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O PAPA NEGRO

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1
 
 
O PAPA NEGRO 
 ERNESTO MEZZABOTTA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2
 
 
 
Estamos na parte mais rude e montanhosa da selvática província de Catalunha. 
A capital desta província, a rica e populosa Barcelona, é o centro de comércio, de literatura e de 
patriotismo, como não encontra segundo em nenhuma cidade da Europa; mas, mal saem as 
portas da cidade, acha-se a gente logo no reino do deserto, e principiam a encontrar-se os seus 
sombrios habitantes; -o mendigo e o salteador. 
Claro está que não falamos da Catalunha moderna, que não é inferior a nenhuma outra província 
de Espanha pela sua civilização adiantada e liberal. A ação do drama, que vamos narra passou-se 
há três séculos e meio, remontando ao terrível começo do século dezesseis, e aos princípios dessa 
luta religiosa, que deve fazer correr rios de sangue em toda a Europa. 
O dia caminhava para o seu termo; os últimos raios do astro luminoso douravam os cimos de 
Mont-Serrat, áspera montanha que se ergue para o céu a vinte e quatro milhas de Barcelona. 
O monte tem em catalão o nome de Serrat, do latim “Serratus”. Afirmam os etimologistas que os 
romanos deram aquele nome à montanha em razão dos seus flancos escarpados, que se 
assemelham aos dentes de uma serra, em latim “serra”. 
Como quer que seja, no princípio das conquistas dos Francos na Espanha, e, portanto, no tempo 
de Carlos Magno, alguns monges fundaram a meio da encosta um mosteiro, que se chame 
Abadia de Mont-Serrat. 
Este mosteiro foi sucessivamente enriquecido pelos condes de Barcelona e de Catalunha, pelos 
reis de Aragão e pelos reis de Espanha, à medida que os membros esparsos da nobre nação se 
reuniam para formar um só estado. 
É certo que alguns boatos, que corriam naquelas imediações, provavelmente espalhados por 
inimigos, punham um tanto em dúvida os sentimentos ortodoxos dos frades. Uns, acusavam-nos 
de terem conservado no fundo do coração os vestígios daquele ‘arianismo”, que, depois de ter 
sido a religião oficial dos visigodos, fôra afinal extirpado pela hipocrisia dos bispos e pela espada 
dos Francos. Outros, afirmavam que no temido convento tinham encontrado refúgio as idéias 
donatistas, que vieram da África, vizinha da Espanha — heresia que a Igreja destruiu a ferro e 
fogo, visto não poder vencê-la pela lógica dos argumentos. 
Por último, a versão que merecia mais crédito era a que afirmava que no convento de Mont-
Serrat se tinham refugiado os últimos Templários, ordem militar e religiosa fundada para 
defender o Santo Sepulcro, e que fora destruída por Felipe o Belo, rei de França, com o fim de se 
apropriar das suas imensas riquezas. 
Filipe o Belo tivera por cúmplice naquele sanguinolento roubo o papa Clemente VI, um francês 
que ele fizera eleger papa só para que o auxiliasse naquele saque; e o pontífice, para com mais 
segurança ferir os infelizes Templários, e os punir pela maior das suas culpas — qual era a de 
serem riquíssimos — acusara aqueles desgraçados de heresia. 
Os Templários foram saqueados, presos, assassinados, e o seu Grão Mestre, Jacques de Molay, 
foi queimado vivo; mas antes de morrer, o infeliz levantou para o céu as mãos inocentes, e 
suplicou a Deus que no período de um ano e um dia chamasse ao seu tribunal, para julgamento 
eterno, o papa e o rei. 
O Onipotente ouviu aquela prece, e no prazo fixado os dois cúmplices morreram. A morte de 
Filipe ocorreu em tais circunstâncias, que o povo julgou ver nela o sinal evidentíssimo da cólera 
de Deus. 
Andando um dia à caça, caiu do cavalo, e os dentes de um javali rasgaram as víceras do rei 
assassino. O papa morreu também no mesmo ano, e todos viram naquela dupla morte o castigo; 
haviam merecido os dois criminosos. 
 3
À morte de Jacques Molay e dos seus companheiros seguiu se uma perseguição geral contra os 
Templários, muitos dos quais se refugiaram nos países de que eram naturais, principalmente nas 
províncias italianas e espanholas. 
Alguns destes acharam refúgio entre os monges da abade de Mont-Serrat, já eivados, segundo se 
dizia, das mesmas heresias e tanto o papa, como os bispos de Carteia e da Catalunha estavam 
irritadíssimos contra aqueles frades, e muitas vezes tinham tentado suprimi-los. 
Mas os monges, já poderosos pela riqueza e pelos domínios eram poderosíssimos pela 
popularidade de que gozavam. Naqueles rochedos da Catalunha, país clássico das revoluções, 
ninguém atrevia a assaltar um mosteiro, que ao primeiro sinal se ver rodeado de milhares de 
“micheletti” de armas infalíveis. Por modo que, por vontade ou por força, os superiores da Igreja 
deixariam tranqüilos os frades de Mont-Serrat. 
E agora, que com esta breve digressão expusemos as conexões da Espanha e da Europa naqueles 
tempos, é ocasião de faz entrar em cena os principais personagens desta verídica história. 
CAPÍTULO II 
O PEREGRINO 
Um homem ainda novo, apesar de o rosto emagrecido mostrar ser ele mais idade do que 
realmente tinha, subia vagarosamente L encosta do monte. 
Era evidente que se dirigia para o mosteiro. 
Na ampla e cômoda estrada, que os frades tinham construído desde a falda do monte até à 
abadia, o peregrino encontrara no seu percurso bastante pessoas. 
A abadia era um lugar de peregrinação tão venerado e concorrido, que não era maravilha 
encontrarem-se naquele caminho muitos peregrinos a toda a hora do dia. 
E contudo, nenhum dos que encontravam aquele homem o saudava, nenhum lhe dirigia aquele 
cordial “Salve-o Deus!”, que >s espanhóis dirigem a toda a gente, que encontram nos caminhos, 
por mais humilde que seja a sua condição. 
Pelo contrário, todos os que encontravam o nosso personagem arredavam-se dele com visível 
expressão de terror. Dir-se-ia que obre aquele desventurado pesava uma maldição, cujos terríveis 
feitos todos procuravam evitar. 
Qual seria a razão por que aquele estranho personagem assim e via desacompanhado não só da 
simpatia, que reúne os amigos, nas até aquela espécie de piedade, que não é costume negar-se 
mesmo aos indiferentes? 
Decerto não era por causa da sua figura. O desconhecido era ima nobre e bela estatura, de 
membros bem proporcionados, pesar de emagrecido por longos jejuns. No modo como vestia o 
humilde hábito do peregrino adivinhava-se claramente o homem, que noutros tempos usara com 
soberba desenvoltura as nobres estes de cavaleiro. 
O nosso personagem coxeava um pouco da perna esquerda, nas decerto não era esse o motivo 
que causava tanta repugnância aos outros peregrinos, pois naqueles tempos de guerra 
encarniçada e incessante era mais para admirar ver-se um homem e sem defeitos, nem 
ferimentos, do que um estropiado, e a montanha de Mont-Serrat era decerto o lugar onde menos 
admiração e estranheza devia causar o encontro de um homem coxo. 
De fato, a estrada que conduzia à igreja do mosteiro esta cheia de coxos, de aleijados e de cegos, 
que diariamente se dirigi ali, a pedir à miraculosa imagem de Nossa Senhora de Mont-Serrat um 
alívio aos seus males. 
A causa do estranho efeito, que nos montanheses catai produzia a vista do peregrino, devia ser a 
singular expressão c este tinha no olhar. 
 4
E na verdade, ao passo que os traços da fisionomia do estrangeiro eram belos e regulares, 
respirando até certa nobre os olhos tinham um fulgor sinistro, um olhar penetrante e ameaçador, 
que gelava o sangue a quem o observava. 
Naquele olhar havia ao mesmo tempo a expressão de um juiz inexorável e de um condenado sem 
esperança. Ao fitá-lo, adivinhava-se naquele fogo sinistro, que lhe animava o olhar, uma 
severidade sem limites e uma série de tormentos sobre-humana infligidos sem piedade a um 
homem cuja duríssima têmpera de ânimo o tornava mais apto do que qualquer outro para sofrer. 
Dir-se-ia que era um condenado, ao qual um imperscrutáveldecreto de Deus tivesse feito sair 
dos horrendos abismos do inferno para vir julgar os outros pecadores, sem por isso ter obtido 
mínimo alívio para os seus próprios tormentos. 
No modo como ele olhava para todos aqueles enfermos de corpo e da alma era fácil descobrir a 
atroz tranqüilidade de um inquisidor, cujo máximo prazer seria meter nos horrendos cárceres, ou 
deitar às fogueiras, um povo inteiro, repetindo as horríveis palavras dirigidas pelo abade de 
Citeaux a Lavaur: 
— Matai, matai tudo: Deus saberá distinguir os que lhe são fiéis! 
Ao chegar perto do mosteiro, o desconhecido parou e pareceu orientar-se. Decerto o muro que 
ficava à esquerda da grande porta sofrerá alguma alteração, pois que passou e tornou a passar 
três ou quatro vezes naquele sítio, como se não pudesse acreditar que estava vendo. 
— A porta pequena era aqui, lembro-me bem — murmurava o peregrino. — Ter-me-ão os 
ferimentos perturbado a memória? Terão os meus irmãos dispersos abandonado a abadia, ou 
deixar-se-iam adormecer na antiga inquietação? 
E um suor frio inundou a fronte do desconhecido ao vir-lhe aquele pensamento, que 
evidentemente significaria para ele uma grande desgraça; mas, de repente, soltou um grito de 
alegria, descobrira, a poucos passos do lugar costumado, aquilo que procurava. 
Uma grande estrela de madeira dourada erguia-se sobre a arquitrave da pequena porta, que na 
verdade não parecia merecer tão belo ornamento. 
Aquela portinha, que teria escapado à observação de quem se colocasse diante da porta principal, 
— tão bem oculta estava pelos ornamentos e florões maciços da fachada — tinha toda a 
aparência de já não servir havia muito tempo. Uma espessa camada te pó cobria a porta, que em 
tempo fora pintada de verde. Aos cantos pendiam teias de aranha carregadas de pó, indício 
seguro de que aquela porta para ali estava esquecida e abandonada, sem servir havia muito. E 
contudo, se se observasse com alguma atenção, era fácil reconhecer que ali devia haver algum 
mistério; primeiro, porque toda aquela ostentação de abandono tinha em si mesma a prova da sua 
pouca sinceridade, e depois, porque, apesar de todas as precauções, as dobradiças estavam bem 
untadas e brilhavam ao sol. 
