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![[IC]™ENGLUND, Steven. Uma biografia política](https://files.passeidireto.com/Thumbnail/5833597b-489d-4a11-bda9-bbfee36c3d02/210/1.jpg)
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Napoleão recebeu uma visita dos pais. Letizia achou o ϐilho “assustadoramente magro” e queixou-se de uma mudança em seus traços. Essas alterações que desagradam às mães não são raras em adolescentes enviados muito jovens para uma escola preparatória exigente. Em que pese a Letizia, elas talvez não fossem um mau sinal. Um hábito que Napoleão manifestou em Brienne e que perseveraria ao longo de toda a sua vida foi a expressão de preocupação com a família. É notável quanto tempo um adolescente com grandes preocupações, muito mais imediatas, a pressioná-lo dedicava a pensar nos parentes, a inquietar- se por eles — e a escrever-lhes também. Apenas poucas dessas cartas sobrevivem e nos permitem vislumbrar o caráter do jovem Napoleão. A primeira, datada de julho de 1784 e dirigida a um tio, foi escrita logo após a visita de Carlo a Brienne. O pai fora até lá para conϐiar “Lucciano” (Luciano) aos cuidados da escola e dos irmãos. O orgulho de Napoleão pelo menino de nove anos e o evidente prazer que sentia por tê-lo ao seu lado são mais paternais que fraternais: Meu querido Tio, ... Lucciano está com 9 anos, e mede 1 metro, 2 centímetros e 44 milímetros. Está na sexta classe de latim e vai aprender todas as matérias do currículo. Está cheio de disposição e de boas intenções. É de esperar que se saia muito bem. Está com boa saúde, é um garoto íntegro, esperto e travesso, e até agora estão contentes com ele. Sabe francês bem e esqueceu seu italiano. Vai acrescentar uma mensagem para o senhor no fim da minha carta. Não lhe direi o que escrever, e assim poderá ver por si mesmo seu savoir-faire. Espero que ele lhe escreva com mais freqüência do que durante sua passagem por Autun.2 Em outra carta, que escreveu após saber que José iria para a escola de Brienne, Napoleão escreve: “Mon cher Père, ... estarei abraçando José antes do ϐim de outubro”, assim os três irmãos estarão juntos — perspectiva que traz “consolo” para seus corações. O que preocupa Napoleão dessa vez é a saúde do pai: diz-lhe esperar que o retorno de Carlo à Córsega acelere sua recuperação, de modo que “sua saúde fique tão boa quanto a minha”.3 No ϐinal do ano acadêmico de 1783, o inspetor dos colégios militares visitou Brienne e declarou que o “Cadet de Buonoparte” lhe parecera “dócil [caractère soumis], meigo [doux], sincero, grato [reconnaissant], [e] regular em seus hábitos”. Considerou-o pronto, embora tivesse acabado de completar 14 anos, para ir para a École Royale Militaire, em Paris, para o término de sua formação antes de receber a patente. Os professores de Brienne discordaram: objetaram fortemente que ele ainda era novo demais. Após passar mais um ano em Brienne, partiu para a capital. Muitos anos depois, Napoleão teria de partir às pressas para a Itália para tratar de assuntos críticos do Império. Era abril de 1804 e a guerra recomeçara, pondo a França em desavença com diversas grandes potências. Isso não o impediu, porém, de fazer uma escala de dois dias em Brienne. Caminhou pelo terreno de sua escola, agora em ruínas, examinou junto à municipalidade local a possibilidade de reconstruí-la (fez uma contribuição de 12.000 francos para esse ϐim) e expressou decepção ao não encontrar por lá o padre que lhe dera a primeira comunhão. No dia seguinte saiu a galope em seu cavalo árabe, cavalgando pelos campos que cercavam Brienne, contemplando as vistas de que se lembrava do passado distante. Durante três horas os homens de sua comitiva o seguiram tão bem quanto puderam; depois almoçaram. Um deles escreveu: “Raras vezes ele se mostrou tão