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A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Direção Editorial Lucas Fontella Margoni Comitê Científico Prof.ª Dr.ª Raquel Fabiana Lopes Sparemberger Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Prof.ª Dr.ª Daniela Pires de Oliveira Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Prof.ª Me.ª Thaís Teixeira Rodrigues Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Uma análise à luz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionado pelo patriarcado Camila Belinaso de Oliveira φ Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Graça Craidy O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://www.abecbrasil.org.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) OLIVEIRA, Camila Belinaso de. A mulher em situação de cárcere: uma análise à luz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionado pelo patriarcado [recurso eletrônico] / Camila Belinaso de Oliveira - Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. 147 p. ISBN - 978-85-5696-219-5 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. patriarcado; 2. mulher; 3. criminologia; 4. feminismo; 5. cárcere. I. Título. CDD-340 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 340 AGRADECIMENTOS De início, quero agradecer à minha mãe e ao meu pai pelo cuidado, pelo amor e pela oportunidade de estudo – privilégio de poucos na sociedade brasileira, já que uma ínfima parcela da população consegue acessar e concluir o ensino superior. Agradeço por estarem presentes nos bons, mas, principalmente, nos maus momentos, quando tanto precisei. Obrigada pelos abraços, pelo apoio e pelo carinho imensurável. Nesse sentido, expresso eterna gratidão à minha madrinha-tia-mãe-irmã e amiga, Ângela, e aos meus tios-irmãos, Ana e Paulo. O curso de graduação em direito propicia, a meu ver, duas possibilidades: a de se enclausurar entre papéis e reproduzir um sistema falho de justiça, ou a de compreender que justiça é, na realidade, um sofisma, que necessita de resistência e envolvimento dos/as profissionais na sociedade, nos movimentos e na cidade, a fim de encontrar resoluções coletivas. Assim, obrigada às professoras e aos professores que, no decorrer de suas vidas de ensino, apresentaram incansavelmente seus conhecimentos. Em especial às/aos que permitiram diálogos, mudanças e divergências; agradeço às/aos que amam ensinar e o fazem nunca de maneira neutra. Betânia de Moraes Alfonsin, Daniela Pires, Raquel Lopes Sparemberger, Renata Dotta e Thais Rodrigues: agradeço à Fundação Escola do Ministério Público e a cada uma em especial, por ensinarem a refletir sobre a sociedade e a aplicar o direito como método de transformação social. Ainda, à Thais e à Raquel como incentivadoras deste trabalho. Ao Coletivo de Mulheres Maria Lacerda, que luta por uma sociedade equitativa, por ensinar outra face da amizade entre mulheres através de laços fortes e (des)construtivos. Dafne Nogueira e Sophie Dall’Olmo: registro a minha admiração, minha sororidade e meu orgulho por todas vocês. Às minhas amigas e colegas de graduação, por todo apoio e cumplicidade, pelos estudos, pelo incentivo. À Ana Julia Saraiva e à Caroline Rocha de Abreu: muito obrigada, nada termina aqui. Às amigas e aos amigos, pelas aventuras em Direito Internacional, cujos aprendizados permitem uma outra forma de perceber e trabalhar o direito e os direitos humanos. Em nome da amiga Marina Rosa, pela sensibilidade e certeza de que nuestro norte es el sur, toda minha admiração por vocês. Às amigas e aos amigos de longa data, que desde muito anos estão presentes na minha vida e, consequentemente, na minha graduação, dando seus conselhos, compartindo experiências e, principalmente, compartilhando dos mais sinceros abraços. Ao Tiago, companheiro, por todo amor, cuidado e respeito. Acredite sempre na minha admiração pela pessoa que és. Às colegas de trabalho, por todos os ensinamentos e pela paciência, pelo ambiente compreensivo. Que venha mais um ano juntas e com novos projetos. Por fim, dedico este trabalho às mulheres da minha vida, em especial à minha querida avó materna, que há pouco nos deixou e dividiu comigo tantas histórias e tantos momentos felizes, e que sempre questionou sua condição de ser mulher, em silêncio. “Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida. ” Simone de Beauvoir SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................... 13 CAPÍTULO I: .................................................................................... 21 O OUTRO: O QUE SIGNIFICA SER MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL? 2.1 A Gênese do Patriarcado .................................................................... 21 2.2 Os tempos, suas manifestações e suas exclusões ............................ 31 2.3 As estruturas de poder e as suas opressões ..................................... 43 CAPÍTULO 2 ...................................................................................... 53 UM OLHAR FEMINISTA À CRIMINOLOGIA 3.1 As faces do pensamento criminológico ............................................. 53 3.2 A criminalidade e as inter-relações com o discurso criminológico: o controle social (formal e informal) do papel da mulher ....................... 