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direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivil direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivil direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivil direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivil direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildiredireitocivildireitocivildireitocivi ldireitocivildireitocivildireitocivildireitoc Direito Civil I Parte Geral [Escolha a data] Lucas Soares LUCAS SOARES DE OLIVEIRA Caderno 2 < direitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireito civildireitocivildireitocivildireitocivildirei tocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitocivi ldireitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireito civildireitocivildireitocivildireitocivildirei tocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitocivi ldireitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildireito civildireitocivildireitocivildireitocivildirei tocivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitocivi ldireitodireitocivildireitocivildireitocivildi reitocivildireitocivildireitocivildireitocivil Direito Civil I Parte Geral 2011 Caderno 3 Direito Civil I SSUUMMÁÁRRIIOO 1. Conceito de direito civil............................................................................................. 10 2. Origens do direito civil .............................................................................................. 11 2.1. Codificação ........................................................................................................... 11 2.2. História das Codificações.................................................................................... 11 2.3. Codificação brasileira ......................................................................................... 12 2.1. Código de 1916 .................................................................................................... 13 2.1.1. Monosistemas e polissistemas (A agonia do Código Civil) ............................ 14 2.2. Publicização do direito civil ............................................................................... 15 2.3. Constitucionalização do direito civil ................................................................. 17 2.3.1. Metodologia da estratégia de constitucionalização do Direito Civil .......... 18 2.3.2. O novo ramo: Direito civil-constitucional ................................................. 22 2.3.3. Conclusões ................................................................................................... 24 2.5. A necessidade de reconstrução do conceito de autonomia privada ................. 25 2.5. Processo de Transição do Código de 1916 para o de 2002 – Modelo normativo suíço ou alemão ......................................................................................................... 27 2.6. Código de 2002 .................................................................................................. 27 Considerações finais .............................................................................................. 29 Das Pessoas ................................................................................................................... 31 1. Introdução ao tema ................................................................................................... 31 2. Personalidade............................................................................................................ 31 3. Capacidade jurídica .................................................................................................. 33 3.1. Capacidade de direito ......................................................................................... 34 3.2. Capacidade de fato ............................................................................................. 34 4. Legitimidade (ou legitimação) ................................................................................. 37 Estatuto das Pessoas e o Novo Código Civil ................................................................. 38 5. Teorias da personalidade .......................................................................................... 38 5.1. Personalidade no nosso direito .......................................................................... 41 5.2. Sucessão envolvendo o nascituro ...................................................................... 42 6. Regime das incapacidades ........................................................................................ 42 6.1. Absolutamente incapazes ................................................................................... 43 6.2 Relativamente incapazes .................................................................................... 43 6.3. Emancipação ...................................................................................................... 46 7. Extinção da personalidade natural ........................................................................... 47 SUMÁRIO 4 < 7.1. The Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death ......................................................................................... 48 7.1.1. Questionamentos acerca do critério da morte encefálica ........................... 50 7.2. Aferição da morte no sistema legal brasileiro ................................................... 51 7.3. Morte presumida ................................................................................................ 52 7.3.1. Comoriência ................................................................................................. 55 8. Registro civil das Pessoas Naturais .......................................................................... 56 Dos Direitos da Personalidade ..................................................................................... 58 9. Conceito .................................................................................................................... 58 9.1. Contexto histórico .............................................................................................. 58 9.2. Características dos Direitos da Personalidade ..................................................60 9.3. Traço Dogmático de Definição .......................................................................... 63 9.4. Conclusão ........................................................................................................... 64 10. Estudo dos artigos ................................................................................................... 64 Da Ausência .................................................................................................................. 70 11. Conceito ...................................................................................................................70 12. Estudo dos artigos ................................................................................................... 71 Das Pessoas Jurídicas ................................................................................................... 77 13. Introdução ............................................................................................................... 77 14. Teorias da Natureza da pessoa jurídica .................................................................. 78 14.1. Teorias individualistas ...................................................................................... 78 14.2. Teorias da realidade coletiva............................................................................ 81 14.3. Teorias normativas ........................................................................................... 82 15. Estudo dos artigos ................................................................................................... 85 16. Representação e Capacidade das pessoas jurídicas ............................................... 91 16.1 Teorias da representação ................................................................................... 92 15.2. Atos ultra vires ................................................................................................. 93 17. Desconsideração da pessoa jurídica ....................................................................... 95 17.1. Teorias da desconsideração maior e menor .................................................. 105 18. Dissolução da pessoa jurídica ............................................................................... 105 19. Associações ............................................................................................................ 106 19.1. Estudo dos artigos .......................................................................................... 106 20. Fundações ............................................................................................................. 109 20.1. Estudo dos artigos .......................................................................................... 110 21. Entes atípicos ......................................................................................................... 113 5 Direito Civil I Do Domicílio ................................................................................................................ 116 22. Considerações iniciais ........................................................................................... 