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1 Revista de educação CEAP - Ano 11 - nº 41 - Salvador, jun/2003 (p. 59 - 66) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a poste- rior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Paulo Freire Como tudo o que faz o ser humano, o ato de ler implica também uma reflexão sobre a prática, os seus fins e os seus métodos. Sabemos que a leitura é de fundamental importância para o estudo, para a cons- trução e reconstrução do conhecimento dos objetos da realidade. Nesse caso, “...ler, como um ato de estudar, não é um simples passatempo, mas uma tarefa séria, em que os leitores procuram clarificar as dimensões opacas de seu estudo” (Freire, 1992:87). Por isso, o leitor não deve assumir uma atitude acrítica nem passiva, memorizando e absorvendo mecanicamente o conteúdo de um texto. Essa atitude não lhe permitirá distinguir se as idéias ex- pressas por um autor são verdadeiras ou falsas. Além disso, a atitude acrítica e passiva no ato de ler leva o leitor a adotar essa mesma atitude diante dos proble- mas e desafios encontrados em sua realidade social. É oportuno afirmar que a leitura pode propiciar ao leitor o aprofundamento de seu conhecimento sobre o mundo em que vive ou pode aliená-lo em relação a esse mundo, dependendo da atitude que ele assuma no ato de ler. Para que o educando venha a compreender, sem distorções, a realidade que o cerca, despertando-lhe uma visão crítica, franca, é preciso que se estabeleça uma ponte entre o que ele aprende nos livros e sua vivência fora da escola. É preciso dar-lhe subsídios para que o próprio educando vá buscar soluções que no cotidiano se mostram impraticáveis. Assim, afirma Miguel Ar- royo (1996: 11), “é preciso alargar nossa visão de como as pessoas se educam e aprendem também fora da es- cola. Há uma pedagogia além da nossa pedagogia”. É possibilitando que o educando compare, ob- serve, questione o mundo, o meio através do concreto, que ele se tornará uma pessoa capaz de ver além das superfícies lisas e quase sempre incoerentes. Se ao ser humano é dado produzir seus mun- dos, tanto na dimensão material como institucional, é porque o ser humano é dotado da capacidade de dar sentido à sua existência, produzir idéias e ideais (valo- res) a respeito do seu viver, desde as manifestações mais comuns às mais grandiosas. Trabalhar intensamente com a leitura, aprenden- do a detectar as articulações que as formam é, princi- palmente, elaborar e refletir as leituras já feitas, procu- rando transformá-la num processo cada vez mais cons- ciente e preciso. No contato sensorial e táctil (Calvino, 2000) do leitor com livro é que se identificam e se resolvem os problemas que a leitura nos propõe. Para começarmos a desenvolver o tema por nós proposto neste artigo, leitura, precisamos delimitar o seu múltiplo conceito. Podemos afirmar, tendo com o parâmetro Paulo Freire, que leitura é o meio de que dispomos para adquirir informações e desenvolver re- flexões críticas sobre a realidade e o mundo em que estamos inseridos. O ato de ler é geralmente interpretado como a decodificação daquilo que está escrito. Dessa forma, ler consiste num conhecimento baseado principalmen- te na habilidade de memorizar determinados sinais grá- ficos (as letras). Uma vez adquirido tal conhecimento, a leitura passa a ser um processo mecânico, prejudica- do apenas por limitações materiais (falta de luz ou mau estado do impresso, por exemplo) ou por questões lin- güísticas (palavras de significado ignorado ou frases muito complexas). Refletir sobre o ato de leitura é mais que decodifi- car palavras. Ler é, portanto, um processo contínuo que se confunde com o próprio fato de se estar no mundo, entendido como biológico e social. Ler não é decifrar palavras, mas consiste num exercício de compreensão que, talvez pela sua complexidade, se torna um fator atrativo envolto num mundo cheio de mistérios, até por- que o ato de ler é, antes de tudo, compreender o mundo. A sociedade de que somos parte produz cultura. Essa cultura é um conjunto complexo e dinâmico que abrange desde rituais mínimos de consciência até os O ato de ler * Professor da SEEDF, pesquisador, especialista em Psicopedagogia e mestrando em educação da UFG. E-mail: teoeducativo@bol.com.br Irismar Oliveira Santos-Théo* 2 Revista de educação CEAP - Ano 11 - nº 41 - Salvador, jun/2003 (p. 59 - 66) O ato de ler - Irismar Oliveira Santos-Théo aprofundados conhecimentos científicos e técnicos. Desse conjunto fazem parte valores que aprendemos a associar às coisas e às ações, como também idéias so- bre a realidade que, muitas vezes, nos levam a vê-la de uma forma irreal. Aprender a ler o mundo (adquirir a “inteligência do mundo”), conforme Paulo Freire, sig- nifica conhecer esses valores e essas idéias na sua inte- rioridade, significa, também, pensar sobre eles, desen- volvendo uma posição crítica e própria (p. 23). Aprendemos a ler a realidade em nosso cotidiano