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Princípios da Legalidade e da Culpabilidade

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Princípios da Legalidade e da Culpabilidade
Parte 1
Princípio da legalidade 
Código Penal:
Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Constituição Federal:
Art. 5º, XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Art. 5º, inc. XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
Não pode haver crime nem pena sem prévia cominação legal ideia geral do princípio. Dessa ideia geral decorrem quatro consequências, quatro corolários.
Corolários do princípio da legalidade:
Proibição da analogia: proibição de que se criem crimes ou que se cominem penas a partir de um procedimento analógico, subsumindo-se à lei um caso não previsto nela, através de um procedimento de similitude. Esse procedimento é vedado pelo princípio da legalidade.
Proibição do direito costumeiro como agravação da punibilidade: a força de vigência dos costumes jurídicos, decorrentes de práticas repetidas e reiteradas de órgãos de interpretação da lei, não pode criar crimes nem cominar penas.
Proibição de leis indeterminadas: o legislador deve utilizar a linguagem e os conceitos da forma mais precisa possível ao elaborar as leis.
Proibição de retroatividade da lei: o princípio da legalidade protege os cidadãos quanto ao procedimento do legislador de criar uma lei ex post facto, isto é, após a ocorrência do fato, no afã de aplicá-la justamente a esse fato passado.
Positivação do princípio da legalidade: sempre houve previsão legal na história do direito positivo brasileiro. Mas, apesar dessa consagração positiva, na prática do direito penal brasileiro, não seria possível identificar violações ao princípio da legalidade?! É dizer, o mero fato de o legislador ter consagrado, abstratamente, o princípio da legalidade no direito positivo, não garante que esse princípio seja respeitado pelos juízes, pela interpretação da doutrina e, ainda, pelo próprio legislador em outras leis penais.
Ex. Até a Reforma Penal de 1984, conviveu-se com a versare in re illicita, que dispensava a culpa relativa ao resultado que agravava o delito, em clara violação ao princípio da culpabilidade. Art. 19 do CP
Por que surge o princípio da legalidade? Pode-se dizer que ele surge especialmente no momento em que o catálogo de delitos extrapola os chamados delitos da mala in se, delitos que constituem um mal em si mesmo (furto, homicídio), delitos naturais, que são por todos conhecidos. O princípio da legalidade surge, então, a partir do momento em que são criadas figuras criminosas que não compõem o grupo dos delitos mala in se, os chamados delitos mala prohibita. Esses novos delitos não representavam os valores fundamentais arraigados na sociedade, não eram conhecidos por todos os cidadãos a despeito da existência de leis. Portanto, a partir desse momento de expansão do direito penal, é que nasce a necessidade de se falar no princípio da legalidade.
Parte 2
Discursos de justificação do princípio da legalidade no direito penal:
Feuerbach: defendia a existência da lei com base na ideia de que o Estado, para motivar seus cidadãos a não praticarem as condutas criminosas (teoria da coação psicológica prevenção geral negativa), precisava da lei. Com as leis escritas, o Estado alcançaria uma motivação mais eficiente para dissuadir os cidadãos das práticas ilícitas. Defendia, portanto, a legalidade sob a ótica do Estado. O contexto, à época, era que os juízes da Baviera estavam aplicando penas mais brandas, em que pese as previsões legais extremamente graves e cruéis vigentes. Para Feuerbach, os juízes deveriam aplicar o que está previsto na lei! Nota-se, assim, que os seus propósitos não eram tão humanísticos. Desse modo, explica-se porque, para o Estado que busca coagir psicologicamente seus cidadãos, é importante a existência do princípio da legalidade. Mas não se explica a sua imprescindibilidade nos Estados em que o princípio foi relativizado e prescindido, como o Estado Nacional Socialista.
Karl Binding: autor da teoria das normas, que distingue LEI e NORMA; por trás das leis, há normas, estas sim violadas pelo autor do delito e não a lei; o que está escrito na lei corresponderia exatamente ao que o autor pratica. São, pois, as normas que dirigem os comportamentos. Desse modo, Binding defendia que o princípio da legalidade era uma tirania, o recurso à analogia era necessário no direito penal, buscando flexibilizar a interpretação por parte dos juízes.