116 23. Estudo dos artigos ................................................................................................ 118 Dos Bens ...................................................................................................................... 124 1. Introdução ............................................................................................................... 124 2. Patrimônio .............................................................................................................. 125 3. Teoria dos Bens ....................................................................................................... 126 3.1. Distinção entre coisas e bens ........................................................................... 127 3.2. A insuficiência dos elementos caracterizadores dos bens jurídicos ............... 127 3.2.1 Economicidade e utilidade ......................................................................... 128 3.2.2. Suscetibilidade de apropriação ................................................................. 129 3.2.3. Limitabilidade ............................................................................................ 131 3.2.4. Exterioridade .............................................................................................. 131 3.2.5. Conclusão .................................................................................................. 132 4. Classificação dos Bens ............................................................................................ 132 4.1. Bens Considerados em si mesmos ................................................................... 132 4.1.1. Bens imóveis e bens móveis .......................................................................... 133 4.1.2. Bens fungíveis e bens infungíveis ................................................................ 133 4.1.3. Bens consumíveis e inconsumíveis ............................................................... 134 4.1.4. Bem divisível e bem indivisível .................................................................... 134 4.1.5. Bens singulares e coletivos ........................................................................... 135 4.2. Bens reciprocamente considerados ................................................................. 135 4.2.1. Bens principais e acessórios .......................................................................... 135 4.2.2. Diversas classes de bens acessórios ............................................................. 135 4.2.2.1. Benfeitorias e Pertenças ............................................................................. 135 4.2.2.2. Frutos e Produtos....................................................................................... 136 4.3. Bens quanto ao titular do domínio .................................................................. 137 4.3.1. Bens públicos e particulares ......................................................................... 137 4.4. Bens disponíveis e bens indisponíveis ............................................................ 138 Dos Fatos Jurídicos .................................................................................................... 140 1. Considerações esparsas acerca do fato jurídico ..................................................... 140 2. Aquisição, modificação e extinção. ........................................................................ 142 2.1. Aquisição........................................................................................................... 142 2.2. Modificação ...................................................................................................... 144 2.3. Extinção ............................................................................................................ 145 6 < 3. Exposição: Prescrição e decadência ....................................................................... 146 Negócio Jurídico ......................................................................................................... 147 4. Considerações iniciais ............................................................................................ 147 5. O negócio jurídico e a vontade ............................................................................... 148 5.1. Teorias da vontade e da declaração ................................................................. 148 5.2. A autonomia privada ........................................................................................ 148 5.2.1. Autonomia moral de Kant ......................................................................... 149 5.2.2. Autonomia moral de Kant e o Liberalismo .............................................. 149 5.2.3. Embate: liberal ou comunitarista ............................................................. 150 5.2.4. Cooriginariedade entre autonomia pública e privada .............................. 151 5.2.5. Autonomia privada como princípio .......................................................... 152 6. Teorias vínculo-negociais ....................................................................................... 153 6.1. Correntespreceptivista e normativista ............................................................ 153 6.2. Requisitos do negócio jurídico ........................................................................ 153 6.3. Elementos do negócio jurídicos ....................................................................... 155 6.4. Estudo dos artigos ............................................................................................ 156 7. Defeitos do negócio jurídico ................................................................................... 157 7.1. Vícios de consentimento ................................................................................... 158 7.1.1. O erro .......................................................................................................... 158 7.1.2. Dolo ............................................................................................................ 161 7.1.3. Coação ........................................................................................................ 163 7.1.4. Estado de perigo ........................................................................................ 164 5.1.5. Lesão .......................................................................................................... 165 7.2. Vícios sociais .................................................................................................... 166 7.2.1. Fraude contra os credores ......................................................................... 166 7.2.2. Simulação .................................................................................................. 168 8. Modalidades do negócio jurídico: Elementos acidentais do negócio jurídico ...... 169 8.1. Condição (CC, arts. 121 a 130).......................................................................... 169 8.1.1. Condições suspensivas e resolutivas ......................................................... 170 8.1.2. Condições impróprias ............................................................................... 172 8.2. Termo (CC, arts. 131 a 135) .............................................................................. 173 8.2.1. Espécies ..................................................................................................... 173 8.2.1.1. Termo certo e incerto .............................................................................. 173 8.2.1.2. Termo inicial e final................................................................................ 173 8.2.1.3. Termo convencional, legal e judicial...................................................... 174 7 Direito Civil I 8.2.1.4. Termo expresso ou tácito ....................................................................... 174 8.2.2. Termo e prazo ............................................................................................... 174 8.3. Encargo (CC, arts. 136 a 137) ........................................................................... 176 8.3.1. Encargo ilícito ou impossível .................................................................... 176 9. Da invalidade dos negócios jurídicos (Teoria das nulidades) ............................... 176 9.1. Nulidade ............................................................................................................ 177 9.1.1. Espécie de nulidade ................................................................................... 178 9.1.1.1. Nulidade absoluta .................................................................................... 178 9.1.1.2. Nulidade relativa ..................................................................................... 178 9.1.1.3. Nulidade total e nulidade parcial ........................................................... 178 9.1.1.4. Nulidade textual e virtual ....................................................................... 179 9.1.2. Causas de nulidade .................................................................................... 179 9.1.3. Características da nulidade ....................................................................... 