Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA DELCIMARIA DANTAS DE ARAUJO ADULTIZAÇÃO INFANTIL NO SÉCULO XXI: uma abordagem histórica acerca das concepções de infância CAICÓ – RN 2016 DELCIMARIA DANTAS DE ARAUJO ADULTIZAÇÃO INFANTIL NO SÉCULO XXI: uma abordagem histórica acerca das concepções de infância Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia como requisito à obtenção do título de Licenciatura pelo Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profª. Drª. Grinaura Medeiros de Morais. CAICÓ – RN 2016 DELCIMARIA DANTAS DE ARAUJO ADULTIZAÇÃO INFANTIL NO SÉCULO XXI: uma abordagem histórica acerca das concepções de infância Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia como requisito à obtenção do título de Licenciatura pelo Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. BANCA EXAMINADORA Drª. Grinaura de Medeiros Morais (UFRN) Orientadora Drª. Jacicleide Ferreira Targino Cruz Melo (UFRN) Examinadora Me. Carlos Francisco do Nascimento (UFRN) Examinador Aprovada em ______ de ____________ de 2016 CAICÓ – RN 2016 DEDICATÓRIA A Jesus Cristo, toda Glória, Honra e Poder. Aos meus pais, Lucinete Maria Dantas e Nelson Dantas de Araujo, que foram meus primeiros mentores, que investiram suas vidas em meu benefício, eu os amo. A toda minha família, que tão de perto e muitos de tão longe, acompanharam minha trajetória acadêmica e torceram por essa conquista em minha vida. A todos meus colegas e amigos, que me incentivaram e não me deixaram desistir. A todos os educadores que passaram por mim, saibam que sou fruto desse honroso trabalho, posso então dar continuidade a essa bela missão, ensinar e educar. Aos demais professores que fizeram parte da minha vida acadêmica até hoje, em especial a Drª. Grinaura de Medeiros Morais. Aos examinadores desse trabalho monográfico, Me. Carlos Francisco do Nascimento e Drª. Jacicleide Ferreira Targino Cruz Melo. Aos meus avós paternos (In Memorian), Maria Da Mata Dantas e João Pereira Dantas, que com simplicidade e honestidade educaram seus filhos e hoje sua neta tem a satisfação de declarar que valeu a pena, sou grata. Aos meus avós maternos Inácia Maria Dantas e Antônio Higino Dantas, pelo incentivo e dedicação em fazer-me prosseguir. A todos estes, dedico o presente trabalho. AGRADECIMENTOS Ao longo da minha trajetória enquanto discente, muitos são os nomes a quem quero agradecer. Dentre eles, os listados abaixo, pelos quais tenho um carinho especial e, através eles, agradeço a todos os outros. A todos os professores orientadores, que contribuíram no conhecimento que tenho adquirido na Universidade, em especial a professora Drª Grinaura de Medeiros Morais. Aos meus pais, Lucinete Maria Dantas e Nelson Dantas de Araujo. Aos meus irmãos, Laiany Lídia, Nelson Dantas, Nelton Dantas, Nelcimar Dantas e João Neto. À minha sobrinha amada Stephanie Rolim. Aos meus tios, Edson Pereira de Araújo e Maria da Guia Dantas. Às minhas primas, Danielle Dantas, Emanuelle Cristina e Yasmin Dantas. Aos meus líderes eclesiásticos, Edízio do Amaral e Edvânia do Amaral. Aos colegas de sala e do curso de Pedagogia. Às escolas municipais, Escola Municipal Dom José Delgado, C.M.E.I Terezinha Fernandes de Oliveira Castro e a Creche Francisca Pereira Luciano. A todos os professores que já passaram em minha vida estudantil. Enfim, a todos que contribuíram direta ou indiretamente com minha formação. Muito obrigada. (...) querer conhecer mais sobre a trajetória histórica dos comportamentos, das formas de ser e de pensar das nossas crianças, é também uma forma de amá-las todas, indistintamente melhor. Del Priore RESUMO O presente trabalho monográfico se constitui no produto de uma pesquisa realizada acerca da Adultização da Infância nos tempos atuais, uma questão por demais preocupante e presente em todos os quadrantes da sociedade. Nele abordamos as concepções de infância em contextos distintos, a publicidade infantil, influência da mídia e incentivo ao consumo, e a adultização na atualidade: reflexões acerca dos seus impactos na vida da criança e do adolescente. Trata-se de uma pesquisa do tipo bibliográfica acerca das concepções de infância, recorrendo-se aos aportes históricos, midiáticos e culturais que embasam essa forma de conceber a infância no presente momento. Para realizá-la recorremos à produção de Mary Del Piore intitulada História das Crianças no Brasil e O Desparecimento da Infância de Neil Postman. Em ambas, procurou-se identificar as formas de adultização no momento atual, bem como destacar o papel influenciador da mídia sobre a infância, a cultura consumista, a erotização e publicidade infantil, bem como a adultização precoce. A monografia está organizada em três (3) capítulos: Concepções de Infância em Contextos Distintos, Publicidade Infantil, Influência da Mídia e incentivo ao consumo infantil e Adultização na Atualidade e traz reflexões acerca dos seus impactos na vida da criança e do adolescente. As notas finais encaminham-se para os resultados conclusivos, ainda que de forma aberta, dada à natureza polêmica do tema, sendo que da pesquisa podemos inferir que não há conclusões fechadas que abarquem a sua natureza. Palavras-chave: Infância. Adultização. Consumo. Século XXI. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - Crianças à moda adulta ....................................................................... 41 FIGURA 2 - Meninas estilosas ............................................................................................ 41 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ART – Artigo .......................................................................................................................... 11 ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente .......................................................................... 12 PL – Projeto de Lei .................................................................................................................. 12 D.C – Depois de Cristo ........................................................................................................... 20 OIT - Organização Internacional do Trabalho ......................................................................... 28 UNICEF- Fundo das Nações Unidas para a Infância .............................................................. 34 SÉC. – Século .......................................................................................................................... 37 ORG. – Organização ................................................................................................................ 38 ONGS- Organizações Não Governamentais ............................................................................38 CDC – Código de Defesa do Consumidor ............................................................................... 42 CONANDA- Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ......................... 43 CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária ...................................... 47 WWW- World Wide Web ....................................................................................................... 50 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11 1 CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM CONTEXTOS DISTINTOS ........................... 14 1.1 O SENTIMENTO DE INFÂNCIA EM MEADOS DO SÉCULO XV ........................... 16 1.2 A TIPOGRAFIA E O NOVO ADULTO .......................................................................... 20 1.3 A VIDA DAS CRIANÇAS NAS EMBARCAÇÕES PORTUGUESAS XVI E NO BRASIL QUINHENTISTA .............................................................................................. 22 1.4 SÉCULO XVIII – nova concepção de infância em Rousseau .......................................... 24 1.5 O NASCIMENTO DA INDÚSTRIA E A RELAÇÃO COM O MUNDO DA CRIANÇA ..... 27 1.6 SÉCULO XIX: o cotidiano das crianças abastadas durante o império ............................. 29 1.7 SÉCULO XX: trabalho infatojuvenil no Brasil ............................................................... 32 1.8 CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA – século XX - XXI ........................................................ 35 2 PUBLICIDADE INFANTIL, INFLUÊNCIA DA MÍDIA E INCENTIVO AO CONSUMO INFANTIL .................................................................................................. 38 2.1 NOVA NOÇÃO DE INFÂNCIA MEDIADA PELO MERCADO DA MODA: crianças que se vestem semelhante a adultos. ......................................................... 41 2.2 PROTEÇÃO À CRIANÇA CONTRA A PUBLICIDADE ABUSIVA E ENGANOSA: Código de Defesa do Consumidor e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente .................................................................................................................. 42 2.3 NOVAS GERAÇÕES: influência do marketing no comportamento infantil .................. 44 2.4 IMPACTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO COTIDIANO FAMILIAR .................. 