoço,
 beijei-lhe a face direita e ia beijar-lhe a outra face quando meus lábios encontraram os dele
e nós os apertamos. Num rede moinho, estávamos presos nos braços um do outro, outra vez
e outra ainda. não podíamos largar”
1 irmã de Anne,
2 forma com que habitualmente chama a mãe.
3 a sra. Van Daan. seu marido e filho constituem a outra família com quem os Frankdividem
o esconderijo secreto.
4 maneira carinhosa com que se refere ao pai.
5 o filho dos \‘an Daan
 No entanto, com rara lucidez dá-se conta logo que não ama Peter, que foram as
circunstâncias especiais de sua convivência, o desabrochar de sua sexualidade e a imperiosa
necessidade de buscar companhia entre os de sua idade que a levaram àquele envolvimento:
“Precisava de um ser vivo a quem abrir o coração... ao conseguir que ele se tornasse amigo,
automaticamente desenvolveu-se uma intimidade que, pensando bem, não creio que
devesse ter permitido... Nossos encon tros o satisfazem ao passo que em mim apenas
 produzem o efeito de me despertar vontade de tentar mais uma vez... Penso às vezes queexagerei o desejo desesperado que por ele sentia... Peter é bom, é um encanto, mas não
 posso negar que muita coisa nele me decepciona”.
Paralelamente vai se distanciando do pai e o desidealizando: “por que será que Pim me
aborrece?... tanto eu quero ser deixada em paz e prefiria mesmo que ele me esquecesse um
 pouco, até que me sentisse mais segura de minha atitude para com ele.
Enquanto isto deprime-se ao constatar quão infundado era seu relaciona mento hostil com a
mãe e procura reconciliar-se com a “mãe interna”, sem deixar, contudo, que sentimentos de
culpa doentios comprometam seu pro cesso de separação da mãe e a paralela individuação:
“Revendo meu diário dei com páginas que trataram do assunto ‘Mummy’ de maneira tão
exaltada que me escandalizei, perguntando a mim mesma:
Oh, Anne, foi realmente você mesma quem mencionou tanto ódio? Como é que você pode?... E verdade que ela não me entende, mas também eu não a entendo... Já passou o
 período em que fazia Mummy verter lágrimas; tornei-me mais ajuizada e os nervos de
 
Mummy também não andam à flor da pele... mas não posso sentir por Mummy aquele amor
dependente, de criança — é sentimento que não está em mim”.
A disposição com que se lança à luta pela individualidade, mas sempre respeitando a dos
outros e zelando para que nessa refrega não se danifiquem os laços que a prendem a seu
universo familiar, talvez seja o traço mais marcante da invulgar figura humana de AnneFrank. Vejamos, para finalizar, alguns momentos dessa sua busca de afirmação pessoal:
tenho que servir da mãe para mim mesma... eu mesma tomarei o leme de minha vida e mais
tarde procurarei onde aportar... Apesar de ter só 14 anos sei bem o que quero tenho idéias
minhas, princípios meus, opiniões minhas e, mesmo que vindo de uma adolescente, isso
 pareça loucura, sinto-me mais como pessoa do que como criança e bastante independente
de quem quer que seja... Cheguei ao ponto em que posso viver por mim mesma, sem o
apoio de Mummy e. para falar a verdade. sem o apoio de quem quer queseja. Mas isso não
sucedeu da noite para o dia; foi amarga, foi dura a minha luta e muita lágrima chorei até
que me tornasse independente como agora sou... Sei que sou indivi
24 / Luiz Carlos Osorio
Adolescente Hoje / 25
dualidade a parte e não me sinto responsabilidade alguma de nenhum de vocês.., sou
independente de espírito e corpo. Não preciso mais da mãe, pois todo esse conflito me
tornou forte”.
E como corolário de um processo puberal que levou a bom termo o objetivo da aquisição
do sentimento de identidade, uma última “pérola” do pensamento de Anne Frank, onde se
revela sua notável fortaleza egóica a serviço do “instinto de vida”, mesmo quando o mundo
a sua volta convulsio nava-se em estertores de ódio e morte:
“Tenho em meu caráter um traço predominante que deve saltar aos olhos de quem me haja
conhecido durante algum tempo, que é o conheci mento que tenho de mim mesma. Posso
estar face a face com a Anne de todos os dias, sem preconceito algum e sem fazer
concessões, obser vando o que nela há de bom e mau. Essa consciência de mim mesma
acompanha-me sempre... Os pais só podem dar conselhos e indicar os caminhos certos, mas
a formação final do caráter de uma pessoa está em suas próprias mãos. Possuo coragem
grande, sinto-me sempre forte, como se suportasse muita coisa; sinto-me tão livre e
 jovem!... E continuo a tentar encontrar a maneira de ser como desejo ser...”