O peregrino esperou que o sol se tivesse escondido de todo e que na esplanada do mosteiro não 
houvesse ninguém; depois aproximou-se da pequena porta, e, ajoelhando no limiar, disse em 
verso: 
— Procurei a luz, encontrei as trevas. Bati e a porta estava fechada. Piedade para mim! 
A pequena porta girou sem ruído nos gonzos e deixou ver a entrada de um escuro corredor. O 
peregrino, sem mostrar a mínima surpresa por aquele fato, que decerto deixaria cheia de espanto 
outra qualquer pessoa, escoou-se pelo corredor, e a porta fechou-se-lhe imediatamente nas 
costas. 
O misterioso personagem deu dois ou três passos incertos, como quem não sabia o terreno que 
pisava, porque a mudança, que observara na porta, indicava que o lugar misterioso, que 
procurava, tinha sido mudado para outra parte do mosteiro. 
Mas pouco tempo durou a incerteza do viajante. 
 5
Sentiu apoiar-se-lhe com força nos ombros mão estranha, uma voz murmurar-lhe ao ouvido: 
— Sabes que o caminho que segues pode conduzir-te à morte. 
— Sou um chefe, — respondeu o desconhecido com um aceno de plena tranqüilidade. 
— Um chefe ?!... E que prova me apresentas tu para provar que o és? 
— Posso mostrar-te a imagem d’Aquele que foi, circunda pelas imagens dos homens. 
— A grande medalha! — exclamou a voz, em que se reconhecia um misto de espanto e respeito. 
— A grande medalha, a dos sete luminares da ordem! — replicou severamente o peregrino. 
Vamos, irmão, este caminhar nas trevas deve durar ainda muito tempo? 
— Isso acabou, mestre, — respondeu a voz do desconhecido Estes mistérios não se fizeram para 
quem conhece os outro: Brilhou então uma luz viva na extremidade do corredor, o peregrino 
caminhou com passo firme adiante do seu novo companheiro, que era uma espécie de monge, de 
cabeça coberta p um capuz, que apenas lhe deixava ver os olhos. 
Seguindo aquele corredor, os dois homens chegaram, p uma rampa quase insensível, ao centro de 
um subterrâneo, q correspondia ao altar-mor da igreja de Mont-Serrat. As numerosas grutas que 
havia na montanha, tinham facilitado aos frades o meio de tornarem impenetráveis os seus 
esconderijos. 
Em toda a volta da ampla sala, e ao longo das paredes, estavam sentados uns cinqüenta frades. 
Na frente daquele semicírculo elevava-se um estrado, onde estavam marcados os lugar 
correspondentes a sete cadeiras. Seis delas estavam ocupadas, sétima estava devoluta. 
Ao entrarem na sala o peregrino e o seu guia, todos se voltaram para a porta. Grande foi o 
espanto de todos ao verem que o desconhecido em vez de esperar humildemente à porta que lhe 
fosse concedido o ingresso, se dirigia diretamente, e sem a mínima hesitação, para a bancada dos 
senhores, evidentemente destinada ara os chefes da reunião. 
— Fora!. . . fora!. . . — gritavam de muitos lados. Alguns daqueles mascarados levantaram-se e 
chegaram a levar a mão ao copo das espadas, que se desenhavam rigidamente sob as túnicas 
negras; mas o peregrino, impávido como se todos aqueles protestos não fossem com ele, 
prosseguia no seu caminho, chegou ao estrado onde estavam sentados os chefes. Estes ergueram-
se, movidos por um impulso unânime, como para embargarem o passo ao recém-vindo. 
O peregrino parou; tirou do peito uma medalha e mostrou-a os seis. Um grito de espanto e 
alegria saiu daqueles seis peitos; depois com demonstrações inequívocas de respeito e afeição, 
conduziram o peregrino ao sétimo lugar, que estava vago. 
O personagem ocupou modestamente aquele lugar preeminente, como pessoa costumada às 
honras, e não pareceu comovido pelo triunfo, como não se mostrara impressionado pelas 
ameaças com que o tinham recebido. 
Pela multidão corriam vozes de surpresa e espanto. 
— O sétimo chefe! Aquele que nós julgávamos morto! 
— O mais audaz, o mais forte de todos! 
— Agora os Templários caminharão avante! O núcleo das nossas forças revigorou-se! 
Entretanto, um dos sete, o que estava no meio e que parecia por essa razão ter a presidência, 
levantou-se. Viu-se então um homem de nobre e majestosa estatura: uma comprida barba branca 
escapava-se-lhe por baixo do capuz, que o presidente levantara um pouco para falar. 
— Irmãos, — disse ele — as portas estão bem guardadas?. . . Um anjo do extermínio vela a cada 
uma delas?... 
— Sim — responderam das quatro portas da sala quatro homens, que, de espada na mão, 
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guardavam as entradas. 
— Somos nós todos irmãos ?. . . Há entre nós algum desconhecido, algum de quem o sagrado 
nomeador não saiba o nome? Poderemos nós ter receio de sermos traídos ?. . . 
Um dos frades levantou-se e caminhou até meio da sala. 
— A todos conheço e afianço, — disse ele — exceto ao desconhecido, que está sentado ao teu 
lado. 
O velho ergueu a mão, como para dizer que sabia do que tratava, e prosseguiu assim: 
— Se entre nós há algum tímido ou medroso; se aqui alguém, que não tenha a coragem de 
assistir aos terríveis mistérios da nossa ordem, esse que jure guardar silêncio e que retire. Mais 
tarde não lhe seria isso permitido, e a covardia e a traição seriam punidas com a morte. 
Ninguém se moveu. Todos os indivíduos ali reunidos eram homens de rija tempera e de fé 
inquebrantável, que já cem vezes tinham ouvido aquela advertência, sem que lhes estremecesse 
os corações de bronze. 
— Agora, que estamos aqui todos experimentados e invencíveis na nossa fé, — concluiu ele — é 
tempo de descobrir os rostos e do nos vermos abertamente. Senhores, está aberta a sessão dos 
Cavaleiros Templários!. . . 
 
CAPÍTULO III 
A ASSEMBLÉIA DOS TEMPLÁRIOS 
A um sinal do ancião os capuzes e as túnicas desapareceram como por encanto. 
Viram-se então naquelasala homens de várias idades, de fisionomias diversas, mas todos 
uniformemente cobertos de reluzente aço. Vestiam todos a armadura completa dos cavaleiros da 
Idade Média, tendo sôbre-vestida uma túnica. Na couraça de cada um brilhava a cruz de ouro, 
distintivo da ordem do Templo. 
Eram aqueles, com efeito, os restos da poderosa associação, que fizera tremer a Europa, e que, na 
opinião do vulgo, fora destruída havia dois séculos. O que era, porém, verdade era que, com 
aquela força invencível, que provém do segredo e das riquezas, os Templários se tinham 
perpetuado obscuramente através dos séculos, vencendo perigos inauditos, conservando e 
guardando o segredo em meio dos tormentos, com os olhos sempre postos num futuro, que, por 
muito distante, teria feito desanimar qualquer outro, mas que não conseguia desanimar aqueles 
homens de ferro. Reunidos, estavam sem máscara; conheciam-se todos e sabiam quais eram as 
qualidades e o poder de cada um. Quase todos usavam na sociedade um nome aclamado e 
respeitado; muitos deles, quer pelo talento, quer pela espada, ocupavam nas cortes dos reis da 
Europa posições distintíssimas. 
E por isso as forças daqueles trabalhadores da sombra iam-se estendendo cada vez mais, e os 
chefes aguardavam com um frêmito de esperança o momento em que a sua ordem, convertida em 
soberana, poderia retomar à face da Europa e do mundo o lugar que lhe competia. 
O nomeador, espécie de secretário que tinha os registros, principiou a chamada: 
— Barão de Beaumanoir! 
— Presente!. . . — respondeu o ancião, que presidia à assembléia, erguendo-se. 
O nome de Beaumanoir, ilustre entre todos na história dos Templários e na da França, era altiva 
e nobremente usado pelo célebre guerreiro, cuja reputação era imensa nos exércitos franceses. 
— Percy de Sussex!... — prosseguiu o nomeador. 
O conde britânico levantou-se, e todos admiraram a sua estatura gigantesca e a altivez da sua 
 7
fisionomia leal. 
— Pedro Calderon!. . . 
— Francisco Burlamacchi!. . . 
— Ulrico Zuinglio!. . . 
— Guarniero de Hatzing!. . . 
Todos respondiam à chamada, à medida que iam sendo pronunciados os nomes. Aqueles 
representantes das diversas nações da Europa apresentavam nas fisionomias a diferença que 
havia nas suas origens. 
Assim, a barba farta e áspera de Calderon, o seu rosto anguloso e ossudo, contrastavam com o 
rosto quase infantil e cheio de indizível doçura de Francisco Burlamacchi; e Zuinglio, o 
reformador suíço, que mais tarde devia sucumbir na batalha contra os católicos, homem de 
aspecto severo, pálido, de poucas palavras estava em absoluta oposição com o barão de Hatzing, 
cujas face rosadas e cabelos louros davam imediatamente a conhecer um saxão, ainda ao 
observador menos perspicaz. 
— Inácio de Loiola!... — chamou, por último, o nomeador. 
— Presente! — respondeu com voz solene o peregrino, que fora o último a chegar. 
Os seis chefes voltaram então o olhar para o lado daquele seu companheiro, e parece que só 
então repararam que ele era o único que se apresentava com as vestes andrajosas no meio da-
quela fúlgida reunião, em que todos estavam com as suas brilhantes armaduras. 
— Irmão — disse Beaumanoir, com acento de afetuosa deferência — irmão, o teu disfarce, agora 
que estás conosco, já de nada serve. Desde o dia em que nos deixaste, faz agora três anos, que 
nós conservamos com reverente afeto a esplêndida armadura, que para ti foi cinzelada pelo 
melhor artista de Toledo. Irmãos escudeiros, trazei a armadura, e vesti-a ao senhor de Loiola. 
Dois dos irmãos levantaram-se e iam a encaminhar-se para uma das portas da sala, quando Inácio 
os deteve com um gesto, dizendo: 
— É inútil. Estes andrajos, que trago vestidos, já não são indícios de pobreza; mas um voto, que 
fiz, me obriga a trazê-los. 
— Apesar disso, irmão Loiola. . . 
— Apesar disso, irmão Beaumanoir, os estatutos da nossa ordem conferem a qualquer irmão o 
direito de se vincular por qualquer voto, contanto que este não seja contrário ao fim supremo da 
associação. 
O tom em que Loiola pronunciara aquelas palavras era tal que não se podia insistir, a menos que 
não se quisesse entrar em questão com o estranho Templário; por isso, Beaumanoir fez um sinal 
e o nomeador continuou a chamada. 