45 3 ADULTIZAÇÃO NA ATUALIDADE: reflexões acerca dos seus impactos na vida da criança e do adolescente ............................................................................................. 48 3.1 IMPORTÂNCIA DA ORIENTAÇÃO FAMILIAR QUANTO AO CONSUMO CONSCIENTE. ................................................................................................................. 49 3.2 CRIANÇA ADULTIZADA E INFÂNCIA EM DECLÍNIO ............................................ 50 3.3 VULNERABILIDADE INFANTIL: exploração sexual comercial, fatores que proporcionam o declínio da infância ................................................................................. 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 53 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 55 11 INTRODUÇÃO É notório que, em pleno século XXI, continua sendo forte a inserção precoce da criança no mundo adulto. Ao estudar as concepções teóricas que existem acerca de infância, observa-se que apesar dos progressos sociais, a criança ainda é tida em nossa sociedade como um adulto em miniatura 1 , pela forma de vestir-se, pelos novos hábitos alimentares, pelo padrão linguístico, assim como atitudes e diversas habilidades que um ser pequeno possui, por vezes assemelhando- se aos adultos, este conceito pode até soar arcaico, mas infelizmente ainda tem estado presente em nosso cotidiano. Vítimas de uma sociedade capitalista e altamente consumista, preocupa o fato de saber se, de fato há um desaparecimento da infância 2 . O significado etimológico da palavra infância, segundo Faria (1956, p.496) é: Da partícula negativa latina in, „não‟, usada como prefixo, e do latim fans, fantis, particípio presente de fari, „falar, ter a faculdade da fala‟, forma-se o adjetivo latino infans, infantis, „que não fala, que tem pouca idade, que é ainda criança‟. O adjetivo infantilis, „que diz respeito às crianças, infantil‟, e o substantivo infantia, „incapacidade de falar, dificuldade em se exprimir, meninice, infância‟, são derivados latinos de infans, infantis. Tal concepção é relacionada à criança até os sete anos. Segundo Ariès (2006, p. 6), “A primeira idade é a infância que planta os dentes e essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não-falante, pois nessa idade a pessoa não pode falar bem”. Tendo como critério cronológico absoluto, o Estatuto da Criança e do Adolescente/1990 3 considera faixas etárias para classificar criança e adolescente. Com base no Art. 2º, os cidadãos que estiverem inseridos na faixa de 12 anos incompletos são considerados ainda criança e de 12 anos a 18 anos incompletos são adolescentes, embora já pratiquem muitas atitudes de adultos, atitudes pensadas, incluindo atos infracionais. Algo que tem impactado de forma significativa o comportamento e a identidade da criança contemporânea é o fato de serem feitos altos investimentos em publicidade infantil 4 e 1 Adulto em miniatura é uma expressão utilizada por Neil Postman, em sua obra “O Desaparecimento da Infância” para enfatizar a transição da criança no mundo infantil para o adulto. 2 Segundo o Dicionário Aurélio: Período de crescimento, que vai do nascimento à puberdade. 3 Estatuto da Criança e do Adolescente –Art.1º Esta Lei Dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. 4 Neste sentido há o PL 5921/2001, o mesmo é um manifesto pelo fim da publicidade e da comunicação mercadológica dirigida ao público infantil. Há doze anos encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados. 12 incentivo à cultura consumista. O Estatuto, por sua vez, protege os mesmos de qualquer tipo de publicidade ilícita, conforme o Art. 5° a criança não pode ser submetida a nenhuma forma de exploração e o Art. 17 dispõe acerca da preservação da identidade dessas crianças e adolescentes. O Art. 71 do ECA, assegura à criança e ao adolescente o direito “à informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento”. Sendo assim, o que é ofertado às crianças deve ser compatível à faixa etária do menor. Impulsionadas pela ideia do consumo e envolvidas em um mundo onde o sistema capitalista apresenta-se de forma extrema, percebemos que há uma “Adultização Infantil5”, motivo pelo qual buscamos neste trabalho trazer uma reflexão acerca do impacto nocivo que essa inserção no mundo adulto tem causado às crianças através da alta exposição em publicidade e o apelo capitalista. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem como objetivo estatutário a proteção dos menores de 18 anos, assegurando-lhes um desenvolvimento físico, mental, moral e social condizentes com os princípios constitucionais da liberdade e da dignidade, preparando-os para a fase adulta em sociedade. Este trabalho tem uma relevante importância para os dias atuais, por tratar de uma questão presente no dia a dia das famílias e da sociedade em geral. Seus resultados poderão servir à sociedade como um ponto de reflexão para o aprimoramentoe a melhoria dessa realidade que se mostra de forma preocupante, uma vez que se trata da infância. As crianças não se adultizam por conta própria, sempre há neste processo um adulto como agente adultizador. Sendo a infância um período imprescindível na formação do ser, faz-se necessária a reflexão acerca dos assuntos que a envolve, sendo a criança assegurada pela Constituição Federal/1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente/1990, por sua vez merece a proteção especial da Família, Sociedade e do Poder Público. Para realizá-lo, fez-se uma abordagem histórica acerca das concepções de infância, recorrendo-se aos aportes históricos, midiáticos e culturais que embasam essa forma de conceber a infância no presente momento. O trabalho discorre sobre as concepções de infância a partir da 5 Adultização: trata-se de um neologismo, está relacionado aos aspectos característicos de um ser adulto. O fenômeno da adultização precoce passa não só pela exposição das crianças a determinados temas como trabalho infantil, consumo, sexualidade, como também pela própria erotização da imagem da criança, onde a mesma possui atitudes e características similares a de uma pessoa em sua fase adulta. 13 visão de Mary Del Piore, em seu livro História das Crianças no Brasil e Neil Postman, com sua obra O Desparecimento da Infância, realçando os principais aspectos desenvolvidos pelos autores, situando-os no contexto em que escreveram. O objetivo é identificar as formas de adultização no momento atual, bem como destacar o papel influenciador da mídia sobre a infância, a cultura consumista, a erotização e publicidade infantil, bem como a adultização precoce. A monografia está organizada em três (3) capítulos assim distribuídos e nomeados: O 1º capítulo denomina-se Concepções de Infância em Contextos Distintos, nele o leitor poderá mergulhar na construção histórica acerca das concepções de infância; o 2º é intitulado Publicidade Infantil, Influência da Mídia e incentivo ao consumo infantil, o qual proporcionará ao leitor um amplo contato com as leis vigentes que amparam os menores contra as abusividades midiáticas, levando-o a uma reflexão acerca do poder influenciador desses meios, bem como o impacto nocivo na vida dessas crianças e adolescentes. O último capítulo denomina-se Adultização na Atualidade: reflexões acerca dos seus impactos na vida da criança e do adolescente; será abordado acerca dos resultados da pesquisa bibliográfica, possíveis formas de identificação da adultização infantil nos dias atuais e reflexões acerca do desaparecimento dos aspectos peculiares a infância. 14 CAPÍTULO I - CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM CONTEXTOS DISTINTOS Atualmente é comum nos depararmos com a seguinte realidade: outdoors com imagens de crianças, trazendo assim uma alta exposição; erotização e adultização precoce que veem à tona quando pensamos na relação criança, mídia e consumo. Vem crescendo no Brasil o mercado de produtos infantis e a cultura consumista tem produzido pequenos compradores e é o fato que o comércio e a indústria estão faturando progressivamente com esta vulnerabilidade. Podemos fazer uma retrospectiva e observar que, no período colonial, havia um grande sentimento de desvalorização da vida infantil, como podemos constatar com o pensamento de Ramos, a Coroa Portuguesa no século XV recrutava mão de obra barata, a escritora relata que os menores eram tirados das famílias carentes da cidade, iam de órfãos desabrigados a filhos de famílias pedintes. Muitos desses meninos eram escolhidos para trabalhar servindo os senhores das embarcações lusitanas. Neste período, segundo Ramos (2010, p. 22). [...] além das crianças serem consideradas como pouco mais que animais, a alta taxa de mortalidade em Portugal fazia com que a chance de morrer vítima de inanição ou de alguma doença em terra fosse quase igual, quando não maior do que a de parecer a bordo das embarcações. Nesse contexto de alta taxa de mortalidade em Portugal e a bordo dos navios, as crianças eram inferiorizadas e lançadas à própria sorte, sendo assim humilhadas e subordinadas aos adultos. A autora realça que a expectativa de vida das crianças portuguesas, entre os séculos XVIII e XIX, estava em torno dos 14 anos e que a grande maioria