180 9.1.4. Simulação ................................................................................................... 180 9.1.5. Instituto da conversão ............................................................................... 181 9.2. Anulabilidade ................................................................................................... 182 9.2.1. Causas de anulabilidade ............................................................................ 182 9.3. Negócio jurídico inexistente ............................................................................ 183 Bibliografia .................................................................................................................. 185 Código Civil: Parte Geral ............................................................................................ 189 LEI NO 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. .......................................................... 189 Exercícios .................................................................................................................... 210 8 < 9 Direito Civil I direitocivildireitocivildireitocivildireito civildireitocivildireitocivildireitocivildi reitocivildireitocivildireitocivildireitoci vildireitocivildireitocivildireitocivildire itocivildireitocivildireitocivildireitocivi ldireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitoc ivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitociv ildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitoc ivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitociv ildireitocivildireitocivildireitocivildireit ocivildireitocivildireitocivildireitocivild ireitocivildireitocivildireitocivildireitoc ivildireitocivildireitocivildireitocivildir eitocivildireitocivildireitocivildireitociv 10 1. CONCEITO DE DIREITO CIVIL Introdução ao Direito Civil Sumário: 1. Conceito de direito civil; 2. Origens do direito civil; 2.1. Código de 1916; 2.2.Constitucionalização do direito civil; 2.3. Publicização do direito civil; 2.4. Código de 2002; Considerações finais e transitórias. 1. CONCEITO DE DIREITO CIVIL O Direito civil é aquele que regula a vida das pessoas desde seu início – e mesmo antes dele, quando se permite que proteja eventuais filhos (CC, art. 1799 inc. I), e concede importância ao embrião excedentário (CC, 1.597 inc. IV) 1 – até seu fim, e, ainda, depois de seu fim com o reconhecimento da eficácia post mortem do testamento (CC, art. 1857) e ao exigir respeito à memória dos mortos (CC, art. 12, parágrafo único) 2. Costuma-se definir o Código civil como a Constituição do homem comum, devido ao fato dele reger as relações mais simples da vida coloquial, os direitos e deveres das pessoas, na sua qualidade de esposo ou esposa, pai ou filho, credor ou devedor, aliente ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho etc. Poderá se falar, assim, que toda a vida social está impregnada do Direito civil, que regula as ocorrências do dia-a-dia3. Por isso, alguns doutrinadores do porte de FRANCESCOSANTORO-PASSARELLIclassificam o Direito civil como ―o direito comum que rege as relações entre os particulares‖ 4. O enfoque do direito civil é o estudo das relações puramente pessoais, bem como patrimoniais. No círculo das relações pessoais estão importantes institutos, como por exemplo, o poder familiar; no campo das relaçõespatrimoniais, encontram-se todas aquelas que apresentam um interesse econômico e visam à utilização de determinado bem. Ensina-nos CAIOMÁRIODASILVAPEREIRA que devido ao grau complexo e ao crescente desenvolvimento das relações da vida civil que o legislador é convocado a disciplinar, tornou-se inviável enfeixar o direito civil no respectivo Código. Muitos direitos e obrigações concernentes às pessoas, aos bens e suas relações encontram-se regulados em leis extravagantes, que deixam de pertencer ao direito civil, bem como 1Reza o art. 1799 inc. I de nosso Código civil o seguinte: ―Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão‖; O art. 1.597 inc. IV, por sua vez, diz: ―Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga‖. 2O art. 1857, também do Código civil, coloca: ―Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.§ 1o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.§ 2o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado‖; e, ainda, o art. 12, em seu parágrafo único dispões: ―Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.‖ 3GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 4 Francesco Santoro-Passarelli, Dottrine generali del diritto civile, p. 19; Planiol, Ribert e Boulanger, Traté élémentaire de droit civil, v.1, p. 13, n. 32; Arnoldo Wald, Curso de direito civil brasileiro: introdução e parte geral, v.1, p.15; dentre outros. 11 Direito Civil I na própria Constituição Federal. O direito civil, portanto, é bem mais do que um dos ramos do direito privado, pois encerra os princípios de aplicação generalizada, que se projetam em todo arcabouço jurídico, e não restrita à matéria cível. Nele se situam normas gerais, como as de hermenêutica, as relativas à prova e aos defeitos dos negócios jurídicos, as concernentes à prescrição e decadência etc., institutos comuns a todos os ramos do direito. 5 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL 2.1. CODIFICAÇÃO Um código, há que se ter noção, não é apenas a reunião de disposições legais, relativas a um assunto determinado. A construção de código exige um trabalho muito mais extenso, subordinada a uma técnica mais apurada. Como bem diz CAIO MÁRIO: ―codificar o direito é coordenar as regras pertinentes às relações jurídicas de uma só natureza, criando um corpo de princípios, dotados de unidade deduzidos sistematicamente‖6. Muitas vezes ocorre certa confusão semântica no que diz respeito aos Códigos. Não se pode, deveras, considerar como Códigos certas legislações especiais, não obstante essas carregarem em sua denominação o prefixo de ―Código‖. Com justeza, não atribuímos a legislação especial de água ou minas (Código de Águas e Código de Minas) ou, ainda, as leis especais que regulam a caça e a pesca (Código de Caça e Código de Pesca), até mesmo os preceitos específicos do trânsito brasileiro (Código de Trânsito Brasileiro). Os exemplos acima são leis especiais, que carregam com si o escopo de disciplinar um setor isolado de atividade, que só por eufemismo mal empregado recebem aqueles nomes mais pomposos. Não há que se cogitar de Código onde falta espírito de sistema, e dedução sistemática-científica e harmonia de princípios. 7 2.2. HISTÓRIA DAS CODIFICAÇÕES A tendência à codificação não é assunto hodierno, tal se arrasta há milênios. Da antiguidade remota veio o ilustre Código de Hammurabi, que liga sua existência à do povo babilônico, retratando tanto ou mais do que os monumentos arquitetônicos e o teor de sua civilização8. Outro momento a se destacar aqui diz respeito à coordenação jurídica helênica, realizada por LICURGO em Esparta, e, especialmente, SÓLON em Atenas. Dos romanos nos ficou primeiramente a Lei das XII Tábuas. Após compilações realizadas pelos séculos IV e V, chegamos à obra monumental do gênero, o chamado: Corpus Iuris Civilis; no século VI, compilação ordenada pelo imperador JUSTINIANO, compreendendo as Institutas, o Digesto ou Pandectas, o Código e as Novas Constituições do próprio JUSTINIANO. Por toda a Idade Média houve fidelidade à compilação justiniana, que a recepção do direito romano 5 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil, v. 1, p. 16; GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v.1, p. 33. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições, cit., v. 1, p. 64. 7 Op., cit., p. 64. 8 SEAGLE, William, Men of law, p. 13 e ss. 12 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL coetânea da Escola de Bolonha (Século XI e XII), e a contemporânea do Renascimento (Século XV) manteriam em plena atualidade dogmática. 9 Durante os séculos XIX e XX, os países europeus e americanos, com exceção dos Estados Unidos e Inglaterra deslocaram suas atenções direta e fortemente às codificações. Depois que apareceram o Código da Prússia (1792), o Código Napoleônico (1804) e o Código da Áustria (1811), a atuação dos homens de direito foi atraída, de forma definitiva, para o fenômeno da codificação, dividindo a doutrina no que tange suas vantagens e desvantagens. THIBAUT, professor de Heidelberg, apoiando o processo de codificação, sugeriu que toda a Alemanha dotasse de um Código. Partindo ao combate disto SAVIGNY: o Código tem o grave defeito de corromper a floração natural do direito, mediante a adoção de ideias sistemáticas e preconcebidas, e a imposição de preceitos obrigatórios e fixos, que desnaturam a sua origem espontânea assentada no profundo status da consciência nacional. Alegando, ainda, um tipo de fossilização do direito pelo Código. Contra a Escola Histórica pronunciou-se o pensamento ocidental, e, com mais peso ainda, a bem sucedida experiência de todos os países modernos, derrubando as colocações de SAVIGNY. No Brasil, a discussão pré e pós Código de 1916 demonstraram um aprimoramento do juris consultos, como inegável consequência da sua coordenação de princípios que ela gerou.10 2.3. CODIFICAÇÃO BRASILEIRA Até o ano da publicação de nosso primeiro Código Civil, em 1916, vigorava no Brasil a legislação portuguesa dos tempos do Brasil colônia. Essa legislação, curiosamente, já havia sido revogada em Portugal. Nossa legislação civil era, portanto, desatualizada à época e de conteúdo difuso. Esse Código manteve-se em nosso ordenamento com a ressalva de que vigoraria até que se elaborasse a nossa própria Lei Civil. A Constituição de 1824 referiu-se à organização de um Código Civil com bases atreladas à justiça e à equidade, sendo em 1865 essa tarefa confiada a TEIXEIRADEFREITAS, que em 1858 havia apresentado um trabalho de consolidação de leis civis11. Devido às críticas efetuadas a esse projeto pela comissão revisora, acabou- se por abandonar a proposta. No entanto, tal esboço acabou por influenciar o Código Civil argentino, do qual constitui a base. Com o começo da República, o novo governo não aceitaria um Código ―imperial‖. CLÓVISBEVILÁQUAé, então, contratado com o ânimo de criar um Código Civil brasileiro. BEVILÁQUA busca inspirações nas codificações europeias dos sécs. XVIII e XIX e, mais precisamente, nos Códigos Civis da França (1804) e no Código alemão (1900). 