65 3.3 Da criminologia crítica à criminologia feminista ........................... 86 CAPÍTULO 3 ...................................................................................... 99 EL EXTREMO DEL ENCIERRO CAUTIVO 4.1 A presa e a presidiária ........................................................................99 4.2 A situação da mulher no cárcere .................................................... 107 4.3 Um eco das vozes silenciadas ........................................................... 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 133 PARA QUE(M) SERVE SEU CONHECIMENTO? REFERÊNCIAS ................................................................................. 139 INTRODUÇÃO Refletir a mulher no extremo de sua privação decorre da minha condição de mulher, estudante e futura profissional do direito, campo conservador e permeado de desconfiança. Observar e indignar-se são fundamentais para a problematização do sistema patriarcal, que insere a mulher na situação de cárcere através da aplicação de tipos penais construídos de forma seletiva, e duplamente seletiva quando aplicados à mulher, sendo questionáveis, portanto, os motivos determinantes que criminalizam certos comportamentos e quais as raízes dessas condenações. As violências estruturais contra as mulheres ocorrem em todas as áreas sociais e em todos os períodos históricos, sendo que o âmbito penal representa o grau máximo de violência, pois priva de liberdade mulheres cujas condutas sãoidentificadas como desviantes por um sistema machista, punitivista e inquisitorial. A privação de liberdade é um eufemismo, pois pretende silenciar uma série de violações já sofridas pelas mulheres, consequentes de sua socialização impetuosa e condicionante ao papel social de inferioridade, que tem como regra o controle de sua sexualidade pelas instituições de poder. As características comuns entre as mulheres presas não são coincidências, apenas representam a perseguição instituída pelos controles formais e informais a todas as mulheres que questionam sua condição, que rompem com as expectativas da sociedade patriarcal, bem como a todas que ousam desvirtuar-se por amor. Atenta-se que, para toda e qualquer análise da condição e da situação das mulheres, deve-se considerar, para além do esperado comportamento natural – dócil e maternal – da mulher, os recortes de classe e cor, que são condicionantes da seletividade do sistema penal, caracterizado pela discriminação a certos padrões de mulheres conduzidas ao cárcere e, assim, ao esquecimento. Ir à raiz dos problemas e pretender uma mudança é o que o movimento feminista tem pautado desde os primórdios, tendo extrema relevância a partir das décadas de 60 e 70 do século XX, 14 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE quando as mulheres obtiveram, após muita resistência, a ocupação de representatividades antes limitadas apenas aos homens. No entanto, uma das estratégias do patriarcado é incluir mulheres nos espaços públicos, legislando – a título de exemplo, temos as parcelas determinadas que cabem às mulheres para cargos eletivos. Ou seja, se destina às mulheres uma representação de poder a partir de índices e porcentagens estabelecidas em lei, com o fim único de mascarar uma mudança. Assim, é cada vez mais necessário nomear o patriarcado e propulsionar novos espaços de discussão para novas estratégias, com ênfase para a libertação das mulheres, o que é diferente do “empoderamento”, pois representa uma luta coletiva da mulher pela mulher a partir do entendimento de que o Estado é um homem, de que a história é narrada e interpretada pelo olhar da dominação masculina e das opressões patriarcais, que condicionam e naturalizam a inferioridade das mulheres. Por conseguinte, o objeto desta pesquisa é compreender a relação entre o papel social da mulher e os fatores estruturantes da criminalidade feminina. Pretende-se um diálogo entre o patriarcado e o extremo da violência estrutural contra a mulher: a situação de cárcere. Dessa forma, a partir de uma metodologia dialética e indutiva, serão identificados, no pensamento criminológico, alguns pontos significativos para a construção de uma lógica persecutória da mulher, pela presença de comportamentos entendidos como desviantes e anormais. Ainda, considerando os dados particulares dos diálogos realizados com mulheres em situação de cárcere na Penitenciaria Estadual Modulada de Ijuí, propõe-se observar o que dizem as vozes silenciadas dessas mulheres, os motivos que as levaram a estar encarceradas, quais suas violências, suas dores e suas pretensões. O trabalho está dividido em três capítulos, que versam, respectivamente, sobre o patriarcado, a criminologia e a mulher em situação de cárcere. Em um primeiro momento, analisa-se a gênese do patriarcado e o alcance desse sistema, que configurou a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 15 visão sobre o feminino de forma violenta, e que desde os aprendizados da infância começa a se instalar na consciência de ambos os sexos para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal forma que a desconstrução do modelo assimilado se torna difícil, já que ele passa a ser um traço cultural da sociedade na qual se insere. O segundo capítulo destina-se ao entendimento da criminologia e as etapas de