morria antes dos 7 anos de idade. Trata-se de uma infância desvalorizada, invisível, sem importância para o mundo adulto, quase imperceptível, mas quiçá necessária para o modelo de mundo em apreço, uma vez que realizavam tarefas que normalmente seriam desempenhadas pelos adultos. Eram entregues a um cotidiano de privações e viam-se obrigadas a enfrentar a realidade de uma vida adulta, abandonando assim o mundo infantil que sequer chegavam a conhecer. Em sua obra História das Crianças no Brasil, Del Priore organiza um capítulo referente à história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI, o mesmo relata que nesta época meninas de quinze anos eram vistas como aptas para o casamento, e meninos de nove anos tidos como capacitados para o trabalho pesado, sendo assim o cenário a 15 bordo das embarcações portuguesas era de calamidade. As crianças ainda não eram adultas, mas eram tratadas como se fossem; em um contexto de gente grande, os pequenos não tinham espaço, eram forçados a se adaptar ou perecer, perdendo sua inocência para mais nunca recuperá-la. Tratando da história da infância de uma forma mais ampla, Philippe Ariès, em sua obra História Social da Criança e da Família, vem abordar que, até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou pelo menos não tentava representá-la. Possivelmente não valorizava essa fase pois, dificilmente, essa ausência se devesse à incompetência, sendo mais provável subentender que não havia lugar para a infância neste período; a mesma desapareceu da icnografia 6 . As obras de artes 7 que reproduziam uma criança eram totalmente desconexas do que realmente as identificavam, ou seja, a criança que era pintada em uma tela não tinha peculiaridades de uma, percebe-se pelas roupas, que eram semelhantes as dos adultos, a expressão facial pouco lembrava uma criança. “No mundo das fórmulas românticas, e até o fim do século XIII, não existiam crianças caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanhos reduzidos” (ARIÈS, 2006, p.18). Na sociedade medieval, o sentimento de infância não existia, sendo assim a criança introduzia-se no cotidiano dos adultos e não se distinguia mais destes, assemelhando-se em tudo. Em meados do século XVI, um novo olhar a respeito da infância surgiu, a criança com toda sua graça tornava-se para os adultos uma forma de distração, um sentimento que Ariès (2006, p.100) chama de paparicação 8 , uma vez que a maneira de ser dos pequenos encantavam as mães e as amas. Por volta do século XVIII, não apenas o futuro da criança, mas também tudo que a envolvia, era digno de preocupação, de forma que a criança passa a assumir um lugar central no âmbito familiar. A passividade que as crianças eram submetidas se mesclava a um sentimento superficial presente na época. Sentimento que os estudiosos da área denominam de “paparicação”, ou seja, ocorriam demonstrações de carinho, mesmo que por um breve período na vida das crianças. 6 Icnografia é uma forma de linguagem visual que utiliza imagens para representar determinado tema. A iconografia estuda a origem e a formação das imagens. Na indústria editorial, a iconografia é a pesquisa e seleçãodas imagens que serão publicadas em um livro, seja como tema principal da obra ou como complemento de um texto. A iconografia de uma obra editorial é o conjunto das imagens que integram essa obra, seja um livro, série ou coleção. 7 Segundo Ariès (2006, p.17), no fim do século XI, as três crianças que São Nicolau ressuscita estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos, sem nenhuma diferença de expressão ou de traços. 8 Expressão utilizada por Ariès (2006), paparicação era um sentimento de infância pertencente às mães e amas, onde a criança tornava-se fonte de distração e relaxamento para o adulto. 16 Essas manifestações de “afeto“ eram vivenciadas apenas nos primeiros meses de vida. Os pequenos acabavam se tornando um meio de diversão, um passatempo. Neil Postman, autor do livro já mencionado “O desaparecimento da Infância” relata que foram os gregos que nos deram um prenúncio da ideia de infância. Segundo o autor, Eles certamente não inventaram a infância, mas chegaram suficientemente perto para que dois mil anos depois, quando ela foi inventada, pudéssemos reconhecer-lhe as raízes. Os romanos, é claro, tomaram emprestado aos gregos a ideia de escolarização e ainda desenvolveram uma compreensão da infância que superou a noção grega. A arte romana, por exemplo, revela uma “extraordinária atenção à idade da criança pequena ocidental e em crescimento, que só seria encontrada novamente na arte ocidental no Período da Renascença” (POSTMAN, 2012, p. 22). Faz-se necessário entender todo percurso histórico acerca das concepções de infância, visto que, a realidade que estamos vivenciando possivelmente não é nova, mas apenas modernizou-se, a adultização vai além de um ser pequeno, semelhante a um adulto, refere-se também ao que este adulto tem feito desta criança, pois se enfrentamos tal cenário é porque, possivelmente, nós adultos temos colaborado com ele, sendo participador direta ou indiretamente. 1.1 O SENTIMENTO DE INFÂNCIA EM MEADOS DO SÉCULO XV A Idade Média é um período histórico entre os séculos X e XV, marcado pelo forte crescimento do Cristianismo. Segundo Neil Postman (2012, p.12), “a ideia de infância como uma estrutura social não existiu na Idade Média; surgiu no século dezesseis e está desaparecendo agora”. Desta forma, pode-se concluir que a ideia de infância não está ligada a algo arcaico, pelo contrário é sem sombra de dúvidas moderna e que a ideia do amor materno bem como a infância, não são inatas ao ser humano, mas foram desenvolvidas e construídas no decorrer do tempo. Por meados do século XV, tem-se o cenário onde a infância é inexistente. As crianças estavam presentes na maioria dos locais que os adultos estavam, não havia censura quanto aos assuntos abordados mediante ao menor, não havia naquela época um conceito de espaço privativo que nossa sociedade tem hoje, não sentiam vergonha por fazer necessidades fisiológicas em vias públicas, sendo assim não há como ficar perplexo ao saber que nesse período não existia sequer indícios de hábitos de higiene nos primeiros 17 meses da vida do bebê. Também não havia, [...] nenhuma relutância em discutir assuntos sexuais na presença das crianças. A ideia de esconder impulsos sexuais era estranha aos adultos, e a ideia de esconder os impulsos sexuais era estranha aos adultos, e a ideia de proteger as crianças dos segredos sexuais, desconhecida. “Tudo era permitido na presença delas: linguagem vulgar, situações e cenas escabrosas; elas já tinham visto e ouvido tudo”. Realmente, na Idade Média era bastante comum os adultos tomarem liberdades com os órgãos sexuais das crianças. Para a mentalidade medieval tais práticas eram apenas brincadeiras maliciosas (POSTMAN, 2012, p.31). Decorrente do cenário de miséria e falta de saneamento básico na população da Idade Média, a taxa de mortalidade infantil era elevada. Quando uma criança chegava a óbito, a mesma não era vista com desespero. O pranto era breve e em um período curto um recém-nascido tomava o lugar daquela criança. Dessa forma, pode-se constatar que a mortalidade infantil no mundo medieval, entre as diversas classes sociais, revelava a indiferença e descaso pelas crianças. O historiador francês Philippe Ariès, em sua obra História Social da Criança e da Família, aborda acerca da arte, que por sua vez desconhecia a infância, não se via na icnografia resquícios de crianças, o que demonstra a ausência dos menores na participação na sociedade medieval. Quando começaram a ser representadas nas obras de arte, eram assemelhadas a mini adultos e por diversas vezes tinham as mãos dadas com a representação da “morte” em alusão a alta mortalidade infantil existente naquele cenário histórico. Até o final do século quatorze as crianças não são nem mesmo mencionadas em legados e testamentos, um indício de que adultos não esperavam que elas tivessem muito tempo. De fato, provavelmente por causa disso, em algumas partes da Europa as crianças eram tratadas como se pertencessem ao gênero neutro. Na Itália do século quatorze, por exemplo, o sexo de uma criança que tivesse morrido nunca era registrado. Mas acredito que seria um erro dar importância demasiada à alta taxa de mortalidade infantil como meio de explicar a ausência da ideia de infância (POSTMAN, 2012, p.32). Sabendo assim que a concepção de infância inexistia até o fim da Idade Média, surge então, em pleno século XXI, o receio que retrocedamos e que cheguemos a um declínio progressivo da mesma. Segundo Ariès, O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que 18 distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia (ARIÈS, 1981, p.156). Dessa forma a sociedade medieval tinha o pequeno como um adulto em miniatura, as crianças eram tratadas como um maior, procedimento este que reduzia esse belo período da vida, pois logo se conglomeravam ao mundo dos adultos e suas peculiaridades. Envolviam-se em todos os assuntos desse meio e logo estavam engajadas socialmente pela convivência cotidiana. Esse