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NOVOS CAMINHOS PARA A QUESTÃO DAS DROGAS A criminalização de condutas relativas a determinadas drogas qualificadas como ilícitas, a ênfase dada à repressão penal como forma de controle e combate à sua disseminação constituem o centro da atual política de drogas, traduzindo valores que, não obstante seu distanciamento da realidade, encontram-se profundamente enraizados no conjunto de nos sas sociedades. Talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente se manifeste a enganosa publicidade do sistema penal, apre sentado como um instrumento capaz de solucionar conflitos, como o instrumento capaz de fornecer segurança e tranquili- dade, através da punição dos autores de condutas que a lei define como crimes. O encobrimento das razões históricas, económicas e polui cas determinantes da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, distinção que pouco ou nada tem a ver com a maior ou menor potencialidade de dano de umas e outras e que envolve as Maria Lúc ia K a r a i u drogas qualificadas de ilícitas numa capa de mistério e tanta sia; o superdimensionamento do problema, tratado sob uma ótica definida nos países centrais, quando existem, nos países periféricos, problemas muito mais sérios em matéria de saúde pública; a utilização de fatores como o desenvolvimento de grandes organizações criminosas e a violência por elas gera- da, que são apresentados como consequências da dissemi- nação das drogas; tudo isto acaba por criar um clima de pânico, de alarme social, seguido pela demanda de mais repressão, de maior ação policial, de penas mais rigorosas, como costuma acontecer em situações que comovem e assus- tam o conjunto da sociedade. A intervenção do sistema penal aparece como a primeira alternativa, como a forma mais palpável de segurança, como a forma de fazer crer que o problema estará sendo soluciona- do. E talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente se manifestem as informações falsas, capazes de induzir á errada busca da intervenção do sistema penal, que, aqui, mais do que ser apenas uma solução simplista e aparente, é, na verdade, uma fonte de maiores e mais graves conflitos, um paradoxal estimulante de situações delitivas. /. Saúde e Drogas. A distinção entre drogas lícitas e ilícitas Colocando-se, como de fato deve ser colocada, a saúde como centro de referência no tratamento da questão das drogas, de início, se poderá perceber a desmesurada impor- tância que se dá a essa questão nos países periféricos. I)c Crimes , fonas c Fantasias longe de atingir a dimensão dos problemas norte-ameri- canos ou europeus, a importância das drogas, no quadro da saúde pública, no Brasil, como nos demais países de nossa margem, é efetivamente suplantada por uma situação trágica, em que não conseguimos resolver sequer problemas extremamente simples, como o controle de doenças preveni- veis por vacinas (no Brasil, segundo dados do UNICEF, morrem cerca de 8.600 crianças, anualmente, de doenças como tétano, difteria e até sarampo). (1) Além disso, 30% das crianças ate 5 anos, em nosso pais, sofrem de desnutrição, ao mesmo tempo em que o menor índice de mortalidade infantil, que conseguimos registrar, nas regiões sul e sudeste (40 e 41 óbitos, respectivamente, por 1.000 nascidos vivos, contra 89 na região nordeste), ainda é o dobro dos índices registrados nos países centrais ou em Cuba. (2) Por outro lado, â incidência de doenças, como a hanse níase, a malária, a esquistossomose, a doença de Chagas, ha muito controladas em outros países, vem se somar a ameaça do cólera, ameaça particularmente agravada pela falta de saneamento básico, bastando pensar que menos da metade dos 4.425 municípios brasileiros - 47,28% - possui rede coletora (1) Dados levantados pelo U N I C E F , em 1989. Veja-se matéria publicada na Folha de São Paulo, em 08/05/90. (2) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, rcali/ada em 1989, pelo I B G E e pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde. Veja-se matéria publicada no Jornal do Brasil em 03/06/ 90. ' 24 Maria Lúcia K a r a m de esgotos. (3) Se lembrarmos, ainda, das notórias deficiên- cias do atendimento médico-hospitalar, não haverá como negar que a preocupação com os efeitos do abuso de drogas não se coloca, propriamente, como uma prioridade neste campo da saúde. Mas, mesmo ao se tratar da questão especifica, a substi- tuição da fantasia pela realidade irá demonstrar que a substân- cia que pode ser vista, efetivamente, como um problema, muito mais sério do que os eventualmente provocados por qualquer droga qualificada como ilícita, é o álcool. Pesquisa realizada em 1989, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas e Psicotrópicos da Escola Paulista de Medicina, constatou, num universo de 67.478 pessoas internadas em hospitais psiquiátricos, públicos e privados, de todo o Brasil, com problemas desta natureza, 64.000 - ou seja, 94,8% - internações relacionadas com o abuso de álcool e apenas 3.478 relacionadas com drogas qualificadas como ilícitas, o que levou a coordenadora da |>csquisa, Beatriz Carlini Cotrim, a afirmar que "apesar de as mortes por overdose de cocaína terem chocado muito a população ultimamente, o grande problema brasileiro continua sendo o consumo de álcool". (4) Mas, às perturbações psíquicas, hão que se somar, sejam as doenças físicas diretamente causadas pelo abuso do álcool, sejam as mortes e lesões a ele associadas, notadamente na (3) Dados levantados na Pesquisa Nacional sobro Saneamento Básico , reali- zada em 1989, pelo I B G E . Veja-se matéria publicada no Jornal do Brasil , em 18/05/91. (4) Veja-se matéria publicada na Folha de São Paulo, em 27/01/91 De Crime*, Penas e Fantasias 25 circulação de veículos, em espancamentos domésticos, ou brigas em bares e outros locais abertos. A substituição da fantasia pela realidade demonstra que o álcool pode debilitar, ferir ou matar incomparavelmente mais do que qualquer droga qualificada como ilícita, afirmação válida até mesmo para outros países, onde o consumo abusivo de drogas ilícitas atinge dimensões bem maiores do que as que se podem constatar em países como o nosso. Na Espanha, por exemplo, o álcool constitui a terceira causa de morte, seguindo se às enfermidades cardiovasculares e ao câncer, atribuindo se a seu consumo 35% dos acidentes de trânsito, a quarta parte dos suicídios e mais de 15% dos acidentes no trabalho. (5) Na França, o numero de mortes resultantes do alcoolismo é estimado em 80.000 por ano, contra 120 causadas pelo abuso de drogas qualificadas como ilícitas. (6) Mas, mais do que a maior gravidade da repercussão social dos problemas causados pelo abuso do álcool, é o próprio conceito de drogas que não deixa dúvida quanto á artifieiali dade da distinção entre drogas lícitas e ilícitas, quanto ao discurso encobridor das razões históricas, económicas e políticas, que, por sobre as preocupações explicitas com a saúde pública, efetivamente determinam a qualificação de umas e não de outras drogas como ilícitas. (5) Veja-se Carlos Gonzalez Zorrilla, Drogas y Cuei , l ión Cr imina l , in LI Pensamiento C r i m i n o l ó g i c o I I , Ediciones Península, Barcelona 1983 os 182/183. ' ' 1 ' (6) C l . afirmação do Procurador da República, Georges Apap, citado por Alain Delpirou e Alain Labrousse, in Coca Coke - PnKlutorts, Consumidores, I raheantes e Governantes, Editora Brasiliense, São Paulo, 1988. p. 300 26 Mar ia Lúc ia R a r a m A partir do que genericamente estabeleceu a Organização Mundial da Saúde - droga é toda substância que, introduzida num organismo vivo, pode modificar uma ou várias dc suas funções - desenvolveram-se definições um pouco mais preci- sas, sendo comumente aceito o conceito de droga comotoda substância que, amando sobre o sistema nervoso central, provoque alterações das funções motoras, do raciocínio, do comportamento, da percepção ou do estado de ânimo do indivíduo, podendo produzir, através de seu uso continuado, um estado de dependência física ou psíquica. (7) Ainda de acordo com as definições estabelecidas pela Organ ização Mundial da Saúde , pode-se entender por dependência psíquica o impulso psicológico que leva ao uso contínuo da substância, para provocar prazer ou evitar o mal- estar provocado por sua falta, caracterizando-se a dependên- cia física pelo estado fisiológico, manifestado por sintomas dolorosos, conhecidos como s í n d r o m e de a b s t i n ê n c i a , decorrente da interrupção da ingestão regular da substância em questão, também devendo se destacar o fenómeno da tolerância, entendido como o estado de adaptação orgânica, caracterizado pela necessidade de utilização de doses cada vez maiores de uma droga, para manutenção do efeito inicial. Dentro destes conceitos, não há como excluir o álcool, medicamentos (barbitúricos e outros tranquilizantes, ansio- líticos, anfetaminas e produtos afins, como moderadores do apetite), o tabaco, ou até mesmo o café, o chá e bebidas como (7) Veja-se conceito análogo no trabalho de Carlos Gonzalez Zorrilla, op. cit., p. 179 De Crimes , Penas e Fantasias 21 a