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- E há alguma mudança na estrutura de família, mudança de casa, de escola. Enfim, algo que chame a atenção de vocês? A mãe olha para o pai, parecendo estabelecer certa cumpli- cidade e aguarda. Parecia esperar que ele falasse alguma coisa e o pai se pronuncia: - Acho que não, que eu me lembre nada se modificou. Mu- damos de casa, mas já faz algum tempo, morávamos em uma casa maior e fomos para um apartamento e a avó materna foi morar junto no apartamento, mas isso já tem quase dois anos. Nesse trecho, aparece a atmosfera familiar do afanar, fazer com que as coisas desapareçam. Aqui aparecem indícios não ver- bais de que há coisas que não devem aparecer, não devem ser ditas ao psicólogo. Mãe e pai apresentam uma cumplicidade com rela- ção ao que deve e não deve ser dito. Mas interpretar o que o gesto quer dizer é fenomenológico? A fenomenologia não ignora o fato de que os olhares, como atos de olhar, têm uma direcionalidade. Quanto à interpretação dos gestos, Husser! (1970) diz que esta de- pende da inserção do sentido e, assim sendo, não é fenomenológi- ca. Heidegger coloca-se de outro modo e diz que o gesto é decisivo para indicar o comportamento que devemos acompanhar. a analista volta-se para a mãe e pergunta: - E você, Lea, se lembra de alguma coisa? Lea responde: - Antes disto acontecer, de percebermos que estava aconte- cendo? As notas de Antônio vinham baixando, acho que ele já es- tava pedindo ajuda, sempre que o seu rendimento cai, percebo aí um pedido de ajuda. Novamente, a mãe passa a interpretação de que aquilo que a criança faz tem outra intenção. Era preciso sair desse tipo de interpretação, pois, dessa forma, nunca alcançaríamos o que re- almente está em questão. a analista, ao perceber indícios de segredos familiares, respeita a situação, não insiste e vai investigar as outras rela- ções de Antônio: 116 - E o irmão, como é o relacionamento deles?Agora, o pai as- sume a dianteira: - Muito bom, João é uma criança muito dócil. Eles são muito carinhosos um com o outro, brincam muito, um não tem ciúmes do outro. Como a idade é próxima, eles são muito amiguinhos. Agora, João não dá problemas, as notas na escola são sempre boas, ele é muito inteligente. (A mãe permanece em silêncio). a analista, então, resolve abrir um espaço para que Lea se pronuncie: - E você, Lea, tem algo a acrescentar? - Não, é tudo isso que ele falou. Só acho que você tem que prestar mais atenção ao que você fala. Se Antônio ouve o que você falou, ele vai se sentir diminuído. O pai responde: - Só porque estou falando a verdade. É melhor mentir? A mãe retruca: - Só estou dizendo para você prestar mais atenção ao que você está falando. Ao terminarmos a sessão, perguntei-lhes se Antônio sabia que eles estavam vindo à entrevista, que essa se destinava a um acompanhamento psicológico com ele. Eles responderam que ainda não haviam comunicado, pois estavam esperando ver o encaminhamento que seria dado pelo psicólogo. Já começando a psicoterapia propriamente dita, o psicoterapeuta deu início ao rompimento da atmosfera do segredo, do esconder coisas. Orien- tei-os a contar ao menino sobre a entrevista, sobre o porquê de eles pedirem ajuda ao psicólogo e o que vinha preocupando-os no comportamento dele. Eles concordaram e marcamos o en- contro com Antônio três dias depois. Em uma postura antinatural, o analista suspende o "diag- nóstico" dado pela mãe e pelo médico e volta-se para o fenô- meno em sua mobilidade estrutural. Neste momento, importa o sentido que Antônio dá à sua experiência. A postura fenomeno- lógica implica deslocar-se das interpretações comum ente atribu- 117 idas, asswnindo uma atitude antinatural com relação à questão que se apresenta. Ou seja, tomando o modo de ser da criança em sua expressão singular, tem início a atuação clínica. Para tanto, é preciso que a visada sobre o fenômeno que se apresenta não se dê a partir de nenhum pressuposto em tese acerca do que pos- sa ser uma "compulsão a afanar coisas". A atenção do psicólogo volta-se para a criança em seu modo próprio de comportar-se e deixando que ela se mostre por si mesma. E isto consiste em deixá-Ia livre para si mesma, para assim poder assumir a sua li- berdade e responsabilidade. A criança, ao se apresentar ao analista, deve ser recebida a partir daquilo que vai acontecer na relação nesse momento es- tabelecida. Para tanto, o analista deverá assumir uma atitude fe- nomenológíca, e, assim .suspender todo e qualquer pressuposto que anteriormente se fez presente, inclusive no relato dos pais. Para exemplificar este modo de proceder clinicamente, apresen- taremos um trecho desse atendimento: Antônio compareceu à sessão, acompanhado do pai. Estava muito bem arrumado. O pai me apresentou a ele. O menino sor- riu e prontamente dirigiu-se à sala, mostrando certo entusiasmo. A fim de saber se os pais haviam seguido sua orientação, o ana- lista iniciou com a seguinte pergunta: - Teuspais te disseram o porquê de você vir à psicóloga? Antônio consentiu com um gesto e disse: - Eu sei por que estou aqui, mas tenho medo, vergonha de dizer. Eu também rôo unha, às vezes, mas nem sei por quê. Após um silêncio prolongado, retoma: - Também gosto de contar algumas mentirinhas. Mas lá em casa todo mundo gosta de contar algumas mentirinhas. Às vezes, meu pai pede para eu contar, às vezes minha mãe pede para eu contar, só minha avó é que não pede. Meu pai pediu para eu men- tir para o guarda e dizer que eu tinha 12 anos, para que ele não multasse meu pai porque eu estava no banco dafrente. Minha mãe fez a mesma coisa para eu entrar no hospital para ver meu primo. 118 Todos contam mentirinhas. Na escola, meu amigo Carlos faz os mesmos erros que eu. Se eu tenho um lápis, Carlos também quer o lápis. Ele acaba pegando meu lápis. Eu peguei o bonequinha de meu irmão, peguei escondido. Aí o que acontece, Laura me acu- sou de ter pego um lápis dela. Eu não peguei, eu tinha igual. Não peguei o de Laura, mas ela disse para todo mundo que fui eu. Aí, para ela não ficar triste comigo, eu dei um card game para ela. Após um longo silêncio, Antônio propôs uma brincadeira de erros e acertos e, assim, poder continuar as revelações. À es- querda do papel pediu que eu escrevesse "erros" e à direita" acer- tos" e a brincadeira consistia em pensarmos nós dois o que se enquadraria em cada uma dessas colunas. Antônio prontamente preenche a primeira linha da coluna erros com o seguinte: "Pegar escondido" e na coluna acertos: "Pedir verdadeiro" "Pegar escondido" "Pedir verdadeiro" Bonequinho do irmão: peguei para brincar, depois ia devolver.' Agenda: fiquei um pouquinho triste, depois passou, mas ainda não ao passou." Bonequinho do primo: peguei para brincar, depois devolvi e troquei por objetos. II Troquei. " Peguei as coisas do papai e ele descobriu" Pedi ao papai. " o erro que aconteceu: eu fui no porta- óculos do meu irmão e peguei 1 carro e dois cards. 15 Coloquei de volta. Peguei coisas do meu avô e do meu pai. 16 9 Verdades que assumi 10 Mentiras que preguei 11 Mentiras que preguei 12 Mentiras que preguei 13 Verdades que assumi 14 Mentiras que preguei 15 Verdades que assumi 16 Verdades que assumi 119 Antônio suspende a brincadeira e diz: - Eu queria contar um problema: Pedro vai ter a festa de aniversário dele, só que vai ser na casa dele. Eu não tenho vontade de ir, sabe? Eu não quero ir à festa, tem muita gente que rouba e também tem um pequeno probleminha, acusam a pessoa de uma coisa que ela não fez. Alex rouba as coisas dos outros. Eu desconfio também da Flávia, ela também pega as coisas dos outros. Mas não é só isso não, tem outro problema, meu pai vai sair com João, e eu também quero ficar com meu pai, sair com os dois. - Então você tem dois motivos para não querer ir à festa. - Tem outro, tenho medo de não controlar. - Tem medo de não controlar o que? - A vontade." (silêncio) - %ntade de que, Antônio? - De pegar as coisas dos outros. Eu não quero pegar, mas eu olho a coisa e me dá muita vontade, vontade mesmo. Também te- nho medo que Gabriel coloque coisas na minha bolsa e depois me culpe. Elejá fez isso,guardou no meu estojo o lápis de Bruna. Bru- na sentiu afalta do lápis, aí eu coloquei o lápis na mesa de Bruna, só que ela me viu colocando o lápis e eu me defendi, disse que tinha sido o Gabriel que tinha colocado no meu estojo, só que ninguém acreditou, ficou todo mundo olhando para mim. Antônio fica calado, parecendo triste, abaixa a cabeça, põe a mão no rosto, parecia estar chorando. Repentinamente, levantou a cabeça e fitou-me por um longo tempo. Na tentativa de mobili- zá-Io e tentar compreender o que estava acontecendo, falei: - Parece que essa situação te deixa muito triste. - E vou ficar muito sozinho. - E como éficar sozinho para você? Antônio: (permanece em silêncio) - Não ter ninguém por perto, nunca vivi isto, tenho medo, ficar sozinho no recreio. Nesse primeiro encontro com a criança, é importante ob- servar que a psicóloga deixou que a criança se expressasse sem 120 emitir nenhum juizo de valor, nem buscar evidências de um transtorno. A criança expressou-se livremente e logo apresentou a atmosfera da convivência familiar, na qual esconder coisas se fazia presente. Ao mesmo tempo, Antônio deixou claro o clima de medo e tristeza em que ele se encontrava, ao mesmo tempo em que reconhecia que o prazer em pegar coisas poderia acabar por deixá-lo em uma situação difícil entre os demais. Sabia do risco que corria, já que a tonalidade do êxtase frente ao prazer de pegar coisas, ao suspender as prescrições do mundo no que se refere ao certo e ao errado, facilitava que, no final, ele as pegasse. Por isso, preferia abrir mão de ir à festa. A sessão termina e, no encontro seguinte, Antônio chega animado e começa a falar: - Sabe, pensei bem e não me importo de