cenário é bem refletido na arte medieval, que tratava de temas relacionados à infância, faziam uso de imagens de crianças reproduzindo homens em miniatura; os quadros de Brueghel 9 representam bem esse período. Assim como disse Ariès, a infância não é caracterizada apenas por um sentimento de afeição, afeto e carinho para com as crianças, ela vai muito além disso. É necessário haver uma distinção maior, uma consciência para saber que um menor, apesar de estar inserido no contexto social, não está preparado psicologicamente para participar e receber tudo dessa esfera social, pois como se sabe, a criança medieval tinha acesso às diversas formas de comportamento comuns à cultura. Segundo Postman (2012, p.30) “o menino de sete anos era um homem em todos os aspectos, exceto na capacidade de fazer amor e guerra”. Os pequenos partilhavam os mesmos jogos, brinquedos, histórias e linguagem; não havia uma dissociação entre esses mundos. Somos naturalmente propensos a neutralizar certos sentimentos que foram construídos socialmente. Segundo Postman (2012, p. 31) “A falta de alfabetização, a falta de conceito de educação, a falta de conceito de vergonha – estas são as razões pelas quais o conceito de infância não existiu no mundo medieval”. Ou seja, o que para nossa sociedade hoje é inadmissível, como por exemplo, falar de assuntos de conteúdo erótico perto de criança, na sociedade medieval era comum, pois esse sentimento de vergonha não era vivenciado. Pode-sedizer que, no mundo medieval, não existia nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, muito menos algum tipo de escolarização voltada à criança, como preparação para a vida adulta. Assim, em uma sociedade letrada, ser adulto implicaria em ter admissão aos segredos culturais, 9 Pieter Brueghel (1525 - 1569) - Pintor, escultor, arquiteto e decorador de tapeçarias e vitrais flamengo nascido em Breda, no Ducado de Brabant, Países Baixos, hoje uma província da Bélgica, que criou uma rica pintura narrativa, documentando costumes de época, tornando-se um dos mais representativos pintores flamengos do período Cinquecento (1500-1599) do Renascimento. 19 Num mundo letrado, as crianças precisam transformar-se em adultos. Entretanto num mundo não letrado não há necessidade de distinguir com exatidão a criança e o adulto, pois existem poucos segredos e a cultura não precisa ministrar instrução como entendê-la (POSTMAN, 2012, p. 27). Sendo assim, é notório que não há necessidade de discernir com precisão o papel da criança e do adulto, pois eram poucos os segredos que havia entre eles. No mundo oral não há explícito um conceito de adulto, nem de criança, esse é um dos motivos que a história revela que no mundo medieval a infância findava-se aos sete anos e imediatamente começava a idade adulta, pois era a partir desse período que ela tinha o domínio da palavra, considerada pela Igreja Católica a idade da razão, fase essa que supostamente o menor entenderia o que era certo ou errado. Como precocemente o menor via-se inserido nesse meio, não há nessa época registros de livros sobre criação de filhos, poucos eram os sobre papel de mães, é inexistente qualquer tipo de literatura infantil, bem como livros de pediatria. Segundo Tuchman (apud POSTMAN, 2012, p.33), “de todas as características que diferenciam a Idade Média da Moderna, nenhuma é tão contundente quanto a falta de interesse pelas crianças”. Na Idade Média não havia termos que fossem específicos para crianças ou que as caracterizassem. A palavra criança vem do Latim creare, “produzir, erguer”, relacionado à crescere, “crescer, aumentar”, do Indo-Europeu ker-; no período medieval o termo Child (criança) denotava apenas um grau de parentesco, não uma idade ou alguém que carece de cuidados diferenciados. Posteriormente esse termo foi muito usado para designar alguns adultos que não eram capazes de ler, os mesmos eram considerados infantis. Somente através de diversos concílios a Igreja foi concedendo algumas medidas protetivas aos menores e aplicando penas espirituais e corporais para aqueles pais que abandonassem seus filhos. Em contrapartida, os filhos nascidos fora do matrimônio eram discriminados pela sociedade, pois segundo Amin: [...] a doutrina traçada no Concílio de Trento, a filiação natural ou ilegítima – filhos espúrios, adulterinos ou sacrílegos – deveria permanecer à margem do Direito, já que era a prova viva da violação do modelo moral determinado à época (AMIN, 2006, p.4). A escola que era reservada à formação dos Clérigos não tinha como função a instrução da criança. Segundo Piletti e Piletti (2011, p.57) “a igreja, como piedosa mãe, teria a obrigação de prover os pobres, que não podiam ter o apoio dos pais, para que, assim, não fossem privados da 20 oportunidade de ler e progredir no estudo”. Surgia então uma nova definição de idade adulta, baseada na competência de leitura e consequentemente, surge uma nova concepção de infância baseada na incompetência da leitura. A Idade Média foi marcada por muitas mudanças sociais, mas nada que mudasse a concepção da vida adulta. Neste mesmo período inventaram a impressão com caracteres móveis, surgiu então a prensa tipográfica e atrelado veio, segundo Postman (2012, p.34), um novo mundo simbólico, por sua vez, uma nova concepção de idade adulta. 1.2 A TIPOGRAFIA E O NOVO ADULTO Uma das invenções da Idade Média foi a impressão com caracteres móveis. A origem do termo tipografia vem do grego, onde TYPOS = Marca ou Impressão e GRAFÉ = escrita, o referido termo refere-se à arte de compor e imprimir com tipos móveis. Mas no decorrer do tempo sua abrangência aumentou, pois novas técnicas e novos estudos foram elaborados. Hoje o termo refere-se a estilos, caracteres, formatos e tamanhos, os mesmos fazem parte de uma constituição de textos utilizados em projetos gráficos, seja ele impresso ou não. Durante o período medieval, a Igreja mantinha mosteiros disseminados pela Europa, com monges copistas, onde os mesmos eram responsáveis por copiar as sagradas escrituras e outros textos antigos. Por volta de 1.400 d.C. nasce o competente artesão e fundador de metais, Johann Gutenberg, que criou a imprensa, onde as letras fundidas nos metais pelo mesmo tinham objetivo de chegar o mais próximo de um manuscrito copiado a mão por um escriba; a mesma ficou conhecida como blackletter ou letras negras em português, sendo considerada a primeira fonte 10 . Segundo Postman (2012, p.34), a tipografia criou um novo mundo simbólico que exigiu, por sua vez, uma nova concepção de idade adulta. A nova idade adulta, por definição, excluiu as crianças. Com base nesse fato, os pequenos foram expulsos do mundo adulto, tornando imprescindível um novo lugar para as crianças, um novo mundo para elas fez-se necessário, surgindo, dessa forma, a infância. Antes da prensa tipográfica, escritores tinham liberdade para escreverem, reescreverem, acrescentarem o que quisessem aos seus textos, mas depois dessa invenção, tornou-se necessário saber sobre a autenticidade da obra. Outro fato posterior à mesma é que toda comunicação 10 Na tipografia fonte é o conjunto de todos os caracteres, incluindo, maiúsculas, minúsculas, números, sinais em um único tamanho e tipo. 21 existente no mundo medieval era feito numa esfera social, ou seja, quando eram feitas leituras de distintos assuntos, as mesmas eram feitas em lugares públicos, o leitor pronunciava palavras em voz alta, enquanto os ouvintes acompanhavam, dentre esses ouvintes, estavam adultos como também crianças. Segundo Postman (2012, p.41), com o livro impresso iniciou-se outra tradição: o leitor isolado e seu olho pessoal. A oralidade emudeceu e o leitor e sua reação ficaram separados de um contexto social. Postman, em sua obra O desaparecimento da Infância, não está afirmando que a infância surgiu do dia pra noite, este foi um processo que durou séculos. Ele ressalta fatos que culminaram no surgimento da infância. Neste período surgiu uma divisão social, os que sabiam ler e os que não sabiam; os que sabiam eram inseridos num mundo de novos fatos e percepções e os que não liam, considerados inferiores. Surge nesse período uma infinidade de livros, com variados ensinamentos e instruções; a própria ideia de língua materna derivou-se da tipografia, bem como a ideia de protestantismo. A tipografia foi altamente favorável à Reforma Protestante, pois graças a ela, várias versões foram feitas da Bíblia, que foi o primeiro livro da história a ser impresso por Gutenberg. O mesmo está entre os dez maiores best-seller 11 e traz grandes ensinamentos acerca da vida cotidiana, bem como instruções de como se deve educar crianças. Outras publicações também tomaram destaque. A publicação de livros de pediatria e também de boas maneiras é um forte indício de que o conceito de infância já começara a se formar, menos de um século depois da prensa tipográfica. Mas o ponto a salientar aqui é que a prensa tipográfica gerou o que chamamos hoje "explosão de conhecimento”.Ser um adulto em pleno funcionamento exigia que o indivíduo fosse além do costume e da memória e penetrasse em mundos não conhecidos nem contemplados antes. Pois além da informação geral, como era encontrada em livros de “como fazer” e guias e manuais variados, o mundo do comércio era, cada vez mais, constituído de papel impresso: contratos, escrituras, notas promissórias e mapas (POSTMAN, 2012, p.43). A forma de livro impresso trouxe uma nova forma de organização de conteúdos, uma reorganização de assuntos. Sendo assim, surge também um novo modo de organizar o pensamento, surgindo então novas áreas de estudo. A tipografia possibilitou uma extensa variedade de textos clássicos que muitos medievais não conheciam ou não tinham acesso. Novas 11 Livro que alcança grande êxito nas vendas. 