Coca Cola (8) da definiçãode drogas, sendo de se considerar que muitas destas substâncias, livremente comercializadas, produzem inclusive dependência física (como é o caso do álcool e dos barbitúricos e outros tranquilizantes), enquanto drogas qualificadas como ilícitas não têm tal capacidade (como e o caso da cocaína, ou do LSD e outros alucinógenos). (9) Esta divisão artificial das drogas em licitas e ilícitas, como já mencionado, envolve estas últimas numa capa de mistério e fantasia, que as associa ao desconhecido e ao temido, dando- lhes uma conotação um tanto satânica, bem ao gosto da demonologia dos séculos X V I e X V I I (10), o que contribui, de forma decisiva, para impedir uma discussão mais racional cia questão. Muitas ações pedagógicas, dirigidas aos jovens e domina- das por esta visão fantasiosa, acabam por produzir efeitos opostos a suas finalidades, pela falta de credibilidade de discursos que ignoram a artificialidade da distinção entre drogas lícitas e ilícitas (o mesmo pai que se aterroriza com a descoberta de um cigano de maconha entre os pertences do filho é capaz de tomar várias doses de uísque na frente do (8) Sobre a fórmula original da Coca-Cola, à base de cocaína, cafeína e extralos da noz de cola, misturados com água e gás carbónico, vejam-se os comentários de Alain Delpirou e Alain Labrousse, cm Coca Coke.. . , op. cit., ps. 45/46 (9) Sobre a ação, a intensidade dos efeitos e alguns dos riscos mais sérios tias diferentes drogas, veja-se o quadro sinóptico elaborado por J. Camí Morell (in Cuadernos de Pedagogia, num. 73, Barcelona, 1981) e reproduzido por Gonzalez, no trabalho citado, ps. 180/181. (10) A respeito, veja-sc o interessante artigo de Nilo Batista, A Sentença conto Exorcismo, in Punidos e Mal Pagos, Editora Revan, Rio de Janeiro, 1990. 28 Maria Lúcia R a r a m mesmo), que desprezam as diferenças de natureza e dos efeitos das diversas drogas (maconha, ou cocaína, ou LSD, ou heroína são substâncias efetivamente bem diferentes), que cultivam a fantasia do chamado fenómeno da escalada (a visão, divorciada da lógica mais elementar, da maconha como degrau para o consumo de drogas pesadas), ou que confundem o consumo eventual com a dependência ou a degeneração física e psíquica. Tais discursos contradizem a experiência de seus destinatários, que, tendo experimentado, notadamente a maconha, sem sofrer os efeitos destrutivos anunciados, acabam por desprezar recomendações sobre os perigos efetivos do abuso de drogas, especialmente as mais pesadas. Por outro lado, a visão moralista, que apresenta o uso das drogas ilícitas como um vício condenável , degradante, frequentemente ligado a fantasias sobre orgias sexuais (no Estado Novo, a lei penal continha dispositivo agravador da pena se, ao uso de drogas, se somasse o sexo), traz como consequência o forte poder atrativo, característico dos "praze- res proibidos". Além do abandono destes estereótipos, uma discussão racional da questão das drogas passa, antes de tudo, pela desmistificação da visão de que droga está sempre ligada a problema. E preciso ter e deixar claro, até para não cair num discurso contraproducente, que o uso de drogas pode ser apenas prazeiroso. Nem todos os efeitos primários de tais substâncias são negativos, dependendo, não só da natureza farmacológica de cada uma, mas de uma série de outros fatores, como a l)c Crimes , Penas c Kanla^sias quantidade ingerida, as circunstâncias e a frequência em que se dá o consumo, a relação estabelecida entre o consumidor e o produto, etc. Trabalhando-se sem a distinção artificial entre drogas lícitas e ilícitas, isto pode ser facilmente percebido, quando se pensa no uso moderado do álcool, no efeito unicamente prazeiroso e positivo que se pode extrair, por exemplo, de uma taça de um bom vinho na refeição, ou de uma cerveja bem gelada na saída da praia. O abuso, ou uso imoderado, é que constitui e evidencia um problema, pois, aqui, como em outros campos, a quantidade p(xle dar o salto, que a transforma em qualidade. Mas, e sempre bom ter claro que, como em outros aspectos da vida, mais do que constituir um problema em si, o excesso, levando ao abuso e â drogadição (seja por drogas lícitas ou ilícitas), e um sintoma, que, como tal, também deve ser tratado, impou dose a necessidade de investigação e tratamento do proble ma evidenciado - ou dos problemas evidenciados por es te excesso. Vaillant ressalta, inclusive, o pequeno papel exercido pela desintoxicação no tratamento das adições, dado que considera o abuso de drogas como sintomático de problemas subja- centes. (11) Na mesma linha, Grinspoon e Bakalar afirmam que, mais importante do que os aspectos do tratamento da própria droga é o estabelecimento de uma relação terapêutica para o tratamento da depressão subjacente ou da desordem de (11) G . Vaillant, The Harvard guide tu Modem Psvchiatry, liarvard Univcrsity Press, 1978, p. 576. 30 M a r i a Lúc ia K a r a i n caráter, ou de ambas, ressaltando que, se não se seguir com um tratamento adequado, após ter o usuário ficado livre da droga, o retorno à droga inicial, ou a outra com efeitos similares, será quase certo, na medida em que aquela aparece comprovadamente, para ele, como um meio encontrado para o "ajustamento" de seus problemas preexistentes. (12) Naturalmente, a inves t igação e o tratamento destes problemas pré-existentes, evidenciados pelo excesso, pela drogadição, passam, não só pelos aspectos individuais, mas, sobretudo, pela consideração de seus condicionamentos so- ciais, políticos, económicos e culturais. 2. Drogas e sociedade. Alguns aspectos históricos, políticos e económicos O discurso universal e atemporal dominante, encobrindo os condicionamentos (sociais, pol í t icos , e c o n ó m i c o s e culturais) historicamente determinantes das condutas relativas a drogas e das formas de seu controle, constitui um dos fatores mais expressivos da desinformação e consequente criação de falsos estereótipos e falsas soluções. O caminho da drogadição passa, muitas vezes, pela (12) L . Grinspoon e J . Bakalar, Comprehensive Textbook of Psychialry, 111 ed., Williams & Wilkins, Baltimore/London, 1980, ps. 1614/1629. l)c Cr imes , Penas e Fantasias 11 necessidade de atendimento ás exigências sociais, ou p e l a própria necessidade de sobrevivência. Basta pensar, de um lado, na mulher levada a usar drogas moderadorasdo apetite, para emagrecer e, assim, poder atender às exigências de uma moda culturalmente imposta; ou no executivo, que alterna os estimulantes durante o dia e os soníferos à noite, para suportar o ritmo de trabalho e a competição; ou, ainda, nos trabalhadores funcionando, em linhas de montagem, à base de café e álcool. (13) Ou, transportando-se para o período colonial, em nossa América Latina, basta lembrar dos índios comprando folhas de coca, em lugar de comida, com as escassas moedas obtidas em troca de seu trabalho. Mas, pense-se também, hoje, no Brasil, na evidente rela ção entre a fome, as precárias condições de vida e a cachaça (mais barata do que o feijão), a fome, o abandono das crianças de rua e a prática de cheirar cola, substitutivos alimentares para o corpo e para o espírito, ao trágico preço da abreviação da vida. E essa prática de cheirar cola, não atingindo os filhos das classes dominantes ou das classes médias, tampouco atinge o mesmo nível de preocupação que são capazes de causar o uso de maconha, ou o uso de cocaína, ou até mesmo o uso de heroína. (13) Vcja-se Gonzalez, op. cit., p. 193. 32 M a r i a Lúcia R a r a m Mas, não é só este o dado principal desta preocupação diferenciada. Aqui , como acontece em outros campos, se- guem-se também as linhas importadas dos países centrais. A tendência de nossos países latinoamericanos, no entanto, não é de se tornarem grandes centros consumidores de maco- nha, cocaína e, muito menos, heroína. Aqui também, a ordem económica internacional nos reserva o papel de países produ- tores e exportadores de matérias-primas. Da mesma forma que nossos mercados internos pouco desenvolvidos geram a lógica do produzir para exportar matérias-primas e alguns produtos acabados, para as drogas ilícitas, a mesma lógica funciona. Não somos nós, latinoamericanos, os alvos do consumo, até porque, como consumidores, não nos e dado o mesmo potencial dos habitantes do Norte, para gerar os fabulosos lucros que presidem este mercado. Mas, nem sempre as drogas foram geradoras de grandes lucros (como nem sempre foram geradoras de grandes pro blemas). Abundantes informações históricas evidenciam que os povos antigos conheciam e utilizavam drogas em seus ritos religiosos, em suas práticas medicinais, ou em atividades bélicas, artesanais, na caça e na pesca. Beristain lembra que, na China, 3.000 anos antes de Cristo, tratados farmacológicos descrevem a cannabis e seus efeitos, o mesmo sucedendo na índia, no Egito e na Grécia Antiga, também em relação ao ópio , sendo tais substâncias, da mesma forma, conhecidas e utilizadas pelos persas, pelos árabes, pelos romanos, pelos I)c Cr imes , l't nas e Fantasias JJ turcos, ou ainda pelos indígenas da America Latina na época pré-colombiana. (14) Não tinham as drogas, então, um valor económico. E somente com o advento do capitalismo que as drogas vão adquirir valor de troca, vão se transformar em mercadorias, organizando-se sua produção e distribuição como atividade económica, que vai disseminar o consumo e gerar grandes lucros. São igualmente abundantes as informações históricas, que dão notícia do papel desempenhado por tal mercadoria no processo de acumulação legal do capital, nos séculos X V I a XIX. Lembra também Beristain, reproduzindo a narrativa de Galeano, que, na América da colonização espanhola, sequer havia objeçào moral à presença das drogas neste processo de acumulação primitiva do capital, não se furtando a Igreja de cobrar seu dízimo sobre as plantações de coca. (15) Vale reproduzir, aqui, as próprias palavras de Galeano: "Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas típicas. Mas ignoram que a atual vestimenta indígena foi im (14) Antonio Beristain,S J . , Dimensiones Histórica, F c o n ú m i c a y Politica de- las Drogas cn la C r i m i n o l o g i a C r i t i c a , in Cuest ioncs Penales y C r i m i n o l ó g i c a s , Reus, Madrid, 1979, p. 528. (15) Beristain, op. cit., p. 535. 