Debaixo daquelas abóbodas ressoaram então os nomes mais ilustres da Europa, já pela nobreza 
de sangue, já pelo alto valor nas artes, nas ciências, nas armas e no governo. Estava ali um 
senado capaz de reger o mundo inteiro sem custo algum!. . . um senado do qual um dos chefes 
era Inácio de Loiola, o gênio mais potente de organização, que aparecera no mundo antes de 
Bonaparte!. . . 
Terminada aquela operação preliminar da chamada, Beaumanoir levantou-se outra vez. 
— Irmãos — disse ele — mais de duzentas vezes nos temos aqui encontrado juntos, nesta 
reunião anual, desde que os dois malditos — o papa Clemente Sexto e o rei Filipe o Belo — dis-
persaram os nossos irmãos e tentaram destruir a nossa ordem. Eu, pela minha parte, já umas 
quarenta vezes tomei lugar nestas reuniões, porque há quarenta anos que pertenço a esta associa-
ção, para a qual entrei por morte de meu pai. Todos os que tomavam parte no conselho, no dia 
em que recebi a medalha de simples cavaleiro, já hoje são mortos; só eu ainda vivo, e sou o mais 
 8
velho desta assembléia, da qual então era o mais novo. 
Senhores, todos vós sois valorosos e fortes; mas aqueles que ao meu lado se sentaram no banco 
dos chefes, aqueles que partilharam comigo as esperanças e as agonias de quarenta ano: de luta, 
eram igualmente valorosos e grandes, e o trabalho dele: não foi infrutífero para a nossa ordem. 
Havia entre eles muito ilustres! 
E o ancião deixou descair a cabeça para o peito, oprimido por uma recordação dolorosa. 
Bem depressa, porém, a ergueu, percorrendo com um olhar cintilante de vigor e energia toda a 
assembléia. 
— Irmãos! — disse Beaumanoir com uma voz potente que se repercutiu por sob as abóbadas do 
antigo mosteiro — irmãos!. . . Se os prognósticos não mentem, se as promessas dos antigos e os 
preceitos da experiência não são vãos, está próximo o grande dia da vitória. Irmãos, a ordem do 
Templo vai ressurgir. 
Um murmúrio de alegria percorreu toda a assembléia: se Inácio de Loiola é que desfranziu os 
lábios num sorriso duma expressão indubitavelmente sarcástica; mas aquela nota discordante 
passou despercebida em meio do entusiasmo geral. 
— Sim, irmãos — prosseguiu o ancião com irresistível autoridade, — as duas potências, que 
oprimiam a nossa ordem — o papado e a monarquia — estão em vésperas da sua queda. Desta 
vez a luz veio do Norte: enquanto a Espanha indômita e a sapiente Itália jaziam na opressão, um 
tedesco ergueu a voz, e a Igreja de Roma e o trono dos reis estremeceram nos seus alicerces... 
Irmãos, posso assegurar-vo-los a queda dos ímpios está próxima; o reinado dos eleitos de Deus 
aproxima-se!... 
— E tens disso indícios certos?. . . — perguntou altivamente um dos assistentes. 
— Indícios certíssimos, príncipe de Conde; e tu bem o sabes, tu, que no íntimo da tua alma 
saúdas a nova religião, e que já te terias declarado francamente luterano, se não to impedisse o 
receio que tens de perder a tua posição de príncipe e os teus imensos bens. 
Conde corou, e o presidente continuou assim: 
— A Alemanha está em chamas; o corajoso Lutero ensinou aos povos o desprezo por todas as 
autoridades injustas, quer elas tenham na cabeça uma mitra, quer um elmo. O incêndio lavra 
por toda a parte. A Suíça, a Inglaterra, a França, a Itália, escutam com avidez os apóstolos das 
novas idéias. O poder pontifício está por toda a parte cercado de homens que, às ocultas o 
minam, o atacam, e que hão-de com certeza destruí-lo. Irmãos, nós, que somos os Senhores do 
Templo; nós, que temos amigos e partidários por toda a parte; nós, que possuímos os tesouros ar-
rancados pelos nossosantepassados à cúbica de Filipe o Belo e multiplicados até o infinito no 
decurso de séculos, unamo-nos todos, e, auxiliando a grande obra de Martim Lutero, destruamos 
a Igreja e das suas ruínas façamos ressurgir a ordem dos Templários! 
— Apoiado!. . . apoiado!. . . — gritaram de todos os lados. 
Um dos irmãos levantou-se: 
— Tens tu — disse ele — tens tu, venerável príncipe, um plano pronto para a execução da 
empresa? 
— Tenho um plano, não meu, mas estudado e pensado conjuntamente com os meus colegas — 
respondeu o presidente. — Não esqueçais, irmãos, que depois da desgraça de Jacques de Molay, 
a nossa ordem não admitiu mais nenhum mestre; delegou todos os poderes no conselho dos sete 
Senhores, o mais velho dos quais será o presidente, e, pelo triste privilégio da idade, é a mim que 
presentemente cabe esse lugar. Mas eu e os meus companheiros de grau, exceto o irmão Inácio 
de Loiola, que estava ausente, tínhamos combinado alguns capítulos, que vos vão ser lidos. 
O ancião tirou do seio algumas folhas de pergaminho: fez-se um profundo silêncio, pois que 
 9
todos os Templários tinham a mais profunda veneração pelo senhor de Beaumanoir, e além disso 
tinham jurado a obediência mais absoluta ao conselho dos sete senhores. 
Beaumanoir leu: 
“A assembléia constituída por cavaleiros, padres, vassalos, plebeus e escravos, para libertar a 
humanidade das cadeias dos padres e dos soberanos, compõe-se de três classes”. 
“A primeira classe compreende os que se associam a esta obra com pureza de coração, e têm 
intenção de se instruir nos mistérios da ordem. Estes deverão durante três anos estudar os meios 
de se realizar o fim externo da associação, e dividir-se-á em dois ramos — aprendizes e mestres.” 
“A segunda classe compreenderá os irmãos que do estado de ensino tiverem chegado ao estado 
de operar. Estes terão a seu cargo executar no mundo dos profanos o que tiver sido deliberado ou 
resolvido pelo supremo conselho; terão sob as suas ordens os aprendizes e mestres, e serão 
iniciados nos segundos mistérios da ordem, que dizem ao fim político e às reformas a obter.” 
“A terceira classe, finalmente, compor-se-á de um número limitadíssimo de pessoas, que serão 
iniciadas nos terceiros mistérios. Estes iniciados supremos conhecerão as forças da ordem o seu 
fim principal, os tesouros de que pode dispor; serão de: ligados de todos os laços, exceto dos que 
dizem respeito à ordem e, conjuntamente com o Grão Mestre, governarão a terceira classe de 
associados.” 
“Nenhum poderá ser promovido à classe superior sem ter completado pelo menos três anos na 
classe inferior. O Grão Mestre será eleito entre os dignitários da classe suprema.” 
“A ordem, aliada a todos os apóstolos da razão, sustentar uma luta de morte contra a Igreja e os 
tiranos, e não considerar cumprido o seu fim senão quando a liberdade do homem e d; 
consciência forem absolutamente reconhecidas”. 
O presidente terminara a leitura. Os senhores que o rodeavam, e que, à exceção de Loiola, 
tinham tomado parte na redação daquele programa, conservavam-se impassíveis. 
Não acontecia o mesmo com os outros associados, que, salvo raras exceções, mostravam 
verdadeiro entusiasmo. Na verdade, aquelas normas claras, simples, com um fim determinado, 
eram já de per si um poderoso meio de propaganda. A divisão em classes permitia utilizar as 
faculdades de cada um, segundo os melhores interesses da ordem; ao passo que a possibilidade 
de passagem de um grau para outro abria um vasto horizonte à; mais nobres ambições, e destruía 
a disposição aristocrática, tão prejudicial a qualquer corporação instituída para governar os 
homens. 
Todavia, houve um dos irmãos que se levantou: era este um nobre holandês, que vinha procurar, 
no meio dos Templários aliados para o seu país, que se preparava para se insurgir contra a 
Espanha. 
— Devemos então procurar por toda a parte filiados para a nossa ordem? — disse ele. — 
Devemos abrir as fileiras da nossa instituição, até agora tão zelosamente recusadas, a todos 
aqueles que nos parecerem aptos para nos auxiliarem na empresa? 
— Sem dúvida — respondeu com certa altivez o presidente — e parece-me que todos os poderão 
aceitar, desde que não tem dúvida em o fazer o senhor de Beaumanoir, que é tão nobre como o 
rei de França! 
— Oh! não foi como censura ou queixa que eu disse isto, — apressou-se a declarar o holandês. 
— O que eu queria fazer sentir era que o nome da nossa antiga ordem, o sagrado nome do 
Templo, soaria mal aos ouvidos de um povo, que nos esqueceu, ou que só se lembra de nós pelas 
vis calúnias que os inimigos do Templo espalham contra nós. Por isso, entendo que na nova or-
ganização do Templo é necessário que mudemos de nome. 
— Irmão — disse afetuosamente o senhor de Beaumanoir — o que propões já foi pensado pelos 
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Sete Senhores, que acharam que isso era razoável e sensato. O antigo Templo desmoronou-se; 
mas nós trabalharemos para edificar outro, e sem dúvida o havemos de conseguir. A obra, que 
empreendemos, é uma obra de reedificação; somos os pedreiros da humanidade. Temos, pois, 
deliberado chamar-nos Pedreiros Livres. 
— Apoiado! — gritou quase unânime a assembléia, na qual a voz do príncipe de Conde ressoava 
não menos entusiástica do que a dos outros filiados. 
— Então — disse Beaumanoir, erguendo-se — a assembléia aprova as deliberações dos Sete 
Senhores? Então sois unânimes em aprovar esta transformação, que deve por a nossa ordem a par 
dos maiores potentados da terra? 
— Sim! sim — gritaram muitíssimas vozes. 
Mas uma voz potente dominou aquele tumulto e proferiu estas palavras: 
— Oponho-me eu! 
— Quem? — perguntaram ameaçadoramente alguns associados, mais excitados do que os 
outros. 
— Eu — trovejou o peregrino, levantando-se majestoso impotente, apesar da miséria dos seus 
andrajos. — Eu, um dos Sete Senhores! Eu, Inácio de Loiola! 
Um longo frêmito de surpresa percorreu toda aquela multidão. Oito ou dez fidalgos, quase todos 
espanhóis, aproximaram-se de Loiola, prontos a defenderem-no fazendo dos seus corpos um 
escudo, se as disposições hostis da assembléia aumentassem. 