9 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições, cit., v. 1, p. 64-65. 10 Op.cit. p. 66. 11 O projeto então elaborado, denominado ―Esboço do Código Civil‖, continha mil artigos e acabou não sendo acolhido, após sofrer críticas da comissão revisora. GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v.1, p-35. 13 Direito Civil I 2.1. CÓDIGO DE 1916 Na Câmara dos Deputados o projeto de BEVILÁQUAsofreu algumas alterações determinadas por uma comissão especialmente nomeada para examiná-lo, merecendo, no Senado, longo parecer de RUIBARBOSA. O projeto foi aprovado em janeiro de 1916 entrando em vigor dia 1º de janeiro de 1917. O Código continha acentuado rigor científico, que estimulou elogios de renomados juristas à época. 12 A codificação está ligada às conquistas republicanas e ao ideário liberal-burguês, que previa uma única lei para todos os cidadãos, de modo que possa servir e ser aplicada a todos eles. O Código Civil de 1916 tinha como características ser um conjunto normativo orgânico, sistemático, genérico e abstrato, baseado na lógica binária. Continha um caráter demasiadamente distante das situações fáticas. Para que os preceitos dispostos no Código Civil fossem aplicados à realidade era preciso que se recorresse à lógica binária, baseada em uma estrutura piramidal da legislação, que se revelava pelos conceitos antinômicos (verbi gratia, bens móveis vs. bens imóveis). Com isso, era possível solucionar os problemas que se afiguravam através da subsunção. De certa forma, ainda será possível observar esse processo ocorrer diante nosso novo Código, que divide em Pessoas, Bens e Negócios Jurídicos os livros da Parte Geral. Todavia, tal técnica, impede que se observem as diferenças fundamentais entre os fatos reais e concretos e seus atores. Por exemplo: Tomando-se como base uma história contada sobre Código Napoleônico, na qual a mulher era classificada como bem semovente, ou seja, aquele bem que se locomove por vontade própria sem destruição de sua natureza. Um cachorro, e.g., também se enquadraria nesta definição de bem semovente, causando um efeito ―mulher igual cachorro‖. Pela lógica binária valer-se-ia das semelhanças esquecendo-se das diferenças, sendo, desta forma, insuficiente sua aplicação no campo do Direito. Quando se rotula um conceito nessa lógica, todas as diferenças são desprezadas, causando, destarte, prejuízos. Com o tempo, começou a existir certa tensão entre o Código e suas normas de caráter geral e o interesse das partes. O Código de 1916 preocupou-se essencialmente com a completude do ordenamento, devido seu apelo positivista. Com o advento de demandas sociais e necessidade de uma maior flexibilidade, o Código de BEVILÁQUAcomeça a ruir. A evolução social, o progresso cultural e o desenvolvimento científico pelos quais passou a sociedade brasileira no decorrer do século passado acarretaram transformações que exigiram do direito uma continua adaptação, mediante a crescente elaboração de leis especiais, que trouxeram modificações relevantes ao direito civil, sendo o direito de família o mais afetado13. Surgiram-se então, a partir 12 Juristas como SCIALOJA na Itália, ENNECCERUS na Alemanha, MACHADOVILELA em Portugal, e ainda ARMINJON e WOLFF na França, que exaltaram, principalmente, sua clareza e precisão científica. 13 Basta lembrar a Lei n. 4.121/62 (Estatuto da Mulher), a Lei n. 6. 515/77 (Lei do Divórcio), a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e as leis que vieram a reconhecer direitos aos companheiros e conviventes (Leis n. 8.971/94 e 9.278/96); GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v.1, p-39. 14 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL dessa necessidade de a legislação acompanhar, i.e., se adequar a realidade fática, algumas leis especiais, que visavam à resolução dos conflitos provocados por essa dissonância entre o Código Civil e as demandas sociais. O problema é quecada vez que uma dessas leis era promulgada abria-se uma espécie de buraco na estrutura monolítica piramidal em que se assentava o Código de 1916. Assim, cada lei especial extraía para si, isto é, para sua regulação, parte do Código Civil14. Esse fenômeno é nomeado por alguns autores de ―Descodificação do direito civil‖. Essas tantas outras leis especiais distinguem-se do Código Civil e o enfrentam, constituindo microssistemas que introduzem novos princípios de disciplina das relações jurídicas a que se dirigem. É necessário ver que o Código Civil monolítico foi importante e adequado à sua época histórica e ligava-se à concepção liberal-burguesa (positivista) de que um sistema fechado de leis que servissem a todos os cidadãos era propício para o estabelecimento do capitalismo e, ademais, para impedir o apossamento do poder por parte do tirano absolutista. A codificação foi de extrema importância atuando de modo a liquidar os resquícios do feudalismo. Esses processos – de codificação e constitucionalismo – são recentes, surgindo ambos com o ânimo de limitar o poder do Estado frente os indivíduos a ele pertencentes. Quando se tem um ordenamento, nele se refletem as situações que levaram à instauração daquela ordem, uma principiologia característica e uma própria hermenêutica pretendida pelo legislador. Desse modo, ao se referir a chamada ―Crise do Direito Civil‖ refere-se à mudança de um monosistema para um polisistema, na verdade, assim, não haveria uma crise do Direito Civil e sim uma mudança da forma de se conceber o Direito Civil. Por exemplo, o Código Civil estabelece regras quanto à prescrição e decadência das relações jurídicas e o Código de Defesa do Consumidor leva em consideração essas regras gerais. Logo, não haveria uma crise verdadeira, mas não há como negar a existência de conflito entre determinadas regras dos diferentes monosistemas. 2.1.1. MONOSISTEMAS E POLISSISTEMAS (A AGONIA DO CÓDIGO CIVIL) Ao passar dos anos, na medida em que as sociedades foram se tornando mais complexas, as relações jurídicas foram tomando novas feições (novas surgiram, muitas desapareceram ou se modificaram), evidenciando a delicadeza de um sistema fechado (sistemas conceituais-abstratos). Os Códigos advindos com essa pretensão de completude e características sistemáticas, unitárias e abstratas, se encaixavam pontualmente no gênero de sistemas fechados. Esses conceitos abstratos detinham como escopo abranger um grande número de situações, mas, com a evolução da sociedade, esse método tornou-se obsoleto. A necessidade de normas no âmbito privado com maior concretude fez surgir as chamadas leis especiais, que aos poucos invadiram o ordenamento e levaram a formação de polissistemas. Para compreender o significado de um polissistema é necessário o conhecimento de sua antítese, os monossistemas. Não existe melhor exemplo a ser dado de 14 A Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), as diversas leis de locação, o Código de Defesa do Consumidor, o Código de Águas, o Código de Minas e outros diplomas revogaram vários dispositivos e capítulos do Código Civil de 1916, em uma tentativa de atualizar aquela legislação civil, até que se aprontasse a reforma do Código;GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, v.1, p-39. 15 Direito Civil I monossistema do que o próprio Código de 1916. Nele se pretendia uma regulação completa e unitária, contendo dentro do mesmo diploma, ou melhor, sistema, toda a aparelhagem para a disciplina da vida civil. Contudo, como já foi aludido, esse sistema entrou em ―pane‖. A partir do terceiro decênio em curso, normas especiais editadas para disciplinar certas categorias de relações, passaram a ―ocupar espaços de aplicação cada dia maiores‖, ao ponto de terem um consumo superior aos preceitos do Código Civil. 