construção da criminologia crítica, em que se estabelece a discussão sobre a recente criminologia feminista. Assim, uma leitura das principais escolas da criminologia e a construção das criminologias antecede a análise do controle social formal e informal e suas inter-relações com o papel social da mulher, para, então, discorrer sobre a criminologia crítica e os contrapontos da criminologia feminista. A relação entre criminologia e feminismo apresenta várias fases de atração e repulsão; na década de setenta, por exemplo, Carol Smart, socióloga e feminista, acreditava que a criminologia feminista estava ao lado de outras existentes, como a radical e da classe trabalhadora, uma vez que a tradicional ignorava as mulheres. Assim, as feministas e as/os estudiosas/os sugeriram o repúdio total à criminologia atuante, sugerindo a quebra de um paradigma e uma nova perspectiva, a ser construída a partir da experiência das mulheres (feminist standpoint ou apenas standpoint). Entretanto, a resistência iniciada nos anos 90 do século XX apresentou uma série de novos estudos e divergências quanto ao objetivo do campo de pesquisa, indagando a pretensão à formação de uma criminologia transgressora ou de uma ciência sucessora. Então, o surgimento de novas criminologias, como a multiétnica e queer, além de acrescer à ambiguidade dos estudos, fragmentou a realidade do campo, o que torna razoável o questionamento em relação à existência de uma criminologia feminista, uma vez que presentes as condições necessárias para o desenvolvimento dessa perspectiva em criminologia. 16 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Cabe ressaltar que tanto as teorias feministas como a criminologia estão marcadas por referências estrangeiras e, como salienta Raul Zaffaroni, todo o processo de recepção e tradução das teorias estrangeiras ao contexto local não escapou do colonialismo, o que faz importante conhecer o sujeito que as recepciona e perceber como estão entrelaçadas as estruturas de poder. A realidade brasileira configurou o feminismo de modo diferente aos países centrais, sendo a luta pela redemocratização do país, nas décadas de sessenta a oitenta, uma condicionante para que o feminismo pautasse liberdades democráticas e direitos humanos, especialmente introduzindo questões das mulheres na discussão, enquanto que, ao mesmo tempo, o feminismo estadunidense aprofundava o debate quanto à subordinação e ao direito das mulheres. O feminismo segue problematizando categorias que sustentam suas políticas e avança para novas fronteiras de conhecimento, apresentando novos contrapontos, como o do feminismo pós-moderno, que defende que as narrativas explicativas das opressões das mulheres já não se sustentam mais, o que, infelizmente, leva à tentativa de desconstrução de pensamentos fundantes do movimento que ainda não foram esgotados. Assim, as atuais problematizações e novos contrapontos, quando levados ao encontro da criminologia, não prosperam, não rompem paradigmas, pois a ausência da inclusão de gênero em todo o discurso criminológico, mesmo na criminologia crítica, torna impermeáveis tais aproximações. A omissão do gênero e das opressões das mulheres é verificada também nas teorias percursoras da chamada virada criminológica, ou seja, desde a recepção do paradigma da reação social, dado pela teoria do etiquetamento, (labeling approach), até a construção de uma criminologia crítica, estruturada através de um controle social. As formulações de inquietações na análise do discurso criminológico orientam a ideia primordial de um novo paradigma, CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 17 pois esse campo de estudo está vinculado a muitas outras áreas do saber e, por isso, tem grande influência na determinação e na construção de padrões de infratores e de condutas desviantes. O capítulo propõe uma análise temporal para tentar (re)conhecer as origens das opressões e consequências das socializaçõesna determinação da seletividade e do condicionamento da mulher à vulnerabilidade do cárcere, com a intenção de problematizar que não há possibilidade de recuperar-nos do sistema patriarcal sem desmistificar a imagem da mulher, traço cultural comum a muitas sociedades. O terceiro e último capítulo expõe a pesquisa de campo ou o resultado das entrevistas semiestruturadas realizadas na Penitenciária Estadual Modulada de Ijuí (PMEI). O modelo de entrevista semiestruturada é uma técnica de pesquisa mais espontânea do que a estruturada, pois, mesmo que parta de um conjunto de questões predefinidas, dá liberdade para adicionar outras que surjam no decorrer das entrevistas. As questões predefinidas funcionam como uma diretriz, mas não ditam a forma como decorre a entrevista, não estipulando ordem, nem mesmo forma. Na PMEI, foram entrevistadas seis (6) mulheres acerca de sua condição de cárcere, através de questionamentos quanto às suas motivações, suas vidas antes do envolvimento com o crime, mudanças, dificuldades e consequências do cárcere, bem como aspirações para uma vida depois do cumprimento da pena, que passará a ser sinalada como de uma ex-presidiária. Os dados colhidos durante a pesquisa serão apreciados com sigilo e com o intuito de identificar, nos discursos das mulheres, a abrangência do sistema patriarcal; verificar, nas