Mas Beaumanoir com um gesto restabeleceu o silêncio na sala. Depois, voltando-se para Inácio 
de Loiola, perguntou com brandura: 
— Irmão, então tu és partidário da consagração do estado atual?. . . E és precisamente tu, o mais 
audaz e empreendedor de todos nós, aqueles que nós teríamos escolhido para chefe supremo se 
os nossos estatutos nos consentissem ter um chefe. . . és tu precisamente que te opões aos nossos 
planos de reforma e sustenta as antigas ordens? 
— Pelo contrário — disse Inácio de Loiola — eu desejo um transformação muito mais vasta e 
completa do que a vossa; mas quero que ela se faça com outra inteligência, e segundo um plano 
já preparado e escrito por mim. 
— E porque é que, segundo os nossos usos, não falaste dessa tuas intenções no Conselho dos 
Sete Senhores? Ter-te-iamos escutado com afeto de irmãos, e teríamos procurado satisfazer o 
teus justos desejos. 
— Tinha a certeza de que havíeis de fazer-me oposição, e por isso resolvi dirigir-me diretamente 
à assembléia. Estou no meu direito; pelo nosso estatuto os Sete Senhores são todos iguais entre 
si, e a preeminência concedida ao mais velho é de honra, mas não de autoridade. 
— Fala, então — disse Beaumanoir. — Conhecemos os teus direitos e respeitá-lo-emos; mas 
lembra-te também dos teus deveres, Inácio de Loiola, porque senão. . . 
O peregrino respondeu com um gesto altivo àquelas ameaçadoras palavras. Fez-se um grande 
silêncio na assembléia; os espanhóis amigos de Loiola chegaram-se ainda mais para os Senhores 
para ouvirem e defenderem o seu amigo. 
Inácio de Loiola tirou de sob o hábito algumas cartas manuscritas, pos-se em pé e começou: 
CAPÍTULO IV 
INÁCIO DE LOIOLA 
“Irmãos! Bem sabeis qual a razão que me obrigou a abandonaro capítulo do Templo. Meu 
primo, Antônio Manriquez, duque de Najare e grande de Espanha, tinha-me chamado para ir 
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servir sob a sua bandeira. Os meus sete irmãos já me tinham precedido na carreira das armas, e 
eu, tinha completado os meus vinte anos, considerar-me-ia vil e desonrado se hesitasse um 
momento; por isso, corri a alistar-me no número dos defensores de Pamplona. 
“Segundo as condições do tratado de Noyon, aquela fortaleza devia ser restituída à França; mas o 
nosso glorioso rei Carlos V, por ofensas que tinha recebido do rei de França, resolveu puni-lo 
conservando aquela praça. Foi-me confiado o comando da praça, quando em 1521 André de Foix 
a atacou à frente das tropas francesas.” 
“Tomada a cidade pelas forças superiores dos inimigos, fechei-me na cidadela da fortaleza, 
decidido a resistir até ao fim, e assim o fiz; mas quando de espada em punho defendia a brecha, 
fui ferido por uma pedrada numa perna. Caí sem sentidos, e quando os recuperei a fortaleza e eu 
tínhamos caído em poder dos franceses. “Fui tratado com singular cortesia por aqueles 
guerreiros, acostumados a apreciar a valentia dos inimigos. Curei-me, e por ordem do senhor de 
Foix fui transportado para o meu palácio paterno, na Biscaia. Ali tive de permanecer longo 
tempo, porque o meu ferimento tinha sido tão mal curado, que foi necessário tornarem-me a 
desmanchar a perna para a arranjar de novo. 
“Perdoai-me, meus irmãos, se vos roubo o tempo, falando-vos destes miseráveis tormentos que 
sofri, mas preciso dizer-vos tudo para vos poder explicar a maneira miraculosa por que se 
efetuou a mudança da minha alma. 
“Eu tinha, como vós bem sabeis, todos os predicados para ser um cavaleiro belo e elegante. 
Imaginai por isso como eu ficaria quando soube que aquele ferimento me condenava a ficar coxo 
para toda a vida!. . . Adeus esplendor do vestuário, pompas daí pedrarias, amor das damas!. . . 
Adeus, volteios rápidos da dança e todas as alegrias que o prestígio da beleza proporciona aos 
homens !. .. 
“Podeis crer, meus irmãos, que nenhum suplício humano se poderia equiparar ao que eu sofri 
quando me falaram daquela desgraça, que agora considero como uma bênção do céu. . .” 
“Pareceu-me que a causa do mal era um osso da perna que se me tinha deslocado, e por isso quis 
que mo tirassem, e apesar das dores atrozes que isso me causou, consenti que os médicos mo ser-
rassem. Pois vendo que apesar de tudo uma perna me ficara mais curta do que a outra, submeti-
me a outro tormento ainda mais horrível: apliquei à perna mais curta um aparelho que a cada 
instante lhe imprimia um esticamento, que me causava dores atrozes. Os ossos estalavam, as 
dores faziam-me emperlar um suor frio à raiz dos cabelos, mas tudo foi inútil: — fiquei coxo.” 
“Durante a minha doença, quis o Senhor que me viesse o desejo de ler, e pedi que me trouxessem 
romances de cavalaria. A Providência determinou que em vez desses livros me viessem às mãos 
a “Vida de Jesus Cristo” e “Fios Sanctorum”. Li-os, ao princípio com repugnância, depois com 
prazer e afinal com entusiasmo. Quando a minha perna estava curada, bem outro era também o 
estado do meu espírito: eu já não era um galanteador vaidoso, um soldado sanguinário. — Era 
um cristão”. 
Aquela narrativa, que hoje em dia enfastiaria soberanamente qualquer auditório, por menos 
ilustrado que fosse, era, pelo contrário, escutada por aquela assembléia com uma atenção sincera 
e quase febril. 
Com efeito, naquele tempo ninguém olhava com indiferença as coisas da religião. O grande 
movimento, que se produzira na Alemanha, suprimira os indiferentes e dividira-os todos em duas 
classes bem distintas: uma, que era constituída pelos que respeitavam e obedeciam à Igreja 
romana, confessando-se seus campeões; outra, que era formada pelos que se apresentavam para 
abalar as bases do edifício do pontificado, fazendo ruir com ele todas as velhas instituições que 
tinham o apoio e consagração da Igreja. 
Ser indiferente naqueles tempos aos assuntos religiosos seria tão impossível como nos ditosos 
dias de 1848 conservar-se estranho aos movimentos políticos. Era preciso tomar-se parte 
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naqueles ou nestes; ser por Lutero ou por Clemente, pela autoridade eclesiástica, ou pela 
liberdade do pensamento. 
De uma e outra parte, a fé estava de tal modo sobre-excitada, que nenhuma força humana poderia 
impedir que as discussões fossem tempestuosas, violentas e irreprimíveis. Como acontecera nos 
primeiros tempos do Cristianismo, o apostolado fazia-se à custa do martírio. Paris, Madrid, 
Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra perseguiam e destruíam os católicos. 
E por isso aquela narrativa ascética de Loiola correspondia tão exatamente às preocupações da 
ocasião, às agonias daquelas mudanças constantes, que todos seguiam a manifestação daquele 
sentimento religioso com o mesmo interesse que hoje despertaria o mais comovente drama de 
ambições ou de amor. 
— Continua!. . . continua!. . . — gritaram de todos os lados. Inácio de Loiola sentia que todos os 
olhares o fitavam com viva atenção; e a única paixão que o dominava — a de se impor aos 
outros, quer fosse pela admiração quer pelo medo, — achava-se assim completamente satisfeita 
nele. 
Aquele convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era sempre o arcanjo 
fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu, vencido mas não abatido pelo raio 
de Deus: a sua ambição, assim tão duramente desviada dos esplendores mundanos, tinha mudado 
de direção, mas nem por isso tinha diminuído. 
— “Quando eu senti que a graça divina despertava em mim os sentimentos adormecidos, — 
prosseguiu com voz mais segura o peregrino — voltei-me para a Virgem, e diante do altar dela 
fiz voto de castidade. Depois resolvi fazer a vigília de armas, que tem de fazer todo o cavaleiro, 
antes que possa cingir o sagrado cinto da ordem.” 
“Uma noite inteira passei diante do altar, orando, chorando, consagrando-me todo à milícia de 
Cristo. No dia seguinte pendurei a minha espada num pilar da igreja, dei a um pobre os meus 
trajes de cavaleiro, cingi o corpo com uma corda, vesti-me de burel, e dirigi-me a pé para 
Manresa.” 
“Que mais vos direi, meus irmãos ? Amparado por uma fé sobre-humana, castiguei o corpo com 
mil penas e tormentos; infligi-me as mais cruéis privações, sem que nada pudesse alterar a minha 
saúde de ferro. Cingi os rins de cilícios; dormi na terra fria, mendiguei de porta em porta, e 
julgava-me feliz quando recebia mau tratos ou injúrias, que vinham aumentar o valor da minha 
expiação. 
“Finalmente, a seiscentos passos de Manresa encontrei uma gruta oculta a todos os olhares. Foi 
essa que eu escolhi para minha habitação; aí recebi os tormentos e as privações como um favor 
do céu; aí experimentei as doçuras do êxtase divino e o languor da morte aparente. Enfim, meus 
irmãos, foi aí que... 
Neste ponto Inácio fez uma pausa, como quem se assustava que ia dizer. 
— Fala, fala! — gritaram de todos os lados. 
“Pois bem — prosseguiu o peregrino, fazendo um grande forço, — foi aí que me apareceram os 
anjos do Senhor e que ensinaram a maneira de guiar os homens e de os conduzir à fé obediência, 
ao caminho do céu. Os preceitos que eles me ensinaram, meus irmãos, escrevi-os, e tenho-os 
aqui, — e Loiola mostrou folhas que tinha ao lado. — Com estes “Exercícios espirituais”, 
escrevi enquanto os anjos mos ditavam, encontrei o modo de reduzir à submissão as almas mais 
rebeldes, e de fazer com que elas sejam nas mãos do seu diretor espiritual como um cadáver nas 
mãos do cirurgião. 
Estas palavras resumiam em si a terrível doutrina da Companhia de Jesus, que Inácio de Loiola 
devia fundar. “Perinde ac cadaver” — como um cadáver — tal é a forma de obediência impo aos 
jesuítas. 
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A atenção geral, que despertara a narrativa de Loiola, fizera com que todos se calassem; contudo,Francisco de Burlamacchi, c havia já um pedaço se agitava com impaciência, levantou-se para 
interromper a piedosa narrativa de Inácio. 
— Irmão, — disse ele — essas tuas visões serão talvez enviadas das pelo céu, tanto mais que 
muitas vezes tem permitido que anjos do inferno venham tentar os homens, especialmente os que 
mais presumem da própria santidade; mas eu só te peço que me diga que conclusões te inspirou 
essa tua devota solidão, com a qual há tanto tempo estás entretendo a ordem dos Templários. 
