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CP-TGE-2013 - Resumo 07 (Elementos do Estado - Povo)

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FACULDADE DE DIREITO DE SOROCABA – FADI 
Ciência Política e Teoria Geral do Estado – 2013 
Professor Jorge Marum 
Resumo 7 – Elementos do Estado Moderno – Povo 
“A palavra povo tinha um sentido exato quando se podiam ajuntar todos os cidadãos de uma cidade ao redor de uma colina, num Campo de Marte. Mas o crescimento do número, a passagem da ordem do milhar à dos milhões, fez dessa palavra um termo monstruoso, cujo sentido depende da frase em que entra; ela designa ora a totalidade indiferenciada e jamais presente em lugar nenhum; ora o maior número que se opõe ao número restrito dos indivíduos mais afortunados ou mais cultos” (Paul Valéry – 1871-1945); 
Introdução. Povo é o elemento humano do Estado. Pode ser definido como o conjunto de cidadãos, ou seja, das pessoas que mantêm um vínculo jurídico-político com o Estado. Na concepção de Hans Kelsen, o povo é o âmbito pessoal de validade da ordem jurídica estatal. Embora, como diz frase acima, o termo povo possa ser utilizado em várias acepções e muitas vezes até manipulado, para a Ciência Política e a Teoria Geral do Estado trata-se de um conceito jurídico, ou seja, o povo de cada Estado é definido pelo respectivo ordenamento jurídico. Povo não deve ser confundido com população nem com nação. 
Crianças do povo brasileiro
População. População não se confunde com povo porque é um conceito meramente demográfico, denominando o conjunto de pessoas que habitam o Estado, independentemente de terem ou não um vínculo com este. A população inclui os estrangeiros e os apátridas, que residem no país, porém não fazem parte do povo, ou seja, não são cidadãos do Estado. Por outro lado, cidadãos de um Estado que residem no estrangeiro continuam sendo parte do povo daquele Estado, embora não façam mais parte da população.
Nação. Nação vem latim “nasceris”, significando comunidade de nascimento, origem comum. Trata-se de um conceito político, de fundo cultural e sociológico, mas não tem significado jurídico. Nação ser definida como “grupo humano no qual os indivíduos se sentem mutuamente unidos, por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daquilo que os distingue dos indivíduos componentes de outros grupos nacionais” (Hauriou). O termo é usado na linguagem comum como sinônimo de povo e até de Estado, o que é incorreto.
Elemento essencial do Estado é o povo, que pode conter várias nações ou nação nenhuma. Conforme Dallari, baseado em Tönnies, nação é comunidade, diferindo de sociedade porque: a) é um fato social e pertencer a ela não depende de um ato voluntário; b) não possui uma finalidade determinada por seus membros; c) não exerce atividades juridicamente organizadas; d) não tem um poder regulado pelo direito, podendo apenas ter lideranças de cunho moral (ex.: o rabino entre os judeus). Além disso, o conceito de nação não abrange o território, pois uma nação pode ocupar parte do território de um Estado ou o território de vários Estados. 
Originariamente, o termo nação foi utilizado para estimular o sentimento popular em favor da unificação do povo quando da formação dos Estados Modernos, que por isso também foram chamados de Estados Nacionais ou Estados-Nação. Também foi utilizado durante as revoluções burguesas para colocar o povo como titular do poder contra os monarcas absolutistas. Os revolucionários franceses, por exemplo, afirmam que a soberania pertencia à nação e que tanto a família real como parte da nobreza eram compostas de estrangeiros. Falar em nação em vez de povo apelava mais ao sentimento popular. 
Nos séculos XIX e XX, foi afirmado o princípio das nacionalidades, segundo o qual toda nação teria direito de formar um Estado. Até hoje, porém, há grupos que se afirmam nacionais e ainda não formaram um Estado, como os catalães e bascos na Espanha e os curdos na Turquia, Iraque e Síria. 
No final do século XIX e início do século XX, houve exacerbação e deturpação do nacionalismo, gerando o colonialismo, o racismo e o nazi-fascismo. Povos mais desenvolvidos se arrogavam o direito de expandir o espaço nacional e dominar, “civilizar” ou até mesmo exterminar nações consideradas “inferiores”. As duas guerras mundiais foram em grande parte devidas ao nacionalismo exacerbado. 
Trata-se, no entanto, de um conceito impreciso, havendo grandes dificuldades em se saber o que exatamente qualifica um grupo humano como nação. Já se pretendeu que a língua, a religião e os costumes sejam os elementos comuns entre os componentes de uma nação, porém sabe-se que há nações com línguas, religiões e costumes diferentes, como ocorre, por exemplo, na França e na Itália. Até mesmo a “raça” foi utilizada para tentar qualificar uma nação, o que é um absurdo, pois a ciência já demonstrou que não existem “raças” humanas, e sim uma raça humana.
