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[Artigo] Novos caminhos para a questão das drogas - Maria Lúcia Karam

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NOVOS CAMINHOS PARA 
A QUESTÃO DAS DROGAS 
A criminalização de condutas relativas a determinadas 
drogas qualificadas como ilícitas, a ênfase dada à repressão 
penal como forma de controle e combate à sua disseminação 
constituem o centro da atual política de drogas, traduzindo 
valores que, não obstante seu distanciamento da realidade, 
encontram-se profundamente enraizados no conjunto de nos 
sas sociedades. 
Talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente 
se manifeste a enganosa publicidade do sistema penal, apre 
sentado como um instrumento capaz de solucionar conflitos, 
como o instrumento capaz de fornecer segurança e tranquili-
dade, através da punição dos autores de condutas que a lei 
define como crimes. 
O encobrimento das razões históricas, económicas e polui 
cas determinantes da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, 
distinção que pouco ou nada tem a ver com a maior ou menor 
potencialidade de dano de umas e outras e que envolve as 
Maria Lúc ia K a r a i u 
drogas qualificadas de ilícitas numa capa de mistério e tanta 
sia; o superdimensionamento do problema, tratado sob uma 
ótica definida nos países centrais, quando existem, nos países 
periféricos, problemas muito mais sérios em matéria de saúde 
pública; a utilização de fatores como o desenvolvimento de 
grandes organizações criminosas e a violência por elas gera-
da, que são apresentados como consequências da dissemi-
nação das drogas; tudo isto acaba por criar um clima de 
pânico, de alarme social, seguido pela demanda de mais 
repressão, de maior ação policial, de penas mais rigorosas, 
como costuma acontecer em situações que comovem e assus-
tam o conjunto da sociedade. 
A intervenção do sistema penal aparece como a primeira 
alternativa, como a forma mais palpável de segurança, como 
a forma de fazer crer que o problema estará sendo soluciona-
do. 
E talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente 
se manifestem as informações falsas, capazes de induzir á 
errada busca da intervenção do sistema penal, que, aqui, mais 
do que ser apenas uma solução simplista e aparente, é, na 
verdade, uma fonte de maiores e mais graves conflitos, um 
paradoxal estimulante de situações delitivas. 
/. Saúde e Drogas. A distinção entre drogas 
lícitas e ilícitas 
Colocando-se, como de fato deve ser colocada, a saúde 
como centro de referência no tratamento da questão das 
drogas, de início, se poderá perceber a desmesurada impor-
tância que se dá a essa questão nos países periféricos. 
I)c Crimes , fonas c Fantasias 
longe de atingir a dimensão dos problemas norte-ameri-
canos ou europeus, a importância das drogas, no quadro da 
saúde pública, no Brasil, como nos demais países de nossa 
margem, é efetivamente suplantada por uma situação trágica, 
em que não conseguimos resolver sequer problemas 
extremamente simples, como o controle de doenças preveni-
veis por vacinas (no Brasil, segundo dados do UNICEF, 
morrem cerca de 8.600 crianças, anualmente, de doenças 
como tétano, difteria e até sarampo). (1) 
Além disso, 30% das crianças ate 5 anos, em nosso pais, 
sofrem de desnutrição, ao mesmo tempo em que o menor 
índice de mortalidade infantil, que conseguimos registrar, nas 
regiões sul e sudeste (40 e 41 óbitos, respectivamente, por 
1.000 nascidos vivos, contra 89 na região nordeste), ainda é o 
dobro dos índices registrados nos países centrais ou em Cuba. 
(2) 
Por outro lado, â incidência de doenças, como a hanse 
níase, a malária, a esquistossomose, a doença de Chagas, ha 
muito controladas em outros países, vem se somar a ameaça 
do cólera, ameaça particularmente agravada pela falta de 
saneamento básico, bastando pensar que menos da metade dos 
4.425 municípios brasileiros - 47,28% - possui rede coletora 
(1) Dados levantados pelo U N I C E F , em 1989. Veja-se matéria publicada na 
Folha de São Paulo, em 08/05/90. 
(2) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, rcali/ada 
em 1989, pelo I B G E e pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição do 
Ministério da Saúde. Veja-se matéria publicada no Jornal do Brasil em 03/06/ 
90. ' 
24 Maria Lúcia K a r a m 
de esgotos. (3) Se lembrarmos, ainda, das notórias deficiên-
cias do atendimento médico-hospitalar, não haverá como 
negar que a preocupação com os efeitos do abuso de drogas 
não se coloca, propriamente, como uma prioridade neste 
campo da saúde. 
Mas, mesmo ao se tratar da questão especifica, a substi-
tuição da fantasia pela realidade irá demonstrar que a substân-
cia que pode ser vista, efetivamente, como um problema, 
muito mais sério do que os eventualmente provocados por 
qualquer droga qualificada como ilícita, é o álcool. 
Pesquisa realizada em 1989, pelo Centro Brasileiro de 
Informações sobre Drogas e Psicotrópicos da Escola Paulista 
de Medicina, constatou, num universo de 67.478 pessoas 
internadas em hospitais psiquiátricos, públicos e privados, de 
todo o Brasil, com problemas desta natureza, 64.000 - ou seja, 
94,8% - internações relacionadas com o abuso de álcool e 
apenas 3.478 relacionadas com drogas qualificadas como 
ilícitas, o que levou a coordenadora da |>csquisa, Beatriz 
Carlini Cotrim, a afirmar que "apesar de as mortes por 
overdose de cocaína terem chocado muito a população 
ultimamente, o grande problema brasileiro continua sendo o 
consumo de álcool". (4) 
Mas, às perturbações psíquicas, hão que se somar, sejam 
as doenças físicas diretamente causadas pelo abuso do álcool, 
sejam as mortes e lesões a ele associadas, notadamente na 
(3) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobro Saneamento Básico , reali-
zada em 1989, pelo I B G E . Veja-se matéria publicada no Jornal do Brasil , em 
18/05/91. 
(4) Veja-se matéria publicada na Folha de São Paulo, em 27/01/91 
De Crime*, Penas e Fantasias 25 
circulação de veículos, em espancamentos domésticos, ou 
brigas em bares e outros locais abertos. 
A substituição da fantasia pela realidade demonstra que o 
álcool pode debilitar, ferir ou matar incomparavelmente mais 
do que qualquer droga qualificada como ilícita, afirmação 
válida até mesmo para outros países, onde o consumo abusivo 
de drogas ilícitas atinge dimensões bem maiores do que as que 
se podem constatar em países como o nosso. Na Espanha, por 
exemplo, o álcool constitui a terceira causa de morte, seguindo 
se às enfermidades cardiovasculares e ao câncer, atribuindo 
se a seu consumo 35% dos acidentes de trânsito, a quarta parte 
dos suicídios e mais de 15% dos acidentes no trabalho. (5) Na 
França, o numero de mortes resultantes do alcoolismo é 
estimado em 80.000 por ano, contra 120 causadas pelo abuso 
de drogas qualificadas como ilícitas. (6) 
Mas, mais do que a maior gravidade da repercussão social 
dos problemas causados pelo abuso do álcool, é o próprio 
conceito de drogas que não deixa dúvida quanto á artifieiali 
dade da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, quanto ao 
discurso encobridor das razões históricas, económicas e 
políticas, que, por sobre as preocupações explicitas com a 
saúde pública, efetivamente determinam a qualificação de 
umas e não de outras drogas como ilícitas. 
(5) Veja-se Carlos Gonzalez Zorrilla, Drogas y Cuei , l ión Cr imina l , in LI 
Pensamiento C r i m i n o l ó g i c o I I , Ediciones Península, Barcelona 1983 os 
182/183. ' ' 1 ' 
(6) C l . afirmação do Procurador da República, Georges Apap, citado por Alain 
Delpirou e Alain Labrousse, in Coca Coke - PnKlutorts, Consumidores, 
I raheantes e Governantes, Editora Brasiliense, São Paulo, 1988. p. 300 
26 Mar ia Lúc ia R a r a m 
A partir do que genericamente estabeleceu a Organização 
Mundial da Saúde - droga é toda substância que, introduzida 
num organismo vivo, pode modificar uma ou várias dc suas 
funções - desenvolveram-se definições um pouco mais preci-
sas, sendo comumente aceito o conceito de droga comotoda 
substância que, amando sobre o sistema nervoso central, 
provoque alterações das funções motoras, do raciocínio, do 
comportamento, da percepção ou do estado de ânimo do 
indivíduo, podendo produzir, através de seu uso continuado, 
um estado de dependência física ou psíquica. (7) 
Ainda de acordo com as definições estabelecidas pela 
Organ ização Mundial da Saúde , pode-se entender por 
dependência psíquica o impulso psicológico que leva ao uso 
contínuo da substância, para provocar prazer ou evitar o mal-
estar provocado por sua falta, caracterizando-se a dependên-
cia física pelo estado fisiológico, manifestado por sintomas 
dolorosos, conhecidos como s í n d r o m e de a b s t i n ê n c i a , 
decorrente da interrupção da ingestão regular da substância 
em questão, também devendo se destacar o fenómeno da 
tolerância, entendido como o estado de adaptação orgânica, 
caracterizado pela necessidade de utilização de doses cada 
vez maiores de uma droga, para manutenção do efeito inicial. 
Dentro destes conceitos, não há como excluir o álcool, 
medicamentos (barbitúricos e outros tranquilizantes, ansio-
líticos, anfetaminas e produtos afins, como moderadores do 
apetite), o tabaco, ou até mesmo o café, o chá e bebidas como 
(7) Veja-se conceito análogo no trabalho de Carlos Gonzalez Zorrilla, op. cit., 
p. 179 
De Crimes , Penas e Fantasias 21 
a Coca Cola (8) da definiçãode drogas, sendo de se considerar 
que muitas destas substâncias, livremente comercializadas, 
produzem inclusive dependência física (como é o caso do 
álcool e dos barbitúricos e outros tranquilizantes), enquanto 
drogas qualificadas como ilícitas não têm tal capacidade 
(como e o caso da cocaína, ou do LSD e outros alucinógenos). 