situações particulares e comuns de cada, uma a transformação do patriarcado e sua atual e operante opressão; e identificar as mulheres que hoje são perseguidas e castigadas pelas instituições de poder. Os dados da PMEI serão comparados e analisados a partir do relatório prévio da atual pesquisa idealizada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul, Edital PPSUS 2013-2015, 18 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE vencido pelo projeto A situação das mulheres privadas de liberdade e o Apoio Matricial em Saúde Mental a Equipes de Atenção Básica inseridas no Sistema Prisional e realizado pela coordenação da Professora Doutora Renata Dotta. O projeto foi constituído por uma Instituição Executora – a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul; uma Co-executora – a Fundação Escola do Superior do Ministério Público; e por Instituições Participantes do Projeto – o Instituto de Criminologia da Universidade de Sevilla/Espanha e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assim, pede-se à leitora e ao leitor que considere se despir de pré-conceitos ao escutar as vozes silenciadas das mulheres em situação de cárcere, das mulheres que atingiram o ápice da violência, a fim de que seja possível um diálogo entre os dados apresentados e a situação atual do nosso sistema de justiça criminal, construído pelo patriarcado e que tem confirmado a sua falência em todos os aspectos. Apela-se, principalmente, às mulheres, que passem a observar e questionar as qualidades positivas atribuídas aos homens e as negativas atribuídas às mulheres, pois apenas o (re)conhecimento e a problematização dos questionamentos quanto à situação de inferioridade motivarão as buscas de soluções e câmbios de socializações, impedindo a legitimação e a perpetuação das violências enfrentadas pelas mulheres. Um dos principais pontos a serem pleiteados para uma mudança de paradigma é que o machismo compromete negativamente o resultado das lutas pela democracia, pois suas relevâncias dizem respeito apenas à elaboração de uma democracia pela metade e para a metade privilegiada da humanidade. Portanto, é impensável mudar comportamentos de mulheres sem também buscar redefinir os papéis dos homens, ressignificar as condições e as oportunidades de cada sexo e de cada gênero socialmente construído, para obter igualdade social e, principalmente, equidade, compreendendo a situação do oprimido CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 19 e, também, a situação do opressor. No entanto, é primordial que as redefinições de papéis aconteçam com o anterior conhecimento e real debate quanto às condições de opressão naturalizadas e impostas às mulheres, para que, a partir daí, da libertação do padrão social de inferioridade de cada mulher, seja dada sequência à ressignificação de papéis. Uma nova leitura dos chamados “paradigmas criminológicos” dá base para a discussão acerca das mulheres neles identificadas. Uma vez que a análise histórica e comparativa resgata, além das escolas criminológicas sistematizadas (clássica, positivista e crítica), os sistemas punitivos da antiguidade, pertencentes a uma criminologia etnológica que apresenta os momentos anteriores necessários para situar o papel da mulher em relação à transgressão das regras sociais. Trata-se de uma seletividade e de um poder estigmatizante que, no decorrer do tempo e das transformações sociais, permanecem controladas informal e formalmente, a fim de manter todas as relações de domínio que se entrelaçam e se sustentam tanto no espaço público quanto no espaço privado. CAPÍTULO I O OUTRO: O QUE SIGNIFICA SER MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL? Hacemos al pasado las preguntas que queremos ver respondidas en el presente. (Gerda Lerner, 1990) 2.1 A Gênese do Patriarcado O patriarcado1 condicionou as mulheres através de características e comportamentos que definem quais são dignas de terem seus direitos reconhecidos, e também quais são merecedoras de proteção e sensibilização social. Carole Pateman (1993) assegura que o patriarcado se refere especificamente à sujeição da mulher e reafirma o direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens. O patriarcado, portanto, pode ser entendido como uma forma de organização social favorável à metade masculina da espécie humana, caracterizado pela dominância dos homens e a subordinação das mulheres, que se manifesta a partir do domínio do homem sobre os interesses e as concepções de mundo. Registros históricos apontam que teóricos políticos travaram longas discussões a respeito da legitimidade e dos fundamentos das formas de poder político e, assim, do direito patriarcal. A interpretação tradicional da história do pensamento político se posiciona no sentido de o patriarcado ter sido superado há mais de 300 anos, devido também à considerável influência do século XX, quando o modelo patriarcal foi quase totalmente ignorado (LAGARDE, 2005). Os registros também mostram que as feministas têm questionado sua condição de mulher e, desde o final 1O termo patriarcado vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando), raiz de duplo sentido também explícita em acarco e monarquia. Para o grego antigo, a primazia no tempo e a autoridade são uma só e a mesma coisa (HIRATA, 2009). 