Tobias Barreto: de igual modo, defendia a analogia no direito penal.
O princípio da legalidade pode ser visto como: decorrência da separação dos poderes; decorrência do liberalismo político (os direitos dos cidadãos em primeiro plano); homenagem à proteção da confiança, da “calculabilidade” do direito, inerente ao próprio Estado de Direito, cujas regras precisam ser calculáveis; os cidadãos devem confiar nas regras preestabelecidas. Para o Prof. Alaor Leite, essas visões são insuficientes.
Seriam insuficientes porque a ideia de proteção da confiança é apenas a descrição de um EFEITO, que ocorre justamente quando o Estado não respeita alguma das proibições que decorre do princípio da legalidade.
Estados que não prometem nada ou que produzem sistematicamente leis indeterminadas frustram a confiança dos cidadãos? Parece que não! Nesses casos, a estrutura da ideia de proteção de confiança ainda é muito frágil para sustentar a ideia do princípio da legalidade.
O verdadeiro fundamento do princípio da legalidade: ao cidadão deve estar assegurado o direito absoluto, imponderável, de que o Estado constitua abstratamente o caráter criminoso da conduta sem referência ao seu caso concreto específico. Ou seja, o caráter criminoso de uma conduta deve ser determinado abstratamente, fora das pressões do caso concreto e não sobre o MEU caso. Eu tenho um direito que esse conteúdo seja construído em abstrato e não concretamente. Isso me protege de que o Estado atribua características de injusto penal à minha conduta por razões contingencias, ligadas à situação, ao contexto social e político ou à minha pessoa. Portanto, a ideia do princípio da legalidade é a de que, sempre que o Estado quiser proibir uma conduta, deve fazê-lo abstratamente, sem referência a um caso concreto. Todo cidadão tem um direito absoluto de que o injusto de sua conduta seja determinado sem referência à sua própria conduta, que seja determinado de maneira abstrata. Só assim estão todos protegidos contra o poder do estado.
Parte 3
O princípio da legalidade, por ser uma regra fundamental ao Estado, reveladora do tipo de Estado que existe, não pode estar à disposição do legislador.
Âmbito de atuação do princípio da legalidade:
Proibição de leis indeterminadas: 
Para quais âmbitos vale o princípio da legalidade? Apenas para a Parte Especial ou também para a Parte Geral?! Na parte especial, é clara a vedação, a ver, por exemplo, a proibição de crimes a título de culpa, caso a previsão seja apenas da modalidade dolosa. É certo que os delitos da parte especial se dirigem aos cidadãos, mas os conceitos da parte geral dirigirem-se especificamente aos aplicadores da lei, são conceitos mais gerais, impassíveis de serem descritos detalhadamente pelo legislador. É possível que o legislador viole a legalidade na parte geral do direito penal? Sim, há violações do princípio assim, mas elas são raras. Exemplo: ao optar pelo sistema unitário de autor (arts. 29 a 31 do CP), o legislador ordinário violou o princípio da legalidade na modalidade de proibição de leis indeterminadas. Para o sistema unitário de autor, não há diferença entre autores e partícipes, não há distinção qualitativa entre os níveis de participação no delito. Ocorre que, ao dizer que TODA contribuição causal para o delito é autoria, o legislador acabou por dissolver todas as normas proibitivas previstas na parteespecial. Ora, se TODA contribuição causal, até a mais remota, pode realizar os tipos penais da parte especial, as condutas que efetivamente constituem crimes são, em verdade, amplíssimas e, muitas vezes, indeterminadas, não se restringindo as expressamente previstas na parte especial. Por isso, a doutrina vem defendendo a distinção entre autor e partícipe, assegurando o conteúdo delimitado e determinado dos tipos penais da parte especial.