(9) 
Esta divisão artificial das drogas em licitas e ilícitas, como 
já mencionado, envolve estas últimas numa capa de mistério 
e fantasia, que as associa ao desconhecido e ao temido, dando-
lhes uma conotação um tanto satânica, bem ao gosto da 
demonologia dos séculos X V I e X V I I (10), o que contribui, de 
forma decisiva, para impedir uma discussão mais racional cia 
questão. 
Muitas ações pedagógicas, dirigidas aos jovens e domina-
das por esta visão fantasiosa, acabam por produzir efeitos 
opostos a suas finalidades, pela falta de credibilidade de 
discursos que ignoram a artificialidade da distinção entre 
drogas lícitas e ilícitas (o mesmo pai que se aterroriza com 
a descoberta de um cigano de maconha entre os pertences 
do filho é capaz de tomar várias doses de uísque na frente do 
(8) Sobre a fórmula original da Coca-Cola, à base de cocaína, cafeína e extralos 
da noz de cola, misturados com água e gás carbónico, vejam-se os comentários 
de Alain Delpirou e Alain Labrousse, cm Coca Coke.. . , op. cit., ps. 45/46 
(9) Sobre a ação, a intensidade dos efeitos e alguns dos riscos mais sérios tias 
diferentes drogas, veja-se o quadro sinóptico elaborado por J. Camí Morell (in 
Cuadernos de Pedagogia, num. 73, Barcelona, 1981) e reproduzido por 
Gonzalez, no trabalho citado, ps. 180/181. 
(10) A respeito, veja-sc o interessante artigo de Nilo Batista, A Sentença conto 
Exorcismo, in Punidos e Mal Pagos, Editora Revan, Rio de Janeiro, 1990. 
28 Maria Lúcia R a r a m 
mesmo), que desprezam as diferenças de natureza e dos 
efeitos das diversas drogas (maconha, ou cocaína, ou LSD, ou 
heroína são substâncias efetivamente bem diferentes), que 
cultivam a fantasia do chamado fenómeno da escalada 
(a visão, divorciada da lógica mais elementar, da maconha 
como degrau para o consumo de drogas pesadas), ou que 
confundem o consumo eventual com a dependência ou a 
degeneração física e psíquica. Tais discursos contradizem a 
experiência de seus destinatários, que, tendo experimentado, 
notadamente a maconha, sem sofrer os efeitos destrutivos 
anunciados, acabam por desprezar recomendações sobre os 
perigos efetivos do abuso de drogas, especialmente as mais 
pesadas. 
Por outro lado, a visão moralista, que apresenta o uso das 
drogas ilícitas como um vício condenável , degradante, 
frequentemente ligado a fantasias sobre orgias sexuais (no 
Estado Novo, a lei penal continha dispositivo agravador da 
pena se, ao uso de drogas, se somasse o sexo), traz como 
consequência o forte poder atrativo, característico dos "praze-
res proibidos". 
Além do abandono destes estereótipos, uma discussão 
racional da questão das drogas passa, antes de tudo, pela 
desmistificação da visão de que droga está sempre ligada a 
problema. 
E preciso ter e deixar claro, até para não cair num discurso 
contraproducente, que o uso de drogas pode ser apenas 
prazeiroso. Nem todos os efeitos primários de tais substâncias 
são negativos, dependendo, não só da natureza farmacológica 
de cada uma, mas de uma série de outros fatores, como a 
l)c Crimes , Penas c Kanla^sias 
quantidade ingerida, as circunstâncias e a frequência em que 
se dá o consumo, a relação estabelecida entre o consumidor e 
o produto, etc. Trabalhando-se sem a distinção artificial entre 
drogas lícitas e ilícitas, isto pode ser facilmente percebido, 
quando se pensa no uso moderado do álcool, no efeito 
unicamente prazeiroso e positivo que se pode extrair, por 
exemplo, de uma taça de um bom vinho na refeição, ou de uma 
cerveja bem gelada na saída da praia. 
O abuso, ou uso imoderado, é que constitui e evidencia um 
problema, pois, aqui, como em outros campos, a quantidade 
p(xle dar o salto, que a transforma em qualidade. Mas, e 
sempre bom ter claro que, como em outros aspectos da vida, 
mais do que constituir um problema em si, o excesso, levando 
ao abuso e â drogadição (seja por drogas lícitas ou ilícitas), e 
um sintoma, que, como tal, também deve ser tratado, impou 
dose a necessidade de investigação e tratamento do proble 
ma evidenciado - ou dos problemas evidenciados por es 
te excesso. 
Vaillant ressalta, inclusive, o pequeno papel exercido pela 
desintoxicação no tratamento das adições, dado que considera 
o abuso de drogas como sintomático de problemas subja-
centes. (11) Na mesma linha, Grinspoon e Bakalar afirmam 
que, mais importante do que os aspectos do tratamento da 
própria droga é o estabelecimento de uma relação terapêutica 
para o tratamento da depressão subjacente ou da desordem de 
(11) G . Vaillant, The Harvard guide tu Modem Psvchiatry, liarvard 
Univcrsity Press, 1978, p. 576. 
30 M a r i a Lúc ia K a r a i n 
caráter, ou de ambas, ressaltando que, se não se seguir com 
um tratamento adequado, após ter o usuário ficado livre da 
droga, o retorno à droga inicial, ou a outra com efeitos 
similares, será quase certo, na medida em que aquela aparece 
comprovadamente, para ele, como um meio encontrado para 
o "ajustamento" de seus problemas preexistentes. (12) 
Naturalmente, a inves t igação e o tratamento destes 
problemas pré-existentes, evidenciados pelo excesso, pela 
drogadição, passam, não só pelos aspectos individuais, mas, 
sobretudo, pela consideração de seus condicionamentos so-
ciais, políticos, económicos e culturais. 
2. Drogas e sociedade. Alguns aspectos 
históricos, políticos e económicos 
O discurso universal e atemporal dominante, encobrindo 
os condicionamentos (sociais, pol í t icos , e c o n ó m i c o s e 
culturais) historicamente determinantes das condutas relativas 
a drogas e das formas de seu controle, constitui um dos fatores 
mais expressivos da desinformação e consequente criação de 
falsos estereótipos e falsas soluções. 
O caminho da drogadição passa, muitas vezes, pela 
(12) L . Grinspoon e J . Bakalar, Comprehensive Textbook of Psychialry, 111 
ed., Williams & Wilkins, Baltimore/London, 1980, ps. 1614/1629. 
l)c Cr imes , Penas e Fantasias 11 
necessidade de atendimento ás exigências sociais, ou p e l a 
própria necessidade de sobrevivência. 
Basta pensar, de um lado, na mulher levada a usar drogas 
moderadorasdo apetite, para emagrecer e, assim, poder 
atender às exigências de uma moda culturalmente imposta; 
ou no executivo, que alterna os estimulantes durante o dia e os 
soníferos à noite, para suportar o ritmo de trabalho e a 
competição; ou, ainda, nos trabalhadores funcionando, em 
linhas de montagem, à base de café e álcool. (13) 
Ou, transportando-se para o período colonial, em nossa 
América Latina, basta lembrar dos índios comprando folhas 
de coca, em lugar de comida, com as escassas moedas obtidas 
em troca de seu trabalho. 
Mas, pense-se também, hoje, no Brasil, na evidente rela 
ção entre a fome, as precárias condições de vida e a cachaça 
(mais barata do que o feijão), a fome, o abandono das crianças 
de rua e a prática de cheirar cola, substitutivos alimentares 
para o corpo e para o espírito, ao trágico preço da abreviação 
da vida. 
E essa prática de cheirar cola, não atingindo os filhos das 
classes dominantes ou das classes médias, tampouco atinge o 
mesmo nível de preocupação que são capazes de causar o uso 
de maconha, ou o uso de cocaína, ou até mesmo o uso de 
heroína. 
(13) Vcja-se Gonzalez, op. cit., p. 193. 
32 M a r i a Lúcia R a r a m 
Mas, não é só este o dado principal desta preocupação 
diferenciada. Aqui , como acontece em outros campos, se-
guem-se também as linhas importadas dos países centrais. 
A tendência de nossos países latinoamericanos, no entanto, 
não é de se tornarem grandes centros consumidores de maco-
nha, cocaína e, muito menos, heroína. Aqui também, a ordem 
económica internacional nos reserva o papel de países produ-
tores e exportadores de matérias-primas. Da mesma forma 
que nossos mercados internos pouco desenvolvidos geram a 
lógica do produzir para exportar matérias-primas e alguns 
produtos acabados, para as drogas ilícitas, a mesma lógica 
funciona. Não somos nós, latinoamericanos, os alvos do 
consumo, até porque, como consumidores, não nos e dado o 
mesmo potencial dos habitantes do Norte, para gerar os 
fabulosos lucros que presidem este mercado. 
Mas, nem sempre as drogas foram geradoras de grandes 
lucros (como nem sempre foram geradoras de grandes pro 
blemas). 
Abundantes informações históricas evidenciam que os 
povos antigos conheciam e utilizavam drogas em seus ritos 
religiosos, em suas práticas medicinais, ou em atividades 
bélicas, artesanais, na caça e na pesca. Beristain lembra que, 
na China, 3.000 anos antes de Cristo, tratados farmacológicos 
descrevem a cannabis e seus efeitos, o mesmo sucedendo na 
índia, no Egito e na Grécia Antiga, também em relação ao 
ópio , sendo tais substâncias, da mesma forma, conhecidas e 
utilizadas pelos persas, pelos árabes, pelos romanos, pelos 
I)c Cr imes , l't nas e Fantasias JJ 
turcos, ou ainda pelos indígenas da America Latina na época 
pré-colombiana. (14) Não tinham as drogas, então, um valor 
económico. 
