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Princípios para a construção de currículos multiculturalmente orientados A linguagem, numa compreensão intercrítica, assume um papel importante neste diálogo, no qual se incluem as diversas disciplinas e as críticas sobre elas; as diversas culturas comunitárias; as visões de mundo dos docentes e alunos, suas narrativas/histórias de vida; as histórias de práticas; os saberes advindos dos espaços formativos sejam estes prévios ou continuados; o mundo do trabalho e da produção, dentre outros. Esta abertura, segundo Macedo, situa o currículo num terreno de incertezas e incompletudes, na medida em que o olhar para o currículo não se ancora nas “verdades científicas”, nas “certezas acadêmicas”. Para o autor, esta abordagem representa uma disponibilidade curricular e epistemológica que desafia um saber pretensamente estável e autossuficiente e abre espaço para o que denominou de “articulação crítica dos saberes”. Macedo define os atos de currículo como ações concretas, como construção/produção sociopedagógica, cultural e política, feita e refeita pelos seus atores/autores dentro de “dada” historicidade, coletivamente configurada, na qual coexistem e entram em disputa cosmovisões, visões de homem, de educação, de ensino e de aprendizagem. Para o autor, os atos de currículo fundam a possibilidade de compreensão do currículo como processo de alteração incessante, implicando políticas de sentido, políticas de conhecimento, luta por significados, necessitando aí, por consequência, uma visada política sobre a natureza das alterações produzidas na experiência formativa. (MACEDO, 2008) Embora seu conceito não se restrinja ao espaço escolar, mas a todos os espaços educativos/formativos, ele tem um papel importante na análise curricular escolar. Nesta perspectiva, podemos conceber os atos de currículo, como as ações concretas vivenciadas no cotidiano da escola pelos/as docentes ou outros atores sociais, nos diferentes aspectos da prática educativa. As histórias de vida, nesta perspectiva, assumem um importante papel nos processos formativos dos professores, por incluírem suas representações sobre a docência e sobre os diferentes atos de currículo dos quais participam. Para finalizar nossas reflexões, é interessante pensar nos diálogos possíveis entre os atos de currículo e o multiculturalismo, buscando uma possível articulação entre estes conceitos/saberes. A partir dos aspectos analisados no início desta aula, quanto aos desafios da contemporaneidade e as tensões evidenciadas nas discussões multiculturalistas/interculturalistas, é interessante refletir sobre a possível articulação entre atos de currículo e multiculturalismo. Para isso, alguns aspectos apontados por Moreira e Candau (2007) como “princípios para a construção de currículos multiculturalmente orientados” podem nortear nossa análise. Sugerimos a leitura integral do texto no qual se inserem estes princípios – MOREIRA E CANDAU, 2007 - no sentido de compreender sua amplitude. Aqui, vamos analisá-los a partir do texto de Candau (2008), no qual foram reelaborados e reagrupados como “elementos para se caminhar na direção da construção de práticas pedagógicas que assumam a perspectiva intercultural”, que sintetizamos a seguir. 1. Reconhecer nossas identidades Para que possamos caminhar no enfrentamento dos desafios inerentes à pluralidade cultural presente na escola, o primeiro passo será olhar para nossas próprias identidades culturais. Este processo de conscientização do que somos, este mergulho pessoal nas culturas que nos constituíram como sujeitos, é um ponto de partida importante, segundo a autora, pois nos conectarmos com os processos socioculturais do contexto em que vivemos, da história do nosso país. (CANDAU, 2008) Segundo ela, “Ser conscientes de nossos enraizamentos culturais, dos processos de hibridização e de negação e silenciamento de determinados pertencimento culturais, sendo capazes de reconhecê-los, nomeá-los e trabalhá-los constitui um exercício fundamental.” (p.26) A autora sugere que este exercício de reconhecimento de identidades seja feito tanto nos processos de formação docente, para que os professores entrem em contato com suas origens culturais, como com os alunos, desde os anos iniciais do Ensino Fundamental. 2. A necessidade de uma nova postura A “nova postura” proposta pela autora envolve a superação de um “daltonismo cultural”, que impede que se enxergue a diversidade de “matizes” culturais presentes na sala de aula, no contexto sociocultural dos alunos, fechando nossos olhos não só para as diferenças, mas para reconhecer a importância de discuti-las, de problematizá-las, de não naturalizá-las. Isto implica em olhar para a sala de aula buscando olhar não só para a riqueza cultural dos alunos e de seu grupo social, como também para identificar as formas pelas quais lidamos com as diferenças, sejam elas de ritmo de aprendizagem, de linguagem, de raça, de gênero de religião, de sexualidade, entre outras. Este daltonismo muitas vezes pode nos impedir de ver que em algumas práticas escolares estas diferenças podem ser ignoradas ou desqualificcadas. O que significa assumir esta nova postura? Significa procurar desvendar o que está “naturalizado” por nós e pelos alunos no que diz respeito à forma como lidamos com a diferença e isto nos leva a algumas indagações: Existe algum tipo de racismo nas salas de aula? Como ele se expressa em nossas ações, discursos e materiais didáticos? Ao fazer filas ou “chamada” separando os meninos e as meninas, sugerir que meninos não brinquem com bonecas, ao resevar horário de futebol só para meninos, estamos revelando uma visão sobre a diferença de gêneros? Como os alunos e professores lidam com o aluno que é mais lento, que não consegue realizar as tarefas no mesmo tempo ou aprender do mesmo jeito que os colegas? Os apelidos de “Bolo fofo”, “Bombril”,”Tampinha”, entre inúmeros utilizados dentro e fora da escola, revelam um tipo de olhar sobre a diferença? Como lidamos com isso na sala de aula? Estas e muitas outras indagações revelam como os estereótipos estão presentes na nossa cultura e na escola, geralmente pautados em um modelo hegemônico de cultura, em padrões culturais que se impuseram como verdadeiros e únicos. Revelam, também, a necessidade de procurar vê-los, pois nem sempre são visíveis, muitas vezes mascaram-se em práticas seculares, naturalizando-se na cultura escolar. 