22 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE do século XVII2, afirmam que, na realidade, os teóricos políticos modernos perpetuam a instituição do direito patriarcal. As reinvindicações das mulheres construíram a dialética da história3, que consiste em uma série de questionamentos a diversas áreas do saber, quanto às interpretações das experiências reais das mulheres e quanto à sua exclusão do processo histórico. Assim, a procura por preencher essas lacunas de representação levou à construção de uma história compensatória, que permitiu a compreensão de que o homem não é a medida de tudo que é humano, mas sim os homens e as mulheres (LERNER, 1990). O ordenamento e a interpretação do passado da humanidade impediram a participação das mulheres, o que dá sentido a um processo de perpetuação da civilização patriarcal, em que as mulheres são uma maioria populacional estruturada pelas instituições sociais para representar uma minoria. Uma história das mulheres pretendeum novo marco teórico, não androcêntrico4, em que as mulheres sejam protagonistas de suas vidas, erradicando as opressões a partir de novos enfoques antropológicos, constituintes de uma antropologia da mulher5, cuja perspectiva incorpora seus conhecimentos e experiências em qualquer disciplina. No entanto, uma 2O feminismo identifica a obra de Mary Wollstonecraft, publicada em 1792 e intitulada “A Vindication of the Rights of Woman”, como percussora da defesa das mulheres. Segundo a autora, as mulheres deveriam ser tratadas de forma racional como eram tratados os homens. 3Dialética é a teoria das leis gerais do movimento, do desenvolvimento do mundo e do conhecimento da humanidade; é tese e antítese, cuja modalidade original é o diálogo. Inicia com os pensamentos de Heráclito no século VII e, posteriormente, no século XIX, Hegel afirma um terceiro tempo da dialética, a síntese, com o pensamento de que não se poderia restringir a dialética entre afirmação/negação; para ele, a dialética é consenso, integração do que há de bom na tese e na antítese, o que deu origem à dialética moderna, seguida por Marx, Gramsci, Sartre, entre outros (SOUZA, 2003). 4 “Androcentrismo é a visão do mundo que situa o homem como centro de todas as coisas. Parte da ideia de que uma visão masculina é a única possível e, portanto, universal para toda a humanidade, o que conduz a uma invisibilidade das mulheres, inclusive na ciência.” (HIRATA, 2009, p.58). 5 “(…) distante de conformarem um corpo de leis e um modelo fechado e acabado, a antropologia da mulher é uma perspectiva filosófica que tem incorporado conhecimentos da economia, biologia, sociologia, psicanálise e qualquer outra disciplina.” (LAGARDE, 2005, p 60). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 23 continuidade patriarcal se revela a partir das características comuns às diversidades culturais e às sucessivas formações sociais, que não são alteradas mesmo após as mulheres terem formado parte dessas transformações, o que se identifica na transcrição de registros históricos (LERNER, 1990). A exclusão das mulheres da construção dos registros reforça, portanto, a sua aceitação da ideologia patriarcal, consequência dos mais de 2.500 anos em que as mulheres estiveram privadas de aceder conhecimentos e conviver em espaços de construção e intercâmbio cultural. O (re)conhecimento dessas opressões e o avanço da história e dos métodos de trabalho e pesquisa devem ser utilizados para que erros sejam citados: as parcialidades, a falta de objetividade dos estudos que foram feitos sem o enfoque de gênero. Trata-se não de desvalorizar o pesquisado, mas de não aceitar que as constatações são inquestionáveis, universais. Quer- se demonstrar que as evidências constituem uma das variáveis da realidade humana, e que todos os paradigmas extraídos do mundo masculino das ciências sociais nascem a partir da negação da humanidade da mulher. Há, aqui, uma oportunidade para homens e mulheres criarem e aceitarem novos modelos, parâmetros e paradigmas que correspondam a uma concepção de mundo que inclua interpretações de mulheres (FACIO e CAMACHO, 1995). Há grande urgência de que o patriarcado seja nomeado e estudado6, pois seu esquecimento ou substituição por termos relacionados às violências contra a mulher não aprofundarão os estudos de forma suficiente para que ocorra a quebra de um paradigma (PATEMAN, 1993). O sistema patriarcal se mantém também graças à cooperação das mulheres, que, condicionadas à inferioridade, são privadas da representação e interpretação de suas vidas, abstendo-se de questionamentos e naturalizando o 6“Porque o uso exclusivo de ‘patriarcado’ parece conter já, de uma só vez, todo conjunto de relações: como são e porque são. Trata-se de um sistema ou forma de dominação que, ao ser (re)conhecido já (tudo) explica: a desigualdade de gênero.” (MACHADO, 2000, p.3). 