22 formas de literatura, estudos sobre astronomia, anatomia estavam disponíveis, enquanto isso aparecia uma nova forma de pensar, o homem letrado tinha surgido, enquanto a oralidade medieval retrocedia. Segundo Postman (2012, p.50), antes desses acontecimentos não havia necessidade da ideia de infância, porque todos compartilhavam o mesmo ambiente informacional e, portanto, viviam no mesmo mundo social e intelectual. Mas foi só depois dos séculos XVI e XVII que se reconheceu a existência da infância. 1.3 A VIDA DAS CRIANÇAS NAS EMBARCAÇÕES PORTUGUESAS XVI E NO BRASIL QUINHENTISTA A trajetória trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século dezesseis traz uma série de acontecimentos que hoje são considerados inadmissíveis e que infringiram os direitos constitucionais das crianças, mas para aquela época, tais situações eram consideradas normais e cotidianas. A história nos conta que, em meados do século XVI, o Brasil começou a receber embarcações lusitanas, nas quais vinham mulheres, homens e crianças. As crianças portuguesas dos séculos XIV a XVIII tinham uma expectativa de vida muito baixa, em torno de 14 anos no máximo. Nessa época o sentimento de desvalorização da infância era muito presente, sentimento este que fazia a Coroa Portuguesa recrutar mão de obra barata entre as famílias mais pobres. Como os adultos estavam ocupados dentro das embarcações, eram recrutados órfãos e menores filhos de famílias carentes, cujos pais os entregavam, pois era uma das formas de aumentar a renda familiar e assim teriam menos despesas em casa. Outra forma atroz de recrutamento era o rapto de judias, tiradas à força dos pais. Segundo Ramos (2010, p.22) este era, “um meio de obter mão de obra e de manter sob controle o crescimento da população judaica em Portugal”. Os grumetes 12 eram crianças que tinham as piores condições de vida dentro das embarcações, faziam vários serviços pesados. Os mesmos eram entregues a um cotidiano cruel e repleto de privações. Segundo Ramos (2012, p.27), “os grumetes viam-se obrigados a abandonar rapidamente o universo infantil para enfrentar a realidade de uma vida adulta”. 12 Grumete: Primeira graduação na hierarquia da Marinha Brasileira. 23 Além de tudo eram forçados a ter relações sexuais com os marujos e outros pedófilos, homens bastante violentos. Quando os pequenos eram estuprados, raramente faziam denúncias aos oficiais, até porque muitos desses ocorridos eram consentidos e praticados por eles, sendo assim os pequenos não tinham a quem recorrer. Apesar de poucos relatos, sabe-se que essa prática era corriqueira nas embarcações, pois na Idade Média era uma prática comum. A violência sexual enfrentada pelos grumetes era das mais bárbaras possíveis, segundo Ramos, Muitos grumetes eram sodomizados por marujos inescrupulosos – categoria classificada nos documentos, como formada por “criminosos da pior espécie”, tais como “assassinos, incendiários, (e) sediciosos”, cuja pena por “decapitação ou enforcamento” havia sido comutada “pelo serviço marítimo” – de evidente superioridade física sobre meninos. Relatos de viajantes estrangeiros que passaram por Portugal no século XVIII dão conta de que a pedofilia homoerótica era muito comum (RAMOS, 2010, p.27). Nessas embarcações marítimas, as crianças desempenhavam funções de adultos e logo cedo estavam envolvidos em grandes responsabilidades. Mesmo que involuntariamente, a bordo elas aprendiam a prática da profissão marítima. É importante também ressaltar acerca da vida de outras crianças que vivam a bordo, que recebiam tratamento diferenciado dos grumetes. Os Pajens eram rapazes serviçais, muitos deles ainda eram crianças que, assim como os grumetes foram recrutados entre famílias portuguesas pobres. Todavia, a maioria deles pertencia a famílias protegidas pela nobreza. A bordo, tinham um cotidiano mais leve e, devido ao seu envolvimento com a nobreza, tinham mais chances de engajaram-se em melhores cargos da Marinha. Segundo Ramos (2012, p. 30), “aos pajens eram confiadas tarefas mais leves e menos arriscadas do que as impostas aos grumetes, tais como servir à mesa dos oficiais e providenciar tudo que estivesse relacionado ao conforto dos oficiais da nau”. Eram raros os dias que sofriam algum castigo severo, ao contrário dos grumetes, que além de todo serviço árduo que a eles era destinado, em caso de desobediência às ordens dos oficias, recebiam chicotadas, eram ridicularizados e ameaçados de morte. Apesar de toda proteção e melhor alimentação que os pajens tinham a bordo, eles não eram isentos de abusos sexuais. Neste tópico foi abordado acerca da vida de dois tipos de crianças: os grumetes e os pajens. Mas, segundo Ramos, não somente estas, mas órfãos, crianças embarcadas como passageiros, crianças acompanhadas dos pais, eram postas nas embarcações. Sujeitas a 24 naufrágios, doenças como sarampo e caxumba, fome, inanição e diversos outros fatos, que foram responsáveis pelo alto índice de mortalidade a bordo. Em uma época em que meninas de 15 anos eram consideradas aptas para casar, e meninos de nove anos plenamente capacitados para o trabalho pesado, o cotidiano infantil a bordo das embarcações portuguesas era extremamente penoso para os pequeninos. Os meninos não eram ainda homens, mas eram tratados como se fosse, e ao mesmo tempo eram considerados como pouco mais que animais cuja mão de obra deveria ser explorada enquanto durasse sua vida útil. As meninas de 12 a 16 anos não eram ainda mulheres, mas em idade considerada casadoura pela Igreja Católica, eram caçadas e cobiçadas como se o fossem. Em meio ao mundo adulto, o universo infantil não tinha espaço: as crianças eram obrigadas a se adaptar ou perecer (RAMOS, 2010, p.48). De acordo com a historiografia, a criança que viveu e veio para o Brasil nesse período, foi vítima de distintas formas de violência. Ao analisarmos a conjuntura histórica e os processos de civilização existente no Brasil, vemos que as crianças, principalmente as negras e indígenas, eram rejeitadas, sofriam humilhações, desrespeito. As crianças vindas nas embarcações também sofreram preconceito por suas peculiaridades e vivenciaram a bordo e em terra vários tipos de privações e hostilidade. Ainda no que diz respeito à infância, verificamos que esta não era relevante para a sociedade da época, as crianças não eram priorizadas por suas famílias e eram postas em segundo plano. Por esta razão, é imprescindível entendermos os momentos históricos e socioculturais que a nação brasileira vivenciou até chegarmos a uma melhoria da infância no Brasil. 1.4 SÉCULO XVIII – nova concepção de infância em Rousseau Filho do relojoeiro Isaac Rousseau ede Suzanne Bernard a qual perde em seu nascimento, Jean-Jacques Rousseau nasceu em 1712, em Genebra-Suíça. Em sessenta e seis anos de vida, destacou-se como pensador, escritor, filósofo e teórico. Conceituado como um dos principais filósofos revolucionários do Iluminismo e precursor do Romantismo. Pai de cinco filhos, todavia não proporcionou educação a nenhum, pois os abandonou; o remorso e a culpa possivelmente foi um dos motivadores a escrever sobre Emílio; justifica-se ao enfatizar que “Não escrevo para desculpar meus erros, mas para impedir meus leitores de os imitar” (ROUSSEAU, 2004, p.VIII). 