não ter amigos. Dei- xar de ter amigos não faz mal para mim. O analista tenta buscar o que estava acontecendo para que ocorresse uma mudança de atmosfera. Aquilo, que anteriormen- te trouxera um astral de tristeza, nesse momento não importava mais: - E na escola, como vai serficar sozinho? Antônio retoma o humor anteriormente apresentado e diz: - Ficar sozinho e não ter ninguém para brincar,ficar sozinho no recreio. Vou ficar triste, sem ninguém brincando comigo, é, não vou gostar. O analista questiona: - E você quer isto para você?" Antônio prontamente responde: - Não. Quero beber água. (Bebe água, vai ao banheiro, faz hora para não retomar a sala). Não vou à festa. O quinto erro, já consertei, dei minha nota de cinco. Já consertei ontem. Já te dei uma pista do que [oi o erro. Vê se você descobre. O analista arrisca: - Vocêpegou uma nota de cinco. Antônio retruca: 121 - Não. Eu troquei a nota de dez e uma moeda de um real. Troquei com a minha mãe e eu deixei. Eram seis reais de duas pessoas. Diminui uma conta, seis e alguma coisa. O analista então pergunta: - Então você devolveu o dinheiro que tinha pego. E como você se sentiu? Antônio responde: - Aliviado, consertei meu erro. Antônio pediu para desenhar e disse: - Vou desenhar o 'Viscondede Sabugoza. A primeira fala da Emília: - Era uma vez, um lugarzinho no meio do mato. Era um sítio. Nesse lugar, moravam muitas pessoas como o Visconde de Sabugoza. Ele[oi feito por Pedrinha com uma espiga de milho. O passatempo mais divertido dele é ler livros e sempre pensa uma coisapara resolver todos osproblemas. Quando a Emília está com uma idéia, elejá está com outra. Ele também tem muitos amigos: Narizinho, Pedrinho, Emília e Dona Benta. Emília sempre entra numa confusão e numa aventura; aventura perigosa. Um dia, Narizinho estava sentada na beira do rio com sua amiga Emília que não sabia falar. Um dia apareceu o Príncipe do rio e foram para um castelo. Tinha um sapo tomando conta do castelo, estava dormindo. O príncipe obrigou o sapo a comer cin- qüenta pedrinhas. Eles entraram no castelo,foram jantar e aí chegou uma bru- xa eperguntou: você virou opequeno polegar e todos responderam: ( - "nao. Aí Narizinho joi falar com Pedrinho e o Barnabé e o Fis- conde para ir para junto com ela. Pedrinho foi conhecer o reino. Opolvo puxou o rabico.Pegaram o rabicó eforam para o castelo. No dia seguinte, opríncipe mandou uma carta dizendo: "Na- rizinho, você quer casar comigo?" Narizinho respondeu; "Quero". Tia Anastácia não aceitou. Narizinho não quis casar, ela 122 esqueceu a Emilia, tinha ido lá para buscar a Emilia e as pílulas falantes com Dr. Caramujo. Quando colocou uma pílula na língua de Emília, elafalou: "Que pílula horrível". Após acabar o desenho e a história, Antônio solicita outra atividade: - Famos fazer a brincadeira dos erros e dos acertos? Erros Antônio Acertos Antônio Maluca Inteligente x Cria confusão x fala a verdade às vezes mentiras faladeira x x InteligenteNão tem erros x Sábio x Honesto às vezes fala verdades às vezes Emflia Sabugoza Tivemos a oportunidade de observar a tensão em que Antônio se encontrava. Ele oscilava entre a vontade de contar o que ele mesmo denominava de "erros e acertos" e a vontade de não trazer essas mesmas questões. Essa tensão, que se apresentava em uma oscilação, continua a acontecer nos encontros seguintes. O analista apenas o acompanhava, sem forçá-lo a seguir nenhuma direção, acompanhava-o naquilo que ele queria expressar. No próximo encontro, logo que Antônio chega diz: - Saí com meu pai. Só um problema nesta semana. Fica em silêncio. Respira fundo, passa a mão no rosto, abai- xa os olhos, mexe-se na cadeira, ri, fica em silêncio, ri novamente. O analista, então, convida Antônio a sentar-se no sofá. A criança vai para o sofá, deita-se e permanece em silêncio. Retoma a pa- lavra e diz: - Não aconteceu nada nesta semana. - Então você não tem nada para me contar. 123 oprofissional interrompe e ambos permanecem assim até o final da sessão. No encontro seguinte, Antônio inicia a sessão: - Eu estou com um problemão, mas não é nenhum erro não. É irpara a casa de meu pai. Perco de brincar com Lauro e Cláudio, o chatinho, fica afastado. Pedi a Lauro para ir também. Meu pai disse que não pode, porque meu irmão também vai. Eu também prefiro não ir.Meu pai ficou o tempo todo tentando me convencer. Eu não estou convencido. (silêncio). O analista, na tentativa de continuar falando do assunto, sugeriu que dramatizassem a conversa com seu pai. Ele pronta- mente aceita e pede que inclua a mãe também: - Eu sou meu pai e você é eu . Só que eu não sei o que vou falar, sou muito indeciso. - "Vocêé indeciso ou está com medo defalar? - Tenho medo, minha mãe vai ficar triste se eu falar. A idéia foi do meu pai. Lembra do envelope do segredo - Lembro. - Então vamos fazer. O Título: "Antônio escreve o que aconte- ceu.': (fecha o envelope e guarda-o com ele, ficando em silêncio). - Eu fiz coisas horríveis, (soletra) m-e-n-t-i-r-a. Às vezes te- nho vontade de chorar,por outra coisa, não épela mentira não, só que eu não posso falar. Como uma criança entra em tratamento? ' - Os pais telefonam para o psicólogo e pedem que ajudem a família. - E o que eu conto aqui, elessabem? - O que acontece aqui é nosso segredo. - É o nosso segredo? -É. - Problemas, vou escrever, me dá um papel: Brigas - irmão. Repartir - um amigo da onça. Timidez e nervosismo - Gabriel, amigo da escola. Preocupação excessiva - só adulto: pai, mãe etc. Quando estou com problemas, prefiro ficar sozinho, prefiro não falar do problema. Preciso de ajuda. De uma ajuda especial. Meu 126 I' I pai vai ser meu terapeuta, vai me pegar toda quarta-feira, vai con- versar tudo, vai começar nas férias. No final da sessão, Antônio pediu ao analista para guardar o envelope, mas disse que ele estava lacrado e proibia que o les- se. Ele queria apenas que fosse guardado. Quando o psicólogo entregou Antônio a seu pai, este comunicou-lhe que estavam en- trando de férias e que iriam viajar. Depois, quando retomassem, marcariam as sessões. O analista interpretou o ocorrido como uma desistência do processo psicoterapêutico: o compromisso com o silêncio, que me parecia algo da atmosfera familiar, o fato de o pai não ter se comprometido com o horário no retorno das férias, o fato de o pai tomar-se o terapeuta às quartas-feiras, a tristeza de Antônio etc. No entanto, não foi o que aconteceu. Na primeira semana de agosto, ao retornarem das férias, marcaram a sessão para a semana seguinte. Antônio chega com um cartão meio que escondido. E pede que o analista converse com seu pai enquanto ele iria fazer uma coisa. O pai aproveita para me contar que percebe Antônio bem melhor, que ele já não tira mais as coisas dos outros. Ao retomar, o menino pede que o psicólogo vá buscar as correspondências. O clínico pega o cartão, retoma, entra com ele na sala e Antônio pede para irem para a sala de ludo e para guardar o envelope lacrado. Desenha um coração, ele transforma-o em borboleta, depois abandona a tarefa e, por fim, procura material na gave- ta. Antônio brinca sozinho com os fantoches, pega as bonecas anatômicas, explora-as, arruma-as devidamente em seus lugares. Ele desenha, mas não quer falar sobre o desenho. Ele pega a tinta e começa a fazer borrões de tinta. Antônio não quer falar. Ele demonstra que quer estar ali, realizando diferentes atividades. Todavia, quer manter-se no seu silêncio, não pede que o clínico participe e esse o acompanha também em silêncio. Ao terminar a sessão, Antônio entrega seus desenhos e pede que o analista os guarde. Esse prontamente diz que os guardará junto aos seus outros desenhos e envelopes lacrados. 127 Em conclusão, parecia que o pedido do menino para uma conversa em família anunciava o rompimento, por sua parte, da atmosfera do escondido, do mistério e do segredo. O segredo pa- recia constituir a tonalidade mediana que sustentava toda a situ- ação familiar e que Antônio agora resolvera, mesmo com toda a tensão do momento da quebra dessa atmosfera, romper. Essa passagem remete-nos à obra-prima de Henry lames (1898/2006), "A volta do parafuso': Nesse romance, [ames relata uma situação na qual reinava um pacto de silêncio, em que as crianças, uma de oito e outra de dez anos, nessa atmosfera, apresentavam modos de agir totalmente estranhos e bizarros, não esperados para crianças nessa faixa etária. Nelas acontecia o que Kierkegaard denomina de mau hermetismo (2010), posição psicológica de não-liberdade em que, em silêncio, resistimos à condição de nossa liberdade. E, ainda para Kierkegaard, nisso encontramos a doença que nos acomete quando nos desoneramos de nossa própria responsabili- dade (2010). O próprio título do romance aponta para a metáfora da tensão que, além de apertar, esgarça a existência, no caso das duas crianças. A governanta responsável pelo cuidado das mes- mas, percebendo a situação, resolve agir de forma sutil e paciente, a fim de que o mistério e o segredo se dissipassem. Ela parecia acreditar que apenas desse modo poderia ajudar a aliviar a tensão, mesmo que em um primeiro momento mobilizasse mais tensão, daí o título com que também se conhece essa obra "A outra vol- ta do parafuso". Assim, também parecia ser essa a atmosfera em que se encontrava nosso analisando. Agora, Antônio queria criar uma situação em que todos falassem e, assim, estava disposto a romper com a atmosfera de segredo que reinava no âmbito fami- liar. Antônio, ao propor o rompimento desse clima familiar, em um primeiro momento, cria uma tensão ainda maior. O pedido do menino para que abríssemos um espaço para a comunicação familiar parecia fazer sentido e ter lugar. No entanto, não foi uma proposta antecipada pelo analista. Este, com paciência e sutileza, assumindo uma atitude fenomenológica, não interveio, nem se 130 colocou