15 Partindo disso chega-seaos polissistemas. Os polissistemas são conjuntos de microssistemas. Essas tantas leis especiais editadas que esvaziaram o território do Código Civil, que se distingue do mesmo e muitas vezes o enfrentam, são os microssistemas. Logo, essa emersão de microssistemas – ou considerando o aglomerado de microssistemas, os polissistemas – trouxe problemas como a falta de unidade. As leis avulsas ao diploma civil não permaneceram subordinadas aos critérios do sistema, seguindo um espírito próprio, o que cada vez mais culminava na redução da unidade sistêmica. A fim de recuperá-la, os princípios gerais do direito passaram a ter abrigo na Constituição, o que também implicava no reforço do conteúdo dos referidos princípios, que passaram a estar assegurados constitucionalmente. A emigração dos princípios gerais do Direito Civil para o Direito Público foi foco de muitos questionamentos. Os críticos asseveravam que tal transferência emitia o sinal de uma subordinação do Direito Privado ao Público, acarretando um estreitamento da dimensão individualista a seu favor de uma socialização dos comportamentos. Nessa perspectiva, o homem tinha valor apenas no ente coletivo, resultando na crise da propriedade, na autonomia empresarial, entre outros. A partir de 1978 ocorre o chamado ―Retorno ao Privado‖. A ideia de que ―tudo é política‖ perde espaço e o Direito Privado recupera parte da autonomia perdida. Contudo, essa nova tendência não visava somente facilitar a expansão econômica do individuo – caráter patrimonialista –, mas também, assegurar-lhe o desenvolvimento de sua personalidade – bens existenciais –, através, p. ex., dos direitos de personalidade. O direito ganha essa função promocional, não importando a ele só a solução da lide, mas, também, a promoção do indivíduo. 2.2. PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL É corriqueiro ler que está havendo em nosso direito a chamada ―Publicização do direito civil‖. O quadro abaixo oferece uma síntese de tal processo: Publicização do direito civil Compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, característica do Estado Social do séc. XX. Tem-se a redução do espaço de autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica dos mais fracos. É um fenômeno de discutível pertinência, visto que o fato de haver mais ou menos normas cogentes não elimina a natureza originária da relação jurídica, vale dizer, uma relação de coordenação. 15 GOMES, Orlando. A Agonia do Código Civil, p. 1-9. 16 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL De certo, a influência absorvente do Estado e a necessidade de se instituírem, com mais segurança e amplitude, fórmulas cada vez mais dirigidas no sentido de realizar a finalidade precípua do direito que se positiva e se afirma no propósito de garantir e proteger o bem-estar do indivíduo in concreto, cogitando da normação social em atenção ao bem da pessoa, gera a tendência à publicização da norma jurídica 16. Em consequência desse movimento, aumenta-se a limitação da liberdade individual, ocorrendo a estatização de numerosos serviços 17 e intervindo o Estado em matérias que antes eram relegadas exclusivamente ao poder que cada um tem de auto-regrar suas relações (autonomia privada), ou seja, o Estado passa a interferir na liberdade das partes. Cabe nota que, diversas vezes, essa intervenção na esfera de liberdade dos partícipes por parte do Estado assegurava uma maior liberdade a todos, um exemplo dessa afirmação pode ser vista na seguinte ilustração: as regras de transito acabam por limitar o âmbito de ação de cada pessoa, todavia, tal limitação proporciona uma segurança e harmonização das liberdades, de modo a ser favorável a todos. O processo de publicização pode ser observado com maior clareza quando se efetua uma análise de alguns períodos históricos. Sabe-se que ao longo do séc. XX foram se modificando as relações entre Estado e economia, dentre tais relações,há que se identificar três fases nas quais Estado e economia se relacionaram distintamente. São elas: 1)a fase pré-intervencionista (1930 à 1945), onde o Estado não intervinha na esfera privada do cidadão, caracterizando-o como um Estado absenteísta. Essa primeira fase é caracterizada pelo New Deal, que lançou as bases para a chamada 2)fase intervencionista (1945 a 1980), de proposta keynesiana, quando o Estado passou a intervir nas relações privadas; houve, ainda, o chamado 3)período pós-intervencionista, também chamada de neoliberalismo (1980 a 2000), que se caracterizou (e ainda caracteriza) por um modelo de intervenção moderada, baseada na fiscalização do Estado e na menos ingerência possível na esfera de autonomia individual. Com justeza, na fase intervencionista, o direito civil estaria diante de um direito fortemente publicizado, em que há uma limitação da autonomia privada em prol de interesses do Estado. Ocorre que diversas correntes, da esquerda à direita, criticam tal fase. Dentre tais questionamentos, a crítica mais contundenteé a da Escola de Chicago (liberal), que previa a aplicação das regras de direito mediante o princípio da economicidade. Com esses ideais, se dá concepção ao neofederalismo. Direito Público e Direito Privado. Muito importante, e conexo ao assunto, é interpretar de forma bem sucedida os ―limites‖ do Direito Público e Privado. Modernamente, e não há dúvidas quanto a isso, não há que se cogitar que esses dois ramos sejam estanques, incomunicáveis, herméticos, estabelecendo uma separação total e absoluta das normas privadas e públicas. Ao contrário, intercomunicam-se 16 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições, v. 1, cit., p. 14. 17 GIORGIANNI, Michele, ―O direito privado e suas atuais fronteiras‖, in: Revista dos Tribunais, v. 747, p. 35 e ss. A autonomia privada é o poder que cada um tem de auto-regrar suas relações (seus interesses). 17 Direito Civil I com frequência constante, tão presente que inúmeras vezes se encontram regras atinentes ao Direito Público nos complexos legais de Direito Privado, e vice-versa. Dessarte, a interpretação dos conceitos não permite o traçado de uma linha lindeira de extrema nitidez entre umas e outras disposições.18Essa zona nebulosa, torna tormentosa a caracterização de algumas normas como de natureza privada ou pública. Com efeito, apesar das inúmeras propostas de conceitos estanques para os dois ramos, ainda que útil didaticamente, essa divisão é artificial e não absoluta. Teoricamente, o Direito Público seria o conjunto de normas que preveem a organização da atuação dos particulares. Entretanto, ocorre que, inúmeras vezes, o Estado atua, também, como particular; além de outras varias comunicações entre os dois ramos, que derrubam a ideia de uma summa divisio. Assim, assiste-se: ―ao lento declínio da concepção, própria da publicística do final do século XIX, da supremacia do Direito Público sobre o Direito Privado, a qual cede a formulações menos extremadas ou mais agnósticas, enquanto se fazem cada vez mais insistentes e menos tímidas as tentativas de reavaliação da autonomia privada. Nisto, aliás, se deveria perceber uma ulterior contradição com o afirmado clima de ‗publicização‘ do Direito Privado, se não se tratasse de dois fenômenos que se movem sobe dois planos diversos, como vimos acima. Em particular, aquela reavaliação da autonomia privada constitui simplesmente uma manifestação de alinhamento à reação generalizada contra o positivismo normativista‖ 19. Logo, conclui-se que não há avanço do Direito Privado sobre o Público, ou vice- versa, existindo, sim, uma interpenetração que gera a necessidade de reconstrução de alguns conceitos. 2.3. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL O processode constitucionalização do direito civil consiste em uma tática metodológica para proporcionar uma unidade sistêmica pensada na Itália na década 70, onde muitos doutrinadores o alocavam dentro da denominada ―Crise do Direito Civil‖, junto à descodificação e a publicização. Deveras, tal ―crise‖, não existiu na realidade, havendo, sim, uma mudança da ótica do como se interpreta o direito civil. Assim, os três processos apontados acima formam, junto com a mudança sistêmica do direito privado, as mais importantes transformações do direito privado. Dessa forma, sabe que a Constituição – sendo ela uma construção normativa hierarquizada, em forma de pirâmide, com aspirações kelsenianas – aponta a validade de uma norma depende de sua compatibilidade – direta ou indireta – com a norma fundamental. Sendo assim, todos os preceitos devem ser consonantes à Constituição, ou serão inválidos. Tendo em foco tal concepção, foram colocados na Constituição, com o intuito de retomar a tradição romano-germânica, princípios de Direito Privado. Em nossa Carta Magna de 1988 temos inclusive normas de Direito Privado encaradas como cláusulas pétreas, como, e.g., o art. 5º inc. XXII e inc. XXIII; dos artigos 170 ao 183 (título VII, capítulo I) temos regras que estabelecem os 18 PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições, v. 1, cit., p. 11. 19 GIORGIANNI, Michele, ―O direito privado e as suas fronteiras‖, RT/Fasc. Civ., jan, 1998: p. 55. 18 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL princípios gerais da atividade econômica; o art. 226 em seus parágrafos trata de matérias que teoricamente seriam de conteúdo Privado, como o casamento e a união estável. Vislumbra-se que a própria Constituição trouxe importantes contribuições, então, ao direito de família, em especial ao direito à filiação, abrangendo também o direito das coisas, ao reconhecer a função social da propriedade, restringindo ainda a liberdade de contratar em prol do interesse público. Desse modo, contribuiu para o deslocamento do centro da disciplina jurídica das relações privadas, permanecendo o Código Civil como fonte residual e supletiva nos diversos campos abrangidos pela extravagante e constitucional20. Em harmonia com isso, aduz TEPEDINO: ―o tecido normativo do Código Civil e toda a legislação infraconstitucional deverão ser informados pelos mesmos princípios. Teremos, assim, em tema de propriedade, uma funcionalização da propriedade privada aos princípios fundamentais da República, à erradicação da pobreza, à distribuição de renda. Não se trata, portanto, de ler a normativa especial através de seus próprios princípios – como se fora um microssistema –, encontrando-se tais preceitos setoriais condicionados, vinculados, instrumentalizados, ao projeto constitucional‖. 