34 Maria Lúcia K a r a m posta por Carlos I I I em fins do século X V I I I . Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram as índias a usarem eram calcados nos vestidos regio- nais das camponesas da Extremadura, Andaluzia e país basco, e o mesmo ocorre com os penteados das indígenas, repartidos no meio, impostos pelo vice- rei Toledo. Não acontece o mesmo, em troca, com o consumo de coca, que não nasceu com os espa- nhóis; já existia nos tempos dos incas. A coca se distribuía, entretanto, com moderação, o governo incaico tinha o monopólio e só permitia seu uso com fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o con- sumo de coca. Era um negócio esplêndido. No século X V I , gastava-se tanto, em Potosí, em roupa europeia para os opressores como em coca para os índios oprimidos. Quatrocentos mercadores es- panhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca; nas minas de Potosí, entravam anualmente cem mil cestos, com um milhão de quilos de folha de coca. A Igreja cobrava impostos sobre a droga. O inca Garcilaso de la Vega nos diz, em seus 'comentários reais', que a maior parte da renda do bispo, dos cónegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o trans- porte e a venda deste produto enriqueciam a muitos espanhóis ." (16) (16) Eduardo Galeano, As Veias Abertas da A m é r i c a Lat ina , Paz c Terra, Rio dc Janeiro, 25 1 ed. 1978, p. 58. De Crimes, Penas e Fantasias 35 Mas, talvez mais significativa seja a conhecida hislo ria das guerras do ópio na China. Fomentando a produção na costa oriental da índia, a Inglaterra, em plena era vitoriana, realizou grandes lucros com a venda na própria índia e, especialmente, com a expor- tação para a China, onde, calcula-se, cerca de dois milhões de pessoas chegaram a se tornar opiómanas. As vendas de ópio, promovidas pela East índia Company, chegaram a representar a sexta parte do total das rendas da índia Britânica. (17) A apreensão e destruição de um carregamento de 1.3ò0 toneladas de ópio, ordenada, em 1839, pelo imperador Lin Tso-Siu, seguiu-se a primeira daquelas guerras, declarada pela Inglaterra, em nome do livre comer io. Como resultado, alem da indenização recebida por aquele carregamento, a Inglaterra ainda obteve, com o Tratado de Nanquim, celebra- do em 29 de agosto de 1842, a cessão de Hong Kong, para ali instalar sua base naval e comercial. Na segunda guerra do ópio, iniciada em outubro de 1856, a Inglaterra já teve a seu lado a França, que, até a primeira metade do século X X , também realizou seus lucros com a importação, produção e venda de ópio na Indochina, onde tinha, desde 1899, o monopólio estatal daquelas atividades. (17) Sean 0*Callaghan, Les Chemins de la Drogue, Ed.de frévise , Paris, 1969, ps. 11 ss. Sobre a presença das drogas no processo de acumulação de capital, na etapa colonialista, vejam-se, ainda, Beristain, op. cit., ps. 530/535 e Luís de la Barreda Solorzano, Capitalismo y Drogas, in Memorias, IV Encuentro Latinoamericanode Criminologia Critica, Nlinisterio de Justicia de 36 Maria I.úcia K a r a m O avanço do capitalismo, com a superação da etapa colo- nialista, também vai se refletir na economia das drogas. A criação e o desenvolvimento de novos mercados vão levar, nesta etapa superior, a que as drogas, produzidas nas antigas colónias, tenham sua comercialização explorada nos países centrais, sendo as que, geralmente, vão ser qualificadas como ilícitas, atingindo, em nossos dias, notadamente a partir dos anos 60 e 70, a notável expansão que movimenta cifras astronómicas (calcula-se que só o mercado mundial da cocaí- na movimente por ano cerca de 150 bilhões de dólares), constituindo-se no mais lucrativo negócio dosúltimos anos (para se ter uma ideia, o movimento gerado pelo comércio de diamantes não passa de 5 bilhões de dólares anuais). É certo que as drogas exercem, hoje, um papel relevante na economia dos países produtores e exportadores. O muitas vezes elogiado plano de estabilização da economia, posto em prática pelo Governo do MNR na Bolívia, que levou a inflação de 12.500%, em meados de 1985, para 80% em 1987, foi acompanhado pelo estímulo à reciclagem dos capitais ilícitos, estipulando o Decreto n- 21.060 que nenhum controle seria exercido sobre as somas repatriadas, calculando-se que a massa monetária proveniente do tráfico de drogas, à época, atingiria de 500 a 800 milhões de dólares, valor superior ao montante das exportações legais. (18) Também na Colômbia estima-se que, somente neste ano de 1991, o ingresso de dólares, cuja origem não precisa ser Cuba, Ca Habana, 1987, ps. 65/67. (18) Veja-sc Delpirou c Labroussc, Coca Coke. . . , ps. 180/186 De Crimes, Penas e Fantasias declarada, ja tinha atingido, até junho, a quantia de um bilhão de dólares, legalizados pelo Banco Central, prevendo-se, para o ano todo, a cifra de 2,5 bilhões de dólares, superiora receita de qualquer exportação legal do país. (19) Não e de se espantar, portanto, que, em entrevista ao The New York Times, o funcionário do Ministério do Planejamen- to da Colômbia, Fernando Tenjo Galarza, tenha declarado que "se o tráfico de narcóticos fosse detido subitamente, seria o mesmo que passar por uma crise do setor cafeeiro e uma cribe do petróleo ao mesmo tempo." (20) Mas, já na comparação destas cifras com os 150 bilhões de dólares estimados para o movimento do mercado mundial, é fácil constatar que, como determinam as regras que regem a ordem económica internacional e à semelhança do que ocorre em qualquer outro setor da economia, não são os países produtores e exportadores que, efetivamente, luciam com o negócio das drogas. Os 250 a 500 kg de folhas de coca, necessários para a fabricação de 1 kg de cocaína, custam menos de US$ 1 mil , 1 kg de cocaína esse que, nos EUA, chega a ser vendido, no varejo, por até US$ 240 mil . (21) Em proporções ainda maiores são os lucros no ciclo final da heroína. Um quilo de heroína é vendido, em Nova York, a um preço aproximado de 1 milhão de dólares, enquanto a matéria prima - 10 kg de ópio - custa um máximo de 500 dólares. (22) (19) Cf. matéria publicada na Revista Veja, edição de 26/06/91. (20) Palavras reproduzidas em matéria publicada no Jornal do Brasil, em lo/ 06/91. (21) Veja-se matéria publicada na Folha de São Paulo, em 12/06/91. (22) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 198 38 Maria Lúcia K a r a m Estes lucros fabulosos alimentam o circuito financeiro internacional, integrando-se ao capital legal, através das cha- madas operações de lavagem, realizadas por "respeitáveis" instituições financeiras. (23) Por outro lado, a produção das drogas qualificadas como ilícitas, nos países periféricos, é também uma expressão de sua situação sócio-econômica, estando intimamente ligada à questão do endividamento, ao esgotamento de recursos natu- rais ou de suas rendas (quedas de preços de matérias-primas), ao subdesenvolvimento, à injusta divisão do trabalho interna- cional. Como indicam Lamour e Lamberti: "Si se quiere buscar el opio, legal o no, es siempre a los países o a las regiones subdesarrol- ladas a donde hay que dirigir la mirada; es allí, de hecho, donde se encuentran reunidas todas las circunstancias que hacen posible - mejor, inevita- ble - este tipo de producción: mano de obra abun- dante y barata, regiones geográficas atrasadas, vias de comunicación inexistentes o insuficientes, mercado interno estrecho, aparatos administra- tivos carentes". (24) (23) Sobre a integração dos lucros das drogas no circuito financeiro internacional, leia-se, entre outros, o contundente livro de Jean Ziegler, A Suíça L a v a Mais Branco , Editora Brasiliense, São Paulo, 1990. (24) C . Lamour e M . Lamberti, II Sistema Mondiale delia Droga (Turin, 1973), citados por Gonzalez, op. cit., p. 208. De Crimes , Penas e Fantasias De lonna semelhante se expressa um jornalista espanhol, citado por Rosa Del Olmo, em relação ao México: "Para un policia mal