como aquele que desde início já sabia qual era o pro- blema e o que fazer para solucioná-lo. Caso o clínico partisse de teorias acerca do que era o problema e de como resolvê-lo, criaria obstáculos à apresentação do fenômeno. Na situação de Antônio, um tal obstáculo seria propor, por exemplo, o encontro com a família para forçar o diálogo e desvelar seus segredos. Poderíamos também colocar a questão como sendo do âm- bito de uma subjetividade encapsulada, de uma falha psíquica, e destinando-lhe uma identidade de cleptomaníaco, insistir para que ele falasse no tema e buscar rapidamente o que determina- va esse comportamento. Mas ao ver que o escondido tratava-se da disposição afetiva da família, na qual Antônio também estava envolvido, o analista preferiu aguardar. Assim, Antônio entregue a si mesmo pode reconhecer outras articulações possíveis e só a ele cabia a decisão do que iria ou não fazer. Partir do diagnóstico que lhe havia sido conferido seria dar-lhe uma identidade que, além de retirar dele o seu caráter de poder ser, também o desoneraria de sua escolha. Assim, todo o seu modo de ser seria justificado por tal identidade, não ca- bendo a ele mesmo a sua tutela. Retirar o caráter de poder-ser de sua existência, por um procedimento identitário, constitui-se como um caminho de acesso fácil, porém pode acabar por sedi- mentar um determinado modo de ser. Esse processo é discuti- do com muita pertinência em Sartre (2005), ao referir-se a todo percurso de Lucien Fleurier, até tornar-se um chefe, tal como já havia sido decidido pelos seus pais, muito antes dele nascer. Do mesmo modo que Lucien assumiu a identidade que lhe haviam conferido, na clínica devemos cuidar para que a identidade atri- buída à criança não se engesse. Não podemos dizer que não se deve fazer, devemos nós mesmos como clínicos ir pouco a pouco desfazendo, ou pelo menos, não fortalecendo esses aglomerados, essas identidades. A atenção fenomenológica consistiu em abandonar toda e qualquer identidade estabelecida para a criança, seja com rela- 131 ção a um diagnóstico, expectativa familiar ou social, entre outros modos. Em uma postura fenomenológica, coube, então, ao psi- cólogo deixar a criança em liberdade e entregá-Ia sua própria tu- tela, ou seja, à sua própria responsabilidade. Tratava-se, sem dú- vida, de uma tarefa delicada. No entanto, ao deixá-Ia caminhar por si mesma, sem tentar desonerá-la dessa tarefa, vem à tona de diferentes modos o fato de que, nesse caminho no qual a criança perde a tutela do adulto, ela pode ganhar a si mesma. Deixá-ia sozinha consigo mesma é uma arte que consiste em estar sempre presente, sem mostrar a criança que se está ali. E, assim, permitir que a criança por si própria possa aproximar-se, entregue a si mesma o mais demoradamente possível, de uma experiência que faça sentido no âmbito de sua situação. Com o desenvolvimento da temática acerca da clínica psi- cológica em uma perspectiva existencial, pudemos afiançar que a filosofia da existência traz aspectos formais, que criam um es- paço de articulação de uma práxis clínica por diferentes motivos. O primeiro deles é que as filosofias da existência retomam o que as filosofias modernas haviam abandonado, ou seja, a existên- cia mesma tal como acontece em seu campo de imanência. Esse projeto de voltar-se para a imanência é ineditamente apresenta- do por HusserL Esse filósofo desloca-se da noção de consciência como algo encapsulado, que se encontra localizado em uma in- terioridade e com sentidos e determinações dados em si mes- mos, tomando, então, a consciência como algo que acontece em um espaço relacional, logo imanente. Ele refere-se à intenciona- lidade, que passará a ser o elemento fundamental, mesmo que com diferentes acepções nas filosofias da existência. Heidegger e Sartre dão continuidade ao projeto de retomada da existência, cada um a seu modo, mas preocupados com a faticidade onde o existir acontece. Esse mesmo movimento é acompanhado pela psicologia que, primeiramente, seguindo o projeto moderno, toma o psíquico em todas as suas denominações como algo da ordem de uma interioridade que se relaciona com o exterior. Ao 132 surgir uma psicologia fenomenológica, a pretensão também é de pensar o psíquico como algo imanente, co-originário ao mundo e, portanto, não passível de ser determinado, nem localizado em uma interioridade. Pensar a psicologia a partir das filosofias da existência con- siste em assumir o caráter de indeterminação que não pressupõe mais uma essência, seja ela qual for, que precede a existência. Consiste ainda em aceitar a árdua tarefa de não ter como prever, nem garantir nenhum resultado, dado o caráter de abertura e consequente liberdade em que a existência sempre se encontra. Articular uma proposta de clínica infantil com base na filoso- fia existencial torna-se possível ao tomar a criança na mesma pers- pectiva em que se toma o adulto, logo em liberdade e responsável por si. Trata-se de pensar a existência em sua imanência, qualquer que seja a etapa de vida em que nos encontramos. Logo, importa é que, aquele que tenta evitar a sua condição de liberdade, abertura e indeterminação possa assumir-se como um ser de possibilidades, logo em liberdade para dizer sim e não às determinações inseri- das no horizonte histórico em que ele se encontra. 3.2. A tonalidade da angústia e a antecipação da finitude É muito comum, nas elaborações da perspectiva heideg- geriana em Psicologia e psicoterapia, considerações acerca do ser-para-a-morte confundirem-se com a idéia de que a cons- cientização dessa condição existencial consistiria na libertação ou superação de uma problemática existencial. No entanto, esta não é nem de longe a discussão travada por Heidegger em Ser e tempo. O filósofo trata antes do horizonte de finitude em que todas as possibilidades sempre se encontram, e no qual o ser-aí se abre como cuidado, em seu ter de ser quem ele sempre é, para o caráter de indeterminação de sua existência. Portanto cabe ao ser-aí e apenas a ele a sua tutela: é isto que a decisão antecipadora da morte revela, determinando o seu modo próprio de ser. 133 A questão trazida pelo analisando será discutida aqui, con- siderando uma tonalidade afetiva fundamental, a angústia, em seu poder de revelar a finitude essencial do ser-aí. Esse contexto aparece, então, como possibilidade ôntica, pano de fundo para as considerações heideggerianas do ser-para-a-morte. É o que procuraremos mostrar a seguir. De uma situação em que a an- gústia coloca o ser-aí em contato com o seu ser mais próprio, abrindo a possibilidade de singularização, que se pronunciava como angústia frente à antecipação do seu ser-para-o-fim (ser- para-a-morte). Após este esclarecimento, daremos destaque a al- gumas concepções de importância fundamental para se elaborar esta perspectiva clínica: a atitude fenomenológica e a questão do círculo hermenêutico na clínica psicológica. 3.2.1. A atitude fenomenológica na clínica Paulo" procura um acompanhamento psicológico por su- gestão de sua irmã. Esta, formada em Psicologia, toma a iniciativa de procurar um psicoterapeuta, com o consentimento de Paulo. Ao telefone, em um sábado, ela diz que está muito preocupada com o irmão e que este se encontrava muito deprimido. A famí- lia temia pelo que pudesse acontecer, por exemplo, o suicídio. Uma psicoterapia com base fenomenológica consiste antes de tudo em considerar a atitude ingênua daquele que busca psi- coterapia, já que este tende a trazer uma configuração da ques- tão como previamente determinada. A atitude da irmã de Paulo, bem como o diagnóstico de depressão e a preocupação com o suicídio falam da atitude natural da irmã frente ao fenômeno, atitude essa na qual o fenômeno é tomado como previamente dado e com determinações, aprioristicamente, fornecidas seja 17 Esta situação clínica foi anteriormente apresentada em Feijoo, A.M. (2010) Tédio e finitude: da filosofiaà psicologia. Belo Horizonte: Fundação Guimarães Rosa. 134 pelas teorias psicológicas (já que a irmã tem uma formação em psicologia), seja pelo senso comum. Um ato fenomenológico consiste em tomar frente ao apresentado uma atitude antinatu- ral, ou seja, suspender qualquer interpretação acerca do que está acontecendo com Paulo, para assim acompanhar o fenômeno no seu modo de revelar-se. O analista oferece a sua disponibilidade de horário e a irmã marca a consulta logo para a segunda-feira. Paulo telefona no domingo, pedindo a troca de horário. Não poderia comparecer na segunda-feira por motivos de trabalho. Marcamos na quar- ta-feira e Paulo avisou que chegaria em cima da hora. Chegou à sessão com dez minutos de atraso. Iniciou, dizendo de forma lenta e com a fala pausada, que estava deprimido e que o final de semana fora péssimo. Estava sem vontade de fazer nada e, por várias vezes, havia questionado se valia a pena viver. Às vezes chegava a pensar pelo que, afinal, valia a pena a vida. Não tinha ânimo para fazer nada. Estava entediado, cansado de si mesmo. Só comparecia ao trabalho pelo compromisso assumido. Refe- riu-se à melancolia, depressão, desânimo. Paulo queria encontrar uma denominação para seu estado afetivo. É o que comumente acontece com aqueles que procuram a clínica psicológica. A tendência a apresentar um diagnóstico já estabelecido, que muitas vezes foi dado pelo psiquiatra, outras vezes pelas interpretações de psicólogos ou ainda por interpreta- ções que o próprio faz de si mesmo. Esses diagnósticos que, por um lado, têm um potencial tranquilizador, por outro obscurecem o fenômeno, na medida em que enquadram a questão existencial desde o início em uma categoria. Ao tomar uma postura natural, tanto o analista quanto o analisando perdem o que realmente está acontecendo. Na atitude fenomenológica, antinatural, o ana- lista não diagnostica nem