Vale também o princípio para a aplicação da pena? Ou vale apenas para os pressupostos do delito? É certo que o juiz não pode criar o dano culposo, não previsto pelo legislador. É dizer, o juiz não pode criar uma forma de realização subjetiva do delito, não pode criar uma figura não prevista na lei aqui, estamos diante de pressupostos do delito. Mas pode o juiz criar uma pena não prevista? Pode o juiz analisar e agravar a pena do condenado por fatores que não digam respeito ao delito realizado? Pode haver casos que o juiz procede assim, violando o princípio. O princípio da legalidade vale também para a aplicação da pena, ele proíbe tanto a criação de delitos quanto a cominação ou agravação de penas não previstas pelo legislador. É certo que o legislador oferece ao juiz conceitos abertos (ex. art. 59, CP), mas também é certo que toda a apreciação acerca de tais conceitos deve levar em conta o delito praticado pelo autor. Assim, deve levar em conta apenas os elementos previstos pelo legislador. Exemplo: ao analisar o princípio do ne bis in idem na aplicação da pena, o juiz, certamente, não pode agravar a pena por uma mera circunstância típica prevista pelo legislador, porque a quantidade de pena prevista no tipo já estava inserida no marco penal elaborado pelo legislador. Mas, daqui não se pode extrair a competência de que toda circunstância que realiza o tipo não tem nenhuma influência na aplicação da pena. A mera ocorrência da circunstância não tem influência! Mas as especificidades das circunstâncias podem não ter relação com os elementos do tipo, podem ser mais intensas, mais graves, mais profundas. O que o juiz não pode fazer, sob pena de violação do princípio da legalidade, é valorar negativamente circunstâncias completamente alheias ao delito praticado. Exemplo: não pode o juiz agravar a pena do estelionatário, em razão do dano psicológico/psíquico que a vítima sofreu.
Princípio da legalidade na Lei de Execuções Penais: as sanções da LEP, embora administrativas, influenciam na forma de execução da pena, portanto, devem respeitar o princípio da legalidade.
Leis indeterminadas no direito penal brasileiro:
Crime de redução alguém à condição análoga de escravo (art. 149, CP): o artigo não diz o que é reduzir alguém à condição análoga de escravo, não descreve qual é a ação proibida.
Crime de gestão temerária de instituição financeira (Lei 7.492/1986): há muitas dúvidas sobre o que seja gestão temerária, se é próxima à culpa grave ou ao dolo.
Parte 4
Hans Welzel: o grande perigo à vigência do princípio da legalidade decorre da edição sistemática de leis indeterminadas, e não da analogia propriamente.
A edição de leis indeterminadas poderia gerar SUSPENSÕES da proibição da analogia, porque elas convidam o juiz criminal a se valer de procedimentos analógicos ao aplicar a lei. A pretexto de estarem interpretando a lei, estariam, a bem da verdade, fazendo analogias.
O que está por trás do princípio da legalidade que o justifica tanto? (Parte 2) Insuficiência da teoria da coação psicológica e de sua fundamentação eficientista, pensada a partir do Estado, problemas da teoria da proteção da confiança, pelo simples fato de que, se a justificativa para edição de leis é a eficácia dessas leis como contra-motivos às ações dos cidadãos, nada melhor, portanto, do que as LEIS INDETERMINADAS. Pois, assim, o cidadão ingressa numa situação de dúvida do que é proibido e do que é permitido, abdicando-se de praticar um sem número de condutas que, no final das contas, são permitidas. Portanto, leis indeterminadas, na verdade, são mais eficientes do ponto de vista do Estado, para servirem de contra-motivo aos cidadãos. Não podendo ser este discurso eficientista válido para justificar o princípio da legalidade.
Destinatários do princípio da legalidade:
Costumava dizer que haveria um destinatário exclusivo para cada corolário do princípio da legalidade simplicidade postal do princípio da legalidade:
Na vertente proibição de leis indeterminadas, dirigia-se ao LEGISLADOR, responsável pela elaboração dos crimes e das penas.
A proibição de retroatividade também se dirigia ao LEGISLADOR, que não poderia editar leis ex post facto.
A proibição de analogia dirigia-se ao JUIZ, que não poderia valer-se de procedimentos analógicos no momento de interpretador conceitos das leis.