A palavra audaz e franca do jovem italiano parece que quebrou o encanto que fazia com que 
todos os presentes estivessem suspensos dos lábios de Loiola. Muitos dos que assistiam à reunião 
repetiram as palavras de Burlamacchi, observando que a ordem do Templo não fora convocada 
com tanta solenidade para ouvir os devaneios de um visionário. 
Inácio dirigiu a Burlamacchi um olhar carregado de indignação. Aquele homem, que dizia ter-se 
despojado, mediante o ascetismo, de todas as fraquezas humanas, conservava ainda duas paixões 
invencíveis, e que não são decerto o apanágio das almas fortes — a vaidade e o espírito de 
vingança. 
— Depressa chego à conclusão, irmãos — disse Loiola, depois de um curto silêncio. — Sim; eu 
vim aqui com um propósito formado; é verdade que também eu desejo a transformação da nossa 
ordem, mas num sentido muito diverso do que propõe o nosso querido irmão Beaumanoir!. . . 
Também eu, meus irmãos, tenho notado o tumulto de idéias e o espírito de rebelião, que agitam a 
Europa, e especialmente a Alemanha e a Itália, e vim aqui precisamente para vos dizer: Este 
espírito de rebelião devemos nós abatê-lo, em vez de o favorecer! A ordem dos Templários — 
exclamou Loiola — deve transformar-se, não na associação dos Pedreiros Livres, mas na 
Companhia de Jesus!. . . 
Estas palavras produziram um tumulto espantoso. A maior parte dos cavaleiros, indignados com 
aquela proposta, vociferavam contra Inácio, levando a mão ao punho das espadas; outros, pelo 
contrário, e esses em menor número e quase todos espanhóis, sustentavam que se devia escutar o 
orador e discutir as suas propostas, porque nada continham por que assim devessem ser repelidas 
brutalmente. 
Parecia próximo o momento em que as duas facções viriam às mãos; mas naquele ponto ressoou 
sobranceira a todos os clamores a voz potente de Beaumanoir. 
— Irmãos, — bradou ele — Inácio de Loiola tem o direito de falar, como vós tendes o direito de 
combater as suas propostas. Silêncio !. .. e tu, Loiola, fala, com certeza de que ninguém se 
atreverá a interromper-te!... 
O silêncio restabeleceu-se como por encanto, tal era a influência de veneração e respeito que 
sobre todos exercia o nome de Beaumanoir. 
Loiola vira desencadear-se e em seguida serenar o tumulto, se que nas suas faces pálidas e cor de 
terra se notasse a mais pequena alteração; apenas um pálido sorriso lhe errava nos delgados 
lábios. 
.— Dizia eu, pois, — prosseguiu ele como se nada tivesse notado, — dizia eu que considero 
como um dever opormo-nos ao desenvolvimento da heresia. . . Irmãos, qual é o fim da nossa 
Ordem - o restabelecimento do seu antigo poder, o seu domínio em todo o mundo. Ora, esse 
domínio será impossível, se quisermos exercê-lo entre os povos do norte, que se revoltam contra 
toda a autoridade Se quisermos fundar um imenso poder oculto, devemos operar entre as nações 
católicas, e conservar nelas aquela fé invencível à que basta dizer: Crê e obedece, — para que 
desapareça toda a oposição. 
“Unir-nos-emos em volta do sólido pontifício, como os pretorianos do antigo império, e 
defenderemos, alargaremos o poder do Papa, que depois será o nosso poder, porque o chefe da 
Igreja ser sem dar por isso, o nosso prisioneiro. . . 
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“Ensinaremos aos povos que eles devem obedecer com submissão e medo aos seus soberanos, e 
prestaremos aos reis este apoio obrigando-os a governar segundo a vontade e os fins da nossa 
Companhia. Por meio dos colégios dominaremos a mocidade, por meio dos confessionários 
dominaremos as consciências; os penitentes, aterrados pelo rigor fanático dos Dominicanos e dos 
Franciscanos, acorrerão ao nosso tribunal de penitência, onde a moral será suave, perdão fácil, e 
o juiz indulgente. . . Irmãos, escutai-me: por este modo, se consentirdes em transformar a nossa 
Ordem no sentido que vos peço, dentro de vinte anos — não é preciso mais — nos seremos os 
senhores do mundo! 
— E teus escravos, não é assim ?. . . — perguntou em tom desdenhoso Burlamacchi. 
Esta interrupção produziu um sussurro, o qual, graças à presença de Beaumanoir, não degenerou 
em tumulto. A maior parte de Templários pôs-se do lado de Burlamacchi; alguns, poucos, mas 
decididos partidários, rodearam Inácio de Loiola. 
— Irmãos, — bradou Francisco Burlamacchi — acabais de ou vir a proposta que vos foi feita: — 
A escravidão da humanidade e nós convertidos em guardas desses escravos, e todos de joelhos 
diante de um chefe supremo, de um chefe misterioso, que do fundo de uma cela monacal, 
imporia as suas vontades. E é para isto que a Ordem há de levantar-se? E é para isso que nós 
havemos de vencer os potentados da terra? E foi para isto que destruímos nos nossos espíritos as 
superstições e a ignorância? Só nós, de toda a infinita multidão dos nossos irmãos espalhados 
pelo mundo, só nós é que fomos iniciados nos terceiros mistérios; só nós que conhecemos a 
verdade de tudo isso, que o mundo adora e teme; graças à ciência que adquirimos, graças às 
misteriosas tradições, confiados à guarda dos sete senhores, graças aos imensos tesouros que 
possuímos, somos os únicos dentre os nossos irmãos, os únicos dentre os mortais, que não 
estamos sujeitos a nenhuma lei, a não ser à da morte. E havemos de ter-nos assim elevado tanto, 
como miraculosa força, acima do comum dos homens, para afinal ficarmos reduzidos a obedecer 
como cadáveres ao sinal de um só de nós?. . . 
Um murmúrio de aprovação acolheu as animadas e quentes palavras do nobre Burlamacchi. Na 
verdade era intolerável a pretensão de Loiola!. .. 
— Eia, pois; — prosseguiu Burlamacchi — levantemo-nos, sim, mas para despedaçar os nossos 
grilhões, e os de todo o mundo! Temos em nossas mãos uma força incalculável; aproveitemo-la e 
façamos uso dela contra os tiranos de toda a espécie. Os povos nos darão por tal serviço bem 
melhor recompensa do que o sombrio silêncio e a tenebrosa humildade do túmulo! Nós 
constituiremos na Europa a grande, a verdadeira aristocracia — a do bem-fazer. Será dentre nós 
que as cidades liberais e as nações ressuscitadas hão de eleger os seus regentes; nós reinaremos, 
não com as forças efêmeras do embrutecimento e da ignorância, mas com as do reconhecimento 
e do afeto. 
“Irmãos! Em nome da fé que depositaste em nós, elegendo-nos para este supremo cargo, 
convido-vos a rejeitar as propostas de Inácio de Loiola, e a proclamar aqui, nesta nossa santa 
assembléia, que a ordem do Templo se transforma na sociedade secreta dos Pedreiros Livres! 
— Viva a Maçonaria! — gritou o príncipe de Conde, saudando com este nome francês, tradução 
da denominação proposta por Burlamacchi, a origem de uma sociedade, que depois havia de ter 
tanta influência sobre os destinos do mundo. 
Quase todos os presentes repetiram o grito de Conde e saudaram e aclamaram Burlamacchi. 
Beaumanoir usou então da palavra. 
— Não nos esqueçamos, irmãos, de que neste concilio todos somos livres. Ninguém é obrigado a 
aceitar qualquer mudança, que não seja aprovada pelo seu pensar e pela sua consciência. Que 
respondes a isto, irmão Inácio de Loiola? 
— Respondo — disse com altivez o peregrino — que estas cisões não me dizem respeito. Fui 
irmão da ordem do Templo, observei fielmente os seus estatutos: agora, que o Templo acabe 
 15
retiro-me da instituição que lhe sucede, e em face da Maçonaria, que acabais de proclamar, 
declaro instituída a Companhiade Jesus! 
Este nome, que mais tarde devia tornar-se tão terrível, repercutiu sonoramente sob aquelas 
abóbadas; tão forte e solene fora voz com que Loiola o pronunciara! 
— Ninguém — disse Beaumanoir — ninguém quer acompanhar o nosso irmão no caminho a que 
ele quer aventurar-se sozinho? 
Seis cavaleiros se levantaram, e foram colocar-se ao lado de Inácio de Loiola, que os olhou com 
um ar triunfante. 
— Somos sete! — disse ele com um ar inspirado. — Pois bem, convosco, primeiros irmãos, que 
acreditastes em mim, reparto eu o império do mundo. Somos bastantes para vencer, e teríamos a 
certeza da vitória, se não tivéssemos de lutar contra os nossos antigos companheiros. Irmãos, o 
beijo de paz! 
Entretanto, a voz de Beaumanoir pronunciava friamente os nomes dos que se tinham declarado 
prontos a aceitar a proposta i Loiola. 
— Pedro Lefèvre, de Villaret, na Sabóia. 
— Francisco Saverio, cavaleiro de Navarra. 
— Jacopo Laynez, de Almazar. 
— Afonso Salmeron, de Toledo. 
— Nicolau Afonso, de Bobadila. 
— Simão Rodrigues, de Avedo. 
Na medida que iam sendo pronunciados os nomes daqueles poucos, Inácio ia-os inscrevendo 
num pequenino livro, que tinha na mão. 
— E agora — disse Beaumanoir — agora, que os dissidentes nos abandonaram, repitamos, 
irmãos, o juramento de há pouco, e declaremos que a ordem do Templo se transformou na 
associação dos Pedreiros Livres. 
Os cavaleiros presentes ergueram a mão. 
— Adeus, irmãos; — disse Loiola, com uma voz a que não pôde, por mais que fizesse, tirar um 
certo tom de tristeza — por muito tempo estivemos unidos e concordes e agora estamos dividi-
dos em dois campos, que pugnarão com ferocidade sem par um contra o outro. Pois bem! eu 
ainda tenho esperança, e peço a Deus que reconheçais finalmente o vosso erro e vos acolhais 
todos sob a nossa bandeira, sob a bandeira de Jesus. 
— Terás que esperar! — resmungou Burlamacchi, o mais indignado, ao que se via, pela traição 
de Loiola. 
Inácio dispunha-se para partir com os seus companheiros, quando o presidente lhe fez sinal para 
que esperasse. 
— Monge, — disse ele — deixaste de pertencer ao Templo, mas os juramentos que prestaste à 
nossa Ordem têm sempre vigor. Ai de ti, se o segredo que juraste guardar fosse violado. 