social. Desde criança, identificamos atitudes agressi- vas, diferenciando-as das atitudes receptivas. A cons- ciência social nos ensina a perceber quais lugares de- vemos freqüentar, quais comportamentos devemos adotar ou evitar em determinadas situações. Aprende- mos a ler em nosso grupo social interiorizando os pe- quenos rituais estabelecidos para as relações sociais. Aprendemos também que somos permanentemente “li- dos”, o que nos leva a ter um bom relacionamento como uma forma de linguagem, capaz de agradar e despertar simpatia ou agredir e demonstrar indiferença. Esse aprendizado social inclui também formas de pensar a realidade. Aprendemos a pensar, por exemplo, que é necessário adquirir conhecimentos técnicos e ci- entíficos que nos permitam ingressar no mercado de forma vantajosa. O aprendizado deve estar voltado para o exercício da cidadania ativa, no aspecto político, le- vando o educando a participar e a tomar suas próprias decisões, em outras palavras, ter autonomia de pensa- mento. No aspecto social, significa compreender-se como pessoa que possui direitos e deveres dentro da sociedade e, no campo cultural, implica em levá-lo a respeitar os valores e as diferentes expressões cultu- rais presentes no meio. Aprendemos a ver na infância e na adolescência períodos de vida destinados principalmente à prepara- ção da vida adulta. Aprendemos muitos outros valores sociais que nos criam hábitos de consumo e posições perante a vida. A vida social, dessa forma, não se limita a nos ensinar a ler a realidade, mas chega ao ponto de orientar essa leitura num sentido mais ou menos perma- nente. Somos levados a adotar determinadas expectati- vas e a satisfação dessas é vista como forma de felicida- de. Portanto, o mundo social é uma troca permanente entre o leitor e a leitura. Nossa cultura nos transfere conhecimentos sobre a realidade e formas de pensá-la. Aprender a ler o mundo é apropriar-se desses valores de nossa cultura. É, também, submetê-los a um processo permanente de questionamento do qual participa nossa capacidade de dúvidas, de reflexão e de avaliação. Entende-se, assim, que ler é apropriar-se de um produto cultural, gerado intencionalmente por um ou mais agentes históricos. O ato de ler expande o leque de experiências do ser enquanto criança ou adulto, per- cebendo novas formas de conceber o mundo e a si mesmo. São múltiplas as possibilidades de abertura de horizontes quando o ser se apropria do ato de ler. A leitura não é uma atividade que apenas aciona as operações do intelecto. Um texto é também recebido no nível da sensibilidade, da sensorialidade, da afetividade, da emoção. Mesmo que um leitor não consiga formali- zar a sua compreensão do texto, isso não significa que ele não tenha se apropriado de algo do processo de leitu- ra. Assim, o ato de ler tende a formar pessoasabertas ao intercâmbio, direcionadas para o futuro, dispostas a va- lorizar o planejamento e aceitar princípios técnicos e ci- entíficos. Esse tipo de pessoa é o que permite um maior e mais eficaz desenvolvimento social. São abertas às ini- ciativas comunitárias de progresso e melhoria social Afinal, será essa a única maneira de organizar a vida? Será esse o único mundo que somos capazes de fazer? Não será possível pensar a humanidade em ou- tros termos? Esse exercício da dúvida é sempre bené- fico, pois nos oferece condições de superar as leituras mais imediatas da realidade, atingindo leituras impor- tantes para quem se preocupa com a saúde social e física do ser humano. Tal situação propõe o surgimen- to de vários tipos de leitura. Tipos de Leituras Segundo Calvino (2000), a primeira leitura que se faz de qualquer texto é a sensorial, isto é, o leitor, ao tomar em suas mãos uma publicação, trata-a como objeto em si, avaliando seu aspecto físico e a sensação táctil que desperta. Essa atitude é um elemento importante do nosso relacionamento com a realidade escrita. Observe o cui- dado gráfico com que são apresentadas as revistas nas bancas: cores, formas e embalagens procuram atrair o interesse do comprador. Com os livros acontece a mes- ma coisa: basta entrar numa livraria para perceber que todos aqueles volumes expostos e dispostos constitu- em uma mensagem apelativa aos nossos sentidos. Além disso, há quem sinta muito prazer em possuir livros, acariciando-os e exibindo-os como objetos artísticos: são os bibliófilos. Como exemplo de bibliófilo, pode- mos citar José Mindlin, um apaixonado pelo livro que, além de adquiri-los onde quer que estejam, é um leitor que “ganha o dia” equilibrando desejo e mania; a mania saborosa de manusear e ler os livros que tem, numa relação de “amor incurável”. Segundo Mindlin (2002), o livro é “um mágico artefato (...) que nos abre portas, fantasias e mundos”. Isso reforça uma das muitas conclusões sobre o ato de ler, a idéia de que o fascínio pela leitura nos leva a entender que “a vida de toda pessoa é única, unifor- me e compacta como um cobertor