24 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE sistema opressor. Simone de Beauvoir, a partir de uma perspectiva de esvaziamento de valores e do direito de poder se consubstanciar em um tema de relevo, expressa que a cultura insere as mulheres na dimensão de simples alteridade, como o outro. Nesse sentido, a autora afirma e indaga que [t]odo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência a sente como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? (BEAUVOIR, DS I, 1980, p. 23). A condição de ser mulher é resultado do conjunto articulado da civilização, que elabora o que se qualifica e, de forma ainda mais pejorativa, como deve se expressar o feminino na sociedade7. As atribuições de papéis sociais distintos a homens e mulheres, constituídos a partir de dados etnográficos e feitos históricos, permitem a perpetuação de uma assimetria sexual (LERNER, 1990), cujo complexo de fenômenos opressivos articula a inferioridade, a discriminação, a dependência e a subordinação das mulheres, tornando-as cativas8 em decorrência de sua condição genérica e de sua situação particular9. 7 O mito da feminilidade, conforme Beauvoir, é usado na tentativa de estereotipar o comportamento da mulher. A autora se dedica a discutir como se inicia essa construção, o que, para ela, acontece na infância. O mito da feminilidade se instaura silenciosamente nesta idade; desde os primeiros anos, os adultos passam a incentivar diferenças; ao menino, por exemplo, é dada a liberdade de brincar, de usar da violência para enfrentar outros meninos, enquanto a menina é confinada aos brincados, principalmente às bonecas, que espelham sua própria passividade (BEAUVOIR, 1980). 8 Existem poucas e reduzidas formas de ser mulher. A sociedade está definida para encerrar e estimular as mulheres para que representem um número reduzido de conhecimento cultural e, CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 25 Nesse sentido, O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, revelou que a opressão está articulada em todos os aspectos do problema das relações entre os sexos, nas modalidades sociológicas, econômicas e psicológicas, pois elas estão criadas dentro da mesma estrutura, organizada por uma relação de dominação masculina evidenciada de forma reinante nas civilizações conhecidas e que, de forma desleal, é apresentada como passível de ser superada. Afirma o texto fundador do feminismo do século XX que as diferenças físicas entre os sexos não mais poderiam ser a justificação de uma hierarquia social e política. A obra tende a defender a teoria universalista, mas em nenhum momento exclui a persistência de uma diferença de sexos, que não poderia ser usada, portanto, para impedir o acesso social e político das mulheres. A concepção da relação entre os sexos é variável, devido à existência de particularidades em cada cultura. No feminismo, há três linhas sobre a percepção dessas diferenças; cito-as de forma breve: a linha universalista, que se baseia na ideia de que todos os seres humanos são iguais, independente das características físicas, pois sua estrutura é consequência da socializaçãoe das relações de poder, tratando-se, portanto, de querer dissolver as categorias homem e mulher, no sentido de que a especificidade das mulheres é uma produção social destinada a justificar sua subordinação; a linha diferencialista, que compreende que há dois sexos e que o principalmente, que estejam afastadas da possibilidade de compreender os motivos das opiniões dominantes na sociedade, uma vez que são os condicionantes de suas vidas particulares. Esses grupos e esses modos de vida são conhecidos porque são especificidades sociais e culturais das mulheres, que se configuram por alguma característica subjetiva decorrente da condição de ser mulher (LAGARDE, 2005). 9 A situação das mulheres é um conjunto de características que todas as mulheres possuem a partir de sua condição genérica em circunstâncias históricas particulares. A situação expressa a existência concreta das mulheres particulares a partir de suas condições reais de vida: a formação social em que nasce, vive e more cada uma, as relações de produção-reprodução e, junto com isso, a classe social, o grupo de classe, o tipo de trabalho, a atividade vital, os níveis de vida e o acesso a bens materiais e simbólicos, a língua, a religião, os conhecimentos, as definições políticas, o grupo de idade, as relações com outras mulheres, com os homens e com o poder, assim como as preferências eróticas, os costumes, as tradições próprias e a subjetividade pessoal (LAGARDE, 2005). 26 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE acesso à igualdade não equivale ao acesso à identidade, foi defendida pela psicanálise por muito tempo, e enxerga as diferenças morfológicas10 como fundamentos que determinam uma variante da humanidade, a mulher; já a teoria do pós- modernismo e a queer se desenvolveram a partir dos anos setenta, compreendendo que o sexo não pode ser substantificado, pois é entendido como performático (HIRATA, 2009). Ser mulher e ser homem11 são fatos socioculturais e históricos e, além das características biológicas de cada um, há um complexo de determinações e características econômicas e sociais que constituem o gênero12, produto de uma relação entre biologia, sociedade e cultura. Ser mulher é consequência de uma construção histórica, que a define como ser social e cultural genérico (SAFFIOTI, 1987). O processo histórico sob o qual surgiram as classes13 e os gêneros é representando, inicialmente, por uma cisão 10Sabendo, assim, que o homem e a mulher são vistos como duas variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia, compreendemos por que, até o Renascimento, não