Inácio voltou-se cheio de desdém, estremecendo como um cavalo, ao qual o chicote fustiga. 
— Beaumanoir, — murmurou ele num tom de voz que a raiva fazia tremer, — em má hora me 
lembraste, a mim, que não pensava em violá-los, os juramentos que prestei à Ordem. Esqueceste 
talvez de que para nós, filiados nos terceiros mistérios, para nós, que somos os Sete Senhores, 
não existe lei moral nem positiva? Esqueceste de que a nossa elevação ao supremo grau nos 
libertou de todos os deveres? 
— Pois então — disse ameaçadoramente o ancião — lembra-te de que, se o juramento te não 
fizer calar, nós te faremos calar doutra maneira. Temos irmãos por toda a parte, Loiola, e a ponta 
dos punhais do Templo ainda se não embotou. 
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Inácio sentiu um calafrio penetrá-lo até à medula dos ossos mas o rosto não manifestou senão um 
profundo desprezo. Um momento depois, pela escarpada encosta de Mont-Serrat caminhavam os 
sete homens que, conduzidos pelo gênio de Inácio de Loiola, viam constituir a famosa 
Companhia de Jesus, cujos atos e tenebrosas tiranias haviam de causar o assombro e o terror do 
mundo. 
FIM DO PRÕLOGO 
 
PRIMEIRA PARTE O REI CAVALEIRO 
CAPÍTULO I 
A CONFISSÃO DE DIANA 
O palácio de Brezé, um dos mais antigos edifícios feudais d; parte mais velha de Paris, perdera 
havia já muito tempo o esplendor das festas e alegrias, que por um momento o haviam animado 
Quando João de Brezé, grande senescal da Normandia, oferecera a mão de esposo à filha do 
conde Saint-Vallier, no palácio ressoara o bulício e a animação das antigas festas; naquelas sala 
desertas ressurgira uma nova vida, acordando os ecos adormecido dos festins, por influência 
duma mulher nova, bela e sociável. 
Uma tradição, de que adiante falaremos, circundava a formosíssima Diana de uma espécie de 
auréola de grandeza, que tornava mais brilhantes as festas e as reuniões em que Diana era i 
rainha. Os senhores mais grados da corte reuniam-se nas salas do grande senescal, e se Brezé 
fosse ciumento — defeito que por fortuna dele não tinha — decerto teria pensado seriamente nas 
homenagens que a flor dos cavaleiros franceses tributava à sua jovem esposa. 
É certo também que Diana, aceitando aquela corte e comprazendo-se com aquele tributo de 
admiração, não dava à maledicência o mais pequeno motivo para falarem dela. Pelo contrário, 
mos trava ter pelo marido um afeto tanto mais para admirar e louvai quanto os cabelos grisalhos 
do senescal eram mais próprios para inspirar o respeito filial do que o amor das mulheres. 
A corte, de sua natureza maledicente, procurava explicar aquela virtude, que a ninguém parecia 
natural; e alguns dos cortesãos mais maledicentes do que os outros, diziam que, se a formosa 
Diana fazia tanto alarde do seu amor ao marido, era para vender mais cara a sua complacência 
para com outro. 
Diana soube quem foi que dissera aquelas palavras e não se deu por ofendida; mas naquele 
coração, que era friamente vingativo e cruel, o nome do homem que a insultara ficou gravado em 
caracteres indeléveis, e Diana jurou a si mesma que, cedo ou tarde, o insolente havia de pagar-
lhe a ofensa. 
João de Brezé morreu pouco tempo depois de ter casado. 
A esposa mostrou a sua dor em públicas manifestações de luto, renunciou aos bailes, às festas e a 
tudo, e transformou o palácio em uma espécie de convento, onde não tinham entrada senão 
pessoas sérias, graves e tementes a Deus. 
Daí a pouco, Paris inteira fazia os maiores elogios à gentil senhora, que aliava à piedade e à fé da 
viuvez a mais liberal beneficência. Sempre vestida de luto, Diana constituía um exemplo para as 
senhoras da corte, mais dispostas a enganar os maridos vivos do que a conservarem-se fiéis à 
memória dos mortos. 
No palácio, em que agora vamos encontrar Diana, reinava absoluto sossego. A gentil viúva não 
recebia senão raríssimas vezes e, na ocasião em que vamos entrar nas suas salas, estava ela 
conversando com um mancebo. que devia pertencer à mais alta classe social, a avaliar pelo 
respeito com que o tratava a altiva condessa. 
— Ah! monsenhor, — dizia ela — pois não reparais neste luto, que me cobre? Isto mostra que 
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renunciei à vida e às suas pompas; com a minha idade quase que poderia ser vossa mãe. . . Ah! 
monsenhor, aos vossos pés curvam-se hoje todas as belezas de Paris; renunciai a despertar um 
pobre coração, que só deseja consagrar-se à sua salvação eterna. 
E Diana ergueu os olhos para o céu com uma expressão tão encantadora, que o mancebo a quem 
ela se dirigia sentiu-se ainda mais apaixonado. 
— Mas vós não quereis compreender-me, Diana! — insistia o jovem com uma espécie de 
impaciência febril. — Eu desejo o vosso amor, não para o ocultar ou envergonhar-me dele, mas 
para dele fazer a maior glória da minha vida! Concedei-me o vosso amor, Diana, e na corte de 
que hei de ser rei vós sereis a rainha! 
Nos olhos de Diana brilhou fulgurante e fulgás um lampejo de orgulho. Havia muitos dias que 
ela esperava ouvir aquelas palavras, que não eram uma promessa vã, pois que aquele que diante 
de Diana se expandia com ardor tão apaixonado era o segundo personagem do reino, era 
Henrique de França, filho e herdeiro presuntivo do rei Francisco I, e que depois reinou com o 
nome de Henrique II. 
O príncipe tinha então dezoito anos. 
Era um mancebo de altiva e nobre figura, muito mais desenvolvido do que a idade parecia 
permitir. Em lugar dos traços delicados e moles da juventude adolescente, havia nele o 
desenvolvimento de formas e a robustez de um homem de trinta anos. A caça e a guerra, os seus 
dois passatempos prediletos, tinham contribuído paradar àquele filho dos Valois a aparência 
rude e semi-selvática de um soldado aventureiro. 
Como seu pai, também Henrique era de uma estatura de gigante; mas, principalmente diante de 
uma mulher, o seu olhar era tímido e doce, e nos seus movimentos havia tal ou qual embaraço. 
Enfim, era o mais belo Hércules, que jamais se deixara prender nos laços de uma Ônfale 
moderna. 
Mas, por outro lado, que admirável domadora era aquela, que tinha feito curvar a cabeça deste 
leão!. . . 
Todos os poetas daquela época nos deixariam o retrato da deusa, que por tantos anos brilhou no 
céu da corte de França. Pintores, escultores, cinzeladores, como o Primaticcio, como Jean 
Goujon, como Benevenuto Cellini, idealizaram as formas admiráveis da bela sereia. Ela era 
realmente a grande cortesã, a mulher que podia desafiar o tempo, e receber, passados os 
cinqüenta anos, as entusiásticas homenagens com que tinha sido saudada na sua primeira 
mocidade!. .. 
Diana de Poitiers, condessa de Brezé, orçava então pelos trinta e cinco anos. 
Nenhum colorido de artista, a não ser o que saía dos pincéis mágicos do Ticiano, poderia 
reproduzir a cor de pérola daquela carnação, onde todavia ondeavam os reflexos dourados de um 
sangue quente e vivo. 
Tinha os cabelos castanhos escuros, tão finos e macios, que comparada com eles a seda pareceria 
áspera lã. Os olhos negros, grandes, aveludados, profundos, ora pareciam perdidos numa espécie 
de êxtase, ora relampagueavam clarões de voluptuosidade, capazes de entregar nos braços de 
Satanás o mais austero anacoreta da ordem de S. Francisco. 
A condessa trazia um vestido muito simples, todo preto, de luto. Um decote em quadrado sobre o 
peito deixava entrever a brancura deslumbrante do colo e do seio, que arfava. Das mangas curtas, 
segundo a moda da época, saíam dois braços admiráveis, que pareceriam de mármore, se não 
fosse o azulado das veias, que se desenhavam sob aquela finíssima pele. 
Nenhuma jóia nos braços, nem no colo. Na mão direita só um anel, um só, o anel nupcial do 
defunto senhor de Brezé. 
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— Monsenhor! — disse a condessa, depois de uma pausa habilmente calculada — o que acabais 
de prometer-me bastaria para tornar feliz a maior princesa do mundo, quanto mais uma pobre 
viúva como eu. 
— Diana!. .. 
— Deixai-me continuar. Hoje sois príncipe, monsenhor; hoje não dependeis senão de el-rei, 
vosso pai; amanhã sereis o senhor absoluto. Mas tereis de ouvir os conselhos da política, que vos 
dirá que o chefe de um grande povo não pode aparentar-se senão com famílias de soberanos. 
Nasci bastante próxima do trono, monsenhor, para compreender quanto é perigoso para alguém, 
mesmo sem o querer, aproximar-se da coroa. As jóias dela queimam a mão profana que as toca. 
Se o rei Francisco nosso senhor tivesse ouvido as imprudentes palavras, que há pouco 
pronunciastes, a prisão ou exílio seriam o meu destino. 
O rosto de Henrique coloriu-se e os olhos injetaram-se-lhe de sangue. 
— Se tal ousasse!. . . — exclamou ele, levando a mão aos copos da espada. 
Diana deteve-o com um olhar. 
— Vós resistiríeis, monsenhor!. . . e eu teria o infinito remorso de ter indisposto um filho com 
seu próprio pai, de ter amargurado a vida de um rei, que foi tão bondoso para com a pobre Diana 
de Saint-Vallier e que concedeu às súplicas da filha o perdão de seu pai... 
E como Henrique olhasse para ela cheio de espanto: 
— Pois vós ignorais este fato, monsenhor?! É natural; isto ocorreu quando ainda éreis criancinha, 
e desde então para cá têm-se operado grandes mudanças na corte. Mas desejo que o saibais: 
— Meu pai, o conde de Saint-Vallier, implicado na fuga do condestável de Bourbon, foi 
condenado à morte. O rei estava tão indignado contra os cúmplices e protetores de Bourbon, que 
ousaram pegar em armas contra o seu Rei, que só alguns amigos é que ousaram implorar o 
perdão de meu pai; mas tudo foi inútil, a condenação era irrevogável. Tive então uma idéia, que 
decerto me foi inspirada por Deus. Penetrei no Louvre, e na ocasião em que o Rei ia passar, 
lancei-me aos pés dele. 