pagado y un pobre campe sino, que apenas consigue cosechar productos para la subsistência, no hay nada más fácil que recibirel cómodo dinero ganado con la producción y el tráfico de la droga. Los sobornos de los narcotra- ficantes superan con creces los míseros sueldos de un policia mexicano. Para un pobre campesino el cultivo de mota (marihuana) y amapola es más cómodo, varias veces más rentable y mucho menos complicado que la pelea con los organismos me- xicanos encargados dei crédito agrícola,unido a la inseguridad de la cosecha. Los narcos anticipan la semilla, el dinero y pagan muchísimo mas que los que compran el maíz o el fr i jol!" (25) Lembram Lamour e Lamberti a experiência inversa da Iugoslá v ia, que, antes da 2-Guerra Mundial, produzia cerca de 60 toneladas de ópio por ano, reduzindo as para 2,5 toneladas na década de 70, fato, em suas palavras, indicativo de que "el desarrollo regional elimina la adormidera en favor de otros cultivos en la medida en que existe para estos un mercado estable". (26) (25) Rosa Del Olmo, Aerobiologia y Drogas - Delito Transnacional, in NIcinorias,IVEncuenu-ol^UnoamcricanodeCrimií iologíaCrit ica,Ministeri() de JiLsticia de Cuba, L a Habana, 1987, p. 85. (20) C . Lamour e M. Lamberti, na obra já citada, in C Ion/ale/, op. cit., p. 20'í 40 Maria Lúcia K a r a i n Alain Delpirou e Alain Labrousse informam que, segundo o sociólogo José Blanes, por eles entrevistado, com 180 milhões de dólares (o que não é muito, quando se pensa, por exemplo, que só em 1987, o Congresso norte americano autorizou um gasto de mais de 3 bilhões de dólares para a sua "guerra contra as drogas"), se poderiam irrigar 45 mil hecta- res nos altos vales de Cochabamba, na Bolívia, fixando os agricultores à terra e assegurando-lhes um nível de vida razoável, de forma a evitar a migração para o Chapare, a planície onde se concentram os campos de cultura das folhas de coca e que, com o "boom" da cocaína, se transformou no pólo de atraçâo dos deserdados daquele país (em 1967, o Chapare contava com 24.381 habitantes, contra mais de 200 mi l em 1986, sendo que 70% dos colonos lá instalados vêm dos vales de Cochabamba). (27) Não se pense, porém, que os colonos do Chapare sejam ricos fazendeiros. Como narram Delpirou e Labrousse, esses camponeses, que passaram sem transição da economia de troca para a do dólar, permanecem mal alimentados os produtos alimentares, que vêm de fora, tèm preços altíssimos - os serviços de saúde, educação e transportes, na região, são extremamente precários e, mesmo quando passam a elaborar eles próprios a pasta base, permanecem dependentes dos grandes empresários da droga, pois não têm acesso aos meios necessários para sua transformação em cocaína e, sobre- tudo, estão distantes da etapa mais rentável do negocio - a (27) Sobre estas ques iões , veja-se o já citado C o c a Coke. . . , especialmente, ps. 59/60 e 263/265. De Crimes , Penas e Fantasias II comercialização do produto - que exige uma organização inacessível a pequenos produtores. (28) Baratta também se refere a estes pequenos produtores latinoamericanos, lembrando que a par t ic ipação proletari- zada dos áditos dos países centrais, no grande circulo da economia da droga, só é comparável á destes camponeses bolivianos, que, se são privilegiados em relação aos deserda- dos daquele país, são tão explorados e controlados quanto vis consumidores distribuidores, encontrados no extremo oposto do sistema da droga. (29) Alem de ocultar estes e múltiplos outrosfalores económi- cos, como o papel dos mercados consumidores na determi- nação da produção e a criação de demandas artificiais, carac- terística da economia capitalista, a investida contra os países produtores e exportadores, base da política da guerra contra as drogas, imposta pelos senhores do Norte, revelase de extrema funcionalidade política. Llegeiuloí) agente exteniocomooininúgoa.serenlrentadi> nessa guerra, a partir da década de 80, os EUA impõem uma crescente internacionalização da política de drogas, pressio nando os países periféricos, especialmente os latinoameriea nos, em limites atentatórios à soberania daquelas nações. A internacionalização se manifesta na própria linguagem, (28) Delpirou e Labrousse, op cit., ps. 63/68. (29) Alessandro Baratta, Introducc ión a una Sociologia de la Droga, mimeo, p. 19 (Palestra proferida na Conferência Internacional de Direito Penal, promovida pela Procuradoria Geral da Defensoria Pública e pela Secretaria de Estado de Justiça do Rio de Janeiro e realizada no Rio de Janeiro, de 16 a 2 I de outubro de 1988). 42 Maria Lúcia k a i am com o uso generalizado do radical da palavra inglesa Narcotics, utilizável também em espanhol ou em português, passando-sca falar de narcotráfico, narcodólares, etc., quando o principal alvo da política do momento - a cocaína - sequer pode ser visto como narcótico, tratando se, ao contrario, de um evidente estimulante. Atacando as fontes produtoras, com o fim declarado de impedir a chegada das drogas aos EUA, desenvolveram se planos de erradicação de plantações de maconha e folhas de coca, notadamente no México e na Colômbia, em programas que, além de não afetarem de forma significativa a produção, acabaram por contribuir para seu deslocamento a outras áreas, aumentando, desta forma, as fontes da oferta. Nestes progra- mas, financiados ou realizados com a colaboração direta dos EUA, utilizaram-se herbicidas de conhecidos efeitos devasta- dores sobre o meio ambiente, como o Paraquat e o Glifosato, herbicidas cuja utilização no interior dos EUA, naturalmente, sempre encontrou resistências (30), reproduzindo se, aliás, o que ocorre com a exportação, para os países periféricos, de medicamentos - ou melhor, drogas - proibidos nos países centrais. De tais programas à imposição de tratados de extradição, para julgamento de nacionais dos países peri féricos nos EUA, que chegaram a se concretizar na Colômbia, ao preço - sem qualquer contrapartida significativa - de uma reação san- guinária dos chamados "Extraditáveis", os atentados à sobera- (30) A respeito, veja-se o já mencionado trabalho de Rosa Del Olmo, Aerobiologia y Drogas..., in Memorias, op. cit., ps. 77/85. De Crimes , IVnas e Fantasias nia de países latinoamericanos atingiram seu ápice com as intervenções militares diretas, de que são exemplos mais eloquentes a chamada Operação Rlast-Furnace, realizada na Bolívia, em 1986, com o desembarque de soldados america- nos ignorado pelo próprio Chefe do Estado-Maior do Exército Boliviano (31), e a inusitada invasão do Panamá, para prisão do General Noriega, que, de antigo colaborador da CIA, passou a inimigo n e 1 dos EUA, sendo sequestrado pelas tropas americanas, que ali desembarcaram, para ser julgado nos EUA. Esta internacionalização da politica de drogas, acompa- nhada de um modelo geopolítico, que incorpora postulados das doutrinas de segurança nacional, aponta os EUA como país vítima, legitimando as intervenções diplomáticas, fínan ceiras e militares em outros países, ao mesmo tempo que difundindo o estereótipo do "narcoterrorismo", de modo a nele incluir países inimigos dos EUA ou eventuais gni|x>s opositores. Neste sentido, são bastante ilustrativas as conhe- cidas tentativas, do final da década de 80, de acusar Cuba e a Nicarágua sandinista de cumplicidade e fomento do tráfico de drogas, não obstante o próprio Administrador da DEA, John C. Lawn, negasse possuir qualquer informação substancial a respeito, enquanto, ironicamente, surgiam, na mesma época, revelações sobre estreitas ligações entre agentes da CIA, contras nicaraguenses e o contrabando de armas e o tráfico de drogas. (32) (31) Sobre a Operação Blast-Furnace, veja-se Delpirou e Labrousse, op. cit., ps. 185/186. (32) Sobre o estereól ipodo "narcoterrorismo", vejain-se as análises de Rosa Del Olmo, em L a C a r a Oculta de la Droga, Tcmis, Bogotá, 1988, e de Delpirou e Labrousse, cm Coca Coke.. . , op. cit. 44 Mar ia Lúc ia K a r a m De forma análoga, esta funcionalidade política se manifes- ta internamente, em cada país, traduzindo-se na função sim- bólica do "bode expiatório", amplamente desempenhada pela figura do traficante, ou pelos grupos marginalizados de áditos - estes nos países centrais - função simbólica esta, que, concentrando a hostilidade da maioria, contribui para um alto grau de coesão da sociedade, ao mesmo tempo que desvia a atenção de outros problemas mais graves. Por outro lado, a imagem das drogas como um símbolo de rebeldia e contestação, originada, fundamentalmente, a partir de sua efetiva utilização como tal, no final dos anos 60, enquanto alternativa à repressão e ao fechamento das possibi - lidades de desenvolvimento de movimentos políticos mais consequentes (as lutas contra a guerra do Vietnam, o movi- mento negro e as lutas pelos direitos civis das minorias nos E U A , as lutas libertárias na Europa, as lutas contra as ditadu- ras militares na América Latina), foi amplamente divulgada e capitalizada pelo próprio sistema dominante, que, se apro- priando de valores da contracultura, pôde dirigi-los para o consumo dos mais diversos bens, ao mesmo