A proibição de criação de crimes e cominação de penas por meio do direito costumeiro também se dirigia ao JUIZ, que não poderia valer-se do hábito de interpretações em determinados sentidos para ampliar os delitos e suas sanções estabelecidas na lei.
Em função dessa exclusividade do destinatário, não fazia sequer sentido discutir a exigência do princípio no âmbito de atuação de outros atores que não o seu exclusivo destinatário.
Modernamente, chegou-se à conclusão de que essa correspondência estática dos destinatários é inadequada à realidade jurídica atual.  duplicidade de destinatários do princípio da legalidade
A vertente da proibição de leis indeterminadas, também se dirige ao JUIZ, no momento de aplicar a lei. O JUIZ deve contribuir para que os conceitos utilizados pelo legislador se tornem cada vez mais precisos, especialmente no momento de consolidação da jurisprudência. Portanto, num primeiro momento esse corolário dirige-se ao LEGISLADOR, mas num segundo momento também se dirige ao JUIZ. Há, pois, um MANDAMENTO DE PRECISÃO destinado ao juiz, no momento de aplicar a lei.
A proibição de analogia também se dirige ao LEGISLADOR, que, a princípio, poderia pensar em vários casos semelhantes e, por meio de analogias, chegar à elaboração de uma lei que encamparia todos esses casos pensados. Só que o legislador também está proibido de elaborar leis indeterminadas, bem assim a utilização de cláusulas analógicas (“ou de qualquer outro modo” – crimes de ameaça e estelionato).
A proibição de retroatividade também se dirige ao JUIZ, que, no momento de interpretação da lei, não pode aplicar lei posterior ao fato e, ainda, determinadas alterações jurisprudenciais não podem retroagir. Portanto, num primeiro momento, a proibição de retroatividade dirige-se ao legislador e, num segundo momento, dirige-se ao juiz.
Parte 5
As proibições decorrentes do princípio da legalidade devem coexistir, uma decorre da outra, a violação de uma implica a violação de outra. Exemplo da íntima relação entre as vedações é o caso de uma lei ser tão indeterminada, de modo que não se pode dela extrair o sentido literal possível, o núcleo duro das palavras utilizadas pelo legislador, ensejando uma autorização implícita para o juiz se socorrer à analogia no momento de aplicação do direito. 
Suspensões do princípio da legalidade na história do direito penal:
No Estado Social Nacionalista Alemão: os juízes poderiam utilizar-se da analogia para fundamentar e agravar a punibilidade de acusados, que não estivessem em consonância com o chamado “são sentimento” do povo;
No direito penal brasileiro:
Implícita: a edição de leis tão indeterminadas, das quais não se identifica o núcleo duro nem quaisquer parâmetros para a sua interpretação, convida o juiz a aplicar a analogia no momento de interpretar a lei.
Explícita: No contexto do caso de abate do navio brasileiro “Taubaté” por embarcações alemãs, nos anos 1940 (início do Estado Novo): por meio de um Decreto-Lei (nº 4.166/1942) que previa um crime indeterminado e autorizava explicitamente a aplicação de analogia (“Para a caracterização do crime, o juiz poderá recorrer a analogia”).
A proibição de analogia deve explicar a distinção entre interpretação permitida e analogia proibida.Para o Prof. Alaor Leite, a ideia do juiz “boca da lei”, de Montesquieu, foi mal interpretada e supervalorizada pela doutrina da teoria do direito e no direito penal. Viu-se nessa ideia algo de conteúdo descritivo da realidade, quando o que se tinha era uma proposição normativa, no sentido de que os juízes devem buscar ser a “boca da lei”, devem buscar, na aplicação do direito, fazer referência expressa ao que foi decidido pelo legislador, para que o direto fosse reconduzido às decisões do legislador, que, a seu turno, representa o povo.
Nesse sentido, há que se criticar o entendimento de que toda a interpretação do direito é analógica, segundo a qual não haveria distinção entre interpretação e analogia, não sendo possível proibir algo que seria inevitável. (Arthur Kaufmann e Rosa Maria Cardoso). Mesmo os defensores dessa tese não escapam do fato de que, em algum momento, é preciso distinguir interpretação analógica permitida e proibida, de que é preciso definir limites para a interpretação. Ao estabelecerem esses limites, esses autores admitem que há um momento, um obstáculo que o juiz não pode trespassar.