25 Emílio é uma ótima proposta quanto ao ensino e cuidados que se deve ter com os filhos. Emílio ou Da Educação, é considerada uma das obras mais revolucionárias dos últimos séculos, por tratar da infância sob uma nova ótica, respeitando seu tempo, sentimentos, desejos. Consiste em um tratado pedagógico onde integra política, educação e ética, aconselhando adultos como pais e mestres sobre como educar e criar de forma natural/espontânea o homem ideal. A obra traz saberes acerca do avanço cognitivo e moral da criança, bem como seu processo de socialização, considerando sua relação com o mundo adulto. Apesar de Rousseau ser alvo de críticas e tido com defensor de medidas verticais do adulto para com a criança, ele ao tratar sobre infância, traz o saber pedagógico de respeito pelo mundo da criança. Emílio é um novo paradigma, onde Rousseau descreve as peculiaridades infantis. A obra deixa explícito o descaso que era vivido na época quanto às pertinências da infância. A inserção adulta no universo da criança preocupava Rousseau, que entendia que os adultos deveriam interferir somente quando necessário, para que tentando protegê-las, pais e mestres não bloqueassem o desenvolvimento natural dos pequenos. Surge então um dos maiores desafios quanto à educação natural, que os adultos sejam presentes na vida da criança, mas ausentes o suficiente, para que ela seja autônoma e cresça saudavelmente, sem prejuízo a sua formação. Não significa apologia ao, “espontaneísmo pedagógico” que culminaria na “desresponsabilização” do adulto em relação à criança. Ao contrário disso, o respeito pelo mundo da criança exige a intervenção do adulto no sentido de ser condutor do processo educativo e conduzir significa intervir deixando que o desenvolvimento natural da criança aconteça” (DALBOSCO, 2007, p. 316). Rousseau foi um dos pioneiros a compreender e estudar acerca da infância, vendo-a como um período singular, distinto do mundo adulto. Entende-se então a infância como um período de dependência, por tratar-se de uma fase que carece de cuidados, onde é importante essa mediação do adulto, para que paulatinamente ela socialize-se. O autor aborda as seguintes fases da vida do homem: primeiro, a idade da natureza – o bebê (infans), que traz tópicos como: a importância e objetivo da educação e sobre um aluno imaginário que é Emílio, o órfão. A segunda fase é a idade da natureza, que estende dos dois anos aos doze (puer), onde ele aborda acerca da educação da sensibilidade, moral, intelectual, do corpo, sensorial. A terceira fase é a idade da força, dos doze aos quinze anos, na qual o autor 26 disserta acerca da educação intelectual, manual e social, culmina com algumas conclusões acerca de Emílio. A quarta fase é a idade da razão e das paixões, de quinze a vinte anos, que fala acerca de educação sexual e religiosa, paixões. O livro V traz a quinta etapa da vida que, segundo Rousseau, é a idade da sabedoria e do casamento, entre vinte a vinte e cinco anos; o tema principal dessa narrativa é o romance de Emílio e Sofia. O livro tornou-se então um paradigma para educação do século XVIII, opondo-se ao sistema elitista da educação, tido como privilégio de algumas camadas sociais, afirmando ser um direito de todos, onde Rousseau critica fortemente a igreja e sua pedagogia jesuítica, rígida, mera transmissora de conhecimentos memorizados, que tratava as crianças como mini adultos. O mesmo traz “educação natural”, como princípio fundamental, onde a educação deve acontecer de forma “natural”, longe das influências corruptas da sociedade, valorizando a espontaneidade das crianças. Rousseau modifica a visão da infância da época, deixando nítido que a criança tem um mundo próprio, cabendo aos adultos apenas compreendê-la. [...] elabora uma pedagogia que celebra a naturalidade e a autenticidade da criança, e sua inocência em oposição ao mundo adulto pervertido pelas convenções sociais. Assim, até Rousseau, a criança era considerada um pequeno adulto, um adulto em miniatura, a ser tratada por padrões adultos, vestindo-se com roupas de adultos, aprendendo coisas de adultos. Rousseau foi praticamente o primeiro a considerar a criança enquanto tal, com idéias próprias, diferentes do adulto, e a partir dele intensificou-se a tendência a ver a educação a partir da criança, da sua natureza, dos seus instintos, das suas capacidades e tendências, em oposição aos padrões e normas impostos pela sociedade (FURLANETTO, 2006, p. 2709- 2710). A criança então passa a ser valorizada em suas especificidades e passa a ser vista como sujeito aprendiz, que precisa se desenvolver no meio social, sendo respeitada. Entre as propostas educativas que embasam esse novo pensamento acerca dessa concepção de infância, encontramos as compreensões de infância preconizadas por Pestalozzi, Comenius, Froebel e Rousseau, como acabamos de ver, que evidenciam que a criança, assim como Emílio, é uma pessoa em desenvolvimento, que precisa aprender com seus próprios erros e cujo aprendizado deve ser construído conforme seu interesse, de forma natural e espontânea, sem que seja necessário adiantar nenhuma etapa de sua vida. 27 “Viver é o oficio que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar” (ROUSSEAU, 2004, p.15). A criança precisa viver seu mundo próprio, fazer o que lhe é próprio à idade, cabendo ao adulto compreendê-la. 1.5 O NASCIMENTO DA INDÚSTRIA E A RELAÇÃO COM O MUNDO DA CRIANÇA/ADOLESCENTE Em meados do século XIX, as primeiras indústrias começaram a surgir na Inglaterra, juntamente veio a Revolução Industrial 13 . Até o fim do século XVII, a população europeia, em sua maior parte, concentrava-se no campo; para obtenção de renda trabalhavam em atividades agrícolas e pastoris e toda produção dava-se de forma artesanal. Só em alguns países como Inglaterra e França é que a produção era organizada em manufaturas 14 . Segundo Decca e Meneguello (1999, p.14 apud COTRIM, 2005, p.275), Antes desse período, a maioria das pessoas vivia no campo ou em vilarejos. Trabalhavam em pequenos grupos e produziam, em pequena escala, aquilo de que precisavam – alimentos, roupas e objetos. Havia grandes cidades, porém eram cidades comerciais e principalmente cidades capitais, ou seja, centros do poder político dos reinos. A Revolução Industrial iniciou-se a partir da criação da máquina a vapor, que possibilitou a mecanização dos produtos. Sendo assim, houve um grande crescimento na produção, outrora artesanal, personalizada e limitada e que passa a ser padronizada e fabricada em larga escala, permitindo assim a comercialização nacional e internacional. As relações de trabalho também mudaram na Inglaterra. Muitos camponeses saíram do campo para a cidade em busca de uma vaga de emprego nas fábricas e junto com essas famílias iam também as crianças e adolescentes. Dessa forma, a Revolução Industrial possibilitou a inserçãodas crianças e adolescentes no mundo do trabalho e adulto. Segundo Cotrim, 13 Conjunto de transformações ocorridas na Europa Ocidental (Séc. XVIII-XIX) diretamente relacionadas à substituição do trabalho artesanal, que utilizava ferramentas, pelo trabalho assalariado, em que predominava o uso das máquinas. 14 Nas manufaturas, foi implantado um processo de divisão do trabalho que deu origem às linhas de produção e montagem. Cada trabalhador cumpria uma tarefa específica. 28 Mulheres e crianças operárias recebiam salários inferiores àqueles pagos aos homens adultos. [...] Com o objetivo de aumentar os lucros, o empresário industrial pagava aos operários salários muito baixos, enquanto explorava ao máximo sua capacidade de trabalho. Os salários eram tão reduzidos que, para sobreviver, toda a família do operário, incluindo mulheres e crianças, era obrigada a trabalhar nas fábricas (COTRIM, 2005, p.278). Dessa forma, o trabalho de crianças e adolescentes começou a ser objeto de crítica somente a partir da Revolução Industrial, no final do século XIX. Segundo Moura (2010, p.280), “A crítica ao trabalho infanto-juvenil não estava somente no mundo proletário”, as precárias condições de trabalho que os menores eram submetidos tornou-se notícia na imprensa, não somente no Brasil, mas na Europa também, tendo em vista que essa exploração atingiu patamares tão elevados que vários países começaram a legislar 15 e a limitar a idade mínima para se começar a trabalhar. Sabemos que o exercício de atividades trabalhistas por crianças e adolescentes é física e psicologicamente nociva aos mesmos, fazendo-os ter responsabilidades e obrigações naturais a um adulto, comprometendo assim toda infância/adolescência. Surge então na Revolução Industrial uma nova identidade da infância que se refere a criança que passa a ser reconhecida como filho/aluno; esta nova identidade de infância institucionalizada, onde apesar de muitas estarem no mercado de trabalho, as mais privilegiadas apropriavam-se do direito de ser criança, gozava de atenções, gratificações por parte dos adultos, tinham agora jogos industrializados, feitos para elas e também brincadeiras próprias para sua idade. No final do século XIX, pequenas indústrias começaram a se estabelecer também no Brasil e o objeto-brinquedo-mercadoria passa a fazer parte do universo infantil. Surgem carrinhos de madeira, as bonecas de materiais cada vez mais sofisticados, os trenzinhos de metal, objetos de consumo que despertam na criança o sentimento de posse, o desejo de ter, dificultando o prazer de inventar e construir (ALTMAN, 2010, p.254). As cantigas de rodas, as brincadeiras nas ruas, as adivinhas, são parte agora do universo infantil, e aqueles que não tinham condições de ter brinquedos industrializados, confeccionavam 15 Organização Internacional do Trabalho (OIT) - Convenção nº 138 de 1973, no Art. 2º, item 3, determina-se como idade mínima para começar a trabalhar 16 anos. Nesse mesmo documento, é considerado que o exercício de alguma atividade econômica entre a faixa etária de 13 e 15 anos pode ser permitido somente quando não prejudica a saúde e o desenvolvimento do jovem, destacando ainda que as autoridades devem especificar as atividades permitidas e o tempo máximo de trabalho diário. 