tempo que, indiretamente, se incentivavam movimentos que, embora contes ta tá ri os - como o movimento hippie - tinham caracterís- ticas, em grande parte, alienantes, sendo, portanto, menos ameaçadores . Com o crescimento e massificação do consumo de heroína, introduzida entre os jovens norte-americanos, na década de 70, com a volta dos ex-combatentes do Vietnam, até mesmo estes movimentos contestatários perdem sua força. Ao con- trário da maconha e dos alucinógenos de origem mexicana, l)c Crimes , 1'eiias e Fantasias que coletivizavam o consumo, dando-lhe um carater grupai e comunitário, a heroína, sendo uma droga de características individualistas, inibidoras, não se compatibilizava com qualquer tentativa de agrupamento, de movimento mais ou menos organizado. Como lembra Gonzalez, "La heroína, con sus gravísimas secuelas au todestructivas, ha cumplido un papel poderosísi mo en la destrucción de los movimientos que en determinadas fases de crisis social han aspirado a cambiar de raiz la bases de la sociedad, sirviendo de hecho a la eonservacion dei sistema que la produce." (33) Nos anos 80, é a cocaína que vai ocupar o centro das atenções continentais, trazendo com ela toda a ênfase da já mencionada guerra contra as drogas, da responsabilização dos países produtores e exportadores, da criação do funcional estereótipo delitivo latinoamericano, de que fala Rosa Del Olmo. (34) Neste ponto, é oportuno abrir um parênteses para tecei algumas considerações sobre o já mencionado fenómeno da escalada - a falsa ideia, que relaciona o consumo de maconha com o de outras drogas, que a ve como uma croga de "passagem" para outras mais perigosas. (33) op. cit., p. 201. (34) in L a C a r a Oculta de la Droga, op. cit. 46 M a r i a Lúc ia R a r a m Tal ideia se baseia na constatação de que uma boa parte de consumidores de cocaína ou heroína começaram fazendo uso de maconha ou haxixe, concluindo-se que propriedades far- macológicas destas levariam ao consumo daquelas. Reproduzindo as palavras de T.S. Duster, em The Legisla- t ion o f M o r a l i t y (New York, 1970), Gonzalez mostra afalsidade desta ideia: "Cualquier principiante de un curso de intro- ducción a la metodologia o a la lógica podría percibir la inépcia de esta argumentación. No sabemos casi nada acerca dei número de consumi- dores de marihuana que no llegan a tomar heroína (...) Argumentar que la marihuana induciria a consumir heroína se resume, pues, a aceptar er- rores que van desde los desaciertos lógicos hasta la total incapacidad para aplicar los métodos empíri- cos que permitirían emitir un juicio racional sobre la relacíon entre ambas drogas (...). Cuando se afirma que la marihuana induciria al consumo de heroína se cae exactamente en el mismo error, ya que se está tomando en cuenta unicamente el número de heroinómanos y no la poblacíon mucho más significativa, que consume marihuana. El médico que se apoyara exclusivamente en el exa- men de cancerosos para demostrar la relacíon entre câncer y alcohol, seria objeto de burla dentro y fuera de su especialidad. A pesar de ello, estas descaradas pretensiones que se basan unicamente en el examen de los consumidores de heroína, son l)c Crimes , 1'cnas c Fantasias 47 aceptadas cuando se trata de establecer una re lación entre marihuana y heroína." (35) Lembrando que o fato de existirem consumidores de cocai na ou heroína, que já fizeram ou também fazem uso de maconha ou haxixe, nada significa, pois esses mesmos con- sumidores, provavelmente até em maior número, também fizeram ou fazem uso de tabaco ou álcool, sem que, no entanto, estas sejam consideradas como drogas de "pas- sagem", Gonzalez prossegue, apontando o papel do discurso dominante nesta questão. O desprezo pelas diferenças de natureza e de efeitos das diversas drogas qualificadas como ilícitas, a falta de credibi- lidade dos discursos fantasiosos, sua contradição com as experiências de seus destinatários, levando á desconsideração das recomendações sobre os perigos efetivos do abuso de drogas, como já mencionado, acabam por se tornar um incentivo para que alguns consumidores de maconha che- guem a outras drogas mais pesadas. Da mesma forma, a criação da cultura da droga, a ideia de estar fazendo algo proibido, o apelo contestatário, podem levar ao abandono da maconha em prol de outras drogas, vistas como mais perigo- sas, mais adultas, menos assimiláveis pelo sistema. (36) Não são, portanto, propriedades farmacológicas de umas drogas, que levam ao consumo de outras. Os diferentes ciclos de consumo de umas e outras drogas obedecem a outros (35) op. cit., p. 211. (36) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 212. 48 Maria Lúc ia K a r a m fatores, sendo, fundamentalmente, determinados por razões políticas, económicas e culturais. Tais razões políticas, económicas e culturais mereceriam um estudo mais aprofundado, que, no entanto, fugiria ao âmbito deste trabalho. (37) Aqui , se ressaltará apenas o decisivo papel desempenhado pela intervenção do sistema penal, sem dúvida incluído nestas razões, com a repressão de umas drogas, incentivando o crescimento da oferta de outras (um dos dados a se considerar, por exemplo, na oferta de heroína, nos EUA, na década de 70, em grande parte conse- quência da repressão ao uso da maconha e dos alucinógenos de origem mexicana), intervenção esta que opera como um dado fundamental no funcionamento do mercado, podendo e devendo ser considerada como um dos mais relevantes fatores a ser analisado, quando se estuda a economia política das drogas. 3. Sistema penal e drogas. Os altos custos sociais da criminalização A intervenção do sistema penal, desde seu primeiro mo- mento (a criminalização primária), introduzindo uma variável artificial na estrutura do mercado, provoca a brutal e levação dos preços, que vai gerar os fabulosos lucros já referidos, funcionando, assim, por sobre sua função aparente de re- pressão, como um dos mais poderosos incentivos à produ- ção, mais lucrativa do que quaisquer outras. (37) Para uma v i são dos ciclos das drogas ilícitas no continente americano, nas décadas de 50 a 80, consulte-se Rosa Del Olmo, L a C a r a Oculta de la Droga, op. cit. De Crimes, Penas e Fantasias Incentivando o empreendimento económico, que apa rentemente visa reprimir, tampouco cumpre o sistema penal um papel relevante no controle da distribuição e do consumo daqueles produtos, que qualifica de ilícitos. Como mostra Baratta, "No obstante los êxitos de los que los médios de comunicacíon de masas cotidianamente nos infor- man (detenciones, confiscación de sustancias), no se puede notar en una escala mundial, un aprecia- ble impacto de la represión penal sobre la circu lación nacional e internacional de la droga y sobre el consumo. Según cálculos de los expertos, to- davia hoy la acción de la justicia penal substráe al mercado sólo un porcentaje de substancia ilícita que va dei 5 al 10%. Con el máximo esfuerzoy en las mejores condiciones, el impacto de la acción de la justicia penal sobre la oferta de droga no podría superar el doble de este porcentaje." (38) Estes anos de crescente repressão contam a historia de um repetido fracasso dos objetivos assumidos pelo discurso ofi- cial. Vejam-se as palavras insuspeitas de John Finlator, vice- diretor do Bureau of Narcotics, o conhecido BNDD ameri- cano, como reproduzidas por Lamour e Lamberti: (38) in Introducc ión a una Sociologia de la Droga, op. cu. , p. 13. 50 M a r i a Lúc ia R a r a m "Anos de experiência profesional me han en- senado que las leyes represivas no resolverán nunca el problema de la toxicomania. Cuando en los anos treinta se prohibió la marihuana, no se contaban más de 50.000 fumadores en todo el país. Después de 40 anos de represión durísima, una comisiónencargada de indagar sobre la marihuana nos informa de que 24 millones de americanos la han probado al menos una vez". (39) Na mesma linha, Alba Zaluar e Antônio Luiz Paixão afirmam que o que estes anos demonstram é que: "Aumentou a diversidade de drogas disponí- veis, aumentou o mercado consumidor, aumentou a taxa de criminalidade com vítimas, aumentou a corrupção policial e o tráfico tornou-se atividade empresarial altamente lucrativa e concentrada, ul- trapassando os lucros de outros conhecidos o l i - gopólios." (40) O desenvolvimento de grandes organizações criminosas e a violência por elas gerada, que costumam ser apresentados como consequência da disseminação das drogas, na realidade, são fatores resultantes da intervenção do sistema penal. A criminalização, ao tornar ilegal o mercado de determinadas drogas, necessariamente produz a inserção nesse mercado da (39) C . Lamour e M . Lamberti, na obra já citada, in Gonzalez, op. cit., p. 214. (40) in S o l u ç ã o para o Fracasso da R e p r e s s ã o , publicado no Caderno Ideias- Ensaios, do Jornal do Brasil , em 23/06/91. I)c Crimes , 1'cnas e Fantasias 51 chamada criminalidade organizada, pela própria estrutura empresarial exigida por um tal empreendimento. Por outro lado, a violência é um corolário de uma tal atividade ilegal: sem contar os enfrentamentosdiretos com os agentes