— Vós! — exclamou o delfim com indizível expressão de ciúme, bem justificada para quem 
conhecia a galanteria do rei cavaleiro. — E ele... recebeu-vos. . . 
— Como se recebe uma filha, que implora o perdão para seu pai, — respondeu Diana com tal 
acento de nobreza misturada de melancolia, que era do mesmo passo a censura e a destruição das 
suspeitas de Henrique. — Fez-me erguer e interrogou-me com afabilidade; e como o terror, o 
respeito, a comoção me tinham alquebrado as forças, recomendou-me benignamente a sua mãe, 
Luísa de Sabóia, e, um momento depois, meu pai livre dos seus ferros, tornava a abraçai sua 
filha. . . 
— E depois disso não tornastes a ter outras conversações. . . com o rei meu pai ?. . . 
— Não, monsenhor; — disse Diana com altiva dignidade — poucas semanas depois desposava 
eu o conde de Brezé, grande senescal da Normandia. Conservei sempre sem mácula o meu nome 
de esposa. . . como hei de conservar o de viúva. . . 
A Henrique pareceu-lhe ver tremer uma lágrima nos olhos da condessa, tão cruelmente e 
indiretamente ofendida, e louco, alucinado, caiu-lhe aos pés. 
— Oh! perdoai-me, Diana!. . . — exclamou ele extremamente agitado — perdoai-me, porque o 
meu amor é tamanho que decerto me perturba a razão! Mas ao ver-vos tão bela e encantadora, 
parece-me impossível que haja alguém que se não apaixone por vós, e que não empregue todos 
os meios para que vós aceiteis o seu amor. . . Não me desprezeis, Diana, porque senão, à fé de 
Valois!. . . cometo uma loucura!... 
E o mancebo, em cujo cérebro se debatiam as mais delicadas fantasias cavalheirescas com os 
 19
grosseiros costumes das caçadas e dos quartéis, prostrou-se de novo aos pés da condessa. 
Esta, como que absorvida num pensamento mais alevantado, não reparava no mancebo, e 
deixava que este lhe apertasse a mão com apaixonado ardor. 
— E contudo — murmurou a condessa, ao cabo de um breve silêncio — e contudo, seria todo o 
meu sonho ser a inspiradora de um jovem, valente, poderoso. . . guiá-lo no caminho da glória. . . 
fazer dele um grande príncipe, um herói. . . 
— Oh! Diana, — exclamou Henrique — correspondei ao meu amor, e fareis de mim o que 
quiserdes... e eu considerara-os-ei como a salvadora da casa de França. 
— Silêncio! erguei-vos! — respondeu a condessa, que viu que era tempo de pôr termo àquela 
cena. — Vem aí algum dos meus criados. 
-Com efeito, naquele momento batiam à porta do salão e uma aia, tendo pedido licença, entrou e 
inclinou-se, dizendo à condessa: 
— Senhora, o reverendo padre Lefèvre chegou agora para a conferência espiritual do costume. 
— Que o reverendo padre tenha a bondade de passar ao oratório. . . Monsenhor, perdoai-me se 
vos deixo; vou falar com o senhor de todos os tronos, vou confessar-me a um ministro de Deus. 
— Sois uma santa! — exclamou o príncipe, depondo na bela mão da gentil dama um beijo 
apaixonado. 
A condessa deu-lhe em troca um sorriso cheio de amor e de tristeza; depois, tendo acompanhado 
o príncipe até à porta, como competia à hierarquia do seu real adorador, dirigiu-se para o orató-
rio, onde a esperava o reverendo padre Lefèvre. 
Se Henrique a tivesse visto naquele momento, é provável que a sua paixão se convertesse em 
horror. A fisionomia daquela mulher brilhava de uma alegria tão malévola, nos seus lábios 
pairava um ar de desprezo tão profundo, que a beleza ideal da inconsolável viúva desaparecia, 
dando-lhe ao rosto uma expressão sinistra em que se refletiam as mais tristes paixões. 
Como os grandes comediantes, Diana tinha expressão de teatro e uma expressão verdadeira, e 
esta era a mais repugnante e odiosa que se podia imaginar! 
 
CAPITULO II 
O REVERENDO PADRE LEFÈVRE 
Ao passar da sala onde recebera o príncipe para o oratório onde a esperava o jesuíta, Diana 
lançara sobre os ombrosuma capa, que cobria todas as cândidas belezas, cuia vista acendera 
tamanho foge de desejos no coração do príncipe Henrique. 
A sereia bem compreendia que os meios de influir sobre um mancebo inexperiente e inflamável 
deviam ser diferentes dos que precisava empregar para ser benvista por um sombrio e austero 
frade. Por isso, quando entrou no oratório, Diana levava um vestido muito simples, e apresentou-
se de fronte serena, com o olhar franco e tranqüilo de quem não tem nada que se lhe lance em 
rosto. 
O padre Lefèvre pouco tinha mudado desde aquele dia em que o vimos entre os cavaleiros 
templários tomar o partido de Inácio de Loiola, e inscrever-se com os outros cinco companheiros 
na nova instituição, proclamada por Inácio sob o nome de Companhia de Jesus. 
Era sempre o mesmo tipo de montanhês, de elevada estatura, de porte austero, magro, de feições 
e formas angulosas. Conservava-se ordinariamente de olhos baixos, mas era fácil perceber, quan-
do erguia o olhar, que a humildade monástica não tinha apagado neles o lampejo de orgulho. 
Tinha agora a fonte mais escampada, por lhe rarearem os cabelos, e isso fazia com que ela 
parecesse mais vasta, dando à figura do ex-estudante saboiardo uma expressão de severa 
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majestade, que incutia respeito. 
Lefèvre saudou Diana com uma ligeira inclinação quando esta ao entrar se curvou 
profundamente. 
— Perdoai-me, meu padre, — disse a viúva — se não vim tão depressa como desejava; mas uma 
visita de cerimônia. . . 
Não foi por causa dessa visita de cerimônia que perdestes tanto tempo, minha filha, — disse o 
padre, que com um olhar rápido tinha observado o vestido de Diana. — Perdestes também alguns 
instantes para enganar o vosso pai espiritual. 
— Eu! — exclamou Diana, cheia de confusão. 
— Sim, vós. . , receastes que eu achasse demasiado mundano o vestuário com que recebestes o 
príncipe Henrique, e mudastes de vestido. . . como se a vista de um sacerdote pudesse ser 
perturbada pelo que desperta a admiração e os desejos dos outros homens. 
Em outra qualquer ocasião a senhora de Brezé ficaria maravilhada por ver que um estranho 
assim adivinhava os seus mais íntimos pensamentos; mas o padre Lefèvre já por vezes lhe dera 
tais provas da sua onisciência, que a condessa já de nada se espantava. 
Inclinou a fronte, que passado um momento, ergueu. 
— Então cometi um pecado? — perguntou ela. 
— Pecado? Não; além de que, bem sabeis, minha filha, que nós procedemos com brandura e 
circunspeção, antes de considerarmos pecaminoso um ato qualquer. Entretanto, tivestes um 
trabalhe inútil, o que é muito para sentir, dada a importância da vossa missão. Mas não falemos 
mais disso. . . Viestes para vos confessardes? 
— Sim, meu padre — disse Diana. — Preciso de encontrar nas palavras e nos conselhos de 
Vossa Paternidade um conforto às dúvidas, que me amarguram a vida. Supliquei-vos que fósseis 
o meu diretor espiritual, porque a vossa fama de piedade, de saber, de austeridade.. . 
— Obrigado, minha filha. A Companhia de Jesus foi instituída há poucos anos, mas o Senhor 
abençoou os nossos esforços, e hoje já dirigimos a consciência dos mais ilustres personagens 
católicos. De resto, os pecados que tendes confiado ao tribunal da penitência têm sido sempre tão 
leves, que na verdade, mesmo para um pobre padre ignorante como eu, — e o frade inclinou-se 
com orgulhosa modéstia, — não é difícil tarefa manter-vos sempre no caminho da salvação. 
Diana parecia hesitar. 
— Meu padre, — disse ela afinal — tenho de fazer-vos confissão de algumas faltas mais graves; 
mas primeiro desejava saber. . . se é certo. . . como se diz... 
— Eu concluo a vossa frase, filha. Desejais saber se é certo, como se diz, que os padres da 
Companhia de Jesus têm para com os pecadores uma indulgência muito superior à que costumam 
ter os outros confessores; se é verdade que eles têm os meios de diminuir aos olhos dos 
pecadores a gravidade das suas faltas, e de reconciliar com Deus, sem sacrifícios. . . É isto que 
desejais saber minha filha? 
— É, meu padre... ou pelo menos alguma cousa parecida. 
— Pois bem, ficai então sabendo que esta nossa indulgência que os descrentes nos censuram 
como uma culpa gravíssima, é verdadeira. 
Diana fez um gesto de espanto. 
— Oh! entendamo-nos! — disse com o seu frio sorriso o padre Lefèvre, -— nós somos tão 
severos como os outros, quando trata de culpas cometidas com pura maldade e só com a intenção 
de fazer mal; mas, quando julgamos os pecados, sabemos distinguir o elemento mau da intenção, 
das circunstâncias e dos impulsos exteriores; e quanto mais fortes são estes, tanto mais benévolos 
 21
nós s mos em perdoar a queda. 
— Não vos compreendo bem, meu padre, — disse a jovem viúva, tornando-se pensativa. 
— Eu vos apresento um exemplo, — disse o jesuíta, envolvendo num olhar perscrutador toda a 
pessoa da condessa. — Suponhamos que uma jovem, vendo passar um príncipe belo, valoroso 
galante, lhe corre ao encontro e se lhe lança aos pés, oferecendo-se o corpo; essa tal seria uma 
mulher perdida, uma cortesã dissoluta, uma condenada às penas eternas, que sofrem os que 
pecam por luxúria. 
— E então ?. . . — perguntou Diana em grande ânsia. 
— Mas suponhamos agora que aquele príncipe, tanto mais pronto a irar-se, quanto mais 
poderoso, tinha resolvido fazer morrer o pai daquela jovem. Suponhamos que ela resgatou, à 
custa da própria honra, a vida de seu pai, e nesse caso converteu-se ela numa Judite, 
transformou-se numa heroína. 
— Padre! padre! que dizeis! — exclamou a condessa. 
— Porventura conheceríeis vós alguma jovem, alguma mulher que se achasse nestas 
circunstâncias ? — perguntou com absoluta tranqüilidade o padre Lefèvre. 
Diana, completamente abatida, deixou pender os braços. 
— Eles sabem tudo; — murmurou, — sabem tudo, e eu, como louca, quero competir com eles. . 
. Com estes aliados serei tudo, sem eles não serei nada. . . Oh! é preciso que eu me decida! 