se dispusesse de terminologia anatômica para descrever em detalhes o sexo da mulher, que é representado como composto dos mesmos órgãos que o do homem, apenas dispostos de maneira diversa. Por isso, como demonstra Yvonne Knibiehler, os anatomistas do princípio do século XIX (sobretudo Virey), ampliando o discurso dos moralistas, tentam encontrar no corpo da mulher a justificativa do estatuto social que lhes é imposto, apelando para oposições tradicionais entre o interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade. Bastaria seguir a história da “descoberta” do clitóris, tal como a relata Thomas Laqueur, prolongando-a até a teoria freudiana da ligação da sexualidade feminina do clitóris para a vagina, para acabar de demonstrar que, longe de desempenharem o papel fundador que lhes é atribuído, as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculinos e femininos são uma construção social que se iniciou com os princípios de divisão da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher (BOURDIEU, 2016). 11A divisão entre sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas ‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus de agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção de pensamento e de ação (BOURDIEU, 2016). 12Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas são analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o sexo é uma forma primeira de significar as relações de poder (SCOTT, 1989). 13Do ponto de vista das classes sociais, podem-se distinguir, basicamente, dois sentidos da história: o das classes dominantes e o das classes subalternas. Do ângulo das categorias de sexo, as mulheres, ainda que façam a história, têm constituído sua face oculta (SAFFIOTI, 1987). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 27 entre os seres humanos, fundamentada pela diferenciação excludente e compulsória entre homens e mulheres (LAGARDE, 2005). Dessa forma, o aporte de uma antropologia da mulher14 permitiu a retomada de conceitos que sustentam a disciplina, como a cultura, suas origens e suas evoluções, a partir da determinação de diferenças genéricas entre os sexos e a investigação da forma em que as mulheres interferiam para a construção de temas pontuais, como a religião, o poder e as relações econômicas. Neste trabalho, considera-se sexo e gênero uma unidade, uma vez que não existe sexualidade biológica independente do contexto social em que é exercida; por isso, o confinamento atribuído exclusivamente ao gênero feminino deve ser compreendido como um processo duplo, permanente e inconcluso, em que a mulher é reduzida à sua sexualidade, definida historicamente como produto de suas qualidades naturais e biológicas, representadas por um número escasso de reais diferenças entre os dois sexos e pelo desproporcional ao valor dado a essas diferenças (LAGARDE, 2005). Compreende-se, então, o sexo como uma realidade, uma condição biológica distinta entre homens e mulheres15, enquanto que o gênero é a definição cultural dos papéis sociais atribuídos aos sexos em uma sociedade e em um determinado momento histórico. Portanto, este trabalho acompanha as feministas que recusam o uso exclusivo do conceito de gênero, pois a rápida, ampla e profunda aceitação do termo está intimamente relacionada à omissão e ao silenciamento do fato de que é necessário alterar as relações sociais desiguais entre homens e mulheres. O uso exclusivo do conceito gênero como neutro e 14 A perspectiva antropológica é dialética: não encontra causas únicas nem últimas; por isso, é necessária para entender um fenômeno multideterminado, complexo e diverso como é a mulher. A antropologia é uma possibilidade para criação de novas perspectivas (LAGARDE, 2005). 15A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo feminino e o masculino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2016). 28 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE equivalente a qualquer relação de violência, dá a ideia de que ele nada tem a ver com a biologia do corpo humano, sendo que, na verdade, ele depende do sexo, pois está construído socialmente, e os papéis sociais de homens e mulheres lhe são atribuídos de acordo com a sua genitália, o seu sexo. Dessa forma, tratar esta realidade em termos que seguem exclusivamenteo conceito de gênero distrai a atenção do patriarca, neutralizando a dominação masculina (SAFFIOTI, 2015) ao não nomear a parte oprimida da sociedade – mulheres, pessoas que têm vaginas – e a parte opressora – homens, pessoas que têm pênis. Então, são as definições estereotipadas das mulheres que resignam seus círculos de vida particulares, e, a partir disso, cada círculo passa a constituir um determinado confinamento, construído pelo entorno de definições essencialistas do que seria “ser mulher”, geralmente relacionadas à sua sexualidade. Segundo Marcela Lagarde: Todas las mujeres están cautivas de su cuerpo-para-otros, procreador o erótico, y de su ser de los otros, vivido como necesidad de establecer relaciones de dependencia vital y de sometimiento al poder y a los otros. Todas las mujeres, en el bien o en el mal, definidas por la norma, son políticamente inferiores a los hombres y entre ellas. Por su ser-de y para-otros, se definen filosóficamente como entes incompletos, como