E somente com o advento do capitalismo que as drogas vão 
adquirir valor de troca, vão se transformar em mercadorias, 
organizando-se sua produção e distribuição como atividade 
económica, que vai disseminar o consumo e gerar grandes 
lucros. 
São igualmente abundantes as informações históricas, que 
dão notícia do papel desempenhado por tal mercadoria no 
processo de acumulação legal do capital, nos séculos X V I a 
XIX. 
Lembra também Beristain, reproduzindo a narrativa de 
Galeano, que, na América da colonização espanhola, sequer 
havia objeçào moral à presença das drogas neste processo de 
acumulação primitiva do capital, não se furtando a Igreja de 
cobrar seu dízimo sobre as plantações de coca. (15) 
Vale reproduzir, aqui, as próprias palavras de Galeano: 
"Os turistas adoram fotografar os indígenas do 
altiplano vestidos com suas roupas típicas. Mas 
ignoram que a atual vestimenta indígena foi im 
(14) Antonio Beristain,S J . , Dimensiones Histórica, F c o n ú m i c a y Politica de-
las Drogas cn la C r i m i n o l o g i a C r i t i c a , in Cuest ioncs Penales y 
C r i m i n o l ó g i c a s , Reus, Madrid, 1979, p. 528. 
(15) Beristain, op. cit., p. 535. 
34 Maria Lúcia K a r a m 
posta por Carlos I I I em fins do século X V I I I . Os 
trajes femininos que os espanhóis obrigaram as 
índias a usarem eram calcados nos vestidos regio-
nais das camponesas da Extremadura, Andaluzia e 
país basco, e o mesmo ocorre com os penteados das 
indígenas, repartidos no meio, impostos pelo vice-
rei Toledo. Não acontece o mesmo, em troca, com 
o consumo de coca, que não nasceu com os espa-
nhóis; já existia nos tempos dos incas. A coca se 
distribuía, entretanto, com moderação, o governo 
incaico tinha o monopólio e só permitia seu uso 
com fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. 
Os espanhóis estimularam intensamente o con-
sumo de coca. Era um negócio esplêndido. No 
século X V I , gastava-se tanto, em Potosí, em roupa 
europeia para os opressores como em coca para os 
índios oprimidos. Quatrocentos mercadores es-
panhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca; nas 
minas de Potosí, entravam anualmente cem mil 
cestos, com um milhão de quilos de folha de coca. 
A Igreja cobrava impostos sobre a droga. O inca 
Garcilaso de la Vega nos diz, em seus 'comentários 
reais', que a maior parte da renda do bispo, dos 
cónegos e demais ministros da igreja de Cuzco 
provinha dos dízimos sobre a coca, e que o trans-
porte e a venda deste produto enriqueciam a muitos 
espanhóis ." (16) 
(16) Eduardo Galeano, As Veias Abertas da A m é r i c a Lat ina , Paz c Terra, 
Rio dc Janeiro, 25 1 ed. 1978, p. 58. 
De Crimes, Penas e Fantasias 35 
Mas, talvez mais significativa seja a conhecida hislo 
ria das guerras do ópio na China. 
Fomentando a produção na costa oriental da índia, a 
Inglaterra, em plena era vitoriana, realizou grandes lucros 
com a venda na própria índia e, especialmente, com a expor-
tação para a China, onde, calcula-se, cerca de dois milhões de 
pessoas chegaram a se tornar opiómanas. As vendas de ópio, 
promovidas pela East índia Company, chegaram a representar 
a sexta parte do total das rendas da índia Britânica. (17) 
A apreensão e destruição de um carregamento de 1.3ò0 
toneladas de ópio, ordenada, em 1839, pelo imperador Lin 
Tso-Siu, seguiu-se a primeira daquelas guerras, declarada 
pela Inglaterra, em nome do livre comer io. Como resultado, 
alem da indenização recebida por aquele carregamento, a 
Inglaterra ainda obteve, com o Tratado de Nanquim, celebra-
do em 29 de agosto de 1842, a cessão de Hong Kong, para ali 
instalar sua base naval e comercial. 
Na segunda guerra do ópio, iniciada em outubro de 1856, 
a Inglaterra já teve a seu lado a França, que, até a primeira 
metade do século X X , também realizou seus lucros com a 
importação, produção e venda de ópio na Indochina, onde 
tinha, desde 1899, o monopólio estatal daquelas atividades. 
(17) Sean 0*Callaghan, Les Chemins de la Drogue, Ed.de frévise , Paris, 
1969, ps. 11 ss. Sobre a presença das drogas no processo de acumulação de 
capital, na etapa colonialista, vejam-se, ainda, Beristain, op. cit., ps. 530/535 
e Luís de la Barreda Solorzano, Capitalismo y Drogas, in Memorias, IV 
Encuentro Latinoamericanode Criminologia Critica, Nlinisterio de Justicia de 
36 Maria I.úcia K a r a m 
O avanço do capitalismo, com a superação da etapa colo-
nialista, também vai se refletir na economia das drogas. A 
criação e o desenvolvimento de novos mercados vão levar, 
nesta etapa superior, a que as drogas, produzidas nas antigas 
colónias, tenham sua comercialização explorada nos países 
centrais, sendo as que, geralmente, vão ser qualificadas como 
ilícitas, atingindo, em nossos dias, notadamente a partir dos 
anos 60 e 70, a notável expansão que movimenta cifras 
astronómicas (calcula-se que só o mercado mundial da cocaí-
na movimente por ano cerca de 150 bilhões de dólares), 
constituindo-se no mais lucrativo negócio dosúltimos anos 
(para se ter uma ideia, o movimento gerado pelo comércio de 
diamantes não passa de 5 bilhões de dólares anuais). 
É certo que as drogas exercem, hoje, um papel relevante na 
economia dos países produtores e exportadores. O muitas 
vezes elogiado plano de estabilização da economia, posto em 
prática pelo Governo do MNR na Bolívia, que levou a inflação 
de 12.500%, em meados de 1985, para 80% em 1987, foi 
acompanhado pelo estímulo à reciclagem dos capitais ilícitos, 
estipulando o Decreto n- 21.060 que nenhum controle seria 
exercido sobre as somas repatriadas, calculando-se que a 
massa monetária proveniente do tráfico de drogas, à época, 
atingiria de 500 a 800 milhões de dólares, valor superior ao 
montante das exportações legais. (18) 
Também na Colômbia estima-se que, somente neste ano de 
1991, o ingresso de dólares, cuja origem não precisa ser 
Cuba, Ca Habana, 1987, ps. 65/67. 
(18) Veja-sc Delpirou c Labroussc, Coca Coke. . . , ps. 180/186 
De Crimes, Penas e Fantasias 
declarada, ja tinha atingido, até junho, a quantia de um bilhão 
de dólares, legalizados pelo Banco Central, prevendo-se, para 
o ano todo, a cifra de 2,5 bilhões de dólares, superiora receita 
de qualquer exportação legal do país. (19) 
Não e de se espantar, portanto, que, em entrevista ao The 
New York Times, o funcionário do Ministério do Planejamen-
to da Colômbia, Fernando Tenjo Galarza, tenha declarado que 
"se o tráfico de narcóticos fosse detido subitamente, seria o 
mesmo que passar por uma crise do setor cafeeiro e uma cribe 
do petróleo ao mesmo tempo." (20) 
Mas, já na comparação destas cifras com os 150 bilhões de 
dólares estimados para o movimento do mercado mundial, é 
fácil constatar que, como determinam as regras que regem a 
ordem económica internacional e à semelhança do que ocorre 
em qualquer outro setor da economia, não são os países 
produtores e exportadores que, efetivamente, luciam com o 
negócio das drogas. Os 250 a 500 kg de folhas de coca, 
necessários para a fabricação de 1 kg de cocaína, custam 
menos de US$ 1 mil , 1 kg de cocaína esse que, nos EUA, chega 
a ser vendido, no varejo, por até US$ 240 mil . (21) Em 
proporções ainda maiores são os lucros no ciclo final da 
heroína. Um quilo de heroína é vendido, em Nova York, a um 
preço aproximado de 1 milhão de dólares, enquanto a matéria 
prima - 10 kg de ópio - custa um máximo de 500 dólares. (22) 
(19) Cf. matéria publicada na Revista Veja, edição de 26/06/91. 
(20) Palavras reproduzidas em matéria publicada no Jornal do Brasil, em lo/ 
06/91. 
(21) Veja-se matéria publicada na Folha de São Paulo, em 12/06/91. 
(22) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 198 
38 Maria Lúcia K a r a m 
Estes lucros fabulosos alimentam o circuito financeiro 
internacional, integrando-se ao capital legal, através das cha-
madas operações de lavagem, realizadas por "respeitáveis" 
instituições financeiras. (23) 
Por outro lado, a produção das drogas qualificadas como 
ilícitas, nos países periféricos, é também uma expressão de 
sua situação sócio-econômica, estando intimamente ligada à 
questão do endividamento, ao esgotamento de recursos natu-
rais ou de suas rendas (quedas de preços de matérias-primas), 
ao subdesenvolvimento, à injusta divisão do trabalho interna-
cional. 