interfere; mas posiciona de modo que aquele que está dizendo alguma coisa ganhe voz em si mesmo. No interior da interpretação clínica, o analista coloca em sus- pensão seus pressupostos e, assim, deixa que as interpretações de 135 sentido surjam por aquele que se reconhece estranho a si mesmo. O psicoterapeuta, apenas, articula quais são os pressupostos que irá combater, bem como o modo cuidadoso com que vai fazer o combate. O analista, atendo-se a todo o detalhamento de como se dá o acontecimento em questão, dará prosseguimento ao des- velamento da estrutura de sentido em jogo nesta situação. Nesse momento, o analista, em um ato fenomenológico, não se precipita em uma atitude ingênua. E, assim, solicita e in- cita a descrição do que vem acontecendo com o analisando. Age desta forma para que a questão apareça, no final das contas, para o próprio que a coloca. Com isto, nesta situação clínica, o analis- ta volta-se para o analisando, buscando no seu acontecimento o que este reconhece como péssimo, pergunta: - Péssimo como? Responde Paulo: - Não sei, uma sensação de sufoco aqui no peito. Um incô- modo não sei de que. 137 3.2.2 O circulo hermenêutico e a atmosfera afetiva Sem dúvida, ser gente significa, vez por outra, estar triste, estar amuado. A Organização Mundial de Saúde, ao estabelecer categorias da saúde pautadas por um estado constante de felici- dade e harmonia, modifica totalmente o que significa ser gente. No caso, Paulo parecia que estava se referindo ao seu "ser gente": tensão basicamente humana. No entanto, era preciso cuidado, o analista, na tentativa de não estabelecer nenhuma categorializa- ção, pode acabar por entender que a questão apresentada é algo passageiro, tensão básica da vida e, como tal, basta dar tempo ao tempo, que a situação vai passar. A inquietação silenciosa com aparência de que nada está acontecendo pode ser um alerta do próprio tédio profundo ou mesmo da própria angústia. No caso do tédio, ele aponta para a ingerência insuportável do ser obri- gado a viver todo dia o mesmo, o igual, levando o homem ao total estado de indiferença. Imersa nesse tédio, a rotina passa a ser experimentada como uma manifestação da ausência de tem- poralização. Fazia-se necessário deixar que Paulo continuasse a falar, já que parecia não ter outra saída a não ser a de ouvir. Para tanto o analista posicionou-se, sutilmente, um pouco à frente, para que Paulo tivesse voz; e ele, então, continuou: - Há tempo venho me sentindo estranho, questionando o sen- tido da vida, do trabalho, da família. Por vezes, tenho vontade de abandonar tudo, mas logo depois reconheço minhas obrigações e retorno. Algumas vezes fico melhor, outras pior. E muitas vezes, penso que é apenas uma melancolia, desanimo, cansaço. O analista insistiu inúmeras vezes, em diferentes momen- tos, para que Paulo respondesse a questão: "Você tem idéia de desde quando isto vem acontecendo?". Pode parecer à primeira vista que o analista estivesse a de- tectar o acontecimento que provocou o estado de ânimo de Pau- lo. A busca, no entanto, referia-se àquilo que desencadeou a at- mosfera em que Paulo se encontrava. Tratava-se de fazer emergir o horizonte mais originário da transformação. Para Heidegger, é por meio das tonalidades afetivas fundamentais que ocorrem as crises do projeto impessoal, das quais nasce a singularização. Paulo silenciava, dizia que não sabia e que era um mistério, até que um dia, pronunciou-se: - Era mais fácil quando eu acreditava que se tratava de um espírito possessor. Ia ao centro, fazia as preces e voltava para casa muito melhor. - Agora não acredita mais? - Eu sempre [u! muito religioso, kardecista. A minha família sempre foi bem afinada com os ensinamentos de Kardec. Eu fazia parte do grupo jovem, passava os ensinamentos para os mais jo- vens. Acreditava totalmente nos princípios reencarnacionistas. A morte nunca foi um problema, como épara a maioria das pessoas. Ao entrar para a faculdade, alguns professores ateus me confron- taram com as minhas crenças. No início me mantive firme, depois 136 conheci a minha atual esposa, que também era atéia, e também se posicionava contra aquilo que eu acreditava. Relutei bravamente, parecia que eu não poderia abandonar algo que dava total sentido à minha vida e à vida, em geral. Sentia-me totalmente apoiado, amparado pelos espíritos. Tudo dependia da minha dedicação e da minha fé. AJas aos poucos não conseguia mais sustentar as mi- nhas crenças. Até que meu irmão mais velho, sem nenhum motivo aparente, suicidou-se. Isto me fez muito mal. Um cristão não pode de maneira alguma cometer este ato, pensava. Às vezes sentia mui- ta raiva, revoltava-me com o gesto do meu irmão. Outras vezes, pensava: ele estava deprimido e não contou para ninguém. Mas, às vezes, era assaltado pela idéia de que ele, tal como eu, havia se dado conta da falta de sentido da vida e concluíra que não valia a pena viver, já que não havia sentido. Paulo vivia a ilusão de invulnerabilidade e quiçá de "imor- talidade" reforçada pela sua crença religiosa. Parece que o sui- cídio do irmão, parafraseando Kierkegaard (1966), desfizera os laços da ilusão. Camus (2008) faz consideráveis reflexões acerca da temática apresentada por Paulo. Logo no primeiro capítulo de O mito de Sísifo, ele aborda a questão acerca do quanto o vulgo e até mesmo algumas teorias científicas posicionam o suicídio. Postulam como sendo a solução encontrada pelo homem frente ao absurdo da existência, ou seja, a falta de sentido. Este filóso- fo conclui, ao contrário, que é o sentimento trágico de absurdo, a certeza de que a existência carece de sentido, que infunde no homem o desejo inesperado de viver. O filósofo argelino recorre ao mito de Sísifo, a fim de provocar, em seu leitor, por meio des- ta metáfora, o despertar do sentimento do absurdo, para assim chegar à consciência daquilo que constitui a existência propria- mente dita. Isto se deve ao fato de que, para Camus, a existência, seja da humanidade, seja do indivíduo, se dá tal como o destino de Sísifo, condenado pelos deuses a subir com uma grande pe- dra ladeira acima, que tão logo alcance o cume, tornará a cair. A grandeza deste homem é que ele tem ciência deste fato. Con- 138 clui o filósofo: "O homem absurdo opta pelo desespero frente à questão que se impõe: O que seria, então, a vida além do que viver na ilusão e se resignar à mentira?" (CAMUS, 2008, p.54). 3.2.3 O horizonte da finitude da existência A relação da angústia na confrontação com o seu poder- ser, juntamente com o modo como o tempo consome a existência no seu incessante fluir, trazendo ao homem o aviso de sua finitude, é encontrada em Casanova (2006, p. 29), quando se refere ao ab- surdo, do seguinte modo: "O absurdo é, portanto a coroação da vigência sem travas do devir em sua articulação com a visualiza- ção por parte dos homens de sua finitude essencial': Ao mesmo tempo em que Paulo mostrava um esforço para desfazer suas crenças, o analista tentava facilitar o desfazer de suas crenças, mobilizando-o a que falasse mais do acontecimen- to no qual as suas crenças estavam em jogo: - Você me disse que este pesar vem persistindo mais intensa- mente desde a semana passada. Aconteceu algo que você se lembre? - Não. Minha vida está toda normal. Acabei o curso de medi- cina. Estou trabalhando em dois hospitais. Tenho uma boa orien- tação. Faço residência. Estou indo bem. No início, não. Estava meio incomodado. As exigências eram muitas. Era muito cobra- do. Por outro lado, não aceitava errar. No entanto, meu superior apontava os erros. Fui ficando muito ansioso, meio que pisando em ovos. Quando chamava a atenção, aquilo meio que me hu- milhava, aquilo me ridicularizava. Eu não me sentia bem com a situação ..Mesmo quando acontecia com os outros. Sabia que a qualquer momento a situação de humilhação poderia acontecer comigo. Quase larguei a residência, de tanto que temia a situa- ção. Antes de ir para o hospital, me sentia mal, até fisicamente. Vi que estava somatizando e pensei que não tinha que passar por essa situação. Fiquei assim por bastante tempo, durante uns seis meses. Pensei muito no que deveria fazer e resolvi falar com 139 o meu chefe. Chamei-o para uma conversa e expliquei que não estava confortável com o modo com que as coisas estavam sendo conduzidas e que estava pensando até em fazer outra especiali- zação. Enfim, disse tudo que não estava gostando. Ele então me disse que eu estava me precipitando. Perguntou-me se eu já havia passado por qualquer uma daquelas situações. Respondi que não. E ele então me disse que não tinha nenhuma queixa do meu traba- lho, que eu tinha responsabilidade e encaminhava toda a questão do paciente com muita atenção e compromisso. E, enfim, que eu fazia um bom trabalho. Eu pude ver que aquela forma dele falar era uma característica dele, era um problema dele. Ficou mais fácil para mim continuar trabalhando com ele. Pude ver que oproblema não eram os errosgraves, era o modo irritadiço com que elefalava, que me levava a pensar que a gravidade dos equívocos pareciam maiores do que eram na verdade. Hoje, fico muito mais tranqüilo, gosto do que faço, adoro UTI. Não é o trabalho que me incomo- da, superei o problema. Não me arrependo do que escolhi. Estou no lugar certo. A princípio fiquei até na dúvida, pensei: vou para a psiquiatria. Agora vejo que não. Gosto mesmo é das situações de emergência, de tomar providências rápidas. Esta é a atividade que eu quero para minha vida, meu futuro. Mas desde a semana passada estou desanimado, frio e sem vontade de voltar ao traba- lho. Pensei que, com o final de semana prolongado, iria melhorar. Pensei que fosse cansaço, estafa, mais nada. Descansava e pronto, estaria novo, uma vez mais. Toda vez que pensava que tinha que voltar na segunda-feira para o hospital, chegava a me dar uma coisa