E resolutamente, voltando-se para o jesuíta, disse-lhe: 
— Meu padre, tende a bondade de me ouvir de confissão. 
— Estou pronto, minha filha, — respondeu o jesuíta, disfarçando um sorriso de triunfo, que lhe 
despontava nos lábios. 
Diana sentou-se num escabelo forrado de veludo, e o sacerdote numa cadeira. 
— Meu padre, já sabeis que sou filha do conde de Saint-Vallier, o nobre fidalgo, que auxiliou a 
fuga do duque de Bourbon, e que por tal fato foi condenado à morte pelo rei Francisco I. Nem os 
rogos dos amigos, nem as súplicas dos parentes, conseguiram obter para o condenado a 
clemência do rei. Então, eu, enchendo-me de coragem, corri à corte e lancei-me aos pés do 
soberano. Foi uma imprudência da minha parte, não é assim, meu padre? 
— Era esse o vosso dever de filha, — respondeu o jesuíta, impassível. — Continuai. 
— O rei recebeu-me afetuosamente, e quase com respeito: ordenou que se suspendesse por um 
dia a execução, que estava marcada para o dia seguinte. Quando eu me erguia do chão, onde me 
tinha prostrado para lhe fazer aquele pedido, o rei murmurou-me ao ouvido: — Esta noite. . . 
conceder-te-ei completamente... o perdão de teu pai. — Eu quis protestar, quis resistir, mas o 
soberano disse-me com altiva frieza: — Dize que não, e a cabeça do conde de Saint-Vallier 
rolará do patíbulo na praça de Greve. 
Padre, eu amava meu pai... e além disso a condenação e o suplício traziam consigo a confiscação 
dos bens. . . Assim, eu ficaria sozinha no mundo, pobre, sem esperança. . . Aceitei. Foi um 
grande pecado, não é verdade? 
— Era-o, se tivesse sido cometido só com o fim de gozar. . . mas tratando-se da gravíssima 
razão, que vos levou a isso, pelo contrário, praticastes uma. obra meritória. . . que vos será levada 
em conta no céu. 
— Obrigada, meu padre. Mas ainda não é tudo... O rei voltou mais vezes a procurar-me. . . e, 
valendo-se dos direitos adquiridos da primeira vez,encontrou-me dócil aos seus desejos. . . Mais 
tarde fez-me casar com o conde de Brezé, grande senescal da Normandia, e mesmo depois do 
matrimônio. . . Ah! meu padre, eu sou muito culpada; porque então já não tinha a desculpa do 
 22
risco que corria a vida de meu pai, e apesar disso os impuros desejos do acharam-me sempre 
disposta. . . 
— Minha filha, na verdade o que acabais de narrar-me ti muita gravidade; mas talvez que no 
vosso zelo de perfeição o exagereis um pouco. . . Mas primeiro dizei-me: o rei honrou a casa 
vosso marido com riquezas e privilégios? 
— Sim, meu padre, apesar de eu lhe pedir que o não fizesse dizendo-lhe que, pelo menos, era 
preferível uma proteção secreta em vez de favores muito manifestos, para não excitar a inveja e a 
maledicência da corte. . . Com os presentes e benefícios que lhe fez, meu marido pôde deixar 
uma fortuna considerável da qual eu fui a única herdeira. . . 
— Então estais justificada, minha filha. Então já não era por concupiscência carnal que aceitastes 
os galanteios e amores de um homem, que decerto não era o mais belo da corte; não era também 
por vaidade, visto que fizestes todo o possível para ocultar essas relações, o que efetivamente 
conseguistes. Não, o que vós quisesses foi aumentar os bens e a importância da casa de vosso 
marido, compensá-lo da involuntária falta para com ele cometida de entrardes para casa dele 
menos. . . irrepreensível... do que ele tinha direito de esperar. Na verdade, minha filha, que é em 
vão que procuro encontrar nesta vossa confissão motivos por que deva condenar-vos. 
Diana lançou ao confessor um olhar de espanto, que não pôde encontrar-se com o olhar velado 
do jesuíta. 
— Mas não são só estas as minhas culpas! continuou Diana com humildade. 
— Estou a escutar-vos; mas pelo rigor com que a vós própria vos estais acusando, entendo que 
essas outras culpas, de que ia acusar-vos, não passarão na realidade de ninharias. 
— Ouve-me, meu padre. O rei Francisco é um homem externamente cavalheiro, como sabeis, e 
raras vezes abandona uma mulher que uma vez foi sua amante, e eu não tenho a coragem de ser a 
primeira a abandoná-lo. Pois bem, desde que o príncipe Henrique voltou da guerra, persegue-me 
com as suas insistências amorosas e a minha fragilidade é tal, que receio sucumbir mais dia 
menos dia... 
— E horroriza-vos a lembrança de serdes ao mesmo tempo a amante do pai e do filho? 
— Sim, é esse o meu terror. . . 
E a condessa escondeu a face nas mãos, conservando contudo os dedos bastante separados para 
poder seguir a expressão de fisionomia do padre. 
Lefèvre conservou-se silencioso algum tempo, e a condessa chegou a recear que ele não 
encontrasse na casuística da Companhia os sofismas necessários para absolver aquela espécie de 
incesto. Mas o bom padre não era homem que se prendesse com tão pouco; por outro lado, tudo 
quanto a senhora de Brezé lhe estava confidenciando já ele o sabia havia algum tempo, e tivera 
por isso o tempo necessário para preparar as suas respostas. 
— Minha querida filha, — disse ele, com o seu seráfico sorriso — a Igreja não teria 
excomunhões bastantes para vós, nem o inferno teria penas bastantes grandes, se a vossa 
intenção, unindo-vos ao príncipe Henrique, fosse unicamente a de vos saciardes de prazeres 
pecaminosos e de ofenderdes o céu, multiplicando os amores proibidos. Mas eu conheço-vos, e 
sei que sois experiente, e que tendes largas vistas; por isso tenho a certeza de que se consentirdes 
nesses amores, que repugnam à vossa consciência, o fareis unicamente para conseguirdes altos 
fins, que bastariam para absolver e justificar culpas ainda mais graves do que essa-. . . 
A condessa, conquanto fosse forte, não o era bastante para poder lutar contra um dos fundadores 
da Companhia de Jesus. 
— Altos fins!. . . — balbuciou ela. — Se tivésseis a bondade de me indicar algum.. . para me 
guiar, meu padre. 
 23
— Ora suponhamos, minha filha, que vós exerceis sobre o príncipe Henrique tal predomínio que, 
quando este subir ao trono, por morte de seu pai, que Deus conserve largos anos, lhe seja im-
possível libertar-se da sua doce escravidão. . . Temos então um príncipe verdadeiramente 
católico, um príncipe que será um inimigo e perseguidor inexorável dos hereges, um defensor da 
Companhia de Jesus e dos direitos da Inquisição. 
Diana ergueu-se ao ouvir aquela terrível palavra. Compreendera tudo. 
— E vós julgais, meu padre, — perguntou ela, com voz insegura — julgais que se eu obtiver 
tudo isso do príncipe Henrique.. Deus me perdoará o meu passado? 
— Não só Deus, tendo em conta a grandeza do fim obtido por meios aparentemente censuráveis, 
vos desculpará esses meios mas, por meio das orações da nossa Companhia, Ele vos cobrirá 
bênçãos... O Rei, conhecendo a virtude e a nobreza da vossa alma encher-vos-á de dons e de 
honrarias; uma coroa ducal ornará o vosso brasão, e tesouros incalculáveis encherão os vossos 
escrínios. 
— E essas riquezas deverei distribuí-las pelos pobres, não verdade, meu padre? — perguntou a 
viúva de Brezé com um acento de amargura, que não escapou à observação sagaz do confessor. 
— Ah! tu és avarenta!. . . — disse para si com infinita satisfação o jesuíta. — Pois bem, tanto 
melhor!. . . assim estarás mais segura nas nossas mãos. 
Depois, em voz alta: 
— Aos pobres!. . . e donde vos viria tal obrigação, minha lha? A vossa posição exige que vivais 
com a conveniente ostentação, e Deus, que criou as desigualdades sociais para maior bem das 
almas, decerto não veria com bons olhos quem se empenhasse certo modo em destruir esta sua 
vontade, reduzindo-se a uma espécie de pobreza voluntária. Não, minha filha, vós conservareis 
vossas riquezas. . . e além disso a humilde voz da Companhia Jesus, que se faz ouvir em toda a 
parte, repetirá com tanta insistência louvores ao vosso nome, quantas foram as maldições que em 
tempos passados era costume vociferar contra as favoritas dos reis. 
Diana ergueu-se, com os olhos acessos e o vulto altivamente ereto. 
— Vamos, padre, — disse ela com altivez e frieza — acabemos com esta singular maneira de 
tratar, que muito se parece com uma comédia. Então vós, em nome da vossa Ordem, ofereceis-j 
uma aliança? 
— Ofereço, minha filha. 
— E garantis-me riquezas, honras, considerações, e o apoio onipotente da vossa Ordem, contanto 
que eu obrigue o Rei e delfim a combaterem os hereges do modo mais inexorável que hoje se 
tem visto?... 
— Tudo isso vos ofereço, e é preciso que saibais o que isso vale. 
— Bem sei, e por isso aceito. Precisamente esta noite o rei Francisco deve vir visitar-me... 
— Já o sei: deve vir incógnito, vestido de simples cavaleiro, e há de bater três pancadas na 
pequena porta do jardim. A vossa aia Alison irá abrir. . . 
— Mas vós sabeis tudo!. . . — exclamou Diana, em quem o espanto cedia o lugar ao terror. 
— Não exageremos, minha filha: eu só sei o que me convém saber para utilidade da Companhia, 
e isso mesmo esqueço-o, logo que essa utilidade cessou. Sei também outra coisa: que amanhã ha-
verá no Louvre reunião de conselho presidida pelo rei, para se deliberar sobre o modo de 
proceder acerca das novidades importadas da Alemanha e que dizem respeito à religião. 
— Também já ouvi falar dessa reunião, — disse com certo embaraço a senhora de Brezé. 
— Pois bem, eu sei que nessa reunião há alguém, que, desconhecendo os verdadeiros interesses 
do reino, proporá que se tolere a difusão das novas idéias. Esses, que assim pensam, hão de 
 24
afirmar que os Reformadores não tiram a autoridade aos príncipes, e que por outro lado a 
perseguição poderia servir para ir dar mais força aos inovadores, como sempre acontece com as 
religiões novas. 
— Mas parece-me que este juízo não deixa de ser razoável — disse Diana. 
— Engano!.. . — exclamou o jesuíta, pondo-se de pé — É certo que a perseguição incerta, 
medrosa,

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