Como indicam Lamour e Lamberti: 
"Si se quiere buscar el opio, legal o no, es 
siempre a los países o a las regiones subdesarrol-
ladas a donde hay que dirigir la mirada; es allí, de 
hecho, donde se encuentran reunidas todas las 
circunstancias que hacen posible - mejor, inevita-
ble - este tipo de producción: mano de obra abun-
dante y barata, regiones geográficas atrasadas, 
vias de comunicación inexistentes o insuficientes, 
mercado interno estrecho, aparatos administra-
tivos carentes". (24) 
(23) Sobre a integração dos lucros das drogas no circuito financeiro internacional, 
leia-se, entre outros, o contundente livro de Jean Ziegler, A Suíça L a v a Mais 
Branco , Editora Brasiliense, São Paulo, 1990. 
(24) C . Lamour e M . Lamberti, II Sistema Mondiale delia Droga (Turin, 
1973), citados por Gonzalez, op. cit., p. 208. 
De Crimes , Penas e Fantasias 
De lonna semelhante se expressa um jornalista espanhol, 
citado por Rosa Del Olmo, em relação ao México: 
"Para un policia mal pagado y un pobre campe 
sino, que apenas consigue cosechar productos para 
la subsistência, no hay nada más fácil que recibirel 
cómodo dinero ganado con la producción y el 
tráfico de la droga. Los sobornos de los narcotra-
ficantes superan con creces los míseros sueldos de 
un policia mexicano. Para un pobre campesino el 
cultivo de mota (marihuana) y amapola es más 
cómodo, varias veces más rentable y mucho menos 
complicado que la pelea con los organismos me-
xicanos encargados dei crédito agrícola,unido a la 
inseguridad de la cosecha. Los narcos anticipan la 
semilla, el dinero y pagan muchísimo mas que los 
que compran el maíz o el fr i jol!" (25) 
Lembram Lamour e Lamberti a experiência inversa da 
Iugoslá v ia, que, antes da 2-Guerra Mundial, produzia cerca de 
60 toneladas de ópio por ano, reduzindo as para 2,5 toneladas 
na década de 70, fato, em suas palavras, indicativo de que 
"el desarrollo regional elimina la adormidera en 
favor de otros cultivos en la medida en que existe 
para estos un mercado estable". (26) 
(25) Rosa Del Olmo, Aerobiologia y Drogas - Delito Transnacional, in 
NIcinorias,IVEncuenu-ol^UnoamcricanodeCrimií iologíaCrit ica,Ministeri() 
de JiLsticia de Cuba, L a Habana, 1987, p. 85. 
(20) C . Lamour e M. Lamberti, na obra já citada, in C Ion/ale/, op. cit., p. 20'í 
40 Maria Lúcia K a r a i n 
Alain Delpirou e Alain Labrousse informam que, segundo 
o sociólogo José Blanes, por eles entrevistado, com 180 
milhões de dólares (o que não é muito, quando se pensa, por 
exemplo, que só em 1987, o Congresso norte americano 
autorizou um gasto de mais de 3 bilhões de dólares para a sua 
"guerra contra as drogas"), se poderiam irrigar 45 mil hecta-
res nos altos vales de Cochabamba, na Bolívia, fixando os 
agricultores à terra e assegurando-lhes um nível de vida 
razoável, de forma a evitar a migração para o Chapare, a 
planície onde se concentram os campos de cultura das folhas 
de coca e que, com o "boom" da cocaína, se transformou no 
pólo de atraçâo dos deserdados daquele país (em 1967, o 
Chapare contava com 24.381 habitantes, contra mais de 200 
mi l em 1986, sendo que 70% dos colonos lá instalados vêm 
dos vales de Cochabamba). (27) 
Não se pense, porém, que os colonos do Chapare sejam 
ricos fazendeiros. Como narram Delpirou e Labrousse, esses 
camponeses, que passaram sem transição da economia de 
troca para a do dólar, permanecem mal alimentados os 
produtos alimentares, que vêm de fora, tèm preços altíssimos 
- os serviços de saúde, educação e transportes, na região, são 
extremamente precários e, mesmo quando passam a elaborar 
eles próprios a pasta base, permanecem dependentes dos 
grandes empresários da droga, pois não têm acesso aos meios 
necessários para sua transformação em cocaína e, sobre-
tudo, estão distantes da etapa mais rentável do negocio - a 
(27) Sobre estas ques iões , veja-se o já citado C o c a Coke. . . , especialmente, 
ps. 59/60 e 263/265. 
De Crimes , Penas e Fantasias II 
comercialização do produto - que exige uma organização 
inacessível a pequenos produtores. (28) 
Baratta também se refere a estes pequenos produtores 
latinoamericanos, lembrando que a par t ic ipação proletari-
zada dos áditos dos países centrais, no grande circulo da 
economia da droga, só é comparável á destes camponeses 
bolivianos, que, se são privilegiados em relação aos deserda-
dos daquele país, são tão explorados e controlados quanto vis 
consumidores distribuidores, encontrados no extremo oposto 
do sistema da droga. (29) 
Alem de ocultar estes e múltiplos outrosfalores económi-
cos, como o papel dos mercados consumidores na determi-
nação da produção e a criação de demandas artificiais, carac-
terística da economia capitalista, a investida contra os países 
produtores e exportadores, base da política da guerra contra 
as drogas, imposta pelos senhores do Norte, revelase de 
extrema funcionalidade política. 
Llegeiuloí) agente exteniocomooininúgoa.serenlrentadi> 
nessa guerra, a partir da década de 80, os EUA impõem uma 
crescente internacionalização da política de drogas, pressio 
nando os países periféricos, especialmente os latinoameriea 
nos, em limites atentatórios à soberania daquelas nações. 
A internacionalização se manifesta na própria linguagem, 
(28) Delpirou e Labrousse, op cit., ps. 63/68. 
(29) Alessandro Baratta, Introducc ión a una Sociologia de la Droga, mimeo, 
p. 19 (Palestra proferida na Conferência Internacional de Direito Penal, 
promovida pela Procuradoria Geral da Defensoria Pública e pela Secretaria de 
Estado de Justiça do Rio de Janeiro e realizada no Rio de Janeiro, de 16 a 2 I 
de outubro de 1988). 
42 Maria Lúcia k a i am 
com o uso generalizado do radical da palavra inglesa 
Narcotics, utilizável também em espanhol ou em português, 
passando-sca falar de narcotráfico, narcodólares, etc., quando 
o principal alvo da política do momento - a cocaína - sequer 
pode ser visto como narcótico, tratando se, ao contrario, de 
um evidente estimulante. 
Atacando as fontes produtoras, com o fim declarado de 
impedir a chegada das drogas aos EUA, desenvolveram se 
planos de erradicação de plantações de maconha e folhas de 
coca, notadamente no México e na Colômbia, em programas 
que, além de não afetarem de forma significativa a produção, 
acabaram por contribuir para seu deslocamento a outras áreas, 
aumentando, desta forma, as fontes da oferta. Nestes progra-
mas, financiados ou realizados com a colaboração direta dos 
EUA, utilizaram-se herbicidas de conhecidos efeitos devasta-
dores sobre o meio ambiente, como o Paraquat e o Glifosato, 
herbicidas cuja utilização no interior dos EUA, naturalmente, 
sempre encontrou resistências (30), reproduzindo se, aliás, o 
que ocorre com a exportação, para os países periféricos, de 
medicamentos - ou melhor, drogas - proibidos nos países 
centrais. 
De tais programas à imposição de tratados de extradição, 
para julgamento de nacionais dos países peri féricos nos EUA, 
que chegaram a se concretizar na Colômbia, ao preço - sem 
qualquer contrapartida significativa - de uma reação san-
guinária dos chamados "Extraditáveis", os atentados à sobera-
(30) A respeito, veja-se o já mencionado trabalho de Rosa Del Olmo, 
Aerobiologia y Drogas..., in Memorias, op. cit., ps. 77/85. 
De Crimes , IVnas e Fantasias 
nia de países latinoamericanos atingiram seu ápice com as 
intervenções militares diretas, de que são exemplos mais 
eloquentes a chamada Operação Rlast-Furnace, realizada na 
Bolívia, em 1986, com o desembarque de soldados america-
nos ignorado pelo próprio Chefe do Estado-Maior do Exército 
Boliviano (31), e a inusitada invasão do Panamá, para prisão 
do General Noriega, que, de antigo colaborador da CIA, 
passou a inimigo n e 1 dos EUA, sendo sequestrado pelas 
tropas americanas, que ali desembarcaram, para ser julgado 
nos EUA. 
Esta internacionalização da politica de drogas, acompa-
nhada de um modelo geopolítico, que incorpora postulados 
das doutrinas de segurança nacional, aponta os EUA como 
país vítima, legitimando as intervenções diplomáticas, fínan 
ceiras e militares em outros países, ao mesmo tempo que 
difundindo o estereótipo do "narcoterrorismo", de modo a 
nele incluir países inimigos dos EUA ou eventuais gni|x>s 
opositores. Neste sentido, são bastante ilustrativas as conhe-
cidas tentativas, do final da década de 80, de acusar Cuba e a 
Nicarágua sandinista de cumplicidade e fomento do tráfico de 
drogas, não obstante o próprio Administrador da DEA, John 
C. Lawn, negasse possuir qualquer informação substancial a 
respeito, enquanto, ironicamente, surgiam, na mesma época, 
revelações sobre estreitas ligações entre agentes da CIA, 
contras nicaraguenses e o contrabando de armas e o tráfico de 
drogas. (32) 
(31) Sobre a Operação Blast-Furnace, veja-se Delpirou e Labrousse, op. cit., 
ps. 185/186. 
(32) Sobre o estereól ipodo "narcoterrorismo", vejain-se as análises de Rosa Del 
Olmo, em L a C a r a Oculta de la Droga, Tcmis, Bogotá, 1988, e de Delpirou 
e Labrousse, cm Coca Coke.. . , op. cit. 