3. Identificar nossas representações dos “outros” A partir das perguntas “Quem incluímos na categoria ‘nos’?”, “Quem são os ‘outros’?” “Como caracterizamos cada um deles?” a autora nos instiga a refletir sobre as representações que construímos sobre aqueles que são diferentes de “nós’”, ressaltando que estas representações são permeadas pela incorporação de um olhar etnocêntrico, um olhar que nos conduz a ver como pertencentes à categoria “nós” somente aqueles que “têm referenciais culturais e sociais semelhantes aos nossos, que têm hábitos de vida, valores, estilos, visões de mundo que se aproximam dos nossos e os reforçam” (p.29). Candau fundamenta sua análise nas três formas distintas de enfrentamento da diversidade apontadas por Skliar e Duschatzky (2000): 1) o outro como fonte de todo mal; 2) o outro como sujeito pleno de um grupo cultural; 3) o outro como alguém a tolerar. Salienta que determinadas práticas e discursos escolares revelam essas formas de lidar com a diversidade, seja implícita ou explicitamente. Podemos, a partir de suas considerações, nos perguntarmos que representações de “outro” estão em jogo quando: privilegiamosalguns conhecimentos e representações culturais e sociais em detrimento de outros; atribuímos o fracasso ou sucesso escolar dos alunos como resultado de seus grupos sociais e culturais, de suas configurações familiares; categorizamos escolas “fortes” ou “fracas” a partir da origem de seus alunos/as; diferenciamos alunos “bons” de alunos “ruins”, seja pelo seu potencial, seja pelo seu grupo social ou cultural; tratamos como exóticas ou folclóricas as manifestações culturais de grupos diferentes dos nossos; tentamos eliminar as diferenças, procurando a conciliação sem questionamento, como se o diferente tivesse que ser aceito sem se questionar a origem desta diferença. Estes são apenas alguns exemplos de como se lida com a diversidade na escola. Poderíamos enumerar muitos outros, mas o que vale ressaltar é que nas sociedades contemporâneas os processos de discriminação e racismo, de exclusão social e cultural se acentuam, gerando segregações, separações e, consequentemente, conflitos e diversas formas de violência entre grupos e pessoas, movidas por questões de classe, de gênero, religião, etnia, sexualidade, entre outras. Para a autora, é fundamental que os educadores ultrapassem a visão romântica que naturaliza ou não enxerga estas diferenças, sendo necessário não negá-las, não reforçá-las através de estereótipos e caricaturas. É fundamental mediar os conflitos e desafios inerentes à convivência das diferenças no cotidiano escolar, seja individualmente, seja coletivamente, promovendo a reflexão sobre eles. 4. Conceber a prática pedagógica como um processo de negociação cultural O que há de histórico no conhecimento escolar? Esta parece uma pergunta sem sentido já que os conhecimentos escolares parecem ser verdades inquestionáveis. Já vimos que a perspectiva modernista apresenta-se na escola na medida em que os conhecimentos passam a ser vistos como cientificamente validos e universais, geralmente a partir de uma perspectiva ocidental e europeia, segmentados pelas disciplinas, que também assumem um tom de cientificidade. Qual a relação entre a representação do mapa mundi situar a Europa no seu centro e os processos de colonização? Por que utilizamos o termo “descobrimento” para se referir ao processo de dominação cultural e geopolítica que ocorreu com a chegada dos portugueses no Brasil? Por que o ensino de História dos anos 60 aos anos 90 privilegiou os períodos anteriores ao governo Vargas? Estas são questões que nos instigam a pensar sobre as implicações socioculturais e históricas dos conteúdos escolares, nos ajudam a desvelar o caráter contextual dessas construções. É fundamental compreender como os conhecimentos escolares se constituíram e adquiriram legitimidade social para que se tenha um olhar mais crítico tanto na seleção como na organização dos conhecimentos que compõem o currículo. Desta forma, poderemos fazer escolhas mais conscientes, que incorporem referentes de diferentes universos culturais, evidenciando a ancoragem histórico-social dos conteúdos. A clareza de que na escola é um espaço de produção e expressão de diferentes linguagens e representações culturais, de configuração de identidades, nos coloca diante de grandes desafios nos tempos pós, já que os processos de mudança cultural ocorrem com uma rapidez que nos surpreende e em novos terrenos nos quais ainda nem começamos a “caminhar”. As novas configurações e interações sociais que se estabelecem através da internet, os novos espaços sociais urbanos, como shoppings e condomínios, as novas feições das mídias que diluem as fronteiras entre o público e o privados são apenas alguns exemplos de que não é só na escola que se aprende. Ao mesmo tempo, nos intriga e instiga a pensar como estas instâncias sociais se hibridizam com o conhecimento escolar, a pensar no papel da escola tanto na promoção do acesso a estas diferentes modalidades de cultura, como na necessária mediação crítica, levando os alunos a uma atitude mais reflexiva sobre diferentes produtos culturais. Segundo Candau, “os educadores e educadoras são chamados a enfrentar as questões colocadas por esta mutação cultural, o que supõe não somente promover a análise das diferentes linguagens e produtos culturais, como também favorecer experiências de produção cultural e de ampliação do horizonte cultural dos alunos e alunas, aproveitando os recursos disponíveis na comunidade escolar e na sociedade” (p. 35)
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