26 / Luiz Car!o O5ono
 
O adolescente, a família e a sociedade
4
Através dos tempos, a família, pela função socializadora que lhe é ineren te, pressupôs um
 papel de intermediação entre os jovens e a sociedade. No entanto, entre as grandes
mutações do processo civilizatório em nossa época está a alteração desse papel mediador,
segundo se verá mais adiante e conforme tenta ilustrar o esquema gráfico abaixo:
AdoIe Ho / 27
Antes de referenciarmos os elementos acima com os elementos que lhe dão sustentação,
vamos considerar algumas questões concernentes à noção de família e seu perfil na
contemporaneidade.
Preliminarmente, a que família estamos aqui nos referindo? Família não é um conceito
unívoco. Como afirmava ESCARDO, “a palavra família não designa uma instituição
 padrão, fixa e invariável. Através dos tempos a família adotou formas e mecanismos
sumamente diversos e na atualidade coexistem no gênero humano tipos de família
constituídos sobre princípios morais e psicológicos diferentes e ainda contraditórios e
inconciliáveis”.
Partindo de vertentes antropológicas contemporâneas, podemos definir família como sendo
uma unidade grupal onde se desenvolvem três tipos de relações pessoais: aliança (casal),
filiação (pais/filhos) e consangüinidade (ir mãos), e que, a partir dos objetivos genéricos de
 preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a
aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu ao longo do périplo evolutivo do ser
humano funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e
culturais.
 No entanto, o proteimorfismo da família, conforme a consideramos em suas distintas
vertentes histórico-culturais, nos obriga a limitar a universalidade do conceito para tornar
viável a abordagem que aqui nos propomos. Portanto, vamos circunscrever as relações do
adolescente com seu meio sócio-familiar no contexto da denominada família nuclear
 burguesa, herdeira da revolução industrial que sinalizou a modernidade. Esta é a família
como a conhemos nos agrupamentos urbanos do mundo ocidental de nossos dias, onde
mesmo os estratos proletários a tem como modelo de referência no rastro de suas aspirações
de ascensão sócio-econômica. Esta é, sem dúvida, a família na configuração que melhor
nos é conhecida, pois a maioria de nós, estudiosos da adolescência, dela provém. Esta é,
enfim, a família da qual se diz que está hoje “em crise”, face à emergência da nova onda
civilizatória deflagrada pelos avanços tecnológicos contemporâneos.
Quando me refiro à crise da família no mundo atual o faço obviamente levando em conta as
observações feitas anteriormente sobre o significado hodierno da expressão crise, ou seja,
considerando-a um ponto crucial mas indispensável para o desenvolvimento das
instituições humanas. Logo, quando estamos nos referindo à crise da família não estamos
certamente aludindo a uma eventual ameaça de desintegração ou extinção dessa mônada de
nossa estrutura social, que é e continuará sendo a unidade básica da interação humana e que
 persistirá através dos tempos como o fez até hoje, apesar das cassandras que recentementetêm anunciado sua morte. A permanência da instituição familiar ao longo de toda a história
do Homem e o pluralismo de sua configuração estrutural e funcional a legitimam como a
 
unidade primor dial da organização social. Ela não desaparecerá enquanto a espécie
humana não se extinguir, mas estará, como esteve até então, em lenta, por vezes
imperceptível, mas constante renovação. Parodiando LAVOISIER diria que “na família
nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.
E que transformações seriam essas a balizar a configuração da família contemporânea em
sua espiral evolutiva?
Se a família é o ponto de tangência ou intersecção entre a natureza e a cultura, como o
querem os antropólogos, não podemos deixar de conside rá-la, para entendê-la, à luz dos
modelos culturais vigentes.
A utilização de um esquema referencial inspirado em idéias de MARGA RET MEAD,
conhecida antropóloga e estudiosa da adolescência em culturas primitivas, nos introduzirá à
abordagem desta questão.