Há um consenso de que o limite ao qual o juiz está adstrito é o sentido literal possível. É claro que a linguagem escrita é porosa por natureza, não se podendo amarrar toda a interpretação por meio de palavras escritas, estaticamente contida na lei. Mas é claro também que a ESCOLHA das palavras é importante, porque cada palavra possui uma mensagem importante e um conteúdo semântico prévio, um núcleo que gera consenso acerca do seu significado. O juiz então deve se ater ao sentido literal possível das palavras, àquele núcleo sobre o qual não há dúvida, indiscutível. Há um núcleo certo, determinado, mas é claro que há um entorno desse núcleo mais passível de discussões.
A proibição de analogia vale certamente para os crimes em espécie, mas vale também para os conceitos da parte geral (dolo, culpa, autoria, participação, tentativa, causas de justificação, excludentes de ilicitude etc.)?!
As normas da parte geral, diferentemente das da parte especial, dirigem-se precipuamente aos aplicadores da lei; os crimes em espécie dirigem-se a todos os cidadãos, buscando orientar comportamentos. Assim, aquelas normas usam conceitos técnicos (erro de tipo permissivo, dolo eventual etc.), cujo sentido literal possível não é tão facilmente dedutível, é resultado das discussões científicas e da aplicação do direito, são conceitos fornecidos pela tradição jurídica. Portanto, há que se exigir um espaço maior de conformação do juiz no desenvolvimento das categorias do direito.
O problema: as causas de justificação são vias de mão dupla. De um lado, elas beneficiam o acusado; do outro, prejudicam a vítima. Para o Prof. Alaor Leite, deve-se exigir uma vigência mais fraca da proibição de analogia sobre as causas de justificação, mas não se deve suspender completamente a proibição de analogia.
Destinatários da proibição de analogia: tanto o juiz, quanto o legislador, apenas em momentos diversos. Quando o legislador utiliza cláusulas analógicas (“ou de qualquer outro meio”), ele se obriga, concomitantemente, a oferecer parâmetros ao julgador (“ardil ou qualquer outro meio…” ardil funciona como uma base interpretativa). Ao conceder a base interpretativa, o legislador estabelece um LIMITE ao juiz. O que não se pode fazer é partir-se direito para uma cláusula analógica, sem oferecimento de parâmetros interpretativos.
Parte 6
Violações da proibição de analogia na prática judiciária brasileira:
STJ - RHC 128.682: Caso de lesões corporais culposas; um médico desidioso ao cuidar de uma gestante, em vez de tratá-la com todos os cuidados, dispensou-a indicando um medicamento CONTRAINDICADO para aquele tipo de paciente, violando assim um dever objetivo de cuidado. Meses depois, nasceu o bebê portando uma deformidade precisamente em razão da utilização do medicamento indicado pelo médico. O delito imputado foi o de lesão corporal culposa (= lesar a integridade física de OUTREM). OUTREM é, necessariamente, uma pessoa. O FETO seria uma PESSOA? O STJ superou essa discussão e manteve a condenação do réu. É claro que as lesões corporais só foram percebidas quando a criança havia nascido, quando o feto já se transformara em PESSOA, em sentido jurídico. Mas o momento que interesse ao direito penal não é o momento que o resultado se revela, porque o direito penal proíbe AÇÕES. Portanto, há que se indagar: no momento em que o médico praticou a ação, havia uma PESSOA vítima do delito? Decerto que não! Havia, portanto, uma lacuna de punibilidade que ensejava a absolvição do médico, em homenagem ao princípio da legalidade, na modalidade da proibição de analogia.