Os judeus formam um grupo nacional bem definido
Segundo alguns autores, a nação é um mito romântico, sem base histórica, explorado pela burguesia para alcançar e manter o poder. Para Dallari, por exemplo, nação é uma criação artificial, com forte conotação emocional. Segundo Carl Deutsch, “uma nação é um grupo de pessoas unidas por um erro comum acerca de seus antepassados e um desgosto comum por seus vizinhos”. O historiador norte-americano Patrick J. Geary tem um livro, denominado O mito das nações – a invenção do nacionalismo, demonstrando que as chamadas nações européias, na verdade, não são grupos homogêneos surgidos num passado longínquo, mas sim tiveram suas identidades forjadas há poucos séculos, de forma concomitante ou até posterior à formação dos Estados Modernos.
 O povo brasileiro é heterogêneo e dificilmente pode ser qualificado como nação
Para outros autores, o conceito de nação tem base histórica e é importante para a formação e a coesão do Estado. Miguel Reale, por exemplo, afirma que a nação é uma realidade histórica, o mais alto grau de integração social. Segundo o autor italiano Del Vecchio, Estados que não correspondem a uma nação são Estados imperfeitos. Burdeau escreve que nos primeiros Estados Modernos a nação fez o Estado e que, nos mais novos, o Estado deve fazer a nação. 
Criação artificial ou realidade histórica, o fato é que nação não se confunde com povo, porque que não há como estabelecer um conceito jurídico de nação, uma vez que faltam elementos objetivos para isso. O Estado não precisa de uma nação para existir, e sim de um povo, não importando se esse povo constitui ou não uma nação, haja vista a existência de nações dispersas por vários Estados (p. ex., os judeus) e Estados que contém várias nações em seu povo (p. ex., as diversas nações indígenas que integram o povo brasileiro).
O povo na história. Nos Estados de tipo Antigo não havia povo propriamente dito, mas apenas súditos, pois a população era inteiramente submetida aos governantes e a eles não eram reconhecidos direitos políticos ou individuais. Além disso, os grandes impérios podiam abranger vários povos e nações diferentes. 
Na pólis grega e na civitas romana o povo era o conjunto de cidadãos, e estes eram apenas uma minoria que possuía direitos políticos. A maior parte da população estava excluída do conceito de povo.
Na Idade Média o conceito era impreciso, pois o poder político estava disperso e muitas vezes superposto. A grande maioria das pessoas não tinha direitos políticos e o poder era concentrado nas mãos de uma minoria. Nessa época, segundo os historiadores, não se perguntava “a que Estado pertences?”, e sim “de quem és súdito?”.
No Estado Moderno o poder político foi centralizado e o direito foi unificado, identificando-se precisamente quem era o povo de cada Estado, que estava submetido a um único poder soberano. Com o contratualismo, o povo passa a ser visto como a origem e o titular do poder soberano. E, sob a influência de autores como Rousseau e outros, passa-se de uma noção aristocrática para uma noção democrática de povo, estendendo-se os direitos políticos a camadas cada vez maiores da população. 
Conceitojurídico de povo. Deve-se a Jellinek o conceito jurídico de povo. Para o autor, povo é o conjunto de pessoas ligadas ao Estado por um vínculo jurídico permanente, vinculo esse que lhes confere direitos públicos subjetivos. Segundo essa teoria, o povo, como elemento formador do Estado e a este ligado por um vínculo jurídico, é ao mesmo tempo sujeito e objeto do poder. Sob o aspecto subjetivo, o povo participa do poder do Estado, isto é, age, é sujeito de direitos. Ao mesmo tempo, sob o aspecto objetivo, o mesmo povo é objeto, está submetido ao poder do Estado, isto é, tem deveres, é súdito. 
Direitos públicos subjetivos. Segundo Jellinek, como conseqüências do reconhecimento do vínculo jurídico do povo com o Estado, surgem três tipos de atitudes que a que este está obrigado em relação aos seus cidadãos: 
Atitudes negativas: estabelecem limites ao poder do Estado em sua relação com os cidadãos; são os direitos individuais, principalmente os vários aspectos da liberdade (liberdade de locomoção, de crença, de expressão, vida privada etc.)
Atitudes positivas: estabelecem obrigações do Estado para com os cidadãos, como, por exemplo, a obrigação de proteção aos cidadãos (polícia) e o direito de ação perante o Judiciário. Atualmente, os direitos sociais (saúde, educação, previdência social etc.) podem ser incluídos nessa categoria. 
Atitudes de reconhecimento: estabelecem para o Estado a obrigação de reconhecer a participação dos cidadãos como seus órgãos, seja agindo em nome dele (diplomatas, chefes de governo), seja contribuindo para a formação da sua vontade, expressa pelas leis e pelas decisões políticas (agentes políticos), seja ainda pelo exercício dos direitos políticos (votar e ser votado, participar do Júri, etc.). 
Segundo Jellinek, essas obrigações do Estado correspondem a direitos dos cidadãos, que são chamados de direitos públicos subjetivos. Isso porque são direitos próprios dos indivíduos (direitos subjetivos), que se enquadram num direito objetivamente previsto, mas que são voltados à esfera pública, isto é, criam uma relação com o Estado. Apenas os membros do povo de um Estado são titulares de direitos públicos subjetivos perante esse Estado. 