M. MEAD considera três tipos ou modelos culturais segundo os quais o homem relaciona-
se com seus antepassados ou descendentes.
O primeiro deles corresponde às denominadas culturas pós-figurativas, que extraem sua
autoridade do passado, baseando-a num consenso acrítico e na lealdade inequívoca de cada
geração à que a precedeu. Nessas culturas as crianças e os jovens aprendem
 primordialmente dos adultos e o futuro é visualizado como um prolongamento do passado,
ou seja, o passado dos adultos é o futuro de cada geração. Há nessas culturas uma falta de
“consciência de mudança” e o mito prevalente é o do ancião como fonte do saber e dos
valores a serem preservados e transmitidos às gerações futuras. Este é o modelo cultural
vigente até o advento da era contemporânea e ainda hoje encontrável em agrupamentos
humanos primitivos ou isolados e, portan to, à margem da onda civilizatória desencadeada
 pela revolução industrial.
O segundo desses modelos é chamado pela autora citada de culturas co-figurativas, onde há
uma reciprocidade de influências entre jovens e adultos. Pelo surgimento de novas formas
de tecnologia para as quais os mais idosos carecem de informação, as camadas mais jovens
da população passam a deter uma significativa parcela do poder de influência
 proporcionado pelo conheci mento. Nessas culturas o presente é o que conta e o mito nelas
 prevalente é o do adulto produtivo. Esse é o modelo predominante no mundo atual, e que
 partindo do ocidente tende a globalizar-se na medida em que as civiliza ções orientais são
 por ele co-optadas.
Finalmente temos o modelo das culturas pré-figurativas, onde o futuro não é mais um
simples prolongamento do passado, mas tem sua própria (e desconhecida) identidade,
 prevalecendo as expectativas futuras sobre as realizações passadas. Nessas culturas há uma
exacerbação dos conteúdos revo lucionários e das tendências iconoclastas e podemos
encontrá-las não apenas em nações que estão sofrendo mudanças radicais em sua estrutura
sócio-po lítica, mas também sob forma de “bolsões” culturais em países quer do Oci dente
como do Oriente. Nessas culturas o mito dominante é o do poder jovem.
E no contexto das culturas pré-figurativas que apontam para a civilização do terceiro
milênio que a família do futuro se insere e adquire seus contornos:
uma família onde os adolescentes chamam a si o papel de mediadores entre
 
28 1 CarlosOsorio
Adolescente Ho / 29
seus membros mais idosos e a sociedade em processo de transmutação tecnoló gica,
conforme tentamos reproduzir no esquema gráfico da página inicial.
O eixo em torno ao qual gravitam as transformações por que passa a família contemporânea
em consonância com o processo evolutivo da sociedade humana tem como fonte motriz as
relações de poder entre seus componentes.
A conquista e manutenção de “estados de poder” é inerente à condição humana e matiza
todas as suas manifestações. A família monogâmica preva lente no mundo ocidental deve
suas srcens à afirmação do poder masculino para assegurar filhos de paternidade
inconteste, garantindo, assim, a continui dade hereditária da propriedade privada e dos bens
materiais em geral.
Mas a alienação feminina sob o jugo patriarca! também se alinha nesse tabuleiro onde se
desenrolam os jogos do poder: a esposa abdica do prazer pela posse do campanheiro,
enquanto a concubina exerce seus direitos sobre a província hedonista da qual se tornou
arrendatária.
E fala-se agora numa filiocracia, ou tirania dos filhos, como reação à patercracia de direito
e à matercracia de fato da família convencional. Como, pois, discutir a instituição familiar
sem considerá-la uma instância promotora dos desígnios do Poder?
Parece-me indiscutível que o sentimento de posse envenena as relações humanas. E o
sentimento de posse radica-se nos núcleos narcísicos, arcaicos, da condição humana. Em
cada nova relação afetiva somos levados a reeditar o vínculo possessivo srcinal com a
matriz que nos gerou.
 Não obstante, tenho uma visão otimista dos destinos da família na socie dade
contemporânea. E justamente a tenho por vê-la espelhada na realidade fática da evolução
ontogenética, onde a maturidade emocional é alcançada pelo gradativo abandono das
fantasias onipotentes.