44 Mar ia Lúc ia K a r a m 
De forma análoga, esta funcionalidade política se manifes-
ta internamente, em cada país, traduzindo-se na função sim-
bólica do "bode expiatório", amplamente desempenhada pela 
figura do traficante, ou pelos grupos marginalizados de áditos 
- estes nos países centrais - função simbólica esta, que, 
concentrando a hostilidade da maioria, contribui para um alto 
grau de coesão da sociedade, ao mesmo tempo que desvia a 
atenção de outros problemas mais graves. 
Por outro lado, a imagem das drogas como um símbolo de 
rebeldia e contestação, originada, fundamentalmente, a partir 
de sua efetiva utilização como tal, no final dos anos 60, 
enquanto alternativa à repressão e ao fechamento das possibi -
lidades de desenvolvimento de movimentos políticos mais 
consequentes (as lutas contra a guerra do Vietnam, o movi-
mento negro e as lutas pelos direitos civis das minorias nos 
E U A , as lutas libertárias na Europa, as lutas contra as ditadu-
ras militares na América Latina), foi amplamente divulgada e 
capitalizada pelo próprio sistema dominante, que, se apro-
priando de valores da contracultura, pôde dirigi-los para o 
consumo dos mais diversos bens, ao mesmo tempo que, 
indiretamente, se incentivavam movimentos que, embora 
contes ta tá ri os - como o movimento hippie - tinham caracterís-
ticas, em grande parte, alienantes, sendo, portanto, menos 
ameaçadores . 
Com o crescimento e massificação do consumo de heroína, 
introduzida entre os jovens norte-americanos, na década de 
70, com a volta dos ex-combatentes do Vietnam, até mesmo 
estes movimentos contestatários perdem sua força. Ao con-
trário da maconha e dos alucinógenos de origem mexicana, 
l)c Crimes , 1'eiias e Fantasias 
que coletivizavam o consumo, dando-lhe um carater grupai e 
comunitário, a heroína, sendo uma droga de características 
individualistas, inibidoras, não se compatibilizava com 
qualquer tentativa de agrupamento, de movimento mais ou 
menos organizado. 
Como lembra Gonzalez, 
"La heroína, con sus gravísimas secuelas au 
todestructivas, ha cumplido un papel poderosísi 
mo en la destrucción de los movimientos que en 
determinadas fases de crisis social han aspirado a 
cambiar de raiz la bases de la sociedad, sirviendo 
de hecho a la eonservacion dei sistema que la 
produce." (33) 
Nos anos 80, é a cocaína que vai ocupar o centro das 
atenções continentais, trazendo com ela toda a ênfase da já 
mencionada guerra contra as drogas, da responsabilização 
dos países produtores e exportadores, da criação do funcional 
estereótipo delitivo latinoamericano, de que fala Rosa Del 
Olmo. (34) 
Neste ponto, é oportuno abrir um parênteses para tecei 
algumas considerações sobre o já mencionado fenómeno da 
escalada - a falsa ideia, que relaciona o consumo de maconha 
com o de outras drogas, que a ve como uma croga de 
"passagem" para outras mais perigosas. 
(33) op. cit., p. 201. 
(34) in L a C a r a Oculta de la Droga, op. cit. 
46 M a r i a Lúc ia R a r a m 
Tal ideia se baseia na constatação de que uma boa parte de 
consumidores de cocaína ou heroína começaram fazendo uso 
de maconha ou haxixe, concluindo-se que propriedades far-
macológicas destas levariam ao consumo daquelas. 
Reproduzindo as palavras de T.S. Duster, em The Legisla-
t ion o f M o r a l i t y (New York, 1970), Gonzalez mostra afalsidade desta ideia: 
"Cualquier principiante de un curso de intro-
ducción a la metodologia o a la lógica podría 
percibir la inépcia de esta argumentación. No 
sabemos casi nada acerca dei número de consumi-
dores de marihuana que no llegan a tomar heroína 
(...) Argumentar que la marihuana induciria a 
consumir heroína se resume, pues, a aceptar er-
rores que van desde los desaciertos lógicos hasta la 
total incapacidad para aplicar los métodos empíri-
cos que permitirían emitir un juicio racional sobre 
la relacíon entre ambas drogas (...). Cuando se 
afirma que la marihuana induciria al consumo de 
heroína se cae exactamente en el mismo error, ya 
que se está tomando en cuenta unicamente el 
número de heroinómanos y no la poblacíon mucho 
más significativa, que consume marihuana. El 
médico que se apoyara exclusivamente en el exa-
men de cancerosos para demostrar la relacíon entre 
câncer y alcohol, seria objeto de burla dentro y 
fuera de su especialidad. A pesar de ello, estas 
descaradas pretensiones que se basan unicamente 
en el examen de los consumidores de heroína, son 
l)c Crimes , 1'cnas c Fantasias 47 
aceptadas cuando se trata de establecer una re 
lación entre marihuana y heroína." (35) 
Lembrando que o fato de existirem consumidores de cocai 
na ou heroína, que já fizeram ou também fazem uso de 
maconha ou haxixe, nada significa, pois esses mesmos con-
sumidores, provavelmente até em maior número, também 
fizeram ou fazem uso de tabaco ou álcool, sem que, no 
entanto, estas sejam consideradas como drogas de "pas-
sagem", Gonzalez prossegue, apontando o papel do discurso 
dominante nesta questão. 
O desprezo pelas diferenças de natureza e de efeitos das 
diversas drogas qualificadas como ilícitas, a falta de credibi-
lidade dos discursos fantasiosos, sua contradição com as 
experiências de seus destinatários, levando á desconsideração 
das recomendações sobre os perigos efetivos do abuso de 
drogas, como já mencionado, acabam por se tornar um 
incentivo para que alguns consumidores de maconha che-
guem a outras drogas mais pesadas. Da mesma forma, a 
criação da cultura da droga, a ideia de estar fazendo algo 
proibido, o apelo contestatário, podem levar ao abandono da 
maconha em prol de outras drogas, vistas como mais perigo-
sas, mais adultas, menos assimiláveis pelo sistema. (36) 
Não são, portanto, propriedades farmacológicas de umas 
drogas, que levam ao consumo de outras. Os diferentes ciclos 
de consumo de umas e outras drogas obedecem a outros 
(35) op. cit., p. 211. 
(36) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 212. 
48 Maria Lúc ia K a r a m 
fatores, sendo, fundamentalmente, determinados por razões 
políticas, económicas e culturais. 
Tais razões políticas, económicas e culturais mereceriam 
um estudo mais aprofundado, que, no entanto, fugiria ao 
âmbito deste trabalho. (37) Aqui , se ressaltará apenas o 
decisivo papel desempenhado pela intervenção do sistema 
penal, sem dúvida incluído nestas razões, com a repressão de 
umas drogas, incentivando o crescimento da oferta de outras 
(um dos dados a se considerar, por exemplo, na oferta de 
heroína, nos EUA, na década de 70, em grande parte conse-
quência da repressão ao uso da maconha e dos alucinógenos 
de origem mexicana), intervenção esta que opera como um 
dado fundamental no funcionamento do mercado, podendo e 
devendo ser considerada como um dos mais relevantes fatores 
a ser analisado, quando se estuda a economia política das 
drogas. 
3. Sistema penal e drogas. Os altos custos sociais 
da criminalização 
A intervenção do sistema penal, desde seu primeiro mo-
mento (a criminalização primária), introduzindo uma variável 
artificial na estrutura do mercado, provoca a brutal e levação 
dos preços, que vai gerar os fabulosos lucros já referidos, 
funcionando, assim, por sobre sua função aparente de re-
pressão, como um dos mais poderosos incentivos à produ-
ção, mais lucrativa do que quaisquer outras. 
(37) Para uma v i são dos ciclos das drogas ilícitas no continente americano, nas 
décadas de 50 a 80, consulte-se Rosa Del Olmo, L a C a r a Oculta de la Droga, 
op. cit. 
De Crimes, Penas e Fantasias 
Incentivando o empreendimento económico, que apa 
rentemente visa reprimir, tampouco cumpre o sistema penal 
um papel relevante no controle da distribuição e do consumo 
daqueles produtos, que qualifica de ilícitos. 
Como mostra Baratta, 
"No obstante los êxitos de los que los médios de 
comunicacíon de masas cotidianamente nos infor-
man (detenciones, confiscación de sustancias), no 
se puede notar en una escala mundial, un aprecia-
ble impacto de la represión penal sobre la circu 
lación nacional e internacional de la droga y sobre 
el consumo. Según cálculos de los expertos, to-
davia hoy la acción de la justicia penal substráe al 
mercado sólo un porcentaje de substancia ilícita 
que va dei 5 al 10%. Con el máximo esfuerzoy en 
las mejores condiciones, el impacto de la acción de 
la justicia penal sobre la oferta de droga no podría 
superar el doble de este porcentaje." (38) 
Estes anos de crescente repressão contam a historia de um 
repetido fracasso dos objetivos assumidos pelo discurso ofi-
cial. 
Vejam-se as palavras insuspeitas de John Finlator, vice-
diretor do Bureau of Narcotics, o conhecido BNDD ameri-
cano, como reproduzidas por Lamour e Lamberti: 
(38) in Introducc ión a una Sociologia de la Droga, op. cu. , p. 13. 
50 M a r i a Lúc ia R a r a m 
"Anos de experiência profesional me han en-
senado que las leyes represivas no resolverán 
nunca el problema de la toxicomania. Cuando en 
los anos treinta se prohibió la marihuana, no se 
contaban más de 50.000 fumadores en todo el país. 