enfeltrado” (Calvi- no, 2000: 111) A leitura sensorial do texto escrito é uma primei- ra etapa do nosso processo de descodificação. À leitu- O ato de ler - Irismar Oliveira Santos-Théo 3 Revista de educação CEAP - Ano 11 - nº 41 - Salvador, jun/2003 (p. 59 - 66) ra sensorial costuma-se seguir a chamada leitura emo- cional, a que se usa a sensibilidade. É quando passa- mos conhecimento do texto propriamente dito, percor- rendo as páginas e travando contato com o conteúdo. Leitura, então, gera emoção. A história pode ser emocionante ou tediosa, o artigo ou matéria pode fazer rir ou irritar, os poemas podem ser fáceis ou difíceis de ler, agradáveis ou complicados e aborrecidos. Normal- mente, a leitura emocional conduz a apreciações do tipo “gostei” / “não gostei”, sem maiores pretensões analíti- cas, é uma experiência descompromissada, da qual participa nosso gosto e nossa formação. A leitura emocional costuma ser criticada, sendo muitas vezes chamada de superficial. Essa avaliação tem muito de racionalismo e nem sempre é verdadeira. Quando optamos por ler um romance de ficção cientí- fica, por exemplo, por pura distração, podemos entrar num universo cujas relações nos apresentam uma rea- lidade diferente da nossa, capaz de nos levar, sem gran- des floreios intelectuais, a pensar sobre o nosso mun- do. O mesmo pode acontecer com revistas em quadri- nhos e outros textos considerados “menos nobres” e que, na verdade, sugerem e possibilitam profundas re- flexões. Isso não significa, no entanto, que não há pu- blicações que investem na nossa vontade de descansar a cabeça, oferecendo-nos um elenco de informações e idéias que reforçam os valores sociais dominantes. A leitura sensorial e a emocional fornecem sub- sídios importantes para a realização de um terceiro tipo de leitura, a intelectual. Essa leitura não deve ser vista como uma forma de abordar os textos, reduzindo-os a feixes de conceitos incapazes de despertar qualquer prazer. Ela começa por um processo de análise que pro- cura detectar a organização do texto, percebendo como ele constitui uma unidade e como as partes a relacio- nam para formar essa unidade. É essa análise que te- mos praticado em nosso livro: ela é muito importante para facilitar sua compreensão dos mecanismos de fun- cionamento de língua escrita. E esse trabalho pode des- pertar muito prazer intelectual. A leitura intelectual não se limita a analisar os textos. Na realidade, o que se fundamenta é a consci- ência permanente de que todo texto é um ato de comu- nicação, respondendo, portanto, a um projeto de quem o produz. Em outras palavras: a leitura é intelectual quando o leitor nunca perde de vista o fato de que aqui- lo que está lendo foi escrito por alguém que tinha pro- pósitos determinados ao fazê-lo. Procurar detectar es- ses propósitos, juntamente com a informação transmi- tida e com a estrutura do texto, é fazer uma leitura intelectual satisfatória. Essa proposta de leitura intelectual refere-se prin- cipalmente a textos informativos, como os que encon- tramos em jornais, revistas, livros técnicos e didáticos. São textos que requerem uma abordagem crítica per- manente, pois apresentam sempre traços que indicam as intenções de quem escreve e publica. Também os textos publicitários devem ser incluídos nesse grupo, bem como aqueles escritos para apresentação oral (rá- dio ou audiovisual, televisão). É importante ressaltar que a leitura intelectual implica uma atitude crítica, voltada não só para a compreensão do “conteúdo” do texto, mas principalmente ligada à investigação dos pro- cedimentos de quem o produziu. Conclusão Portanto, conclui-se que a leitura deve ser con- siderada uma atividade de construção dos sentidos de um discurso do “eu” com o “outro”, mediatizados pelo mundo. O ato de ler não pode ser visto, simplesmente, como uma atividade receptiva. A sua compreensão está ligada a significações e à força que elas assumem no uso comunicativo. Do ponto de vista do ensino, a leitu- ra passa a ser mais do que a reconstrução do significa- do de um texto, ou seja, ler passa a ser visto como processo de reconstrução de significados que interli- gam um texto ao conhecimento e às experiências ante- riores, à intenção e ao propósito e às expectativas dos educandos. Tal habilidade não estará somente ligada às estratégias cognitivas individuais dos educandos, mas ao compromisso social dessa prática. Pois, cada ser humano, estudante ou não, traz para o ato de ler sua bagagem existencial e social. Referências ARROYO, Miguel. Da escola carente à escola possível. 7a. ed. São Paulo: Loyola, 1996. CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. (Trad.Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 41a. ed. São Paulo: Cortez, 2001. _______. Educação como prática de liberdade. 20 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1992. MINDLIN In: http:/www.oglobo.com.br/suplementos/prosae- verso>
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