Nacionalidade e cidadania. Os membros do povo são chamados de nacionais ou cidadãos. Muitos autores (Celso Bastos, José Afonso da Silva etc.) consideram que cidadão é apenas quem possui direitos políticos (votar e ser votado). Esse entendimento restrito deriva de uma interpretação literal da Constituição brasileira, que chama os brasileiros de nacionais e não define cidadania. Os termos “nacional” e “nacionalidade”, porém, embora utilizados pela Constituição, são conceitualmente incorretos, pois referem-se a nação, que, como visto, é um conceito impreciso e não regulado pelo direito. Mais correto seria usar o termo cidadania, como faz, por exemplo, a Itália.
Conceito amplo de cidadania. Entendemos mais correta, nesse ponto, a doutrina de Jellinek e Dallari, segundo a qual todos os membros do povo (nacionais, na linguagem da Constituição) são também cidadãos, com a diferença de que aqueles que passam a gozar de direitos políticos são cidadãos ativos. Embora minoritária, preferimos essa linha de pensamento, pois ela não exclui do conceito de cidadania os que estão privados dos direitos políticos (menores de 16 anos, condenados criminalmente, doentes mentais etc.). 
Reconhecimento da nacionalidade ou cidadania. Cada Estado define, no seu ordenamento jurídico, os critérios para o reconhecimento ou aquisição da sua nacionalidade ou cidadania. Ou seja, é a lei do Estado que diz quem faz parte ou não do seu respectivo povo. A nacionalidade ou cidadania pode ser primária (originária, desde o nascimento) ou secundária (adquirida posteriormente ao nascimento, por estrangeiro ou apátrida, através da naturalização). 
Há dois critérios básicos utilizados pelos Estados para o reconhecimento da nacionalidade ou cidadania: o jus sanguinis (direito do sangue) e o jus soli (direito do solo). Pelo jus sanguinis, é nacional o filho de nacional, não importa onde nasça. Pelo jus soli, é nacional aquele que nasce no território do Estado. Basicamente, adotam o jus sanguinis os Estados mais antigos e que dão grande importância ao conceito de nação, como Itália, Espanha etc. Já os Estados mais novos, que receberam muitos imigrantes, adotam o jus soli, como é o caso de Brasil, Argentina etc. Assim, um filho de italiano é reconhecido como cidadão italiano mesmo que nasça no Brasil, ao passo que qualquer filho de estrangeiro nascido em território brasileiro é, em princípio, brasileiro. 
Embora use predominantemente o jus soli, o Brasil também utiliza o jus sanguinis, considerando brasileiro o nascido no exterior, filho de brasileiro ou brasileira, desde que um dos pais esteja a serviço do Brasil. Também é considerado brasileiro o filho de pai ou mãe brasileiros que seja registrada em representação diplomática brasileira. O estrangeiro residente no país, por sua vez, pode adquirir a nacionalidade brasileira, passando a fazer parte do povo, desde que cumpra os requisitos da Constituição (naturalização). O brasileiro nato só perde a nacionalidade se assumir outra. O brasileiro naturalizado pode perder a nacionalidade também em outros casos, como a prática de crime.
A filósofa Hannah Arendt
A lição de Hannah Arendt. Filósofa alemã de origem judia, Hannah Arendt (1906-1975) migrou para os EUA devido à perseguição nazista aos judeus na Europa. Lá lecionou em universidades e publicou vários livros de filosofia e política. Para ela, a política é a atividade mais nobre do ser humano. Na obra Origens do totalitarismo, observando a situação de cerca 50 milhões de europeus que ficaram desprotegidos porque perderam a cidadania em conseqüência das duas guerras mundiais, e especialmente o caso dos 6 milhões de judeus exterminados nos campos de concentração nazistas, ela chega à conclusão de que a cidadania, ou seja, o pertencimento ao povo de um Estado, é direito básico do ser humano, que ela chamou de “direito a ter direitos”. Sem esse direito básico, a pessoa fica desprotegida e todos os seus demais direitos, até mesmo o direito à vida, ficam ameaçados. Por isso, a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948, estabelece que ter uma nacionalidade é um dos direitos fundamentais do ser humano. 
“Os nazistas começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para ajuntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para a sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente. O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado” (Hannah Arendt, Origens do totalitarismo).
Para discussão. O brasileiro, filho de italiano, que adquire a cidadania italiana, perde a nacionalidade brasileira ou passa a fazer parte de dois povos? Qual a nacionalidade de um filho de brasileiros que nasce num navio de passageiros de bandeira panamenha navegando no mar territorial argentino? 
 
Leitura essencial: 
DALLARI, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado, Capítulo II, itens 44 a 47, e Capítulo III, itens 68 a 71.
Leituras complementares: 
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, Parte II, Cap. 5. 
GEARY, Patrick J. O mito das nações. 
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado, Livro III, Cap. 13, item II.

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