Después de 40 anos de represión durísima, una 
comisiónencargada de indagar sobre la marihuana 
nos informa de que 24 millones de americanos la 
han probado al menos una vez". (39) 
Na mesma linha, Alba Zaluar e Antônio Luiz Paixão 
afirmam que o que estes anos demonstram é que: 
"Aumentou a diversidade de drogas disponí-
veis, aumentou o mercado consumidor, aumentou 
a taxa de criminalidade com vítimas, aumentou a 
corrupção policial e o tráfico tornou-se atividade 
empresarial altamente lucrativa e concentrada, ul-
trapassando os lucros de outros conhecidos o l i -
gopólios." (40) 
O desenvolvimento de grandes organizações criminosas e 
a violência por elas gerada, que costumam ser apresentados 
como consequência da disseminação das drogas, na realidade, 
são fatores resultantes da intervenção do sistema penal. A 
criminalização, ao tornar ilegal o mercado de determinadas 
drogas, necessariamente produz a inserção nesse mercado da 
(39) C . Lamour e M . Lamberti, na obra já citada, in Gonzalez, op. cit., p. 214. 
(40) in S o l u ç ã o para o Fracasso da R e p r e s s ã o , publicado no Caderno Ideias-
Ensaios, do Jornal do Brasil , em 23/06/91. 
I)c Crimes , 1'cnas e Fantasias 51 
chamada criminalidade organizada, pela própria estrutura 
empresarial exigida por um tal empreendimento. 
Por outro lado, a violência é um corolário de uma tal 
atividade ilegal: sem contar os enfrentamentosdiretos com os 
agentes encarregados da repressão, basta pensar na concor-
rência, na disputa de mercados, na cobrança de dividas, que, 
como é óbvio, não irão se pautar por regras legais, encontran-
do no uso da força sua eficácia. 
Aqui, vale lembrar, como o faz Gonzalez, da Chicago dos 
anos 30, dos tempos da lei seca nos EUA, quando se registra 
o primeiro momento de concentração capitalista da criminali-
dade moderna, estruturada, desde então, à semelhança das 
grandes empresas monopolistas. (41) 
Mas, a intervenção do sistema penal gera, ainda, outros 
altos custos sociais. 
Com seus lucros fabulosos, estabelecendo uma relação 
funcional com a circulação legal do capital, e seu poder de 
corrupção, o mercado das drogas ilícitasvai produzir graves 
desvios, afetando perigosamente órgãos do aparelho estatal e 
do sistema financeiro, ao mesmo tempo que fortalecendo o 
poderio das grandes organizações criminosas e da atividade 
empresarial que realizam. 
Lamour e Lamberti ressaltam estas ligações perigosas: 
"Ninguna complicidad es demasiado cara para 
las sumas que manejan los traficantes; son po-
(41) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 199 
52 Maria Lúc ia K a r a n i 
tentes porque pueden corromper a todos cuantos 
contactan o casi. Cuántos hombres políticos, fun-
cionários, magistrados, policias, saben resistir a un 
sobre con 100 ó 200.000 dólares? Si no se puede 
responder a esta pregunta, se podrá constatar que 
en todos los países interesados en la producción, el 
consumo, la transformación o el trânsito de opio y 
sus derivados, el tráfico viene organizado o cuando 
menos cubierto por altísimas personalidades que, 
evidentemente, están al abrigo, por encima de toda 
sospecha." (42) 
Um dos mais eloquentes exemplos de contaminação do 
aparelho estatal se encontra na história das ditaduras militares 
na Bolívia dos anos 70, que, como narram Delpirou e Labrous-
se, fizeram daquele país o primeiro produtor mundial de 
folhas e de pasta base de coca, com a quadruplicação da 
produção, em seis anos. (43) 
No que se refere aos consumidores, são também especial-
mente graves os efeitos negativos da criminalização, a começar 
pelos maiores riscos à saúde, decorrentes das condições 
clandestinas em que se realizam a distribuição e o consumo: 
sendo uma mercadoria ilícita, as drogas entregues ao con-
sumo, evidentemente, não estão submetidas a qualquer con-
trole de qualidade, muitas vezes contendo substâncias, adi-
cionadas à droga em si, de efeitos ainda mais danosos à saúde. 
(42) C . Lamour e M . Lamberti, na obra já cilada, in Gonzalez, op. cit., ps. 198/ 
199. 
(43) Vcja-se o capítulo "Bolívia: uma economia aquecida pela cocaína", in 
C o c a Coke. . . , op. cit., ps. 143/160. 
De Crimes , Penas e Fantasias .vi 
Por outro lado, a clandestinidade do consumo favorece 
sua realização em condições higiénicas mais precárias. A 
grande incidência de portadores do vírus da AIDS entre os 
áditos ás drogas injetáveis é uma das tragedias de nosso 
tempo, em boa parte resultante do descontrole da higiene no 
consumo, embora, neste ponto, se deva ressaltar que, no 
Brasil, não é este o grupo mais gravemente afetado pela 
doença. Aqui, como apontado no início deste trabalho, o 
quadro geral da saúde pública produz outras tragédias, que 
suplantam em muito a importância das drogas: as maiores 
vitimas da AIDS, no Brasil, são os hemofílicos, contaminados 
pelo descaso, pela ganância permitida dos banqueiros do 
sangue. (44) 
A clandestinidade do consumo, efeito direlo da criminali-
zação, cria maiores tensões na vida de relação, funcionando 
como um dado a mais na situação problemática original, 
sintomatizada pela adição, e, portanto, como um realimenta-
dor da busca da droga, ao mesmo tempo em que a estigmati-
zação, acompanhante necessária da criminalização, levando 
ao isolamento social e á marginalização, acaba por produzir 
alterações da personalidade, muitas vezes vistas como um 
efeito primário das drogas, quando não passam de consequên-
cias desta marginalização. (45) 
O próprio controle terapêulico-assislencial sofre os efeitos 
negativos da criminalização, que impõe condições contra-
(44) Veja-se o artigo de Nilo Batista, Drugas e Drogas, in Punidos e Mal 
Pagos, op. cit., ps. 59/62, em que ele, falando sobre o c o m é r c i o d e drogas lícitas, 
se pergunta "onde '.umprirão pena os banqueiros do sangue que coi •aminarani 
com o vinis da Aids mais de 70% dos hemofíl icos do Rio de Janeiro". 
(45) Sobre este ponto, veja-se, especialmente, Baratta, op cit., ps 10/11 
54 Maria Lúcia K a r a m 
ditórias com os métodos mais avançados de tratamento dos 
áditos, do ponto de vista de sua eficácia e de sua cientificidade. 
Introduzindo um complicador à busca do tratamento, ou 
seja, a necessária revelação da prática de uma conduta tida 
como ilícita, a criminalização ainda atua sobre o controle 
terapêutico-assistencial, integrando-o ao sistema penal. 
Leis penais, como a brasileira, que impõem a obrigatorieda-
de do tratamento àqueles que têm sua culpabilidade excluída, 
em razão da dependência, contrariam o princípio básico de 
que o êxito de qualquer tratamento, nesta área, está condicio-
nado à voluntariedade de sua busca. Vaillant ensina que o 
começo de um tratamento eficaz, a longo prazo, só se dá, 
efetivamente, quando o médico, a família e o paciente con-
cordam que este tem uma doença que o requer, para, mais 
adiante, afirmar que o atendimento compulsório raramente é 
benéfico. (46) 
Mas, a lém disso, acenando com o regime de internação 
hospitalar, para os casos de frustração, pelo adito, do tratamen-
to ambulatorial, ou de reiteração da conduta proibida, com a 
instauração de novo processo, ignora o legislador o fato 
amplamente conhecido de que a "reincidência" e a interrup-
ção do tratamento são episódios normais no processo de 
desintoxicação, nem sempre traduzindo um fracasso deste 
tratamento. 
Estão ainda os consumidores sujeitos à superexploração, 
seja aquela diretamente decorrente dos preços artificialmente 
(46) G . Vaillant, op. cit., p. 573. 
De Crimes , Penas c Fantasias 33 
elevados pela variável da criminalização introduzida no mer-
cado, seja a indiretamente provocada por essa elevação dos 
preços, a levar uma parcela destes consumidores a se empre-
gar no trafico, para obter a droga desejada, trabalhando como 
empregados mal remunerados e mais expostos aos riscos da 
atividade ilícita, naquela já mencionada participação prole ta-
rizada na economia política das drogas. 
Os preços artificialmente elevados constituem ainda um 
incentivo á prática de outros comportamentos ilícitos diver-
sos, com aquela mesma finalidade de obter meios para adqui-
rir a droga desejada, o que se soma ao estigma e â margina 
lização, por si já favorecedores da inserção em contextos 
criminais, estigma e marginalização estes que, evidente-
mente, se agravam no processo de criminalização secundária 
(a aplicação da lei penal), especialmente quando da imposição 
de penas privativas de liberdade. 
Assim, o aumento da criminalidade, comumente apresen-
tado r>elo discurso oficial como consequência do consumo de 
dro bus ilícitas, é, na realidade, em boa parte, resultante dos 
efeitos da própria criminalização. 
Estes efeitos da criminalização, entendidos por impor-
tantes setores da investigação científica atual como efeitos 
secundários das drogas (em contraposição aos efeitos primá-
rios, ou seja, aqueles produzidos pela natureza mesma das 
substâncias consideradas), não se manifestam igualmente 
pelo conjunto da sociedade, recaindo sim, preferencialmente, 
sobre as camadas mais baixas e marginalizadas da população. 
Aqui também se reproduz a regra básica da sociedade 
56 Mar ia Lúc ia K a r a m 
capitalista, ou seja, a desigualdade. As relações desiguais de 
distribuição, que caracterizam o modo de produção capitalis-
ta, vão se expressar na distribuição social do atributo negativo 
considerado - o status de desviante ou o status de criminoso 
- que, enquanto atributo negativo, será preferencialmente 
recebido por aqueles que já ocupam uma posição inferior na 
sociedade, aqueles que se encontram entre as classes subal ter-
nas. 