aqui por dentro. Sentia-me mal, depressivo, sem vontade de nada, vontade só de desistir. Fiquei então pensando: será que estou deprimido? Mas resolvi procurar primeiro um psicólogo, antes de procurar um psiquiatra. Resolvi não fazer uso de antidepressivos. Tenho dúvida se é depressão ou se é outra coisa. Sei que, na verda- de, sinto algo que não consigo identificar. Paulo trazia assim seu diagnóstico: "somatizaçâo', "depres- são': parecendo pressupor que estava sendo afetado por algo de 140 fora e que, então, reagia com sintomas corporais. Ocorre que a origem da tensão não provém necessariamente nem de fora, nem de dentro. Trata-se do sentido mesmo da situação em questão, nas palavras de Heidegger, do "em virtude de" que em Paulo es- morecia. Este mostrava certa distância entre o seu poder-ser e as circunstâncias factuais. Logo, não implicava necessariamente uma somatização, mesmo porque a rachadura no modo de ab- sorver a realidade não é doença, é sinal de "saúde". O analista, então, se pronuncia, sem sedimentar nenhum diagnóstico, mas, ao contrário, tentando destruí-los. Era preciso buscar e desfa- zer o emaranhado no qual imaginação, recordação e presença estavam se aglomerando para que Paulo tivesse a oportunidade de se dar conta do que estava acontecendo. Fazia-se necessário continuar procurando a atmosfera em que essa desarticulação se instalou. O analista insiste na descrição do acontecimento. Para tanto, diz: - Você disse que esse mal estar começou na semana passada. Como [o! o seu trabalho na semana passada? O analista escolheu procurar a situação mobilizadora no contexto do trabalho de Paulo. É ingênuo pensar que a lida do psicoterapeuta é pura, pois as suas concepções e sua história se fazem presentes. Um analista não deve desprezar os horizontes hermenêuticos que estarão sempre presentes na situação clínica. E o que de fato se interpreta são os encontros de horizontes, que consistem precisamente no que se fala e se escuta, a partir de uma relação intencionaL Este choque de horizontes é o horizon- te mesmo de aparição do que acontece no encontro clínico, ou seja, da aparição da coisa. Quando o fundir dos horizontes se dá de maneira integral, essa fusão abre o espaço para que o outro apareça para ele mesmo. O que o analisando diz vai ser escutado, a partir do horizonte compreensivo do analista, porém o anali- sando é a medida. Paulo responde: - Foi normal, o de sempre. Não me lembro de nada que possa 141 ter me trazido mal estar. Como tefalei, hoje não tenho mais proble- mas com o meu chefe. Não aconteceu nada de errado. Esta fala de Paulo mostra um esvaziamento da ação. Von- tade é algo que se dá tardiamente. Quando você quer alguma coisa, é porque esta coisa faz sentido para você, é "em virtude de" que a vontade aparece. Era preciso buscar o "em virtude de" que Paulo não tinha mais vontade de retomar ao trabalho. Falar em vontade pode reportar-nos à teoria. A empiria nos mostra a tensão entre o poder-ser e o mundo fático. Há um problema de absorção, o "em virtude de" mantém a nossa vida estruturada. Paulo havia perdido esta absorção, daí perdera a tranqüilidade. Havia aqui um anúncio da dificuldade da absorção. O analista insiste no acontecimento: - Conta para mim o que aconteceu de normal. Ao dizer que estava deprimido, Paulo dizia que não con- seguia mais acompanhar o ritmo, não conseguia mais trabalhar. Pode-se até, neste momento, pensar: "Paulo encontra-se entedia- do?" Mas não, Paulo mantém-se no ritmo do tempo, mantém a rotina, logo se projeta no tempo, mantém o compromisso. O que faz com que se mantenha esse ritmo é a absorção no mun- do fático. A experiência de dissonância, ao mesmo tempo em que é desagradável, abre a possibilidade de rearticular-se com o cotidiano sem se distanciar da possibilidade que é a sua. A ques- tão é como se rearticular com o mundo fático, sem retomar à tranqüilidade e segurança do impessoal, sem perder de vista a sua singularidade; já que se comportar consiste em adequar-se às condições marcadas pelo mundo. O mundo tende a apagar o caráter de poder-ser. Daí duas possibilidades derivadas do ter de ser que colocam em jogo o seu ser: a propriedade, que abre para as possibilidades; e a impropriedade, que determina de an- temão o que o ser-aí é e deve ser. Paulo parecia incomodado pela primeira vez por confrontar-se com a finitude, abrindo-se como cuidado que sempre é para o caráter de indeterminação de sua existência. Portanto, cabia a ele determiná-Ia. 142 Paulo: - Na UTI, normalmente, as pessoas estão mal. Algumas con- seguem sair, outras morrem. A gente faz tudo para mantê-Ias vivas. O que é mais difícil é a relação com osfamiliares. Mas faz parte. O analista reconhece em Paulo o anúncio ainda difuso da angústia na qual se instaura a possibilidade de desvelar o que se encobre na cotidianidade trivial, e, portanto, descobrir o mais próprio do ser-aí, que em última estância é o seu poder-ser, que se descortina como o ser-para-a-morte. Então, retoma, tentando alcançar o instante em que o rompimento de sentido aconteceu: - 'Vocêse lembra em que dia da semana passada começou esse mal estar? Paulo pensa e responde: - Na quarta-jeira. [oi na quarta-feira. Na quarta, quando cheguei em casa, já não estava bem. O analista, então, continua a busca pelo acontecimento: - E como [oi a quarta-feira? Paulo, depois de um longo tempo pensando, diz: - Perdemos um paciente. Um homem forte, com aparência de saudável. Chegou mal, não conseguia respirar. Queria respirar e não conseguia. Estava morrendo. A ordem fOi para que deixás- semos. Não adiantaria, o pulmão já estava tomado. Ficamos eu e o outro médico. Ele iria morrer, não havia mais nada a ser feito. (O silêncio se prolongou). - E o que vocêfez? - Coloquei-o no oxigênio. Não consegui deixar. Estava insu- portável para mim vê-Ia morrer. Novamente o silêncio se prolongou. - E o que aconteceu? - Ele morreu. O que impressionou é que ele era um homem forte. Tinha 59 anos. Não me identifiquei com ele. Muito distante de minha idade. Não me identifiquei, mas me impressionou. Novamente, Paulo buscava ou descartava a situação, obscu- recendo-a com a teoria, aqui da identificação. O analista, então, 143 na tentativa de desconstruir a postura teórica, retoma ao fático. Não ficou na postura natural, na qual a teoria estabelece que a questão esteja na identificação, mesmo porque na relação dos homens todos se afinam e estão em um mundo compartilhado. Por isso, ater-se à identificação implicaria deixar de buscar o "em virtude de que havia se mobilizado": - Te impressionou ver um homem forte, aparentemente sau- dável, morrendo? Parece, então, que Paulo havia antecipado a possibilidade da sua morte, em um primeiro momento; depois aparecera a re- lutância de lidar com esta possibilidade, que nas palavras de Hei- degger trata-se do insuperável, intransponível e incontornável. Na profissão de médico, Paulo, ao mesmo tempo em que a tarefa lhe exige uma absorção, vê-se incessantemente confrontado com brechas que continuamente revelam o caráter mais próprio de seu poder-ser, mobilizando a todo o momento um possível esva- ziamento. Assim, ele prosseguiu e disse: - Eu vejo a toda hora pessoas morrendo. Estou acostumado. Na verdade, ele olhava toda a hora a morte acontecendo, mas não a via. Provavelmente, essa foi a primeira vez que ele a viu. Ele poderia até ter visto em qualquer um, mas foi naquele homem que, segundo ele, apresentava uma aparência saudável. O que se lhe mostrou foi uma situação de confrontação, de contraste: ele trabalha em um setor em que se luta o tempo todo para não dei- xar morrer e a ordem agora consistia em que se deixasse morrer. Parecia que a rachadura havia se dado no confronto e que a finitude seria o ponto constitutivo da intranqüilidade de Pau- lo, na qual a consciência clamava silenciosamente. No entanto, era preciso continuar e tentar abrir para ele a possibilidade de encontrar a experiência do que aconteceu, o sentido desta expe- riência em Paulo. O analista, na tentativa de dar continuidade ao que Paulo falava, mantém-se no tema: - Pessoas que estão na UTI:fracas e não saudáveis; mas um homem saudável, como pode morrer? É isso? 144 O analista pretendia dar voz ao seu clamor e, agora desper- tado pelo clamor para as possibilidades que se lhe apontam, o que faria frente à finitude que se lhe antecipara, tanto a do outro como a sua. Surge uma sensação de impotência com relação ao acontecimento: "não tinha nada a fazer". Diante da situação, re- tomariam as sedimentações do impessoal, que tranqüilizavam; ou ele assumiria a condição mais própria da existência e, com isto, singularizava-se. Onde a experiência traz certa lucidez e cla- reza, evidenciada pela sua relação com a finitude, que, no entan- to, não era o problema, mas sim o ter-se evidenciado o caráter de seu poder-ser. Analista: - Ficou na tua cabeça que mesmo o forte e saudável pode ser posto de lado, pode morrer. Se Paulo tivesse embarcado na chamada do impessoal, a partir do que se diz acerca da imortalidade, teria se acalmado com o conforto que a impessoalidade proporciona e passaria a atuar em virtude das sedimentações do impróprio, atenuando, assim, um problema de sua existência. No entanto, ele não fez isto, mas respondeu: - Com aquele paciente aconteceu assim. Nunca tinha batido dessaforma para mim. Vejo muitas pessoas morrerem, mas nunca me mobilizou daquela forma, desta forma. - Aquele homem morrendo foi diferente para você. - Foi, acho que [oi o modo como ele morreu. O esforçopara respirar. Todo esforço em vão. Eu, ali, impotente, não podia fazer nada. A cena ainda me incomoda. O analista tenta, então, fazê-lo lembrar daquilo que Paulo tentava não lembrar. O esquecimento mostra-se como a estra- tégia utilizada pelos antidepressivos e pelas técnicas psicotera- pêuticas que levam