29 ao seu modo, com materiais simples que tinham. Brincavam nas ruas, nas praças, em casa, com amigos ou sozinhos, mas agora tinham reais motivos para brincar e desfrutar do prazer que é a infância proporciona. Atenta também a essa visão social da infância, para Godoi (2004, p.31), a criança brasileira não está tendo oportunidade de vivenciar plenamente sua infância devido à sua inserção precoce no mundo adulto, visando ao trabalho produtivo: tanto as crianças ricas quanto as pobres, acabam tendo que assumir muito cedo responsabilidades que são dos adultos. Em função dos valores e ideais capitalistas, a visão social da infância acaba negando sua especificidade e preparando-a cada vez mais cedo para ser um indivíduo produtivo e consumidor (FURLANETTO, 2006, p.2712). Podemos perceber que, apesar dos avanços, ainda está implícita uma preocupação acerca do presente e futuro da criança, pois se de um lado a criança pobre precisa trabalhar para ajudar na renda mensal da família, tendo que sair da escola para tal exercício, por outro, temos a criança abastada com diversas responsabilidades extraescolares, tendo que aprender outras línguas e outros ofícios, principalmente tratando-se das meninas. Assim, essas crianças possuem algo em comum, comprometidas com muitas atividades, tendo pouco tempo para dedicar-se ao seu real oficio, de ser criança. 1.6 SÉCULO XIX: o cotidiano das crianças abastadas durante o império Neste período, o mundo adulto continuava ligado à criança e ao adolescente, dentro de um contexto com um pouco mais de restrições. Comparado ao período medieval, aqui já havia limites de espaços que os pequenos poderiam frequentar, bem como instrução dos princípios morais que norteavam a educação. Segundo Mauad (2010, p.140), “era a rotina do mundo adulto que ordenava o cotidiano infantil e juvenil”. O século XIX ratifica a descoberta humanista da especificidade da infância e da adolescência como idades da vida. Os termos criança, adolescente e menino, já aparecem em dicionários da década de 1830. Menina surge primeiro como tratamento carinhoso e, só mais tarde, também como designativo de “crença ou pessoa do sexo feminino que está no período da meninice”. Criança, nesse momento, é a cria da mulher, da mesma forma que os animais e plantas também possuem suas crianças. Tal significado provém da associação da criança ao ato de criação, onde criar significa amamentar, ou, como as plantas não amamentam, alimentar com sua própria seiva (MAUAD, 2010. p.140) 30 Foi a partir desse século que os dicionários começaram a usar o vocábulo criança como tendo sentido de espécie humana. Já a definição de infância ainda não era muito clara, pois ainda distinguia a capacidade física da intelectual; nessa época a infância restringia-se ao fato que, a primeira idade era marcada pela ausência e/ou imperfeição na fala. A segunda fase era a puerícia, segundo Mauad (2010, p.141), “tanto a infância quanto a puerícia16 estavam relacionadas estritamente aos atributos físicos, fala, dentição, caracteres secundários femininos e masculinos, tamanho, entre outros. Ainda estava em construção uma ideia de infância voltada a criança como ser em desenvolvimento e não apenas ao que remetia-se aos aspectos físicos, que distinguia-as dos adultos. O vestuário dos meninos e meninas da elite era feito conforme os modelos franceses que seguiam toda uma etiqueta estilística, elas possuíam roupas em excesso, uma para cada ocasião. Segundo Mauad (2010, p.146), “Em 1826, a relação de roupas da princesa imperial Dona Januária, filha de Dom Pedro I, contava com 306 peças indispensáveis ao guarda-roupa de uma menina nobre de sete anos de idade”. Todas as roupas dessas crianças eram produzidas com riquezas de detalhes, todas bem elaboradas. Com cerca de doze anos, as crianças já começavam a deixar as calçolas e vestidos de lado e gradualmente iam adaptando-se as vestimentas adultas. Algo que era de privilégio dos filhos da Elite era a educação. As escolas que essas crianças e adolescentes frequentavam ofertavam um ensino enciclopédico, onde desde cedo já eram submetidos a sabatinas. Segundo a mentalidade da época, a educação vinda dos lares era imprescindívelpara que a escola desempenhasse um trabalho de excelência, voltada aos princípios morais. Segundo Mauad, Portanto, estabelecidos os devidos papéis sociais, caberia à família, educar e à escola, instruir. Com isso estavam supostamente garantidas a manutenção e reprodução dos ideais propostos para a constituição do mundo alto. Dentro desta perspectiva, a criança era uma potencialidade, que deveria ser responsavelmente desenvolvida. Mas até chegar a ser uma potencialidade, a criança era uma expectativa que, devido às condições de saúde da época, geralmente se frustrava (MAUAD, 2010, p.154). Também é importante ressaltar que os meninos e meninas tinham instruções diferentes. Aos meninos era dada uma educação civil e militar, ensinando-os uma postura viril e poderosa, para que fosse garantido um desenvolvimento intelectual. As meninas estavam entre o ambiente 16 Segundo Mauad (2010, p. 140), essa fase da vida ia dos três ou quatro anos de idade até os dez ou doze. 31 doméstico, onde eram ensinados princípios de maternidade e incentivo aos cuidados com o lar e entre o ambiente que exigia sua presença na vida social, segundo Mauad (2010, p.154), “Na Corte Imperial, das meninas da alta sociedade, exigia-se perfeição no piano, destreza em língua inglesa e francesa, e habilidade no desenho, além de bordar e tricotar”. Nesta época, a falta de vacinas e o limitado saber acerca das doenças contagiosas que rondava a sociedade, bem como as precárias condições de higiene, deixavam as crianças vulneráveis a diversos tipos de enfermidades. No decorrer do século XIX, cautelas quanto à higiene infantil foi crescendo gradativamente e começou-se a seguir conselhos das literaturas médicas, quanto à prática do banho frio para bebês, bem como o uso do pente fino nas crianças da Corte, pois como afirma Mauad (2010, p.162), “O piolho era uma verdadeira praga democrática”. Conforme o sentimento de pesar pela perda de uma criança se desenvolvia, crescia também a preocupação em cuidar para a sua sobrevivência. Desta tendência surgiu uma série de procedimentos para as diferentes etapas da infância, com ênfase especial nos recém-nascidos e crianças até sete anos. No entanto, diante de tantos personagens que povoavam o universo infantil, durante o século XIX, numa sociedade como a brasileira, fica a pergunta: de quem era a responsabilidade de cuidar das crianças? A resposta da sociedade para a pergunta era uníssona: a mãe (MAUAD, 2010, p.160). Mas não somente às mães estava atribuída tal responsabilidade. Pai, avó, tias, preceptoras, amas e etc., também estavam envolvidos na criação dos pequeninos. Segundo Mauad (2010, p.160), “Quanto mais ricos e nobres, na escala social, tanto mais distante dos pais estavam as crianças”. Pois o trabalho de cuidar e proteger era “terceirizado”, os pais envolvidos em outras atividades da Corte, não tinham tempo e nem necessidade de estar junto aos filhos. As crianças imperiais foram criadas por amas, conforme o costume obtido da tradição lusitana, pois algumas mães das mais elevadas classes, muitas vezes não queriam amamentar seus filhos. Contrapondo essa tradição oitocentista tinha-se disponível, como falado anteriormente, literaturas médicas que incentivavam as mães a criar os pequeninos com o leite materno, sendo que tais obras afirmavam que esta prática era fundamental para um crescimento infantil saudável. De forma geral, pode-se observar que comparada vida dos filhos de escravos e das crianças pobres, os filhos da elite tinham um tratamento privilegiado, possuíam as melhores formas de ensino da época, vestiam-se com os melhores linhos disponíveis, estavam cobertos por 32 vários tipos de cuidados higienistas, tinham a disposição não somente as mães, mas as amas, preceptoras que as instruíam, enfim, estavam cercados por conforto e oportunidades de se ascender na vida. Segundo Del Priore (2010, p.168), ”Pedro, Luiz, Antonio, Isabel, Leopoldina, Bernadina, Aracy, Benjamim, entre outros, deixaram vestígios da sua existência em memórias, diários, fotografias e documentos diversos”. Sem sombra de dúvidas, esse acervo histórico narra suas experiências cotidianas, realidade oitocentista que melhor seria, se fosse a mesma vivida por todas as crianças e não somente por estas da elite. 