Casos de duplicata simulada (art. 172 do CP): o tipo penal exige uma disparidade entre o que consta na duplicata e a mercadoria ou serviço prestado. E se a duplicata simulada não corresponder a NENHUMA mercadoria vendida ou a NENHUM serviço prestado? Não haveria, pois, DISPARIDADE entre as duplicatas. O próprio legislador exigiu, no plano da redação típica, a existência de uma disparidade entre uma duplicata e um serviço efetivamente prestado ou uma mercadoria efetivamente vendida. É claro que o conteúdo de injusto também se revela caso não haja NENHUMA mercadoria ou NENHUM serviço, mas não foi isso que o legislador disse no art. 172 do CP. Há, portanto, uma lacuna de punibilidade e a proibição de analogia quer evitar, justamente, que essa lacuna seja preenchida pelo juiz, em substituição ao legislador.
Casos de apropriação indébita (168 do CP): destina-se sobretudo a COISAS ALHEIAS MÓVEIS. Pode ser também objeto do crime a apropriação de VALORES ou NUMERÁRIOS que não existem no mundo externo, mas apenas no mundo virtual (exemplos: transferências bancárias, malversação de recursos do cliente pelo gerente do banco)? Decerto que pode haver apropriação, mas nesses casos exemplificados não se tratam de bens corpóreos. A jurisprudência não vê problema algum em condenar, por exemplo, advogados que malversam os valores que seus clientes receberiam. Nesses casos, novamente há uma lacuna de punibilidade, à medida que o legislador não previu um delito correlato ao de apropriação indébita, que é o de infidelidade patrimonial. A apropriação indébita inspirada nos modelos português e alemão refere-se, sim, apenas à coisa, a objetos corpóreos, que podem ser apropriados, que se podem ter em mãos. Paralelamente, os legisladores estrangeiros passaram a prever o delito de infidelidade patrimonial para tutelar não apenas a posse sobre objetos corpóreos, mas a globalidade do patrimônio de alguém, que se vê, em risco, precisamente por estar nas mãos de um terceiro.
Problemas da proibição da fundamentação ou da agravação da punibilidade pelo direito costumeiro:
O direito costumeiro é a existência ou surgimento de institutos jurídicos pela realidade prática do direito, e não pela atuação do legislador, institutos esses que passam a ser reconhecidos pela jurisprudência e/ou pela doutrina. Exemplo: o consentimento, que, a despeito da falta de previsão legal, reconhece-se o consentimento da vítima para exclusão da ilicitude. O direito costumeiro só pode participar da vida jurídica para limitar ou excluir a punibilidade dos sujeitos.
Proibição de retroatividade da lei penal:
Não se pode admitir que leis posteriores criem crimes ou cominem penas.
Essa proibição de retroatividade dirige-se eminentemente ao LEGISLADOR. Mas também se dirige à JURISPRUDÊNCIA? Alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao acusado também estão impedidas de retroagir?
A tendência atual é admitir que, em alguns casos, a alteração jurisprudencial adquire uma relevância tal que permite equipará-las a uma alteração legislativa, de modo que também a ela se aplicaria a proibição de retroatividade.
STF – 123.791: em obter dictum, o julgado diz que as alterações jurisprudenciais não poderiam retroagir, especificamente quanto a alteração de legitimidade para a propositura da ação penal nos casos de atentado violento ao pudor(antigo art. 225 do CP).
Para o Prof. Alaor Leite, há sim um grupo de casos em que a proibição de retroatividade também vige em relação a alterações jurisprudenciais. Isso se dá nos casos em que a jurisprudência posterior significa não só uma evolução de entendimento quanto a conceitos jurídicos abertos, mas também CONSTITUI UMA NOVA MODALIDADE DE INJUSTO PENAL. Nesses casos, há uma nova determinação do conteúdo de injusto de uma conduta anteriormente inexistente.
Exemplo: o princípio da insignificância para os crimes de descaminho; o STF definiu como marco para sua aplicação o valor mínimo para o ajuizamento das ações fiscais, que era de R$ 10 mil e depois passou a ser R$ 20 mil. Esse marco foi definido jurisprudencialmente e, especificamente, passou a beneficiar os réus. Se o caso fosse inverso (de redução do valor da insignificância), o Prof. entende que deveria incidir a proibição da retroatividade, protegendo o indivíduo quanto os efeitos negativos de alterações jurisprudenciais.

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