a pessoa a sair da situação para se abrigar na superficialidade do impróprio. Aqui, era preciso manter o con- fronto com ele mesmo. A voz da consciência, que nada tem a dizer, confronta você com você mesmo, e, ao decair de si mesmo, 145 momento outras possibilidades se mostraram como tais. E Paulo pode pelo menos deixar que outra atividade entre na sua existên- cia, outra atividade que parecia fazer muito sentido. Com Paulo, pudemos constatar que a tonalidade afetiva "an- gústia" foi o que mobilizou a transformação, rompendo o círculo hermenêutico em que ele se encontrava imerso. Essa imersão que se encontra no horizonte histórico no qual há o domínio da técni- ca e a morte é tomada na impessoalidade, ou seja, "morre-se': Em Paulo, a situação limite revelou-se como angústia frente ao seu ser- par-a-morte. O tédio não consistia na disposição de confrontação, mesmo porque a sua relação com o caráter temporal da existência apresentava-se pelo preenchimento do compromisso e da rotina. Se ele estivesse no tédio profundo, o tempo desapareceria e com ele o ritmo do existir. Frente à solicitação do ter de trabalhar, ele não diria "não tenho vontade': diria "prefiro não ir, prefiro não fazer': Antes de ter ou não ter vontade estaria o não faço, não que- ro, não sou. Com Paulo, o anúncio da negatividade e da finitude se deu por meio da angústia. Esse clamor ocorria de forma a que ele nem ouvisse a voz que silenciosamente clamava. Na situação clínica, o analista apenas caminhou de modo a não facilitar, como acontece nas determinações do impessoal, o abafar dessa voz e o aplacar do anúncio da angústia. Assim, abriu-se a possibilidade de manter, na medida do possível, tal clamor, suprimindo a incapaci- dade de Paulo de suportar tamanha indeterminação. Só assim ele pôde, então, se rearticular no âmbito do ser-aí finito. 3.3. Transtorno obsessivo-compulsivo: atmosfera afetiva do temor Machado de Assis (1882/2008), em seu conto "O alienista" retrata uma situação do mundo moderno em que um especialis- ta, Simão Bacamarte, psiquiatra, portanto, considerado conhe- cedor da mente humana, a partir de suas pesquisas, identifica os insanos mentais e encaminha-os à Casa Verde. Assim, tran- 148 cafiava-os para poder estudar profundamente a loucura em suas diferentes classificações. Bacamarte acreditava que descobriria a causa do fenômeno, bem como seu remédio. Ocorria que qual- quer comportamento, que escapasse ao padrão que o médico identificava como normal, levava aquele que o expressou à casa de reclusão. A situação chegou a uma proporção tal que todos da comunidade itaguaiense foram encaminhados para a Casa Verde e, por fim, o próprio médico também concluiu que deveria ser retirado da convivência com os outros e ele mesmo prescreveu a sua ida para a tal Casa. Assis parece, com isto, que estava se referindo à atmosfe- ra de seu tempo, onde reinavam os critérios de normalidade e anormalidade em uma perspectiva de verdade e método. Nes- se momento histórico em que nos encontramos, destacamos como um traço do comportamento em geral a compulsão. E se considerássemos loucos os compulsivos e os encaminhás- semos ao hospício, aconteceria o mesmo que ocorreu em "O Alienista": todos nós iríamos para uma casa de reclusão. Hoje, aqueles que recebem o diagnóstico de obsessivos compulsivos não são encaminhados para as atualmente denominadas Casas de Repouso. Já se conhece o remédio para curar a compulsão, logo são imediatamente medicados. Tanto Bacamarte como os especialistas atuais acreditam que o problema insere-se em uma interioridade, na qual existe uma falha seja biológica, seja psíquica que precisa ser reparada. Heidegger, na contramão dessas interpretações, afirma que a questão da compulsão tem uma relação direta com o nosso horizonte epocal. A atmosfe- ra em que atualmente nos encontramos é obsessiva-compulsiva. }.3.1. A era da técnica e o traço compulsivo da existência Heidegger refere-se ao problema da técnica como aque- le problema que envolve justamente a essência compulsiva. De acordo com sua exposição, a técnica tem em si um traço com- 149 pulsivo fundamental que caracteriza o nosso tempo. No mun- do da técnica, essa é a lei, esse é o princípio de determinação de todas as coisas. A técnica, além de estabelecer as conjecturas a cada vez novas, sempre está se projetando para além daquilo que ela estabeleceu. Daí, em uma incessante projeção para além de todas as configurações que a técnica conquista, aliado ao seu descompromisso, essa tem uma aceleração que não pára. Com isso, não há mais nenhuma barreira, nenhum limite, enfim ne- nhuma trava que possa funcionar como um obstáculo para téc- nica. Absorvidos por essa atmosfera, agimos a todo tempo em uma autonomia total do comportamento com relação ao sujei- to do comportamento. E, de um modo geral, a nossa ação, ao se tornar uma repetição incessante, passa a ser definida como compulsiva, já que o sujeito do comportamento não tem mais nenhum controle sobre si. É essa compulsão que se materializa em uma série de transtornos, interpretados aqui não como falhas de uma determinada subjetividade, mas como transtornos que ousamos denominar epocais. Hoje, se tivéssemos que mandar os compulsivos para a Casa Verde, aconteceria assim como o que se passou no Alienista: todos ficaríamos trancafiados lá. Queremos com isso dizer que o horizonte da compulsão atravessa, hoje, os nossos modos de ser. Mas por que falarmos de transtorno obsessivo-compulsivo? A palavra transtornar significa virar. A pessoa acometida por um transtorno é aquela que virou excessivamente, além dos limites aceitáveis. Parece, então, que a pessoa transtornou-se. Obsessivo refere-se ao pensamento que não cessa de pensar e ordenar que algo seja feito, a fim de que todo e qualquer elemento impre- visível não possa surgir e destruir aquilo que se é. Compulsão diz respeito à ação que efetivamente e definitivamente protege. A denominação transtorno obsessivo compulsivo surgiu em 1991 com o CIO 10. Este manual foi elaborado com o propó- sito de atualização das descrições atualizadas das doenças psí- quicas já existentes, acrescentando-se novas doenças que ainda 150 não haviam surgido no âmbito da psiquiatria. Anteriormente, denominavam-se os transtornos de neurose. Porém, como essa denominação tornou-se uma categorização utilizada pelo senso comum, os estudiosos do assunto resolveram utilizar uma nova nomenclatura. Assim, alguns elementos aí discutidos podem nos levar a acreditar que o transtorno obsessivo compulsivo se dá na ordem de uma interioridade que se cindiu e, então, adoeceu psiquicamente, e que isto pode ser constatado pelos seus sinto- mas, facilmente encontrados no CID 10. Uma vez estabelecido o diagnóstico, recorre-se aos procedimentos medicamentosos ou disciplinadores do comportamento, a fim de que a pessoa possa retornar a normalidade. Os transtornos existenciais, na visão heideggeriana, são comportamentos que promovem um estreitamento do horizonte existencial de modo que acaba por enfraquecer e encurtar todas as possibilidades existenciais. Em Ser e tempo (1988), Heidegger pensa o cotidiano em uma perspectiva do comportamento me- diano, no qual permanecemos com a impressão de que temos o controle e agimos de modo a que nada seja mais importante do que tomar conta daquilo, que de algum modo acreditamos ameaçar nossa existência. E toda vez que temos o anúncio do incontrolável, dispomos de um esforço enorme para conquistar novamente o controle. Acontece que nada disso é da ordem do racional, como diria Sartre (1997). Isso acontece na síntese do projeto, na ordem do pré-lógico, horizonte esse que não pode jamais ser controlado. Por isso, podemos arriscar dizer que, na cotidianidade mediana, o que mais acontece são modos de ser restritivos, controladores, portanto, tendencialmente neuróticos. Acontece que, ao apertar do torno, de modo a tentar controlar tudo, esse projeto fracassa, já que na vida nunca é possível ter controle total sobre tudo e todas as coisas. Aquele que vive o transtorno apresenta uma tentativa de controle total, porém em um espaço reduzido. E ao reduzir o espaço das possibilidades à vulnerabilidade e ameaça à sua existência, o transtornado acaba 151 por tomar como ameaçadora uma única possibilidade. Esse es- paço restrito traz a ilusão de um controle possível, mas é justo nessa redução que, ao apertar o torno, transtorna. A situação em que o transtorno aparece é muito bem ilus- trada em um conto de Kierkegaard, intitulado Uma possibilidade (Valls, 2004). O próprio título já aponta para o problema da res- trição. Trata-se de um personagem, o guarda livros, que sempre levou uma vida regrada e era um trabalhador exemplar, tanto que seu patrão deixou-lhe como herança o seu negócio. Essa excessiva vida apolínea já apontava para uma restrição que nos dava indícios de uma tentativa de controle. O rapaz levava uma vida tranqüila, sem grandes preocupações, até que uns amigos o • chamam para uma noitada que acabou em bebidas e mulheres. Acontece que o jovem passou a noite com uma mulher e, a partir daí, começou seu infortúnio. Ele desespera-se pela possibilidade de que essa única decisão desregrada em sua vida pudesse gerar frutos, no caso, um filho. Sem dúvida, essa era apenas uma pos- sibilidade, frente a outras possíveis. No entanto, o guarda livros só via uma, em total encurtamento frente aos possíveis. Ele, em desespero da necessidade, faz com que apenas a possibilidade do filho abarque toda a sua existência. No desespero da necessi- dade, o rapaz não consegue suportar qualquer indeterminação, daí ocorre um encurtamento total que não permite o acesso a qualquer outra possibilidade. Machado de Assis (1895/2008) também trata do tema do encurtamento das possibilidades que visa ao controle no seu ro- mance Dom Casmurro. Nesse romance, Machado