1.7 SÉCULO XX: trabalho infantojuvenil no Brasil Infelizmente, o trabalho infantil continua sendo uma realidade lastimável de muitas regiões brasileiras e de outros países, especialmente nos subdesenvolvidos. São vários os fatores que podem levar uma criança e um adolescente a começar a trabalhar. A pobreza e a má qualidade da educação são um dos principais, concomitante à falta de perspectivas dadas pela escola e a disponibilidade de mão de obra infantil barata. Estes são poucos dos diversos fatores que estimulam a inserção dessa criança e adolescente no mercado de trabalho. Segundo Rizzini (2010, p.376), “O Brasil tem uma longa história de exploração da mão de obra infantil. As crianças pobres sempre trabalhavam”, possivelmente por pertencerem a uma classe social menos favorecida, sentiam a necessidade de contribuir com a renda familiar, privando-se assim dos estudos. Surge então um questionamento, mas pra quem elas trabalhavam? Pra quem? Para seus donos, no caso das crianças escravas da Colônia e do Império; para os “capitalistas” do início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãs, abandonadas ou desvalidas a partir do final do século XIX; para os grandes proprietários de terras como boias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas casas de famílias; e finalmente nas ruas, para manterem a si e as suas famílias (RIZZINI,2010,p.376). A abolição da escravatura em 1888 foi, segundo (RIZZINI, 2010, p.376) “um divisor de águas no que diz respeito ao debate sobre trabalho infantil; multiplicaram-se, a partir de então, iniciativas privadas e públicas” referentes ao preparo desses menores na indústria e na agricultura. Muitos destes eram levados a asilos de caridade, os quais posteriormente deram lugar a escolas e institutos, com o intuito de capacitar essa mão de obra barata. 33 A Organização Internacional do Trabalho 17 por meio da Convenção nº 182, Art.3º, dispõe o seguinte: “Para efeitos da presente Convenção, a expressão "as piores formas de trabalho infantil" abrange: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas; c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes; e, d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças”. Dessa forma, podemos reconhecer que existem várias formas de exploração infantojuvenil, dos serviços mais precários como os exercidos em lixões, no campo de grandes empresários e nas ruas, à exploração sexual de crianças e adolescentes. São atividades que causam danos ao desenvolvimento físico, psíquico e social das crianças e adolescentes, e o pior é que são de difícil erradicação.Os artigos da Convenção nº 182 são bem claros, em especial temos o art. 3º, que dispõe de várias medidas em favor ao combate a qualquer tipo de exploração infantojuvenil. Atualmente temos no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, que também ampara esse menor, conforme dispõe o Art. 60 “É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”, assegurando-lhes total proteção, pelo menos é o que está regimentado; se a prática não condiz com o mesmo, deve-se pelejar pela efetivação do referido estatuto. É cena do cotidiano dos moradores das grandes cidades grupos de crianças pequenas esmolando, faça sol ou chova. Estas crianças têm jornadas estafantes de trabalho, não vão à escola e muitas vezes estão longe de suas famílias, sendo exploradas por terceiros. Pesquisa realizada no Rio de Janeiro mostrou 65% das crianças que viviam nas ruas em 1996 não frequentavam a escola. A ajuda dessas crianças em casa é importante: em 1997, de 2.097 crianças de dez 17 A Organização Internacional do Trabalho é uma agência multilateral da Organização das Nações Unidas, especializada nas questões do trabalho, especialmente as normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações). 34 municípios do estado do Rio de Janeiro, 57% levavam sempre dinheiro para casa. Gerar renda é prioridade em suas vidas. A escola é uma realidade distante, inatingível para a maioria dos pequenos trabalhadores (RIZZINI, 2010. p. 391). Como relata Rizzini, as crianças e adolescentes são altamente prejudicados pelo trabalho em detrimento da escolarização. Quando os mesmos estão trabalhando, passam a dedicar todo seu tempo a atividades muitas vezes de risco, interferindo assim em seu desenvolvimento, sofrendo desgaste físico e psicológico. Dessa forma, o trabalho infantil impacta negativamente suas vidas, deixando-os à própria sorte e nas mãos dos aliciadores. Vemos surtir esse efeito negativo no rendimento estudantil, quando vão à escola. É fato que quando se ausentam por um período do ambiente escolar, devido o trabalho, vemos refletir tal impacto nas notas, apresentando assim elevadas taxas de repetências e de evasão. Segundo Rizzini (2010, p. 381), “O trabalho acaba por afastar a criança e principalmente o adolescente da escola. A longa jornada de trabalho é um dos fatores que os leva a desistir dos estudos”. No Brasil várias ações foram desenvolvidas para se chegar a uma erradicação do trabalho infantil. Pensando nessa situação, o Governo, juntamente com a Unicef, Organizações não governamentais e algumas instituições privadas, começaram a desenvolver campanhas de conscientização e mobilização social, passando assim a desenvolver medidas legais que regulamentam políticas públicas no intuito de erradicar tal problema. Em 1990, o Governo Federal criou melhores possibilidades para amenizar o impacto do trabalho infantil, a mais significante de todas foi a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), seguida de outras ações e programas como o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (1994), Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (1996), O Programa Brasil Criança Cidadã (1997), Programa Bolsa Escola (2001), o Programa Bolsa Família (2003), além de parcerias do setor privado, como o Criança Esperança, bem como o apoio da Fundação Abrinq, que juntamente com o Programa Empresa Amiga da Criança, mobilizaram mais de mil empresas, comprometendo-se com a eliminação do trabalho infantil. A erradicação do trabalho infantil é um trabalho conjunto, que não se refere apenas às esferas politicas, mas à sociedade em geral. Todos precisam sentir-se corresponsáveis por tal situação, não podemos ser agentes exploradores, nem tão pouco aliciadores. Há uma necessidade de denunciarmos e não fecharmos os olhos para tal realidade, terceirizando a responsabilidade. Quando nossas crianças e adolescentes forem efetivamente tratados como dispõe o ECA, 35 avançaremos. Os mesmos são vulneráveis às violações de direitos, à exploração trabalhista e sexual, bem como à pobreza e à violência em nosso país, portanto como sujeitos em desenvolvimento, carecem de proteção e de cuidados especiais. 1.8 CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA – século XX - XXI O século XX consagra agora a criança como sujeito de direito. A infância é um assunto que há anos vem sendo discutido e estudado, são inúmeros os historiadores e educadores que tem dedicado uma vida para compreender as entrelinhas e nuances de uma longa história de sobrevivência das crianças. A mesma continua sendo uma temática preponderante nos centros acadêmicos, pedagógicos e familiares. Concepções acerca da infância modificam-se no percurso histórico, visto que os menores estão em contínua transformação. Segundo a Lei 8.069/90 18 em seu artigo 2º, “Considera-se criança, para efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescentes aquela entre doze e dezoito anos de idade.” Outra mudança histórica é também a palavra “menor”, a mesma por diversas vezes foi usada de forma pejorativa, rotulava crianças que viviam à margem da sociedade e alvos da marginalização. Tal expressão foi substituída por “criança e adolescente”. Hoje em dia, a criança se configura na sociedade como um sujeito histórico-social e está presente nos diversos eventos de adultos, como formaturas, festas de aniversário e também em locais como cinema, teatro, praças; são poucos os lugares que o menor é privado de frequentar. Essa criança tem um grande poder de persuadir os adultos para obtenção do que deseja, sendo amplamente influenciada pelas vias midiáticas e apelos consumistas nelas embutidas. As crianças sempre estiveram presentes nas mais diversificadas esferas sociais, das situações mais favoráveis às mais hostis, sempre se constatou a presença dos mesmos. Esse fato tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, professores, sociólogos e antropólogos; muitos projetos de pesquisa, documentários e livros já foram produzidos com o intuito de registrar e buscar respostas para muitas lacunas da história das crianças. Del Priore (2010, p.17) ressalta na apresentação de seu livro “História das Crianças no Brasil” que, querer conhecer mais sobre a trajetória histórica dos comportamentos, das formas de ser e de pensar das nossas crianças, é também uma forma de amá-las todas, indistintamente melhor. 18 Estatuto da Criança e do Adolescente. 36 Percebe-se que apesar dos estudos voltados para o bem-estar infantil e de todas as políticas públicas que a beneficiam, ainda é necessária uma constante reflexão sobre o que as crianças têm reproduzido e vivido. É necessário um senso crítico para entender que não é próprio da criança dedicar-se a jornadas de trabalho camufladas por holofotes ou até mesmo crianças exploradas braçalmente por falta de uma assistência financeira digna; o comum seria vê-la se divertindo, estudando, participando de sua comunidade espontaneamente, sem ser persuadida por adultos, deixando-a livre para gozar de sua liberdade e seus direitos constitucionais. Tratando-se da mídia, observa-se que ela tem produzido um público infantil altamente consumista, influenciado por propagandas, desenhos, comercias, entre outros, interferindo direta e indiretamente com sua subjetividade, no que se refere ao seu modo de ser e viver no seu contexto social. Donizeti (2004) traz comentários acerca dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, o mesmo diz o seguinte:
Compartilhar