21 Constitucionalização do Direito civil Elucida PAULOLUIZNETTOLÔBOque a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional. 2.3.1. Metodologia da estratégia de constitucionalização do Direito Civil22 Em 1988 adveio uma nova Constituição Federal, de cunho solidarista, que buscou uma unificação aos sistemas que até então se encontravam descentralizados. Os civilistas, destarte,empreenderam-se ao dever de compatibilizar o Código Civil e a legislação especial ao texto constitucional. Como já dito, tal movimentos se deu, pois embora se proclame a supremacia constitucional na atividade hermenêutica, o direito civil brasileiro ainda não teria conseguido incorporar o texto constitucional a sua práxis. Assim sendo, o estudo do processo de constitucionalização do direito civil brasileiro, acaba por levantar duas questões a serem respondidas: a primeira concerne ao papel do Código Civil quando da sua elaboração e nos dias atuais, e, ademais, como compatibilizá-lo, do ponto de vista hermenêutico, com as leis especiais e com a Constitucional da República. Desse modo, poderá se compreender os adjetivos que vêm acompanhando o Direito Privado, adjetivos esse que dão sustentação a noção de publicização que poderia configurar o que muitos chamam 20 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, p-8 (Col. Sinopses Jurídicas, v.1); AMARAL, Francisco, Direito civil, cit., p. 129; PEREIRA, Caio Mario da Silva, Instituições, cit., v.1, p. 58; DINIZ, Maria Helena, Curso, cit., v. 1, p. 50; RODRIGUES, Silvio, Direito civil, cit., v.1, p. 13. 21 TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 15. 22 Apontamentos realizados pro GUSTAVO TEPEDINO: Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil, In: temas de direito civil, p. 1-22. 19 Direito Civil I de uma absorção do Direito Privado pelo Direito Público ou, melhor, uma necessidade de se criar novas interpretações, novos conceitos à relação Público- Privada. O Código Civil de 1916 é fruto de uma tendência individualista, de inspiração napoleônica com já visto, que tratava de regular a atuação dos sujeitos de direito, principalmente proprietários e contratantes que aspiravam eliminação dos privilégios feudais, para benefícios próprios. Àquele tempo, afirmava-se que o Código Civil brasileiro era a Constituição do Direito Privado, já que era a garantia mais elevada quanto à disciplina das relações patrimoniais, sem a ingerência do Direito Público na esfera privada. Tem-se, na verdade, que a generalidade dos Códigos civis oitocentistas (séc. XIX), dentre eles o Código de 1916, foram tratados com significado ―constitucional‖, pois representavam a maior garantia legal do âmbito privado. Contudo, ao decorrer do tempo, esteperíodo de estabilidade e segurança entra em declínio, mais especificamente durante a segunda metade do sec. XIX, com necessidade cada vez maior de intervenção estatal na economia. A fim de reequilibrar o quadro social após a promulgação do Código Civil o legislador teve que fazer uso de leis excepcionais, que confirmavam o papel constitucional do Código nas relações privadas.Essa ―legislação de emergência‖ que se pretendia casuística, exprimia a circunstância histórica justificadora da intervenção legislativa e preservava a integridade do sistema em torno do Código Civil. Assim se deu a primeira fase intervencionista do Estado,que não alterou substancialmente a exclusividade do diploma civil nas relações de Direito Privado, por limitar tais ações a necessidade emergencial. Ao longo do tempo, foram surgindo novas necessidades do estado, devido às novas situações sociais e jurídicas que surgiam e não eram alvitradas pelo Código de BEVILÁQUA. Essas necessidades acabaram por fazer com que as leis extravagantes perdessem o caráter emergencial das anteriores e tornando-se cada vez mais abrangentes, codificam novas matérias, regulam novos institutos e, portanto, não compadecendo como as anteriores, configurando assim uma segunda fase no percurso interpretativo do Código Civil em que se revelou a perda de seu caráter de exclusividade na regulação das relações patrimoniais privadas, devido ao processo de formação de microssitemas. De certa forma, tal modificação no papel do diploma civil identifica sinais de esgotamento das categorias de Direito Privado. A nova realidade econômica industrial repele o individualismo que dá lugar a uma preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo sujeito de direito. Devido à industrialização e outros fatores, verifica-se a introdução de deveres sociais às atividades econômicas privadas, através de Cartas Políticas e grandes Constituições. As constituições assumem postura tal que devem ser ―levadas a cabo‖ pelo legislador ordinário.Destarte, o Código Civil de 1916 perde definitivamente seu papel de constituição do Direito Privado. Os textos constitucionais vão cada vez mais definindo princípios relacionados a temas antes tratados exclusivamente pelo texto civil. E, por outro lado, o próprio Código, através da legislação extracodificada, desloca sua 20 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL preocupação central com o individuo para as atividades por ele desenvolvidas e os riscos dela recorrentes. Essa alteração avalizada pela Constituição da Republica tem como instrumento a legislação especial, que visa garantir objetivos sociais e econômicos definidos pelo Estado. Configura-se assim, de um lado, o direito comum que regula sob a velha ótica subjetivista, e de outro, o direito especial, que retrata a intervenção do legislador em uma nova realidade econômica e política. Outrossim, a intensificação do processo intervencionista subtraiu do Código Civil inteiros setores da atividade privada, disciplinando-as inteiramente. Tal mecanismo consagrado pela constituição de 1988 inaugura uma terceira fase de aplicação do Código Civil, o da ―era dos estatutos‖. Estatutos esses, que disciplinam exaustivamente inteiras matérias extraídas da incidência do texto civil. Quais as características destes estatutos sinteticamente apresentados?Em primeiro lugar, nota-se uma alteração na técnica legislativa. O legislador vale-se de cláusulas gerais cabendo ao intérprete extrair delas situações alvitradas (ou não) pelo legislador, abre-se mão da tipificação taxativa.Em segundo lugar, verifica-se uma alteração na linguagem do legislador, menos jurídica e mais setorial, suscitando muitas vezes dificuldades ao intérprete.Em terceiro lugar, quanto aos objetivos das normas, onde além de coibir os atos ilícitos indesejados passou a oferecer vantagens ao destinatário através das leis de incentivo que oferecem vantagens individuais a chamada por NORBERTO BOBBIO de ―função promocional do direito‖ 23.Em quarto lugar, não se limita mais o legislador à disciplina das relações patrimoniais. O legislador cada vez mais, condiciona a proteção de situações contratuais ou situações jurídicas tradicionalmente disciplinadas sob a ótica exclusivamente patrimonial ao cumprimento de deveres nãopatrimoniais, assim, diz-se que a uma fuga do patrimonialismo individualista para uma perspectiva mais essencial do direito. Como quinta e última característica, nota-se o caráter contratual de tais estatutos. Aquele legislador que legislava de maneira geral e abstrata, tendo em mira o cidadão comum, dá lugar a um legislador-negociador, com vocação para a contratação que produz a normatização para determinados grupos. O direito civil perde unidade sistemática antes assentada, de maneira estável e duradoura, no Código Civil passado. Os ramos do texto civil já não atendem suficientemente novas necessidades. No que tange ao processo de desunificação da matéria civil, como já pôde ser apontado, o professor ORLANDO GOMES aderiu à ideia de descodificação24 para a substituição do monossistema representado pelo Código de 1916, pelo polissistema, formado pelos estatutos, verdadeiros microssistemas do Direito Privado. Ideia essa que deve ser examinada com cautela. Tais microssistemas funcionariam com independência temática dos princípios do texto civil (que passaria a ter uma função meramente residual, aplicável em relação às matérias não reguladas pelas leis especiais). 23 BOBBIO, Norberto, Dalla struttura allá funzione, p. 63 e ss. 24 Dentre outras obras, tem-se em especial: ―Agonia do código civil”, Revista de direito comparado luso- basileira, ano IV, nº 7, jul. 1988: 1-9. 