Se pudéssemos traduzir em equações simbólicas a evolução da criança desde o estado de
indiferenciação e fusão com a mãe até a aquisição de sua identidade adulta, assim
 poderíamos esquematizá-la:
O Universo sou Eu - criança no útero da mãe
O Universo existe em função de mim - criança nos primórdios da vida extra-uterina
O Universo é meu - criança ao completar o 1 ano de vida
O Universo existe independente de mim e eu sou parte dele — criança durante o processo
de aprendizagem escolar.
O Universo é algo que compartilho com outros seres vivos — indivíduo no limiar da
condição adulta (adolescente)
Como podemos constatar, a trajetória em direção à identidade adulta pressupõe a paulatinaaceitação das limitações humanas e a renúncia às fanta sias regressivas de posse ou fusão
com o que está além dos limites do Eu.
 
Penso que a maturidade da família alicerça-se em iguais postulados, ou seja, a instituição
familiar tende a evoluir para níveis mais satisfatórios de
interação entre seus membros e uma maior aproximação a sua distinção histó rica na
medida em que gradativamente possamos abrir mão do primado da posse e domínio de uns
sobre os outros no contexto familiar, ou seja, na medida em que aceitarmos que o universofamiliar é uma realidade vivencial compartilhada por todos em relações de reciprocidade e
mutualidade. Para usufruí-lo em toda a sua plenitude é preciso renunciar à fantasia de que
ele, o universo familiar, nos pertence ou só existe para atender nossas necessi dades e
desejos.
Por outro lado, assim como o bem-estar psicossocial do indivíduo está intrinsecamente
vinculado à aceitação de sua finitude, o bem-estar familiar é indissociável da aceitação de
que a família é um grupo fadado a dissolver-se tão logo cumpra suas funções de ensejar a
constituição de novas famílias, estabelecendo um continuum de unidades sociais que
 permitam a perpetuação da sociedade através de suas células-mater. A família que aceita
sua finitude permite, ipso facto, o crescimento individual, a autonomia e a diferenciação de
seus membros e torna-se mais apta a desenvolver-se satisfatoriamente dentro dos limites
 previsíveis de sua ação e existência, ao passo que a família que nega sua transitoriedade e
mantém seus membros aglutinados numa perene disposição à possessividade uns dos outros
deixa de funcionar como um conti nente adequado para a definição e manutenção das
diferenças humanas e com isso estiola seu papel cultural e adoece como organismo social.
A aceitação por parte dos pais de que não são donos do destino dos filhos e que é inevitável
sua perda pelo crescimento e disposição a formar novos e distintos núcleos familiares e a
correspondente aceitação por parte dos filhos de que não podem deter o envelhecimento
dos pais nem assegurar sua onipresença protetora são condições básicas para balizar a
maturidade de um grupo familiar.
 Na obtenção dessas condições reside não só o maior desafio à família contemporânea como
também a promessa de sua maior conquista em seu périplo evolutivo através dos tempos.
A família, como a percebo no limiar desse novo giro em sua espiral evolutiva, será, quiçá,
num tempo não muito remoto, o locus apropriado às mais legítimas manifestações doinstinto gregário do homem; onde a afinida de, e não apenas laços de afiliação ou
consagüinidade, presidirá a relação entre seus membros; onde o sentimento de posse cederá
gradativamente seu lugar ao anseio de doação; onde o contrato cível ou religioso entre os
casais não prevalecerá sobre o livre e espontâneo vínculo amoroso; onde o direito sobre os
filhos não terá primazia em relação ao direito dos filhos; onde, enfim, todas essas
transformações assinalarão o advento da maioridade social da Família, de sorte que o
sombrio retrato dela traçado por Capistrano de Abreu — família como um grupo formado
 por pais soturnos, mães submetidas e filhos aterrorizados — permaneça apenas como a
fugidia lembrança de um arquétipo definitivamente ultrapassado.
A mutação cultural que caracteriza a contemporaneidade transcende, como vimos, a
questão da identidade do adolescente de nossos dias, para
30 / Luiz CanoN Osonio
Adolescente Hoje / 31
 
se inserir no contexto da redefinição dos valores das relações humanas hodier nas no seio
da famflia e da sociedade.
Há na raiz de todo esse processo de mutação sócio-cultural um elemento que consideramos
chave para seu entendimento. Trata-se da concepção do “tempo histórico” como fator
determinante dos modos de organizar-se da sociedade humana ao longo de sua evolução.
FLUSSER, filósofo e teórico da comunicação, numa arguta postulação sobre o modo de
encarar o fluxo do tempo, nos abre novos vértices para a compreensão desta questão.