de Assis relata a dúvida de Bentinho acerca da fidelidade de Capitu, sua esposa. Bentinho, consumido pela dúvida, por mais que ele não tives- se evidências lógicas de que a traição acontecia, quanto mais as evidências de uma possível fidelidade apareciam, mais ele se tor- nava certo da traição. Ele não tinha como ocupar os pensamen- tos nem as ações da esposa, o que deixava sempre um espaço de liberdade para que o outro estivesse possivelmente agindo con- 152 soante a sua vontade, da qual Bentinho não teria controle. Era preciso, para que ele ganhasse tranquilidade, a total e absoluta transparência de Capitu. Como tal transparência era impossível, como o fato de jamais confirmar tal certeza instaurava a dúvida, ele não tinha como saber se Capitu realmente o teria traído. Eis que Bentinho vai assistir à ópera "Otelo" Essa ópera traz a histó- ria de Otelo, que é enganado pelo seu ajudante, Yago. Esse quer vingar-se de Otelo. Para isso, cria uma intriga entre Otelo e sua mulher, inventando que ela andava traindo-o com um amigo. Otelo, não suportando a infidelidade de sua esposa, acaba por as- sassiná-Ia e depois mata o amigo. Ao descobrir a intriga em que havia sido enredado, comete suicídio. Nesse caso específico, o fato de alguém ter sido traído, sem que a traição fosse realmente efetiva, reforça em Bentinho a dúvida, por não suportar que essa se acirre ao aparecer outra possibilidade. Em um encurtamento e em uma tentativa de obter a certeza, opta por manter a idéia de que ele mesmo foi traído. Na verdade, Bentinho não supor- ta a dúvida, por isso opta pela certeza. A certeza é a obsessão, elemento de determinação, a necessidade de Bentinho. Por isso, resolve por aquilo que, de alguma forma, termina com a situação de indeterminação e incerteza. A história do Guarda livros e a de Bentinho retratam bem o que caracteriza o transtorno do controle. A impossibilidade de controle de todos os elementos traz a restrição daquilo que elege- mos controlar. Essa eleição torna-se o foco para o qual passamos a dirigir toda a atenção. Com o foco uma vez elegido, passamos a empenhar-nos nele de forma determinada. E, assim, temos a neurose como elemento decisivo para o controle, determinação e compulsão. Para pensar no horizonte histórico que determina as nossas ações por meio dos elementos da técnica com a sua atmosfera própria de controle, compulsão e violência, buscamos na literatu- ra elementos para ilustrar de que modo as expressões singulares se dão nesse círculo hermenêutico de orientações sedimentadas, 153 nas figuras do Guarda livros e de Bentinho. Esses dois elementos, que traduzem o geral e o singular nas expressões de um tem- po, levam-nos a estabelecer as referências, nas quais se assentam possibilidades de uma psicologia clínica existencial. Clínica essa que não mais entende o transtorno como algo que se dá em uma interioridade fragmentada ou desadaptada, mas como algo que se dá no próprio espaço existencial. Com base em uma psicologia existencial, caminhamos no sentido de entender o fato de que o que está em jogo nos trans- tornos neuróticos é oriundo do espanto que se apresenta frente ao indeterminado e à tentativa de controlar essa indeterminação. Como tal tentativa fracassa, resta, então, restringir possibilidades e, assim, quem sabe retomar o controle. Outro aspecto relevante que esclareceremos aqui é o de que a questão do transtorno ou da neurose não diz respeito a uma subjetividade encapsulada que carrega em sua interioridade o seu transtorno e, portanto, nela é que repousa toda a responsabilidade pelo modo como conduz a sua vida. Traremos à discussão aquilo que Heidegger denomina como tonalidades afetivas, que implicam um espaço existencial que não é nem interior, nem exterior e que sustentam a situação e o lugar onde as determinações acontecem. A atmosfera que parece sustentar o transtorno do controle é o temor. O temor relaciona-se com o medo. Heidegger diz em Ser e tempo que o medo torna a rede referencial mais presente, de tal modo que a circunvisão por meio dele se acirra. Aquilo de que temos medo nos torna mais atentos àquilo que previne o acontecimento que tememos. Aparece, assim, a atmosfera do temor. Em uma perspectiva existencial na clínica psicológica, o caminho clínico aconteceu no sentido de tentar sempre abrir o leque da indeterminação, de modo que aquele que vê sua exis- tência repentinamente transtornada possa, afinal, entregar-se à situação onde ele sempre se encontrou e encontra: na situação da indeterminação e incerteza. E também se faz necessário modifi- car a atmosfera de temor de modo que o transtornado possa sair 154 do descompasso com a vida e retomar a vida, entregando-se a ela tal como ela se dá. Mas cabe agora a questão: afinal, como essa clínica acontece? É isso que tentaremos mostrar com a análise fe- nomenológica do discurso clínico que apresentaremos a seguir. 3.3.2. A clinica psicológica na tonalidade do temor Em março de 2008, uma senhora telefona, pedindo para que marcássemos uma sessão para seu filho, Otávio, 22 anos. Ela, relatando excessiva preocupação com o filho, diz que o rapaz está cursando medicina, e que vem prosseguindo o curso sem dificul- dades. No entanto, no próximo semestre ocorrerá a parte prática e ela teme que Otávio não consiga dar continuidade ao curso. A terapeuta pede para marcar uma entrevista com os pais, pois teme que o próprio rapaz não transmita tudo o que está aconte- cendo. O analista pede que Otávio entre em contato, para que ele mesmo marque o encontro (momento da responsabilidade). Neste primeiro trecho, a questão já se evidencia como algo muito próprio aos distúrbios ou doenças em geral. Nessas situa- ções, os familiares, amigos ou pessoas próximas assumem a tute- la por aquele que julgam que, por estarem doentes, não a podem assumir. Acreditam eles, que nessa situação a pessoa se torna incapaz de cuidar de si mesma. Em uma clínica existencial, acre- ditamos que, retirar da pessoa a sua tutela, consiste exatamente naquilo que acirra a doença psíquica. Por esse motivo, inicia- mos a situação clínica já a partir desse primeiro contato, pedindo que Otávio telefonasse para marcar o nosso primeiro encontro. A mãe prontamente atende à solicitação e diz que lhe dará o re- cado. Assim, mantemos a oportunidade, que normalmente é re- tirada daquele que consideramos doentes, de que Otávio assuma a sua responsabilidade, o seu cuidado, a sua tutela. O acento do clínico se dá aí na abertura de possibilidades para que Otávio reconquiste a sua responsabilidade. E assim acontece. Otávio telefona para marcar a sessão e diz estar mui- 155 to interessado em buscar ajuda. Consente na entrevista com os pais, dizendo que não só aceita que eles venham, como também acredita que seja bom para que eles reduzam a ansiedade, já que ultimamente eles andam muito preocupados. Essa preocupação dos pais, que Otávio considera ansiosa, também fala da tentativa deles de dividirem a responsabilidade pelo rapaz com um pro- fissional que o venha tutelar; de dizerem o que fazer de alguma forma, seja de forma medicamentos a, seja por técnicas de mo- dificação do comportamento ou por uma descoberta do meca- nismo que se encontra por trás do que acontece; e, portanto, eles acreditam que o profissional indicará, com certeza, o caminho. Eles marcaram, então, a entrevista com os pais. Na entrevista com os pais, a mãe toma a palavra e expõe o problema de Otávio com os seguintes itens: • Ela fala da dificuldade de relacionamento, que se dá devido à rigidez de critérios com os quais Otávio conduz sua vida. • Refere-se a princípio ao medo da morte e, em seguida, se corrige: "medo não", o pavor com que Otávio leva a vida. • E relata que os dois, pai e mãe, receiam que Otávio aban- done a faculdade. A mãe refere-se ao fato de se sentir culpada e o pai mos- tra-se preocupado, porém mais contido. Os pais informam que Otávio vem sendo acompanhado por um psiquiatra. O psiquia- tra, logo que foi informado que Otavio iria ser acompanhado por uma psicóloga, entrou em contato e falou de seu diagnóstico. Ele disse que se tratava de um Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e que o paciente estava medicado com Aropax (anti-de- pressivo, um comprimido por dia). Além disto, contou que Otá- vio apresenta os seguintes sintomas: • Compulsões (que desapareceram com a medicação). • Tiques (que aumentaram com a medicação); • Pensamentos obsessivos (que diminuíram com a medicação) • História familiar de TOe: tia materna e mãe. Ele comunicou, ainda, que caso Otávio não respondesse a 156 essa medicação, introduziria neurolépticos (antipsicóticos em dose baixa). Com as observações e descrições dos pais, bem como com as do médico psiquiatra, podemos concluir que o diagnóstico, a descrição dos sintomas e a prescrição pretendiam colocar a si- tuação sob controle. Os pais já tinham o diagnóstico e o médico já mapeara toda a situação de Otávio. Enfim, todos já sabiam o que Otávio tinha e como tratá-lo, Os pais e o médico já haviam se tranquilizado, pois já haviam encontrado uma identidade para Otávio, bem como os procedimentos que o livrariam dos sin- tomas. Nesse momento, portanto, eles já apresentavam o rapaz ao analista por meio de categorias universalizantes que, por sua vez, garantiriam uma atuação psicológica definitiva. Em face do processo identificatório, essa atuação deveria trazer a tutela asse- gurada que os pais tanto procuravam. Otávio chega à sessão muito agitado, como se estivesse em estado de alerta, mexia-se muito, piscava em excesso. Ele jogou-se ao sofá. E começou a falar sem que o analista lhe per- guntasse nada: - Vim aqui porque já não suporto mais a aflição. Ando com muito medo de me contaminar com o vírus HIY. Saí da outra psi- cóloga porque odeio psicólogo, tenho nojo do que eles falam, só falam