21 Direito Civil I Porém, tal doutrina levada às ultimas conseqüências, representa uma grave fragmentação do sistema, permitindo a convivência de universos legislativos disjuntos, não raro antagônicos e conflitantes. Esse cenário formado além de politicamente indesejável não parece poder ser admitido diante da lógica constitucional, visto que o constituinte teve o cuidado de definir princípios e valores bastante específicos no que concernem as relações de direito civil. Assim, ainda sob a égide do antigo diploma civil, já se tinha a noção de que os universos legislativos setoriais existentes buscam a unidade do sistema nos valores constitucionais. Recupera-se assim o universo desfeito, reunificando-se o sistema através da Constituição. Em 2002 foi promulgado o novo Código Civil de inegável índole solidarista. A novel codificação civilista distanciou-se da natureza individualista do Código de 1916, aproximando-se das inspirações constitucionais levadas a efeito pela ordem vigente, deixando clara a opção por um Código à luz constitucional. O novo Código traz consigo um tratamento que preza o social, ascendendo mecanismos como a ampliação das cláusulas gerais, formando um sistema aberto, não operando sob uma lógica binária. Ademais, na atividade interpretativa o civilista deve superar alguns preconceitos que o afastam de uma perspectiva civil-constitucional: 1. Em primeiro lugar, não se pode imaginar no âmbito do direito civil, que os princípios constitucionais sejam apenas princípios políticos, pois isso pode destituir o papel de unificador da Constituição. O civilista assim não se sente vinculado diretamente aos preceitos constitucionais e se torna refém do legislador ordinário; 2. Em segundo lugar, não se deve concordar com aqueles que utilizam os princípios constitucionais como princípios gerais do direito, pois se assim o fizesse como os princípios gerais do direito só são utilizados diante da omissão do legislador e depois de se recorrer à analogia e aos costumes, haveria uma subversão da hierarquia normativa; 3. Em terceiro lugar, como o legislador tem preferido cláusulas gerais,já acreditando que ele não conseguirá acompanhar a velocidade com que o mundo evolui, não pode o operador apegar-se a necessidade de uma regulamentação casuística, pois não se reconheceria legislação aplicável. 4. Último preconceito a ser abandonado, relaciona-se a summa divisio(interpenetração)do direito publico e do direito privado que significa uma alteração nas relações entre Estado e cidadão. Assim nem sempre é possível distinguir o que pertence ao Direito Público e o que pertence ao Direito Privado. Em outras palavras, já não se pode determinar o que seria campo de Direito Público ou deDireito Privado pela inexistência de intervenção publica nas atividades de Direito Privado ou pela exclusão da participação do cidadão nas esferas de administração pública. Este último preconceito pode ser vislumbrado no que tange ao processode migração de institutos do direito civil para o direito administrativo de que alguns autores falam. Assim ocorre, por exemplo, no caso da responsabilidade objetiva, com a consagração da teoria do risco, prevista constitucionalmente na hipótese de 22 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL responsabilidade estatal. A matéria é tipicamente de direito civil e não do direito administrativo como sustentam alguns. Outrossim, o fato de algumas matérias pertencentes ao direito privado (como propriedade e direito de família), serem tratadas por princípios de ordem pública não implica em migração das mesmas ao Direito Público, mas apenas um redesenhamento do tratamento a elas feito pelo interprete à luz da constituição. Cabe reforçar que, essa intervenção do estado no Direito Privado não implica em um agigantamento do Direito Público em detrimento do Direito Privado, ao contrario, permite o revigoramento dos institutos de direito civil, tornando-os compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual. Por derradeiro, talha-se uma ultima advertência quanto às adjetivações feitas ao direitocivil, que por um lado quer mostrar a necessidade de sua releitura com bases constitucionais, preservando sua autonomia dogmática e conceitual, e por outro lado poderia parecer errônea, pois o direito civil se altera e sua adjetivação poderia dar a impressão que ele continua como antes,assim os adjetivos poderão significar uma interpenetração do Direito Público e Privado de tal maneira a se reelaborar a dogmática do direito civil. Assim, trata-se de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública relendo o direito civil à luz da constituição privilegiando valores nãopatrimoniais como a dignidade da pessoa humana, os direitos sociais e a justiça distributiva. 2.3.2. O novo ramo: Direito civil-constitucional A ideia de Código Civil como ―Constituição do homem comum‖, com princípios intrínsecos e que não se precisa sair do universo do próprio código para interpretá- lo, contendo a sua validade em si mesmo, decaiu. Hodiernamente, com vista à superioridade da Constituição, o código deve ser entendido a sua luz. Sobre isso, segue-se o pensamento do Mestre CAIO MÁRIO: ―Não mais se pode reconhecer ao Código Civil o valor de direito comum. É tempo de se reconhecer que a posição ocupada pelos princípios gerais de direito passou a ser preenchida pelas normas constitucionais, notadamente, pelos direitos fundamentais‖. 25 Com efeito, ao disciplinar os institutos nitidamente civilistas, como a família, a propriedade, o contrato, dentre outros, o legislador constituinte redimensionou a norma privada, fixando os parâmetros fundamentais interpretativos 26. Em outros termos, ―ao reunificar o sistema jurídico em seu eixo fundamental (vértice axiológico), estabelecendo como princípios norteadores da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a solidariedade social (art. 3º) e 25 Completa o autor: ―Em toda minha oba sempre salientei o papel exercido pelos ‗princípios gerais de direito‘, a que se refere expressamente o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro como fonte subsidiária de direito. Embora de difícil utilização, os princípios impõem aos intérpretes o manuseio de instrumentos mais abstratos e complexos e requerem um trato com ideias de maior teor cultural do que preceitos singelos de aplicação quotidiana. Cumpre reconhecer que, na atualidade, os princípios constitucionais sobrepõem à posição anteriormente ocupada pelos princípios gerais de direito‖. Instituições, v. 1., cit., p. 18-19. 26 Essa transferência de princípios gerais de direito privado ao âmbito constitucional se deu com o objetivo de restaurar a unidade após a fragmentariedade causada pela multiplicação de leis especiais. 23 Direito Civil I a igualdade substancial (arts. 3º ao 5º), além da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, promovendo o bem de todos (art. 3º, III e IV), a Lex Fundamentalis de 1988 realizou uma interpenetração do direito público e do direito privado, redefinindo os seus espaços, até então estanques e isolados. Tanto o direito público quanto o direito privado devem obediência aos princípios fundamentais constitucionais, que deixam de ser neutros, visando ressaltar a prevalência do bem- estar da pessoa humana‖27. Bem coloca PELINGIERI ao destacar a perda de centralidade do Código Civil, ao enfatizar que: ―o papel unificador do sistema, tanto em seus aspectos mais tradicionalmente civilísticosquanto naqueles de relevância publicista é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional‖. 28 Sobre essa novel perspectiva, que demonstra a necessidade da atenção ao Texto Constitucional, seja qual for o ramo do direito, mas no nosso caso específico o direito civil, tem-se anunciado o surgimento de uma nova disciplina ou ramo metodológico denominado direito civil-constitucional, que estuda o direito privado à luz das regras constitucionais. De certo, o direito civil-constitucional está baseado em uma visão unitária do sistema29. Ambos os ramos não são mais interpretados de forma estanque, mas sim dentro de um todo, mediante uma interpretação simbiótica entre eles. Ensina PAULO LÔBO que ―deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código Civil, como ocorria com frequência (e ainda ocorre)‖. 30 Com justeza, a fonte primária do direito civil – e de todo o ordenamento jurídico – é a Constituição, ela figura no topo da proposta piramidal de KELSEN, é a Lex Fundamentalis a qual todas as demais normas devem guardar compatibilidade. É a Constituição que, com seus princípios e normas, confere nova feição à ciência civilista. O Código Civil é logo após a incidência constitucional o diploma básico na regência do direito civil. Ao seu lado, e sem relação de interdependência, figuram inúmeras leis esparsas, que disciplinam questões específicas, como, e.g., a lei das locações, a lei de direitos autorais, a lei de arbitragem etc.31 A expressão ―direito civil-constitucional‖ apenas dá destaque ao necessário esforço de releitura do Código e de suas leis especiais à luz da Constituição, redefinindo as categorias jurídicas à luz da Magna Carta brasileira, talhando reestruturações e renovações das categorias jurídico-civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, da nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na igualdade substancial. Por isso, repensemos os dizeres de CAIO MÁRIO: 27 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson, Direito civil: teoria geral, cit., p. 12-13. 28Perfis do direito civil, cit., p. 6. 29 Entenda sistema aqui como o ordenamento jurídico pátrio na completude de seus ramos. 30Teoria geral das obrigações, cit., p. 2. 31 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson, Direito , cit., p. 19; GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito, v.1, cit., p. 45. 24 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL ―Na nossa função de intérprete, é nossa atribuição visualizar os novos textos legais como dispositivos estabelecidos a serviço da criatividade. Acima do direito codificado pairam conceitos criadores de uma superlegalidade a que tende irresistivelmente o desejo universal de uma convivência de harmonia e paz‖. 