Vamos, numa livre tradução de suas idéias, relacioná-las com os modelos culturais de M.
MEAD que serviram de paradig mas para a elaboração deste capítulo.
A sociedade, inicialmente organizada sob um modelo “mftico-ma’gico”, onde o tempo é
 presente e o mundo é vivenciado como uma cena dentro da qual o tempo circula, há ceca de
3.000 anos atrás evoluiu para um modelo organizado a partir da consciência histórica, onde
há um tempo linear que corre do passado para o futuro, passando por um ponto imaginário
chamado presente. A consciência histórica nos remete ao passado em busca das srcens de
nosso comportamento presente e nele alicerça os fundamentos da existência social. Seria o
equivalente ao que M. MEAD chamava de “sociedades pós-figu rativas”, onde o modelo
vivencial é fornecido pela geração precedente. Há cerca de 150 anos atrás, segundoFLUSSER, começou a emergir um novo modelo que se fundamentaria no que, à falta de
outra denominação mais adequada, ele batizou de consciência cibernética. O fluxo do
tempo passa a ser exatamente oposto ao tempo histórico, pois segundo essa nova concepção
o tempo não pode fluir do passado rumo ao futuro, já que é o amanhã que vem e não o
ontem. O passado passa, então, a ser uma dimensão incorpo rada ao presente, uma espécie
de memória que sustenta o presente, mas não mais nele residem as pautas relacionais
condutoras da evolução social. Issocorresponde, na expressão de M. MEAD, às
“sociedades pré-figurativas”, onde o modelo vivencial é fornecido pela geração futura; daí
sua afirmação de que os adultos de hoje são como imigrantes no tempo, assim como seus
antepassados o foram no espaço, ou seja, nós estamos num processo de mu dança para um
“novo mundo” que não se localiza noutra latitude e sim noutra concepção temporal (as
utopias doravante seriam, portanto, ucro nias...).
Tanto FLUSSER como M. MEAD admitem, no entanto, que todas essas formas ou estágios
de organização sócio-cultural coexistem na atualidade:
assim como certos agrupamentos primitivos (os pigmeus, por exemplo) vivem ainda um
modelo mítico-mágico e a maior parte dos seres humanos estão imersos no resgate de sua
consciência histórica, há um contingente cada vez maior de indivíduos que “empurrados”
 pelos avanços tecnológicos mergulham nessa civilização prospectiva. A consciência
cibernética, que vem substituir a histórica, é assinalada, segundo FLUSSER, na ciência pelo
abandono do pensamento causal, na arte pela renúncia ao conceito de obra e na política
32 / Luiz Carlos Osorio
 pela separação das categorias ideológicas e a substituição do pensamento histórico pelo
 pensamento programático.
Ora, o que tudo isto tem a ver com nosso adolescente contemporâneo em crise deidentidade?
 
Esta reviravolta na concepção do tempo, não mais vivenciado como um fluxo unívoco do
 passado rumo ao futuro, mas como uma seqüência de elemen tos de “vir-a-ser” capturados
 pelo fugidio registro do agora, sem dúvida causa um abalo sísmico no vínculo de integração
temporal do sentimento de identi dade, cujas conseqüências são imprevisíveis mas
 plenamente detectáveis na confusão vigente entre os adolescentes de hoje quanto à sua
identidade sexual e profissional.
Como esperar que um adolescente faça sua opção profissional a partir das que lhe são
oferecidas pelo sistema e valores da geração precedente quando esta nem sequer cogitava
da multiplicidade de ocupações nascentes com a revolução tecnológica moderna? Como
exigir que um adolescente cinja seu comportamento sexual/afetivo aos padrões da
tradicional famflia burguesa quando hoje experimenta modalidades relacionais nunca
entrevistas por seus antepassados e o futuro da ciência lhe acena com a possibilidade de
desvincular sua função reprodutiva do intercurso sexual com um(a) compa nheiro(a)?
Como vemos, os parâmetros que balizaram as gerações passadas na busca de suas
identidades pessoais e grupais estão sob o influxo de um processo mutativo, que enseja o
surgimento de novos valores humanos, cimentados não mais nas experiências passadas mas
nas expectativas futuras.