besteiras, burrices. Você me desculpe, mas os psicólogos são despreparados, burros, só faz faculdade de psicologia quem não entra para afaculdade de medicina. São complexados. Não quero que você me fale bobagens. Sabe o que a psicóloga Maria, você deve conhecer, sabe o que ela me disse?Que raiva! Tenho vontade de dar um murro na cara dela! Estava falando de como tenho raiva, ódio, da minha mãe, tenho vontade de cuspir na cara dela; e ela me disse que era o meu complexo de Êdipo. Pedi a ela: decifra o que é isso que vO'cêfalou. Ela respondeu: no fundo você a deseja e como não pode possuí-Ia, porque ela pertence ao seu pai e como você não pode destrui-to, mesmo porque o ama, você quer destruir o objeto da rivalidade de vocês dois. Que raiva, que burrice, que idiota des- 157 preparada, deve ter estudado em uma faculdade de merda. Otávio continua: _ Não suporto gente burra, eu já não estava gostando há muito tempo das burrices que ela falava. Dizia: você não vai ser contaminado, você não usa camisinha? Burra, não entende nada. Qualquer um pode ser contaminado, tenho medo porque sei que mesmo com todas as precauções você pode ser contaminado, até ela pode, mas a babaca acha que ela não vai ser contaminada. Você conhece a Maria Alves? Conhece, não conhece? Sabe que ela é incompetente não sabe? O analisa conhecia a primeira psicóloga e acreditava que Otávio talvez tivesse razão no que estava falando. Por mais que seja hoje cada vez mais raro encontrar psicanalistas assim tão reducionistas, existe sempre ainda a possibilidade. Por isso, ela acenou que sim e acrescentou que desconhecia dados acerca de sua formação e competência. Otávio, então, lhe disse: - Avise para todos que você conhece sobre como ela é incom- petente. Desejo a minha mãe ... Nem gosto de velha, odeio a minha mãe, tenho nojo dela. Mas, não épor isso que estou aqui. Terminei a terapia há três meses. Terminei não, abandonei depois da burri- ce que ela me falou. E ando me sentindo muito mal, fico o tempo todo pensando que fui contaminado pelo vírus da AIDS. Isso me perturba, às vezes é tãoforte que não suporto, não consigoparar de pensar e até vomito, sem parar. É horrível. Transar; já nem tran- sa mais, sinto vontade, mas depois fico tão perturbado, achando que me contaminei que prefiro evitar. Depois que terminei com a minha namorada, nunca mais transei com nenhuma mulher. Tenho medo. No final do relacionamento, já fiquei cismado de ter me contaminado com ela. Otávio continua: - Sabe, tem outras coisas que atormentam minha vida. Penso que não quero morrer, pensar nisto me traz um grande incômo- do. Também cismo às vezes que há espíritos junto de mim. Tenho medo, fico cismado. Não sou religioso, nem acredito em Deus. Por 158 isso,já que sou incrédulo, porque tenho medo de espírito? Mas fico achando, sentindo que tem espírito perto de mim. Minha mãe, que diz que é católica, quis me levar num centro de macumba. Eu não aceito esta palhaçada. É claro que não fui, nem vou. Otávio falava muito, não deixando espaço para que eu me pronunciasse. O analista manteve-se em silêncio, atento ao que o rapaz dizia, facilitando, assim, que ele trouxesse à tona todos os incômodos, insatisfações e medos. Mostrava-se, assim, a dis- posição para escutar o que ele quisesse falar e para acompanhar as expressões de suas emoções. Frente a tudo aquilo que Otávio e>"'Pressava,o analista conduzia-se conforme indicam os man- damentos do psicoterapeuta existencial (FEIJOO, 2010): indo onde o outro estava, mostrava-se um ouvinte atento e revelava interesse naquilo que Otávio tinha mais motivação em relatar. Era preciso paciência, só assim poderia ajudá-lo. Por fim, era preciso compreender que toda a sua raiva e indignação com o psicólogo consistiam em sua dificuldade, atmosfera em que se encontrava. O psicólogo precisava também reconhecer que só poderia alcançá-Io, se não partisse do pressuposto de que toda a sua forma de expressar-se consistia em sua doença, tal como o psiquiatra havia diagnosticado. Se assim fosse, relacionar-me-ia com a categoria que lhe fora destinada e não com ele mesmo em seu modo de mostrar-se, que estava ali e se apresentava em suas expressões singulares. Expressões essas que traziam uma atmos- fera de violência, um estado de humor, afinação em que ele se movimentava; enfim, se relacionava com aquilo que lhe vinha ao encontro. Ao perguntarmos sobre as razões de tanta raiva e violência, concluímos que essas razões não se situam na ordem da lógica. No interior do transtorno, há um horizonte que não é lógico. Por esse motivo, teríamos que aguardar, pacientemente, para que Otávio se pronunciasse. Quando a sessão acabou, Otávio quis marcar a próxima sessão na mesma semana. Ele disse que estava precisando muito. O clínico concordou com esse segundo encon- 159 tro e acertaram o dia e a hora. No segundo encontro, Otávio co- meça a contar como foi o término de seu namoro: - Namorei durante dois anos com esta moça, gostava deficar com ela, mais velha do que eu, ela erapaciente e sem essasfrescuras das garotas mais novas, o sexo era bom. Só que eu comecei a des- confiar que ela me traía. E isto eu não aceito deforma alguma. Eu a pressionei e ela não confessou. Outra coisa que eu não suporto, fico com muita raiva, tenho vontade de matar é a mentira. Como odeio traição e mentira, resolvi terminar. E, depois que termino, não me arrependo. Também não iria correr o risco de me contaminar. - E quais os indícios de que ela mentia? - Não sei direito, ela se contradizia. Eu tenho boa memória, ela pensava que eu tinha esquecido de algo que ela tinha contado e contava de outro jeito. Estava acontecendo coisas esquisitas, um ex-namorado que estava telefonando para ela, ela dizia que era só telefonema, mas não sei. E desconfiando não dá. Fiquei mais pre- ocupado com a contaminação. Se ela estava transando com outro, as chances aumentavam. Nós nem brigamos, nem nada, terminei o namoro e pronto. Ela chorou muito, disse que estava sofrendo, que gostava muito de mim. Eu, de verdade, nem sofri tanto, gos- tava dela, mas a desconfiança estava me atormentando tanto que achei melhor terminar. Agora já tem algum tempo que termina- mos, sinto falta algumas vezes, mas não sofro, nem choro. Nada, não deu, não deu. - Parece que o mais importante é não correr o risco de se contaminar. - É. Tenho muito medo, sei que não é difícil isso acontecer. Prefiro prevenir. Depois que acontece, não há mais nada que eu possa fazer; mas controlar para não acontecer, eu posso. Analista: - É. E você até sente falta da garota, mas não sofre mesmo, não é? - O que eu quero, agora, é arrumar outra namorada, mas está difícil. Conheço a garota em uma festa ou em barzinho. Não 160 sei, ou ela não me interessa ou quando me interessa parece que elas não gostam de mim. Quando saio com meus amigos, elessaem sempre com uma garota e eu fico sozinho. Às vezes, acho que as mulheres gostam de homens safados que mentem. Eu já não sei, nem gosto de mentir, digo a verdade e elas não gostam. Preferem os safados. Cada vez eu fico mais certo disso. - Então você quer encontrar uma garota, mas não quer cor- rer risco. - É isso. - A questão é como ter certeza de que não corre risco. Parece que sem risco também não há garotas. Otávio contava sobre as suas relações amorosas, so- bre o fracasso na tentativa de novos relacionamentos. Falava da atmosfera de desconfiança e de medo em que ele se mo- vimentava. A contaminação e a desconfiança pareciam tra- zer à tona o caráter de indeterminação e incertezas em que ele se encontrava. O analista lembra-se do romance de Ma- chado de Assis e pensa que o que ocorria com Otávio pare- cia ser a mesma coisa que sucedera a Bentinho. A dúvida era mais insuportável do que a traição. Por isso, ela só o podia estar traindo e não havia nada a fazer senão terminar o na- moro. Pensou nas razões que o levaram a concluir que houve- ra traição. Ao mesmo tempo, o analista sabia que mesmo que houvesse razões suficientes para negar as certezas de Otávio, isso de nada aliviaria o seu sofrimento, pois tais razões não eliminariam por completo a possibilidade de infidelidade. O pré-lógico parece ter aí um acento que radicaliza a decisão. Em meio a essas reflexões, o psicólogo se calava e, pacientemen- te, esperava o momento em que pudesse se pronunciar. Intuiti- vamente, ele pensava que deveria ser prudente. Anteriormente, já havia demonstrado o ódio que sentia pelas pessoas que não o compreendiam. Por isto, o clínico preferia continuar a ouvi- 10. Ele, por sua vez, não solicitava que o analista lhe dissesse alguma coisa. Parecia necessitar, pelo menos e por enquanto, 161 ser ouvido. O analista sabia que, em algum momento, preci- saria criar um espaço em que essa tentativa de obter certezas e controle desmoronasse. Ele sabia também que a inconsistência de seu projeto de controle, que falseava o caráter de indetermi- nação, deveria se revelar. E, assim, Otávio poderia se entregar à indeterminação própria ao existir. Esse rapaz, no desespero da necessidade de certezas, não conseguia suportar essa indeter- minação. Daí o encurtamento total rumo a apenas uma possi- bilidade. Assim, não precisava acompanhar esse mar de possi- bilidades que sempre podem acontecer. Foi nesse movimento, apontando para a falta de coragem e a evitação do risco que, pouco a pouco, Otávio foi ganhando coragem; mesmo porque já havia assumido o quanto ter uma namorada era importante para ele. Nesse último encontro, relatou repetidamente como era difícil achar uma garota e que o que ele gostava de fato era de namorar. Ele relata as saídas com os amigos, as farras, os chur- rascos com os amigos da faculdade, as chopadas, mas diz que, em nenhum desses lugares, arrumava garotas para ficar com ele. O analista ficou pensando no que
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