32 2.3.3. Conclusões De certo, é inviável, entretanto, aplicar tais princípios constitucionais a todos os casos concretos que exijam, para sua subsunção, normas de Direito Privado. Isso é bem esclarecido por ALEXY em sua obra intitulada: Teoria dos Direito Fundamentais33. Na maioria dos casos procede-se à subsunção a partir de legislação infraconstitucional. Desconsiderar a legislação em todos os casos, favorecendo, assim, a ponderação de interesses que leve em consideração princípios constitucionais, é desconsiderar a prévia ponderação de interesses realizada pelo legislador. No Rio de Janeiro, v.g., houve um caso em que a justiça levou em consideração o princípio da dignidade humana em detrimento da lei que estabelece as locações. A lei das locações estabelecia que decorridos três meses sem que o inquilino tenha pagado o aluguel, o locatário poderia exigir ação de despejo do devedor. Em um caso sub judice, um senhor de 81 anos de idade não pagou o aluguel durante um período cinco anos e o locatário exigiu a ação de despejo. O senhor não dispunha de bens de valor e nem de condições econômicas para pagar o aluguel ou quitar a divida. A ação foi julgada improcedente com base no já citado princípio da dignidade humana e no direito social à moradia. Entretanto, há que se averiguar que tal posição não é pacífica. Posições afirmaram que o juiz monocrático não possui legitimidade para tanto, pois não foi eleito como legislador e goza de prerrogativas como vitaliciedade einamovibilidade do cargo. Atuando desta maneira, agiria ele como um ―Príncipe Absolutista‖. Há quem diga, e parece coerente o dizer, que o direito civil sempre foi constitucionalizado. A diferença é que antes de 1988 não havia uma interferência tão marcante da Constituição Federal no direito civil, isto é, o que houve foi uma mudança na forma de pensar o direito por parte dos juristas. Ocorreu uma mudança de princípios e valores que informam a relação entre Estado, sociedade e indivíduo. Destarte, antes de 1988, havia a concepção de que a prevalência deveria ser dada à autonomia contratual e individual. Percebeu-se que esse individualismo apresentava falhas, pois quando um é dependente do outro, não há igualdade material entre os cidadãos, assim, concluiu-se que o Estado não poderia deixar de interferir nas relações sociais. Portanto, tendo em mente o conteúdo supramencionado, não haveria uma constitucionalização do direito civil e, sim, uma diferença entre os preceitos antigos e atuais. Ao se afirmar a constitucionalização do direito civil, teria que se afirmar, também, a de todos os outros ramos do direito. 32Instituições, v. 1, cit., p. 19. 33 ALEXY, Robert, Teoria dos direito fundamentais, São Paulo: Malheiros, 2008. 25 Direito Civil I 2.5. A NECESSIDADE DE RECONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE AUTONOMIA PRIVADA34 Com o advento de novas possibilidades interpretativas trazidas à tona pelos movimentos modificadores do direito civil, principalmente a teoria denominada civil-constitucional, tem-se a busca de uma orientação analítica novel através de um conceito que, aos olhos mais variados, pode ser considerado uma ―chave‖ para o direito civil, qual seja, o conceito de autonomia privada. Com justeza, acredita-se que muito do que se possa dizer acerca de tal conceito tende a resvalar no direito privado como um todo35. Isso porque a autonomia privada aparece comumente como uma espécie de estrutura mater, isto é: ―A autonomia – quer no aspecto da liberdade de exercer ou não os poderes ou faculdades de que se é titular, quer no aspecto, mais completo, da possibilidade de conformar e compor conjuntamente com outrem ou por acto unilateral, os interesses próprios – é uma ideia fundamental do direito civil‖36. Sendo assim, por ser uma estrutura essencial ao direito civil, torna-se ela responsável peã alocação dos mais diversos tipos conceituais que acabam atuando como um refinamento ao conceito inicial, que movimenta então todo o sistema. De tal modo, ao se constatar os novos contornos deste conceito, vê-se a necessidade de se efetuar uma reestruturação de tal conceito, proposta essa que será analisada neste momento. Indubitavelmente, a autonomiaé uma ideia fundamental do direito civil. O conceito de autonomia privada pode ser entendido como um espaço no qual o indivíduo constrói sua rede particular de relações através do exercício livre de sua vontade. Esse conceito ganhou força no contexto do liberalismo. Contudo, às vistas do novo modo de pensar e entender o direito civil à luz da Constituição, esse conceito começa a receber uma atenção especial e caminhar a um novo entendimento. A doutrina liberal pretendeu combater qualquer forma de poder que pudesse atrapalhar essa liberdade natural. De acordo com a ideologia liberal, todos os homens são indistintamente senhores da própria vida, de maneira que legitimamente ninguém poderia ―por freios‖ a essa vontade. Sem considerar a efetividade dessa liberdade ideal, o liberalismo acabou alienando seus seguidores porque defendia o exercício dos direitos do ―Homem‖, ou seja, universais, sem que tais direitos existissem efetivamente para todos. Ao desconsiderar as assimetrias econômicas, o liberalismo pôde interpretar a assinatura de um contrato de trabalho em condições subumanas com o exercício da autonomia da vontade daquele que se submete. Nesse contexto, a atuação do Estado deveria limitar-se à concretização de meios para que a vontade individual fosse exercida dentro de um ―reino de liberdade‖. O conceito de autonomia privada, então, aparece para o direito como uma espécie de chancela jurídica da vida individual, fundamentada racionalmente. Esta razão 34 Tópico baseado na seguinte obra: DANTAS, Marcus Eduardo de Carvalho. ―Investigando o argumento civil- constitucional.‖ RTDC 24 (out/dez 2005): 183-203. 35 DANTAS, Marcus Eduardo de Carvalho. ―Investigando o argumento civil-constitucional.‖ RTDC 24 (out/dez 2005): 183. 36 PINTO, Carlos Alberto da Mota, Teoria geral do direito civil, cit., p. 42. 26 2. ORIGENS DO DIREITO CIVIL garantia a correção do conceito de autonomia privada como liberdade para concretizar uma vontade e está fundada somente no interesse do indivíduo, a chamada ―razão centrada no sujeito‖. O princípio da autonomia da vontade foi traduzido juridicamente como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente seus contratos. A concepção clássica nos diria, portanto, queos contratantes tudo podem fazer, porque estão no exercício da sua vontade. Todo o tipo de ingerência nessa esfera privada é considerada uma interferência ilegítima. Posteriormente, o pós-guerra marcou o aprofundamento de um processo de mudança no cenário de ideias. As atrocidades que marcaram o período anterior colocaram em questão a validade da concepção de que o indivíduo pode viver sozinho, levando em consideração tão somente o próprio interesse quando da realização da vontade. Assim, abriu-se caminho para a defesa de novos valores, como forma de garantir a proteção da dignidade da pessoa humana, através do catálogo constitucional dos direitos fundamentais. Houve, com efeito, um deslocamento do valor de cunho meramente patrimonial para o valor existencial do ser humano. Em outros termos, ocorreu a mutação do paradigma patrimonialista para o solidarista. Vislumbra-se que a definição de autonomia privada liberal se estruturava em valores eminentemente patrimoniais, tendo como sua fonte a pretensa racionalidade de uma vontade egoísta. Tendo isso em vista, é evidente a necessidade de redefinição do conceito, à luz da superação da dicotomia público-privada. A Constituição é clara em sua postura promocional e interventiva, reflexo da disposição em alterar uma realidade socialmente opressora. O fato da Constituição tutelar direitos que possuem influxos no âmbito privado não significa que a autonomia privada se perdeu. Não é porque o ordenamento jurídico não permite mais a possibilidade de concretização da vontade a despeito de suas conseqüências sociais que o conceito fica prejudicado. O desafio é justamente conseguir manter a possibilidade de não aniquilar o sujeito em suas vontades, sem que a concretização dessa vontade, porém, possa ganhar a forma da realização de um desejo autocentrado, fundamentado apenas na adequação entre meios e fins instituídos pelo próprio indivíduo. Assim sendo, a autonomia privada não se esgota na liberdade contratual, na iniciativa econômica. Nesse sentido, as escolhas relativas à saúde, à vida familiar, à participação nas comunidades políticas, entre outras, são todas situações pelas quais a autonomia privada pode se expressar não se encerrando nas escolhas econômicas, patrimonialistas. A centralidade da proteção da pessoa humana é aquilo que justifica a existência do direito enquanto tal. Com justeza, cabe a enfatize de que a pessoa humana não era o centro das preocupações do ordenamento em outros tempos não só porque os códigos e as constituições assim não estipulavam, mas sim porque havia uma ideologia que desconsiderava os valores existências, que preconizava a ideia de que o indivíduo poderia ser viável independentemente do contexto social. Através da mutação feita a partir
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