encarregados da repressão, basta pensar na concor- rência, na disputa de mercados, na cobrança de dividas, que, como é óbvio, não irão se pautar por regras legais, encontran- do no uso da força sua eficácia. Aqui, vale lembrar, como o faz Gonzalez, da Chicago dos anos 30, dos tempos da lei seca nos EUA, quando se registra o primeiro momento de concentração capitalista da criminali- dade moderna, estruturada, desde então, à semelhança das grandes empresas monopolistas. (41) Mas, a intervenção do sistema penal gera, ainda, outros altos custos sociais. Com seus lucros fabulosos, estabelecendo uma relação funcional com a circulação legal do capital, e seu poder de corrupção, o mercado das drogas ilícitasvai produzir graves desvios, afetando perigosamente órgãos do aparelho estatal e do sistema financeiro, ao mesmo tempo que fortalecendo o poderio das grandes organizações criminosas e da atividade empresarial que realizam. Lamour e Lamberti ressaltam estas ligações perigosas: "Ninguna complicidad es demasiado cara para las sumas que manejan los traficantes; son po- (41) Veja-se Gonzalez, op. cit., p. 199 52 Maria Lúc ia K a r a n i tentes porque pueden corromper a todos cuantos contactan o casi. Cuántos hombres políticos, fun- cionários, magistrados, policias, saben resistir a un sobre con 100 ó 200.000 dólares? Si no se puede responder a esta pregunta, se podrá constatar que en todos los países interesados en la producción, el consumo, la transformación o el trânsito de opio y sus derivados, el tráfico viene organizado o cuando menos cubierto por altísimas personalidades que, evidentemente, están al abrigo, por encima de toda sospecha." (42) Um dos mais eloquentes exemplos de contaminação do aparelho estatal se encontra na história das ditaduras militares na Bolívia dos anos 70, que, como narram Delpirou e Labrous- se, fizeram daquele país o primeiro produtor mundial de folhas e de pasta base de coca, com a quadruplicação da produção, em seis anos. (43) No que se refere aos consumidores, são também especial- mente graves os efeitos negativos da criminalização, a começar pelos maiores riscos à saúde, decorrentes das condições clandestinas em que se realizam a distribuição e o consumo: sendo uma mercadoria ilícita, as drogas entregues ao con- sumo, evidentemente, não estão submetidas a qualquer con- trole de qualidade, muitas vezes contendo substâncias, adi- cionadas à droga em si, de efeitos ainda mais danosos à saúde. (42) C . Lamour e M . Lamberti, na obra já cilada, in Gonzalez, op. cit., ps. 198/ 199. (43) Vcja-se o capítulo "Bolívia: uma economia aquecida pela cocaína", in C o c a Coke. . . , op. cit., ps. 143/160. De Crimes , Penas e Fantasias .vi Por outro lado, a clandestinidade do consumo favorece sua realização em condições higiénicas mais precárias. A grande incidência de portadores do vírus da AIDS entre os áditos ás drogas injetáveis é uma das tragedias de nosso tempo, em boa parte resultante do descontrole da higiene no consumo, embora, neste ponto, se deva ressaltar que, no Brasil, não é este o grupo mais gravemente afetado pela doença. Aqui, como apontado no início deste trabalho, o quadro geral da saúde pública produz outras tragédias, que suplantam em muito a importância das drogas: as maiores vitimas da AIDS, no Brasil, são os hemofílicos, contaminados pelo descaso, pela ganância permitida dos banqueiros do sangue. (44) A clandestinidade do consumo, efeito direlo da criminali- zação, cria maiores tensões na vida de relação, funcionando como um dado a mais na situação problemática original, sintomatizada pela adição, e, portanto, como um realimenta- dor da busca da droga, ao mesmo tempo em que a estigmati- zação, acompanhante necessária da criminalização, levando ao isolamento social e á marginalização, acaba por produzir alterações da personalidade, muitas vezes vistas como um efeito primário das drogas, quando não passam de consequên- cias desta marginalização. (45) O próprio controle terapêulico-assislencial sofre os efeitos negativos da criminalização, que impõe condições contra- (44) Veja-se o artigo de Nilo Batista, Drugas e Drogas, in Punidos e Mal Pagos, op. cit., ps. 59/62, em que ele, falando sobre o c o m é r c i o d e drogas lícitas, se pergunta "onde '.umprirão pena os banqueiros do sangue que coi •aminarani com o vinis da Aids mais de 70% dos hemofíl icos do Rio de Janeiro". (45) Sobre este ponto, veja-se, especialmente, Baratta, op cit., ps 10/11 54 Maria Lúcia K a r a m ditórias com os métodos mais avançados de tratamento dos áditos, do ponto de vista de sua eficácia e de sua cientificidade. Introduzindo um complicador à busca do tratamento, ou seja, a necessária revelação da prática de uma conduta tida como ilícita, a criminalização ainda atua sobre o controle terapêutico-assistencial, integrando-o ao sistema penal. Leis penais, como a brasileira, que impõem a obrigatorieda- de do tratamento àqueles que têm sua culpabilidade excluída, em razão da dependência, contrariam o princípio básico de que o êxito de qualquer tratamento, nesta área, está condicio- nado à voluntariedade de sua busca. Vaillant ensina que o começo de um tratamento eficaz, a longo prazo, só se dá, efetivamente, quando o médico, a família e o paciente con- cordam que este tem uma doença que o requer, para, mais adiante, afirmar que o atendimento compulsório raramente é benéfico. (46) Mas, a lém disso, acenando com o regime de internação hospitalar, para os casos de frustração, pelo adito, do tratamen- to ambulatorial, ou de reiteração da conduta proibida, com a instauração de novo processo, ignora o legislador o fato amplamente conhecido de que a "reincidência" e a interrup- ção do tratamento são episódios normais no processo de desintoxicação, nem sempre traduzindo um fracasso deste tratamento. Estão ainda os consumidores sujeitos à superexploração, seja aquela diretamente decorrente dos preços artificialmente (46) G . Vaillant, op. cit., p. 573. De Crimes , Penas c Fantasias 33 elevados pela variável da criminalização introduzida no mer- cado, seja a indiretamente provocada por essa elevação dos preços, a levar uma parcela destes consumidores a se empre- gar no trafico, para obter a droga desejada, trabalhando como empregados mal remunerados e mais expostos aos riscos da atividade ilícita, naquela já mencionada participação prole ta- rizada na economia política das drogas. Os preços artificialmente elevados constituem ainda um incentivo á prática de outros comportamentos ilícitos diver- sos, com aquela mesma finalidade de obter meios para adqui- rir a droga desejada, o que se soma ao estigma e â margina lização, por si já favorecedores da inserção em contextos criminais, estigma e marginalização estes que, evidente- mente, se agravam no processo de criminalização secundária (a aplicação da lei penal), especialmente quando da imposição de penas privativas de liberdade. Assim, o aumento da criminalidade, comumente apresen- tado r>elo discurso oficial como consequência do consumo de dro bus ilícitas, é, na realidade, em boa parte, resultante dos efeitos da própria criminalização. Estes efeitos da criminalização, entendidos por impor- tantes setores da investigação científica atual como efeitos secundários das drogas (em contraposição aos efeitos primá- rios, ou seja, aqueles produzidos pela natureza mesma das substâncias consideradas), não se manifestam igualmente pelo conjunto da sociedade, recaindo sim, preferencialmente, sobre as camadas mais baixas e marginalizadas da população. Aqui também se reproduz a regra básica da sociedade 56 Mar ia Lúc ia K a r a m capitalista, ou seja, a desigualdade. As relações desiguais de distribuição, que caracterizam o modo de produção capitalis- ta, vão se expressar na distribuição social do atributo negativo considerado - o status de desviante ou o status de criminoso - que, enquanto atributo negativo, será preferencialmente recebido por aqueles que já ocupam uma posição inferior na sociedade, aqueles que se encontram entre as classes subal ter- nas. O texto de Baratta, que abaixo se reproduz, é bastante esclarecedor: "Para evitar una imágen inexacta de los efectos secundários de la droga sobre los consumidores y su âmbito social, es oportuno hacer una precisión. Nada está más lejos de la realidad dei mundo de las drogas, que verlo unidimensionalmente bajo la imagen dra- matizada de la 'escena oficial ' . El 'mundo de la droga' sonen realidad los 'mundos de la droga'. Adernas de la 'escena' que se caracteriza por su enorme visibilidad social, puesta en evidencia por los médios, hay otros mundos discretos, invisibles y, en este sentido, privilegiados. Hay innumerables con- sumidores y adictos de droga que, al contrario dei estereotipo de la 4escena',siguen jugando sus papeies de profesionales y trabajadores dependientes sin pos- teriores perjuicios para su identidad social. En estos casos, que son relativamente más numerosos, los consumidores y sus famílias son exentos de los costos sociales de la criminalización. Ha sido resaltada una tendência a la transformación dei mundo de la droga De Crimes , Penas e Fantasias 