O texto de Baratta, que abaixo se reproduz, é bastante 
esclarecedor: 
"Para evitar una imágen inexacta de los efectos 
secundários de la droga sobre los consumidores y su 
âmbito social, es oportuno hacer una precisión. Nada 
está más lejos de la realidad dei mundo de las drogas, 
que verlo unidimensionalmente bajo la imagen dra-
matizada de la 'escena oficial ' . El 'mundo de la 
droga' sonen realidad los 'mundos de la droga'. 
Adernas de la 'escena' que se caracteriza por su 
enorme visibilidad social, puesta en evidencia por los 
médios, hay otros mundos discretos, invisibles y, en 
este sentido, privilegiados. Hay innumerables con-
sumidores y adictos de droga que, al contrario dei 
estereotipo de la 4escena',siguen jugando sus papeies 
de profesionales y trabajadores dependientes sin pos-
teriores perjuicios para su identidad social. En estos 
casos, que son relativamente más numerosos, los 
consumidores y sus famílias son exentos de los costos 
sociales de la criminalización. Ha sido resaltada una 
tendência a la transformación dei mundo de la droga 
De Crimes , Penas e Fantasias 57 
hacia la figura dei consumidor que tiene la costumbrc 
de 'inyectarse' el sábado e i r a trabajar el lunes. Pero 
el privilegio de Ia participación en estos mundos 
discretos de la droga es, como oiros recursos, dis-
tribuído desigualmente en nuestra sociedad. También 
en el sistema de la droga, la pertencncia a grupos 
sociales menos aventajados produce una mayor ex-
posición a ser insertado en el mundo marginalizado y 
criminalizado de la 'escena', mientrasque la partici-
pación en el consumo de drogas está distribuída en 
todas Ias capas sociales." (47) 
Por sua especial importância nesta distribuição desigual 
dos efeitos secundários das drogas, o processo de aplicação 
da lei penal merece algumas considerações. 
A integração ao aparelho de Estado, determinando a atua 
ção pautada pelo funcionamento concreto do poder de classe 
deste Estado, característica das categorias que constituem a 
burocracia, como são as agências do sistema penal, vai 
funcionar como uma das principais variáveis no processo de 
criminalização orientado na direção das classes subalternas. 
Atuando com a lógica e a razão do poder de classe do Estado 
capitalista, as agências do sistema penal vãoselecionar, nestas 
classes subalternas, aqueles poucos autores de crimes, que, 
sendo presos, processados ou condenados, receberão o sta-
tus de criminoso e, assim, se distinguirão dos demais indi-
víduos, cumpridores do papel de cidadãos respeitadores das 
leis, formando-se, a partir destes poucos selecionados, a 
imagem do criminoso. 
(47) Baratta, op. cit., ps. 12/13. 
58 Maria L ú c i a K a r a m 
A posição precária no mercado de trabalho, as deficiências 
da socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, pre-
sentes entre os que ocupam uma posição inferior na socieda-
de, são, não como se costuma apontar, causas da criminali-
dade, mas sim características desfavoráveis, que, identifi-
cando seus portadores com o estereótipo do criminoso, terão 
influência determinante naquele processo de seleção dos que 
vão desempenhar o papel de criminosos. 
No caso de crimes relativos a drogas, o peso negativo des-
tas características aparece claramente, inclusive no que se 
refere à distinção entre consumidor e traficante. E comum 
encontrar casos em que a única "prova" do tráfico é o 
desemprego ou o subemprego daquele que é surpreendido na 
posse de drogas, visto como naturalmente traficante, por se 
supor que, estando desempregado ou subempregado, não te ria 
condições de adquirir a substância para uso pessoal. 
Como ocorre com a criminalidade em geral, também se 
manifesta, no caso de crimes relativos a drogas, o fenóme-
no, apontado no texto de Baratta, da maior visibilidade social 
das condutas praticadas por indivíduos pertencentes às classes 
subalternas, o que, tornando-os mais vulneráveis à repressão 
penal, constitui outro fator a contribuir para a distribui-
ção desigual do status de criminoso. Pense-se, por exemplo, 
na maior exposição dos vendedores, que atuam no varejo, ou 
dos transportadores individuais das drogas (as chamadas 
"mulas"), ou mesmo dos pequenos distribuidores. E evidente 
que, quanto mais alta a posição no tráfico, mais oculta será a 
atividade desempenhada, até pela própria natureza das funções 
exercidas, como ocorre em qualquer empreendimento econô-
l)c Crimes, IVnas c Fantasias 
mico: os empregados encarregados da venda dos produtos de 
uma grande empresa são, naturalmente, mais visíveis do que 
seus diretorcs ou acionistas. 
Alem dessa maior visibilidade natural, é de se conside-
rar também, por um lado, o poder de corrupção - e, portanto, 
de imunidade - tanto maior quanto mais altas a capacidade 
económica e a posição ocupada na sociedade, além do fato de 
que as ações das agências policiais desenvolvem-se, com 
muito maior desenvoltura, nos locais onde se concentram as 
populações mais carentes. 
Na atuaçào das agências judiciais, ás ja mencionadas lógi-
ca e razão do poder de classe do Estado capitalista, que 
presidem a atuação das agências do sistema penal como um 
todo, somam-se a organização fechada e os mecanismos 
ideológicos, que, negando o aspecto político da função juris-
dicional, distanciando e isolando o juiz da dinâmica das lutas 
travadas na sociedade, fazem com que tais agências percebam 
e julguem sua clientela dentro dos marcos de referência da 
ideologia dominante, reforçando, de forma decisiva, a desi-
gualdade na distribuição do status de criminoso. (48) 
No caso do consumo de drogas, o conservadorismo, a 
incompreensão de costumes alternativos, a incapacidade de 
aceitar padrões de comportamento destoantes destes marcos 
de referência da ideologia dominante, exercem um papel 
fundamental nos julgamentos, atitudes que, no entanto, po-
dem ceder diante da questão de classe. 
(48) Sobre a atuacão das agências judiciais, veja-se, neste volume, o trabalho 
intitulado Papel Social, Jur íd i co e Pol í t ico da Magistratura. 
60 M a r i a Lúc ia R a r a m 
Ao tratar com indivíduos pertencentes aos estratos superi-
ores e médios, os juízes costumam experimentar um senti-
mento de incómodo, uma maior preocupação em aplicar a 
pena, preocupação que não se manifesta quando se trata de 
indivíduos dos estratos inferiores, aos quais a pena é aplicada 
sem hesitações, pois menos comprometedora para seu sta-
tus social, já baixo. Isto explica um número significativo de 
absolvições de consumidores de drogas por "política crimi-
nal", que já foram muito comuns, na prática da Justiça 
Criminal no Brasil, servindo para livrar réus pertencentes aos 
estratos superiores e médios, de boa aparência, bem emprega-
dos ou estudantes universitários, como também explica o fato 
de que tais absolvições, não obstante sua notória improprie-
dade técnica, nunca provocaram os mesmos questionamentos 
suscitados pela tese, universalmente aplicável, da inadmissi-
bilidade da punição da posse de drogas para uso pessoal, seja 
pela inafetação do bem jurídico protegido (a saúde pública), 
seja por sua contrariedade com um ordenamento jurídico 
garantidor da não intervenção do Direito em condutas que não 
afetem a terceiros. (49) 
A distribuição desigual do status de criminoso determina 
a ideia de criminalidade como um comportamento caracterís-
tico de indivíduos provenientes daquelas camadas mais bai-
xas e marginalizadas levando à identificação das classes 
subalternas como classes perigosas. No caso das drogas, 
pense-se, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro, em 
relação às quais se passa a ideia de uma ligação generalizada 
(49) A respeito da inadmissibilidade da punição da posse de drogas para uso 
pessoal, veja-se, também neste volume, o trabalho A q u i s i ç ã o , G u a r d a e Posse 
de Drogas para Uso Pessoal - Ausênc ia de Tipicidade Penal. 
De Crimes , Penas e Fantasias 61 
de seus moradores com o tráfico, reproduzindo-se a mesma 
linha que, internacionalmente, cria o já mencionado estereó-
tipo delitivo latinoamericano. Neste caso de países perigo-
sos, basta lembrar que, quando se fala de drogas, não se pen-
sa, por exemplo, na Suíça, lavando mais branco, mas ape 
nas na Colômbia com seus cartéis, ouna Bolívia com suas 
folhas de coca. 
Além disso, em nome do clima de pânico, de alarme so 
ciai, da busca de maior repressão penal como solução ainda 
que aparente, sacrificam-se princípios fundamentais de um 
direito garantidor. Baratta cita pesquisa realizada pelo Institu-
to de Pesquisas das Nações Unidas para a Defesa Social 
(UNSDRI-Roma), sobre medidas penais no campo das dro 
gas, em um número representativo de países, com sistemas 
políticos diversos e diferentes níveis de desenvolvimento, 
onde se constatou a tendência das legislações em se afastar de 
princípios gerais do Direito. (50) 
O próprio Baratta lembra que este é um dos campos onde 
a ação policial tende a ultrapassaros limites da legalidade, fato 
que costuma ocorrer nos chamados crimes sem ví t imas, nos 
quais a polícia deve assegurar material de prova, sem poder 
contar com a denúncia e a colaboração da vítima. 
No Brasil, práticas como invasões e buscas em domicílios 
sem mandado judicial, mais do que serem comumente reali-
zadas (naturalmente, apenas nos bairros populares), são co 
mumente aceitas pelas agências judiciais, que, em nome do 
combate às drogas, muitas vezes, se tornam coniventes com a 
(50) Baratta, op. cit , nota num. 26 
62 Mar ia Lúcia K a r a m 
ilegalidade. Já se toma longínquo o tempo em que a juris-
prudência brasileira considerava aquela perigosa tendência de 
ultrapassagem dos limites da legalidade e opunha reservas à 
palavra isolada de policiais, diretamente envolvidos na ocor-
rência, registrando-se, ao contrário, uma crescente superva-
lorizaçào do testemunho de policiais, inclusive em detrimento 
de outros testemunhos. 
