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![[IC]™ENGLUND, Steven. Uma biografia política](https://files.passeidireto.com/Thumbnail/5833597b-489d-4a11-bda9-bbfee36c3d02/210/1.jpg)
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ali, cercado por sua família extensa, lhe tenha propiciado muitos momentos felizes. A corte que o jovem herói criou em Mombello transformou-se rapidamente numa das mais brilhantes da Europa, atraindo muitos dos mais destacados escritores, poetas e eruditos franco-italianos da época. Ela passou também por um processo crescente de enrijecimento numa etiqueta severa que não mais permitia ao procônsul partilhar refeições informais com oϐiciais e ajudantes.16 Uma olhadela em suas cartas indica que o que o surpreendia e aborrecia não era nenhum evento isolado, mas a constatação de que a maioria da população da Itália mostrava-se indiferente, quando não hostil, à sua própria república e a todo o projeto de progresso social representado pela Revolução Francesa. Sabia que a Cisalpina não poderia ser abandonada — se os franceses tivessem partido, os giacobini teriam sido massacrados —, mas entedia que sua preservação e progresso estavam ameaçados “pelo preconceito e caráter, e pelo hábito de séculos [na Itália], que não ousamos desconsiderar”. O que talvez se possa criticar é o fato de Napoleão não ter permanecido na Itália para se dedicar ao trabalho de ajudar a jovem república a resolver alguns de seus graves problemas, entre os quais as próprias cobranças francesas que Bonaparte, se realmente o pretendesse, poderia ter modiϐicado. Dissera a um colaborador que não deixaria a Itália “exceto para desempenhar um papel na França”, mas o fez, e não para passar muito tempo em Paris. Na ausência de Napoleão, sucederam-se na República Cisalpina — de fato, em toda a Península — desastres que sua presença certamente poderia ter evitado. Interlúdio parisiense O general Bonaparte chegou a Paris no dia 5 de dezembro de 1797, à paisana, a cabeça na política. Queixou-se a Bourrienne, seu antigo colega de escola: “Se ϐicar muito tempo sem nada para fazer, estou perdido. Eles não se lembram de nada [de meus feitos passados] em Paris.”17 Estava ávido por participar do jogo alto em curso na capital francesa. Em uma quinzena, encontrou-se com os principais jogadores de todos os pontos do espectro político, inclusive dois homens que haviam adquirido renome no início da Revolução. O abade Emmanuel Sieyès fora o autor de Qu’est-ce que le tiers état?, o panϐleto que inaugurara a Revolução Francesa.18 Nele, praticamente estabelecera os termos do choque titânico que se seguiria entre as castas privilegiadas e a burguesia. Por algum tempo, em 1789, Sieyès causou o impacto e exerceu o tipo de inϐluência com que a maioria dos ϐilósofos políticos pode apenas sonhar. O ensaio o lançou numa carreira política na Assembléia Nacional, para a qual sua personalidade irritadiça, mas tímida, e sua voz fraca e rouca nunca o teriam levado. Mas sua carreira, como tantas outras, foi abreviada pela marcha turbulenta da própria Revolução. Um moderado de escol, conseguiu sobreviver ao Terror (“j’ai vécu”, sintetizou em frase famosa) tornando-se uma “toupeira”, nas palavras de Robespierre.19 A toupeira saiu da toca em 1795, mais velho e mais experiente que a maioria dos atores políticos em cena e ainda gozando de grande reputação como teórico político. Bonaparte e Sieyès jantaram juntos no início de dezembro, e não se produziram faíscas. O ϐilósofo sentia desprezo pelo oϐicial, e vice-versa. Até então, nenhum dos dois estava convencido de que não poderia dispensar a ajuda do outro. O novo conϐidente político de Bonaparte nessa época foi Charles Maurice de Talleyrand-Périgord, o novo ministro das Relações Exteriores da República. Descendente da mais alta nobreza, Talleyrand fora bispo de Autun sob o Antigo Regime, e seu papel no início da Revolução não fora menor que o de Sieyès. Praticamente às vésperas de abandonar o sacerdócio para fazer carreira na política secular, Talleyrand consagrou os primeiros quatro prelados da Igreja Constitucional, mantendo assim uma sucessão apostólica no culto nominalmente católico e garantindo para si a danação eterna aos olhos de Roma. O período jacobino provou-se impetuoso demais também para a moderação de Talleyrand, e ele partiu para um exílio voluntário na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele e Bonaparte na verdade já se conheciam bastante bem, tendo entabulado uma correspondência política bastante regular no verão de 1797. Agora passaram a se encontrar em Paris, e o que emergiu disso não foi uma amizade — conceito que pressupõe verdade e altruísmo —, mas uma tranqüila entente cordiale, baseada em interesse e respeito mútuos.20 Em meados de dezembro, estava claro para todos os observadores atentos que o “vencedor de Rivoli” decidira afastar-se da arena política imediata. Não havia um papel ou iniciativa que estivesse disposto a reivindicar na política interna. Ao contrário, reconhecia com absoluta clareza que sua reputação como conquistador da Itália, embora gigantesca, poderia ser desperdiçada no facciosismo político; por enquanto, nada tinha a ganhar ali — e muito a perder. Permaneceu distante de todos os partidos, e passava seu tempo freqüentando reuniões do Instituto Nacional,21 para o qual fora recentemente eleito. O problema era encontrar um cargo digno para o herói conquistador da Itália. Ansioso para se ver livre dele, o Diretório nomeou-o (10 de janeiro) para o comando do Exército da Inglaterra — que tinha um projeto teoricamente muito grandioso. Mas após passar várias semanas inspecionando tropas e instalações na costa do Canal da Mancha, Bonaparte concluiu que uma invasão estava fora de cogitação. Aconselhou o Diretório a abandonar o plano. Outra possibilidade surgiu. Fazia já algum tempo que Talleyrand vinha propondo ao governo uma expedição militar ao Egito, então uma província da Turquia otomana — ou a Sublime Porta, como era conhecida. Na expressão grandiloqüente do ministro das Relações Exteriores em seu relatório do mês de julho anterior: “O Egito foi uma província da República Romana; agora deve se tornar uma província da República Francesa. A conquista romana foi um período de decadência para esse belo país, a conquista francesa inaugurará um período de prosperidade.” Quanto a Bonaparte, há registros de que também ele sugeriu ao Diretório que uma política oriental agressiva era desejável. Aconselhara que a República conservasse o porto de Ancona sob seu domínio no armistício que encerrara a guerra austríaca: “Ele nos dará grande inϐluência sobre a Porta Otomana e fará de nós senhores do mar Adriático, como já somos, a partir de Marselha e da Córsega, do Mediterrâneo.” Em 16 de agosto ele aprimorou consideravelmente o conselho: “Para verdadeiramente destruir o Egito, teremos de tomá-lo.”22 Assim o Diretório encampou a idéia de que um ataque indireto à Índia através do Egito era, de certa forma, uma possibilidade realista e um golpe perigoso para a “Pérϐida Albion” (Inglaterra). Se havia algo de quimérico nessa linha de raciocínio, é importante lembrar que a França só recentemente perdera a Índia (1763) e seu império norte-americano para os britânicos, e a mancha decorrente em sua honra, bem como o prejuízo comercial, não fora de modo algum esquecida. As experiências de Napoleão Bonaparte em 1796-97 levavam-no a se manter a boa distância das facções — o que era sem dúvida facilitado pela ausência na cena política da época de alguém com a determinação, a lucidez