57 hacia la figura dei consumidor que tiene la costumbrc de 'inyectarse' el sábado e i r a trabajar el lunes. Pero el privilegio de Ia participación en estos mundos discretos de la droga es, como oiros recursos, dis- tribuído desigualmente en nuestra sociedad. También en el sistema de la droga, la pertencncia a grupos sociales menos aventajados produce una mayor ex- posición a ser insertado en el mundo marginalizado y criminalizado de la 'escena', mientrasque la partici- pación en el consumo de drogas está distribuída en todas Ias capas sociales." (47) Por sua especial importância nesta distribuição desigual dos efeitos secundários das drogas, o processo de aplicação da lei penal merece algumas considerações. A integração ao aparelho de Estado, determinando a atua ção pautada pelo funcionamento concreto do poder de classe deste Estado, característica das categorias que constituem a burocracia, como são as agências do sistema penal, vai funcionar como uma das principais variáveis no processo de criminalização orientado na direção das classes subalternas. Atuando com a lógica e a razão do poder de classe do Estado capitalista, as agências do sistema penal vãoselecionar, nestas classes subalternas, aqueles poucos autores de crimes, que, sendo presos, processados ou condenados, receberão o sta- tus de criminoso e, assim, se distinguirão dos demais indi- víduos, cumpridores do papel de cidadãos respeitadores das leis, formando-se, a partir destes poucos selecionados, a imagem do criminoso. (47) Baratta, op. cit., ps. 12/13. 58 Maria L ú c i a K a r a m A posição precária no mercado de trabalho, as deficiências da socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, pre- sentes entre os que ocupam uma posição inferior na socieda- de, são, não como se costuma apontar, causas da criminali- dade, mas sim características desfavoráveis, que, identifi- cando seus portadores com o estereótipo do criminoso, terão influência determinante naquele processo de seleção dos que vão desempenhar o papel de criminosos. No caso de crimes relativos a drogas, o peso negativo des- tas características aparece claramente, inclusive no que se refere à distinção entre consumidor e traficante. E comum encontrar casos em que a única "prova" do tráfico é o desemprego ou o subemprego daquele que é surpreendido na posse de drogas, visto como naturalmente traficante, por se supor que, estando desempregado ou subempregado, não te ria condições de adquirir a substância para uso pessoal. Como ocorre com a criminalidade em geral, também se manifesta, no caso de crimes relativos a drogas, o fenóme- no, apontado no texto de Baratta, da maior visibilidade social das condutas praticadas por indivíduos pertencentes às classes subalternas, o que, tornando-os mais vulneráveis à repressão penal, constitui outro fator a contribuir para a distribui- ção desigual do status de criminoso. Pense-se, por exemplo, na maior exposição dos vendedores, que atuam no varejo, ou dos transportadores individuais das drogas (as chamadas "mulas"), ou mesmo dos pequenos distribuidores. E evidente que, quanto mais alta a posição no tráfico, mais oculta será a atividade desempenhada, até pela própria natureza das funções exercidas, como ocorre em qualquer empreendimento econô- l)c Crimes, IVnas c Fantasias mico: os empregados encarregados da venda dos produtos de uma grande empresa são, naturalmente, mais visíveis do que seus diretorcs ou acionistas. Alem dessa maior visibilidade natural, é de se conside- rar também, por um lado, o poder de corrupção - e, portanto, de imunidade - tanto maior quanto mais altas a capacidade económica e a posição ocupada na sociedade, além do fato de que as ações das agências policiais desenvolvem-se, com muito maior desenvoltura, nos locais onde se concentram as populações mais carentes. Na atuaçào das agências judiciais, ás ja mencionadas lógi- ca e razão do poder de classe do Estado capitalista, que presidem a atuação das agências do sistema penal como um todo, somam-se a organização fechada e os mecanismos ideológicos, que, negando o aspecto político da função juris- dicional, distanciando e isolando o juiz da dinâmica das lutas travadas na sociedade, fazem com que tais agências percebam e julguem sua clientela dentro dos marcos de referência da ideologia dominante, reforçando, de forma decisiva, a desi- gualdade na distribuição do status de criminoso. (48) No caso do consumo de drogas, o conservadorismo, a incompreensão de costumes alternativos, a incapacidade de aceitar padrões de comportamento destoantes destes marcos de referência da ideologia dominante, exercem um papel fundamental nos julgamentos, atitudes que, no entanto, po- dem ceder diante da questão de classe. (48) Sobre a atuacão das agências judiciais, veja-se, neste volume, o trabalho intitulado Papel Social, Jur íd i co e Pol í t ico da Magistratura. 60 M a r i a Lúc ia R a r a m Ao tratar com indivíduos pertencentes aos estratos superi- ores e médios, os juízes costumam experimentar um senti- mento de incómodo, uma maior preocupação em aplicar a pena, preocupação que não se manifesta quando se trata de indivíduos dos estratos inferiores, aos quais a pena é aplicada sem hesitações, pois menos comprometedora para seu sta- tus social, já baixo. Isto explica um número significativo de absolvições de consumidores de drogas por "política crimi- nal", que já foram muito comuns, na prática da Justiça Criminal no Brasil, servindo para livrar réus pertencentes aos estratos superiores e médios, de boa aparência, bem emprega- dos ou estudantes universitários, como também explica o fato de que tais absolvições, não obstante sua notória improprie- dade técnica, nunca provocaram os mesmos questionamentos suscitados pela tese, universalmente aplicável, da inadmissi- bilidade da punição da posse de drogas para uso pessoal, seja pela inafetação do bem jurídico protegido (a saúde pública), seja por sua contrariedade com um ordenamento jurídico garantidor da não intervenção do Direito em condutas que não afetem a terceiros. (49) A distribuição desigual do status de criminoso determina a ideia de criminalidade como um comportamento caracterís- tico de indivíduos provenientes daquelas camadas mais bai- xas e marginalizadas levando à identificação das classes subalternas como classes perigosas. No caso das drogas, pense-se, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro, em relação às quais se passa a ideia de uma ligação generalizada (49) A respeito da inadmissibilidade da punição da posse de drogas para uso pessoal, veja-se, também neste volume, o trabalho A q u i s i ç ã o , G u a r d a e Posse de Drogas para Uso Pessoal - Ausênc ia de Tipicidade Penal. De Crimes , Penas e Fantasias 61 de seus moradores com o tráfico, reproduzindo-se a mesma linha que, internacionalmente, cria o já mencionado estereó- tipo delitivo latinoamericano. Neste caso de países perigo- sos, basta lembrar que, quando se fala de drogas, não se pen- sa, por exemplo, na Suíça, lavando mais branco, mas ape nas na Colômbia com seus cartéis, ouna Bolívia com suas folhas de coca. Além disso, em nome do clima de pânico, de alarme so ciai, da busca de maior repressão penal como solução ainda que aparente, sacrificam-se princípios fundamentais de um direito garantidor. Baratta cita pesquisa realizada pelo Institu- to de Pesquisas das Nações Unidas para a Defesa Social (UNSDRI-Roma), sobre medidas penais no campo das dro gas, em um número representativo de países, com sistemas políticos diversos e diferentes níveis de desenvolvimento, onde se constatou a tendência das legislações em se afastar de princípios gerais do Direito. (50) O próprio Baratta lembra que este é um dos campos onde a ação policial tende a ultrapassaros limites da legalidade, fato que costuma ocorrer nos chamados crimes sem ví t imas, nos quais a polícia deve assegurar material de prova, sem poder contar com a denúncia e a colaboração da vítima. No Brasil, práticas como invasões e buscas em domicílios sem mandado judicial, mais do que serem comumente reali- zadas (naturalmente, apenas nos bairros populares), são co mumente aceitas pelas agências judiciais, que, em nome do combate às drogas, muitas vezes, se tornam coniventes com a (50) Baratta, op. cit , nota num. 26 62 Mar ia Lúcia K a r a m ilegalidade. Já se toma longínquo o tempo em que a juris- prudência brasileira considerava aquela perigosa tendência de ultrapassagem dos limites da legalidade e opunha reservas à palavra isolada de policiais, diretamente envolvidos na ocor- rência, registrando-se, ao contrário, uma crescente superva- lorizaçào do testemunho de policiais, inclusive em detrimento de outros testemunhos. Também se pode observar, no Brasil, aquela tendência legislativa, apontada na pesquisa do UNSDRI, no sentido de uma maior severidade violadora de princípios gerais do Direito: a recente Lei 8.072/90, a chamada lei dos crimes hediondos, trouxe inconstitucional dispositivo que, contra- riando o princípio da individualização da pena, estabelece que as penas privativas de liberdade, impostas a pessoas condena- das pela prática de condutas relativas ao tráfico de drogas, deverão ser cumpridas, integralmente, em regime techado. Ressalte-se que, antes mesmo da existência de tal dispositivo, registravam-se inúmeras decisões judiciais, afirmando a inad- missibilidade de cumprimento de penas resultantes de conde- nações por tráfico em outro regime que não o fechado, como que numa premonição de sua vigência. Baratta mostra que outros princípios de um direito penal mínimo, entendido como critério inspirador de uma justiça penal ajustada ao Estado de Direito e aos direitos humanos, são violados na política criminal vigente no campo das dro- gas: (51) (51) op. cit., ps. 14/16. Sobre os princípios de um direito penal mín imo , consulte- se, ainda, do próprio Baratta, Requisitos M í n i m o s dei Res peto de los Dcrechos Humanos en la L e y Penal , in Derecho Penal y Criminologia. 