afável.” No último testamento que escreveu em Santa Helena, Napoleão destinou um legado de um milhão de francos para Brienne. Nada disso se assemelha às palavras ou ações de um homem afligido por memórias infelizes de seu tempo de escola — ao contrário. Cavalheiro e oficial Ao entardecer do dia 19 de outubro de 1784, Napoleão e quatro colegas de escola chegaram a Paris para se matricular na École Royale Militaire, na margem esquerda do Sena. Foram de barco, mas talvez só um ilhéu como Napoleão teria podido descrever a chegada deles como um “desembarque” num “porto de escala” (estaria ciente de que Paris é o centro da île de France?). A escola, projetada por um dos mais destacados arquitetos da época, Jacques-Ange Gabrielo, ocupava um magníϐico conjunto de prédios neoclássicos, com fachadas imponentes e colunas coríntias.4 Tratava-se de uma instituição tão exclusiva que, para nela se matricular, todos os meninos precisavam de uma autorização assinada não só pelo ministro da Guerra como pelo próprio rei. A escola era de origem recente (1776), e embora decerto tivesse o propósito de formar oϐiciais competentes, essa não era sua meta principal. A promoção e o progresso ali não eram baseados em realizações ou no intelecto. A instrução, nessa escola, cedia a primazia à formação de jovens de sangue azul no amor e serviço da monarquia e nos costumes da corte. Essas lealdades não eram automáticas, essas disposições não eram favas contadas — a nobreza francesa era uma classe notoriamente independente e dividida que se gabava (não há palavra melhor para expressá-lo) de uma longa história de insubordinação ao rei, e até de rebelião contra ele. Além disso, as famílias nobres mais importantes alimentavam a idéia preconcebida de que seus ϐilhos não precisavam, aϐinal de contas, de formação, pois haviam “nascido para a vida militar” e eram capazes de comandar regimentos com suas genealogias. Desde o início do século, a linha de ação da Coroa tinha por fulcro convencer as famílias da alta aristocracia a aceitar uma aliança com as camadas média e baixa da nobreza na obediência e serviço a “seu” rei. Esse segundo estado recém-uniϐicado devia, a um só tempo, ser adequadamente adestrado na élégance a ser exibida em Versalhes e treinado para o comando efetivo de tropas e a formulação de estratégias. Esse não era um cenário feliz para um rapaz cuja nobreza era recente e “petite”. A voz tradicional que ecoa a partir das biograϐias napoleônicas sustenta que o jovem Bonaparte — extraordinaire abelha operária subitamente introduzida numa colmeia de zangões e rainhas — reagiu com repugnância a seu novo ambiente. A partir dos indícios limitados que temos das idéias de Napoleão na época, o novo cadete foi crítico da École Royale desde o início, tendo relatado que passou uma primeira noite muito ruim ali porque “o tom era diferente”. Em Brienne, sob a direção de monges, o ethos fora espartano; mas no Champ-de-Mars, escola dirigida por oϐiciais do exército, respirava-se o ar da antiga Persépolis. Havia ali 215 alunos, e o dobro de criados, professores e todo tipo de factótum (p.ex., peruqueiros). Napoleão detestou esses mimos régios da nobreza e, um dia, promoveu reformas destinadas a fazer dos cadetes guerreiros auto-suficientes, não esnobes de sangue azul. Mas esse não foi um cenário apenas de sofrimento para o jovem Napoleão. O problema com a idéia de que o cadete estava em total desarmonia com a École Royale é que ela é “infectada” por suas concepções tardias, professadas em Santa Helena. Toda a sua bombástica linguagem pós-revolucionária sobre os aristocratas como “a maldição da nação” e “imbecis que odiavam todos os que não eram ‘inúteis hereditários’ como eles mesmos” nos atrapalha a perceber o que um menino de 15 anos pode ter realmente sentido quando vestiu