Finalizando, ao propor e aceitar como inevitáveis as contradições do momento sócio-
cultural que vivemos e que amplificam as contradições do momento psicossocial que
atravessam os adolescentes em sua trajetória exis tencial, nos colocamos em condições de
assimilar nossas próprias dúvidas e perplexidades ao nos defrontarmos com a tarefa de
tentar explicar o signifi cado transcendente da crise de identidade do adolescente
contemporâneo.
Adolescente Hoje / 33
 
Os grandes dilemas do adolescente
5
1 - O DILEMA EXISTENCIAL
Ao querermos situar o adolescente em sua contemporaneidade, vem-nos à mente com
insistência uma imagem analógica: o mundo de nossos dias, em muitos sentidos, dá-nos a
impressão de estar atravessando uma crise de identidade em tudo e por tudo similar à da
adolescência.
A concepção universalista contida na idéia de que hoje somos os habi tantes de uma
“aldeias global” põe em xeque as identidades nacionais, sócio- políticas, religiosas e
culturais vigentes até agora. A necessidade de integrar-se a humanidade num único e
gigantesco corpo-mente planetário, onde co-parti cipem e convivam todas as contradições
de seus elementos constituintes, asse melha-se à situação do adolescente premido pela
exigência de cristalizar numa identidade adulta todas as identificações e vivências prévias
 prenhes de signifi cados contraditórios e conflitantes. A angústia confusional que a
humanidade experimenta, pelo questionamento de seus valores tradicionais, e a imperiosa
necessidade de reformulá-los face às exigências do atual momento do processo
civilizatório, tem características similares à que apresenta o adolescente quando vê
confrontadas as expectativas conservadoras de seu meio familiar com as demandas da
sociedade competitiva e em mutação cultural onde irá viver sua condição de adulto.
Se focalizarmos a evolução política através dos tempos sob a ótica das transformações do
Poder, poderemos genericamente concluir que a época em que vivemos assinala a sofrida
transição de formas autocráticas de governo oriundas do passado para modalidades de
autogestão democrática que vislum
 bramos no futuro, com todos os movimentos de avanços e recuos que caracte rizam
igualmente o processo de substituição da dependência infantil pela autonomia adulta
durante a crise adolescente.
 Não seria difícil comprovar que o mundo de hoje está atravessando uma crise de identidade
em tudo e por tudo similar à que caracteriza a adolescência. Para objetivar esta afirmação,
tracemos um paralelo entre os eventos da crise adolescente e a crise sócio-política do
mundo atual:
contemporâneo
CRISE ADOLESCENTE
1. Redefinição da imagem corporal consubstanciada na perda do corpo infantil e aquisiçãodo corpo adul to.
 
2. Culminação do processo de sepa ração/individuação e substituição do vínculo de
dependência simbió tica com os pais da infância por relações objetais de autonomia plena.
3. Elaboração do luto referente à per da da condição infantil.
4. Estabelecimento de uma escala de valores ou código de ética próprio.
5. Busca de pautas de identificação no grupo de iguais.
CRISE DO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Redefinição das configurações urba nas, em função do declínio das pólis primitivas
(arquetípolis-cidades que se formaram a partir de um fator geo gráfico, tais como
 proximidade de um curso d’água, cume de uma elevacão, etc..) e do advento das
conurbações urbanas (megalópolis-cidades que coalescem em função de fatores sócio-
econômicos).
Culminação do processo de descolo nização e substituição dos vínculos de dependência
simbiótica com a metró pole por relações estatais de autono mia plena (política e
econômica).
Elaboração do luto referente à perda da condição colonial.
Estabelecimento dos objetivos ideo lógicos nacionais com o conseqüente código político
que o viabiliza.
Busca de pautas de comportamento na comunidade internacional a partir das identidades
regionais (Cf., p. ex., a aliança dos países devedores da América Latina).
34 / Luiz ( O
AdoIe Hoje / 35
6. Estabelecimento de um padrão de luta/fuga com a geração preceden te.
E é nesse contexto que se insere a adolescência contemporânea, com todas as suas dúvidas
e perpiexidades existenciais, suas angústias frente à necessidade de propor-se um projeto de
vida em meio à escalada suicida dos arsenais nucleares, sua desesperança frente à
impossibilidade de reassegu ramento através do mito do futuro predizível, fantasia
 prospectiva que susten tava e norteava as gerações de adolescentes de épocas pregressas.