31, Universidad Externado de Colômbia , Bogotá , 1987, ps. 91/108. De Crimes , Penas e Fantasias 0 > - o pr inc íp io da idoneidade, que exige a demonstração de que a criminalização é um meio útil para controlar um determinado problema social: como já mencionado, o impac- to da intervenção do sistema penal na distribuição das drogas e em seu consumo é irrelevante, criando, ao contrário, pro- blemas mais graves; o pr inc íp io da subsidiariedade, que impõe a previa comprovação de que não existem outras alternativas que não a criminalização: a intervenção do sistema penal não só não considera as alternativas existentes, como ainda afeta negati- vamente os sistemas terapêutico-assistencial e informativo educativo, como também já apontado; o pr incípio da racionalidade, que exige que se compa rem os benefícios e os custos sociais produzidos pela crimina lizaçáo: nenhum discurso científico conseguiu demonstrar qualquer benefício decorrente da criminalização das drogas, enquanto, ao contrário, já se demonstraram seus altos custos sociais, como os aqui expostos; o pr incípio da proporcionalidade da pena à gravidade do dano social do delito, particularmente Violado no caso da criminalização da posse de drogas para uso pessoal, em que sequer há algum dano social, pretendendo-se punir uma conduta nitidamente privada, sem potencialidade para afeíar bens de terceiros. Os altos custos sociais da criminalização, seus efeitos negativos, sua ineficácia para uma redução significativa da distribuição e do consumo e seus paradoxais papéis como fator de incentivo à produção e estimulante de situações 64 M a r i a Lúc ia k a r a m delitivas, impõem que um discurso e uma pratica, que pretendam se ocupar, seriamente, em enfrentar o aspecto problemático das drogas, sejam acompanhados do rompi- mento com a fantasia da solução penal. 4. Alternativas para o controle do aspecto problemático das drogas Evidentemente, não se pretende apontar, aqui, fórmulas acabadas de alternativas para, definitivamente, controlar o aspecto problemático das drogas. A descriminalização, o afastamento da intervenção do sistema penal, a superação da fantasia da solução penal significam, antes de tudo, uma posição realista, uma posição de rompimento com falsas ou mágicas soluções. A descriminalização, o afastamento da intervenção do sistema penal, a superação da fantasia da solução penal significam, simplesmente, o rompimento com uma forma de controle que pouco controla, que, perversa e contra- ditoriamente, estimula o lucro e a violência dos oligopólios do crime organizado, que, direta ou indiretamente, incentiva o consumo problemático das substâncias que proíbe. Mas, descriminalizar não significa liberalizar. Ao contra rio, descriminalizar implica em abrir maiores espaços para a cr iação de mecanismos não penais de controle sobre a produ- ção , a distribuição e o consumo de drogas, eliminando um sistema contraproducente e de graves efeitos negativos, em prol da intervenção de outros instrumentos, menos pernicio- sos e mais adequados, na busca de caminhos mais racionais e mais eficazes para tratar essa questão. l)c Crimes , Penas e Fantasias 65 Na linha apontada por Baratta, (52) normas administraliv as, apoiadas em sanções adequadas e racionais, teriam que ser implementadas, para o controle de qualidade das drogas (sem distinção entre as hoje lícitas e ilícitas), assim como para o controle da produção e distribuição, impedindo a formação de monopólios e oligopólios, bem como novas formas de ingerência da criminalidade organizada no setor. Ao mesmo tempo, teriam que ser estabelecidas políticas internacionais favorecedoras de medidas tendentes a incentivar atividades económicas alternativas nos países produtores, de forma a reduzir a produção de drogas indesejáveis. O consumo teria que se submeter a limitações, restringiu dose, ou mesmo vedando-se, o uso em lugares públicos de determinadas drogas mais danosas, a exemplo do que, hoje, já se começa a fazer em relação ao tabaco. Neste sentido, se poderia pensar em sanções, como a apreensão tia droga e/ou a expulsão do consumidor do local onde estivesse fazendo uso da mesma, ao lado da interdição teni|>oraria ou fechamento definitivo de estabelecimentos onde se tolerasse tal uso, combinados com a imposição de pesadas multas a seus donos. Acompanhando tais medidas, poderia se pensar no simultâneo fornecimento aos consumidores de informações sobre a existência e localização de estabelecimentos terapêutico - assistenciais, bem como sobre as próprias drogas e seus efeitos, seja no momento mesmo em que fossem surpreendi- dos usando drogas em locais não permitidos, seja através de um convite para comparecimento posterior a postos de (52) op. cit., ps. 25/26. 66 Mar ia Lúcia K a r a m informação, desde logo, afastando-se qualquerobrigatorie- dade deste comparecimento ou de encaminhamento a estabelecimentos terapêutico-assistenciais para avaliação de necessidade de tratamento, pois também os mecanismos não penais de controle devem obedecer ao princípio do respeito à vida privada, à liberdade e às opções individuais. Mas, mais eficazes seriam as medidas de informação e educação de caráter mais geral, mais abrangente, e despidas de qualquer cunho repressivo, que se desenvolvessem através de amplas discussões, com a participação ati va de organizações comunitárias , como associações de moradores, sindicatos, igrejas, grémios e diretórios estudantis, diversificando-se o conteúdo das informações, segundo as características dos setores a serem atingidos, sentindo-se e ouvindo-se as necessidades e opiniões de seus destinatários, tendo se flexibilidade na forma e no momento de abordagem do tema. Tais medidas de informação e educação teriam que, necessariamente, passar pela compreensão global do tema, abordando e esclarecendo os aspectos históricos, econó- micos, políticos e culturais da questão, bem como a dimen- são real dos problemas eventualmente causados pelo uso imoderado das substâncias consideradas. A o lado destes mecanismos de controle, que, naturalmen- te, deveriam se dirigir a todas as drogas, sem a distinção artificial que hoje se faz, uma das medidas mais importantes a ser tomada seria a proibição de qualquer tipo de propaganda de tais produtos. De todo modo, novas medidas, novos instrumentos, l)c Crimes , l*cnas c fantasia*. ul certamente, surgiriam, ao se abandonar a tácil c talsa solução penal. Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre ma is fácil e maiscômoda. Com certeza, é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que, supostamente, induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes, que, mais provavel- mente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples, para a sociedade, permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salva- dora intervenção do sistema penal. Se, no entanto, quisermos soluções verdadeiramente eficazes, será preciso pensar que a intervenção da sociedade civi l , das comunidades organizadas, das pessoas diretamente envolvidas, buscando e trazendo soluções nascidas tia convivência, da solidariedade, da proximidade do conflito, é que poderá dar o salto de qual idade no tratamento de eventuais situações problemáticas provocadas pelo abuso de drogas. Mas, mais do que isso, será preciso ter claro que o aspecto problemático das drogas deriva, basicamente, tia contradição fundamental da sociedade capitalista, sendo uma das muitas distorções geradas por un sistema de relações sociais de produção, que transforma todo recurso de meio para satisfazer necessidades reais em meio de acumulação do capital, que transforma os produtores-consumidores de sujeitos do pro- cesso produtivo em objetos de manipulação. E, assim, será preciso pensar em não descrer da utopia e lutar para construir sociedades em que a produção de bens 68 Mar ia Lúcia K a r a m obedeça , não à lógica do lucro, mas ã lógica das verdadeiras necessidades do homem; não descrer da utopia e lutar para construir sociedades em que as pessoas possam ter maiores oportunidades de ser felizes e, portanto, menores necessida- des de se drogar. Os crimes contra o patrimônio no Anteprojeto de Parte Especial do Código P. nal brasileiro
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