Também se pode observar, no Brasil, aquela tendência 
legislativa, apontada na pesquisa do UNSDRI, no sentido de 
uma maior severidade violadora de princípios gerais do 
Direito: a recente Lei 8.072/90, a chamada lei dos crimes 
hediondos, trouxe inconstitucional dispositivo que, contra-
riando o princípio da individualização da pena, estabelece que 
as penas privativas de liberdade, impostas a pessoas condena-
das pela prática de condutas relativas ao tráfico de drogas, 
deverão ser cumpridas, integralmente, em regime techado. 
Ressalte-se que, antes mesmo da existência de tal dispositivo, 
registravam-se inúmeras decisões judiciais, afirmando a inad-
missibilidade de cumprimento de penas resultantes de conde-
nações por tráfico em outro regime que não o fechado, como 
que numa premonição de sua vigência. 
Baratta mostra que outros princípios de um direito penal 
mínimo, entendido como critério inspirador de uma justiça 
penal ajustada ao Estado de Direito e aos direitos humanos, 
são violados na política criminal vigente no campo das dro-
gas: (51) 
(51) op. cit., ps. 14/16. Sobre os princípios de um direito penal mín imo , consulte-
se, ainda, do próprio Baratta, Requisitos M í n i m o s dei Res peto de los Dcrechos 
Humanos en la L e y Penal , in Derecho Penal y Criminologia. 31, Universidad 
Externado de Colômbia , Bogotá , 1987, ps. 91/108. 
De Crimes , Penas e Fantasias 0 > 
- o pr inc íp io da idoneidade, que exige a demonstração de 
que a criminalização é um meio útil para controlar um 
determinado problema social: como já mencionado, o impac-
to da intervenção do sistema penal na distribuição das drogas 
e em seu consumo é irrelevante, criando, ao contrário, pro-
blemas mais graves; 
o pr inc íp io da subsidiariedade, que impõe a previa 
comprovação de que não existem outras alternativas que não 
a criminalização: a intervenção do sistema penal não só não 
considera as alternativas existentes, como ainda afeta negati-
vamente os sistemas terapêutico-assistencial e informativo 
educativo, como também já apontado; 
o pr incípio da racionalidade, que exige que se compa 
rem os benefícios e os custos sociais produzidos pela crimina 
lizaçáo: nenhum discurso científico conseguiu demonstrar 
qualquer benefício decorrente da criminalização das drogas, 
enquanto, ao contrário, já se demonstraram seus altos custos 
sociais, como os aqui expostos; 
o pr incípio da proporcionalidade da pena à gravidade 
do dano social do delito, particularmente Violado no caso da 
criminalização da posse de drogas para uso pessoal, em que 
sequer há algum dano social, pretendendo-se punir uma 
conduta nitidamente privada, sem potencialidade para afeíar 
bens de terceiros. 
Os altos custos sociais da criminalização, seus efeitos 
negativos, sua ineficácia para uma redução significativa da 
distribuição e do consumo e seus paradoxais papéis como 
fator de incentivo à produção e estimulante de situações 
64 M a r i a Lúc ia k a r a m 
delitivas, impõem que um discurso e uma pratica, que 
pretendam se ocupar, seriamente, em enfrentar o aspecto 
problemático das drogas, sejam acompanhados do rompi-
mento com a fantasia da solução penal. 
4. Alternativas para o controle do aspecto 
problemático das drogas 
Evidentemente, não se pretende apontar, aqui, fórmulas 
acabadas de alternativas para, definitivamente, controlar o 
aspecto problemático das drogas. A descriminalização, o 
afastamento da intervenção do sistema penal, a superação da 
fantasia da solução penal significam, antes de tudo, uma 
posição realista, uma posição de rompimento com falsas ou 
mágicas soluções. 
A descriminalização, o afastamento da intervenção do 
sistema penal, a superação da fantasia da solução penal 
significam, simplesmente, o rompimento com uma forma de 
controle que pouco controla, que, perversa e contra-
ditoriamente, estimula o lucro e a violência dos oligopólios do 
crime organizado, que, direta ou indiretamente, incentiva o 
consumo problemático das substâncias que proíbe. 
Mas, descriminalizar não significa liberalizar. Ao contra 
rio, descriminalizar implica em abrir maiores espaços para a 
cr iação de mecanismos não penais de controle sobre a produ-
ção , a distribuição e o consumo de drogas, eliminando um 
sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em 
prol da intervenção de outros instrumentos, menos pernicio-
sos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e 
mais eficazes para tratar essa questão. 
l)c Crimes , Penas e Fantasias 65 
Na linha apontada por Baratta, (52) normas administraliv as, 
apoiadas em sanções adequadas e racionais, teriam que ser 
implementadas, para o controle de qualidade das drogas (sem 
distinção entre as hoje lícitas e ilícitas), assim como para o 
controle da produção e distribuição, impedindo a formação de 
monopólios e oligopólios, bem como novas formas de 
ingerência da criminalidade organizada no setor. Ao mesmo 
tempo, teriam que ser estabelecidas políticas internacionais 
favorecedoras de medidas tendentes a incentivar atividades 
económicas alternativas nos países produtores, de forma a 
reduzir a produção de drogas indesejáveis. 
O consumo teria que se submeter a limitações, restringiu 
dose, ou mesmo vedando-se, o uso em lugares públicos de 
determinadas drogas mais danosas, a exemplo do que, hoje, 
já se começa a fazer em relação ao tabaco. Neste sentido, se 
poderia pensar em sanções, como a apreensão tia droga e/ou 
a expulsão do consumidor do local onde estivesse fazendo uso 
da mesma, ao lado da interdição teni|>oraria ou fechamento 
definitivo de estabelecimentos onde se tolerasse tal uso, 
combinados com a imposição de pesadas multas a seus donos. 
Acompanhando tais medidas, poderia se pensar no 
simultâneo fornecimento aos consumidores de informações 
sobre a existência e localização de estabelecimentos terapêutico 
- assistenciais, bem como sobre as próprias drogas e seus 
efeitos, seja no momento mesmo em que fossem surpreendi-
dos usando drogas em locais não permitidos, seja através de 
um convite para comparecimento posterior a postos de 
(52) op. cit., ps. 25/26. 
66 Mar ia Lúcia K a r a m 
informação, desde logo, afastando-se qualquerobrigatorie-
dade deste comparecimento ou de encaminhamento a 
estabelecimentos terapêutico-assistenciais para avaliação de 
necessidade de tratamento, pois também os mecanismos não 
penais de controle devem obedecer ao princípio do respeito à 
vida privada, à liberdade e às opções individuais. 
Mas, mais eficazes seriam as medidas de informação e 
educação de caráter mais geral, mais abrangente, e despidas 
de qualquer cunho repressivo, que se desenvolvessem através 
de amplas discussões, com a participação ati va de organizações 
comunitárias , como associações de moradores, sindicatos, 
igrejas, grémios e diretórios estudantis, diversificando-se o 
conteúdo das informações, segundo as características dos 
setores a serem atingidos, sentindo-se e ouvindo-se as 
necessidades e opiniões de seus destinatários, tendo se 
flexibilidade na forma e no momento de abordagem do tema. 
Tais medidas de informação e educação teriam que, 
necessariamente, passar pela compreensão global do tema, 
abordando e esclarecendo os aspectos históricos, econó-
micos, políticos e culturais da questão, bem como a dimen-
são real dos problemas eventualmente causados pelo uso 
imoderado das substâncias consideradas. 
A o lado destes mecanismos de controle, que, naturalmen-
te, deveriam se dirigir a todas as drogas, sem a distinção 
artificial que hoje se faz, uma das medidas mais importantes 
a ser tomada seria a proibição de qualquer tipo de propaganda 
de tais produtos. 
De todo modo, novas medidas, novos instrumentos, 
l)c Crimes , l*cnas c fantasia*. ul 
certamente, surgiriam, ao se abandonar a tácil c talsa solução 
penal. 
Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre ma is 
fácil e maiscômoda. Com certeza, é mais simples para os pais 
de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que, 
supostamente, induziu seu filho ao vício, do que perceber e 
tratar dos conflitos familiares latentes, que, mais provavel-
mente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples, 
para a sociedade, permitir a desapropriação do conflito e 
transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salva-
dora intervenção do sistema penal. 
Se, no entanto, quisermos soluções verdadeiramente 
eficazes, será preciso pensar que a intervenção da sociedade 
civi l , das comunidades organizadas, das pessoas diretamente 
envolvidas, buscando e trazendo soluções nascidas tia 
convivência, da solidariedade, da proximidade do conflito, é 
que poderá dar o salto de qual idade no tratamento de eventuais 
situações problemáticas provocadas pelo abuso de drogas. 
Mas, mais do que isso, será preciso ter claro que o aspecto 
problemático das drogas deriva, basicamente, tia contradição 
fundamental da sociedade capitalista, sendo uma das muitas 
distorções geradas por un sistema de relações sociais de 
produção, que transforma todo recurso de meio para satisfazer 
necessidades reais em meio de acumulação do capital, que 
transforma os produtores-consumidores de sujeitos do pro-
cesso produtivo em objetos de manipulação. 
E, assim, será preciso pensar em não descrer da utopia e 
lutar para construir sociedades em que a produção de bens 
68 Mar ia Lúcia K a r a m 
obedeça , não à lógica do lucro, mas ã lógica das verdadeiras 
necessidades do homem; não descrer da utopia e lutar para 
construir sociedades em que as pessoas possam ter maiores 
oportunidades de ser felizes e, portanto, menores necessida-
des de se drogar. 
Os crimes contra o patrimônio 
no Anteprojeto de Parte Especial do 
Código P. nal brasileiro

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