Esta é, portanto, uma época em que, como em nenhuma outra até então, a sociedade
funciona como uma caixa de ressonância para a crise de identidade adolescente,
amplificando seus elementos conflitivos e bloqueando os meca nismos elaborativos que
 permitem sua resolução.
 No vórtice dessa crise de identidade individual e coletiva geraram-se os movimentos
transgressores da juventude contemporânea, batizada nos anos 50 de “juventude
transviada”, com seus desdobramentos subjacentes: movi mento beatnik (corruptela do
inglês beaten — batido, derrotado, e de um vocábulo eslavo que significa companheiro-
viajante, como na composição da palavra “sputnik”), expressando o caráter pessimista,
depressivo, de uma parcela jovem descrente dopassado e do futuro; movimento hippie,
caracte rizado por um pacifismo radicado na negação maníaca da agressão e na aliena ção
da realidade circunjacente; movimento punk, gerado no seio das camadas proletárias
 
marginalizadas, de características destrutivas, politicamente aliena do, aglutinado sob o
dístico “no future for me... no future for you”. Todos esses movimentos nascidos no seio
das sociedades capitalistas do mundo oci dental e rapidamente “internacionalizados”; todos
denunciando a desespe rança subjacente na sobrevivência e estabilidade dos valores
transmitidos pelas
36 Ltiiz ( O
gerações predecessoras; todos embebidos da dramática angústia confusional que comparece
quando o sentimento de identidade fica à deriva; e todos eles, afinal, fazendo do consumo
de drogas o signo ritualístico de suas cerimô nias de autodestruição.
“Viva e usufrua o dia de hoje porque amanhã você poderá ser a derradeira vítima da
violência urbana ou de uma hecatombe nuclear” — esta é uma mensagem subliminar que
diuturnamente bombardeia a mente dos jovens de todo o mundo, perturbando-lhes a
cristalização de seu sentimento de identi dade e gerando-lhes uma insegurança prospectiva
sem precedentes. E a queda do mito do futuro previsível (que possibilitava às gerações
 passadas vislumbrar seu futuro espelhado no presente de seus genitores), trazendo em seu
 bojo o combustível para todas as explosões e movimentos transgressores da juven tude
contemporânea das nações industrializadas.Como propor-se um projeto de vida em meio à escalada suicida dos arsenais nucleares ou
da ameaça ecocida pela ação predatória do homem “civilizado”? O espectro do “dia
seguinte” paira sobre toda uma geração de jovens, em qualquer parte do planeta.
E o que dizer desse imenso contingente de jovens do Terceiro Mundo, para os quais o dia
seguinte foi antecipado para hoje e onde o fantasma das conseqüências de uma hecatombe
nuclear vem sendo materializado na realidade brutal da fome que lhes corrói as entranhas,
da prostração física que lhes abate o ânimo e da desesperança de que a mera sobrevivência
lhes seja assegurada?
Temos, hoje, no Brasil aproximadamente 30 milhões de adolescentes, dos quais 2/3, ou
seja, 20 milhões, vivem em condições subumanas, nas zonas rurais ou na periferia das
grandes cidades, resumindo-se seu dilema existencial em sobreviver. Sobreviver não ao dia
seguinte a uma hipotética hecatombe nuclear, mas ao dia de hoje onde a miséria não é umasuposição mas uma certeza e onde a violência e o crime aparecem como únicas alternativas
 para nivelar privilégios. Esta visão apocalíptica infelizmente não é simples figura de
retórica, mas está impregnada de realidades tangíveis.
 Num país como o Brasil onde encontramos simultaneamente elementos civilizatórios das
três “Ondas” descritas por A. TOFFLER, não podemos analisar a juventude atual sob uma
ótica reducionista e simplificadora. Temos um imenso Brasil agrícola que apenas agora
toma contato com o processo industrial que caracteriza a segunda Onda; a seu lado, um
significativo contin gente urbano, controlado por uma elite empresarial com sólido respaldo
 políti co-militar, envolvido na manutenção dos mandamentos do processo industrial
(estandardização, especialização, sincronização, concentração, maximização. centralização)
e já contamos com um emergente núcleo da intelectualidade lançando sua cabeça-de-ponte
no futuro, preconizando uma mentalidade eco lógica e criando tecnologia na área de
comunicações. Este é o Brasil — talvez a nação do globo que mais contrastes apresente —
e cuja adolescência por
 
7. Aceitação tácita dos ritos de inicia ção como condição de ingresso ao status adulto.
8. Assunção de funções ou papéis se xuais auto-outorgados, ou seja, consoante inclinações
 pessoais, in dependentemente das expectativas familiares e, eventualmente (ho mossexuais)
até mesmo das impo sições biológicas do gênero a que pertence.
Estabelecimento de um padrão de confronto/distanciamento dos países “subdesenvolvidos”com as nações “ricas” (vide pragmatismo econômi co).
Aceitação tácita dos ritos de iniciação democrática como condição de ingres so ao status de
nação adulta.
Assunção de ideologias sócio-políti cas auto-outorgadas, ou seja, con soante inclinações
nacionais indepen dentemente das expectativas dos po vos de srcem e, eventualmente, até
mesmo das imposições do bloco geo político a que pertencem (vide situa ção de Cuba e
 Nicarágua na América Latina)
Adolescente Hoje / 37
isso mesmo constitui-se num amálgama de todas as tendências encontradas nos jovens das
mais diversas latitudes e culturas.
Em síntese, o dilema existencial dos adolescentes contemporâneos, inde pendentemente da
latitude em que se encontrem ou do sistema sócio-político em que vivam, é este: como
fazer um projeto de vida num mundo parado xalmente comprometido com um projeto de
morte, isto é, como desenvolver-se e arquitetar seu futuro numa sociedade autofágica, que
se imola diuturnamente no altar dos deuses econômicos, configurando o absurdo holocausto
da espécie que se aniquila a pretexto de assegurar sua própria sobrevivência.
2—O DILEMA VOCACIONAL
“Não tem sentido haver vagas para todos nas faculdades; não há campo para tantos
doutores” — Maria Elizabeth L. Marsiglia, 17 anos, estudante
Rev. Veja, 20/02/1 980
Ao considerarmos o dilema vocacional dos adolescentes no Brasil, iremos, ab initio, nos
defrontar com a defasagem entre as aspirações profissionais desses jovens e a realidade domercado de trabalho que lhes é oferecido. Suas expectativas inspiram-se em modelos
alienígenas que estão longe de corresponder às possibilidades sócio-econômicas de nosso
 país, onde há uma enorme pressão social para que os jovens atinjam o estágio universitário,
transformando o ingresso nos cursos de nível superior num gigantesco funil gerador de
frustrações. Por outro lado, o acelerado processo de obsolescência técnica e decomposição
econômica da universidade brasileira gera profissionais cada vez mais incompetentes e
despreparados para ocupar espaços no já escasso mercado de trabalho existente para eles.
E, “Iast but not Ieast”, o processo recessivo da economia do país faz com que muitos desses
 profis sionais de nível superior engrossem as fileiras dos desempregados (ou subem
 pregados) nos anos subseqüentes a seu egresso das universidades.
E kafkiano falar-se de opções vocacionais num país como o Brasil onde as taxas de
desemprego são assustadoras; isso sem se mencionar a elevada proporção de subempregos,entendendo-se por tal as atividades laborativas cuja remuneração não permitem condições
mínimas de subsistência.
 
Como dissemos anteriormente, a imensa maioria dos jovens brasileiros não têm direito a
sua adolescência, considerando-se como tal o processo de gradativo amadurecimento
 psicológico e assunção de crescentes responsa bilidades sociais, pois antes mesmo da
 puberdade já estão engajados na luta pela sobrevivência, ajudando seus pais e irmãos
maiores na árdua e nem sempre exeqüível tarefa de prover os meios para a subsistência do
grupo familiar. Mesmo entre os adolescentes da elite sócio-econômica, que é capaz de
alcançar e cursar uma universidade, a realidade não é mais alentadora:
apenas cerca de 10% dos jovens egressos de nossos cursos universitários conse
guem colocação no mercado de trabalho; os restantes 90%, quando não susten tados pela
família, são obrigados a desistir de suas aspirações vocacionais e disputar com os não-
graduados pelas universidades a escassa oferta de empre gos existente. E até entre os que,
 por seu talento e competência, optam pela atividade liberal sem vínculo empregatício, há
um elevado índice de desistência após alguns anos de frustradas tentativas de afirmação
 profissional. Não é hoje incomum em nosso país encontrarmos jovens advogados como
donos de bares e lancherias, médicos abandonando o estetoscópio e o bisturi para se
dedicarem à produção ou comercialização

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