territorios, dispuestas a ser ocupadas y dominadas por los otros en el mundo patriarcal. Los grados y las formas concretas en que esto ocurre varían de acuerdo con la situación de las mujeres, con los espacios sociales y culturales en que se desenvuelven, con la mayor o la menor cantidad y calidad de bienes reales y simbólicos que poseen, y con su capacidad creadora para elaborar su vida y sobrevivir al cautiverio. (LAGARDE, 2005, p.41)16 16 Tradução: Todas as mulheres estão cativas de seu corpo-para-outros, procriador e erótico, e de seu ser para os outros, vivido como necessidade de estabelecer relações de dependência vital e de submissão ao poder e aos outros. Todas as mulheres, bem ou mal, definidas por normas, são politicamente inferiores aos homens e entre elas. Por seu ser-de e para-outros, se definem filosoficamente como entes incompletos, como territórios, dispostas a ser ocupadas e dominadas por outros no mundo patriarcal. Os graus e as formas concretas em que isso ocorre variam de acordo com a situação das mulheres, com os espaços sociais e culturais em que se desenvolvem, com a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 29 Depreende-se que cada mulher é parte de um conjunto de determinações e características universais, que sustentam a existência de ciclos particulares, que, por sua vez, estão expressos em um ciclo cultural, conformado pela sua sexualidade e sua relação com os outros (poder), estruturantes de sua condição perante a sociedade (LAGARDE, 2005). Nesse sentido, desde o nascimento até a morte, a mulher é representada pela sociedade patriarcal como ser incompleto e em constante transformação, pois nascer mulher implica um futuro pré-moldado, que estará reforçado por opressões determinadas a partir da forma de vida e classe que ocupa cada mulher, e que arquitetam os cativeiros a que estão submetidas. A cultura patriarcal organiza a vida da mulher a partir da vivência de uma sexualidade destinada para o outro, como cidadã, como fiel, como mãe ou como prostituta, categorias aprofundadas de acordo com os necessários recortes culturais, que permitem a contextualização das opressões patriarcais – ou seja, permite a compreensão de quais os círculos e quais os cativeiros nos quais mulher está inserida. Nesse sentido, a história de qualquer sociedade conhecida e tradicional demonstra que os primeiros escravos foram as mulheres de grupos conquistados, o que precede a formação e a opressão de classe, e permite, por exemplo, compreender a múltipla exploração das mulheres negras, como trabalhadoras, como prestadoras de serviços sexuais e como reprodutoras. Os defensores científicos do patriarcado justificavam as mulheres seriam definidas pelo seu dom maternal, e que a sua exclusão de oportunidades econômicas e educativas se justificava por serem detentoras da causa mais nobre: a sobrevivência da espécie. Nota-se que a constituição biológica e o valor dado às suas relações limitou as mulheres a certas atividades profissionais, pois maior ou a menor quantidade e qualidade de bens reais e simbólicos que possuem, e com sua capacidade criadora para elaborar sua vida e sobreviver ao cativeiro. 30 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE eram dependentes de suas necessidades biológicas, de proteção, de recato. Consequentemente, o patriarcado gerou tensões nos relacionamentos entre homens e mulheres, visto que ambos estão condicionados a seus papéis sociais: o homem com o dever de preservar o domínio e a mulher de ser submissa (LERNER, 1990). Diante disso, o surgimento de codificações no decorrer da história demonstra a instituição de mecanismos de controle comportamentais para que a mulher não cogite outro papel que não o de reprodutora, fiel, amorosa e julgada pela lealdade devida ao marido. É fato que as mulheres estão subordinadas ao domínio, ao controle e à dependência do outro. Portanto, sua opressão se manifesta a partir da discriminação que sofrem, pois o paradigma social e cultural da humanidade é androcêntrico17 e define todas as construções mentais da civilização. Destaca-se, assim, a falácia do androcentrismo, pois a mudança de paradigma não pode ser alcançada simplesmente com o acréscimo de mulheres na formação de teorias e nos espaços públicos; é apenas a com a aceitação de que a humanidade é formada por homens e mulheres igualmente, e a reestruturação das crenças e realidades sociais, que esta mudança será alcançada (LERNER, 1990). A gênese do patriarcado, pelo exposto, é que as mulheres são oprimidas pelo fato de serem mulheres, independente de sua posição de classe, língua, idade, nacionalidade ou ocupação, porque o mundo patriarcal ensina que ser mulher é sinônimo de ser oprimido. Suas opressões se expressam e se fundamentam na desigualdade econômica, política, social e cultural e pela sua 17“A força da ordem masculina dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão sexual do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, à casa, reservada às mulheres; ou, no próprio lar, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, as atividades do dia, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos” (BOURDIEU, 2016, p. 18). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 31 posição submissa ao domínio do homem que, como veremos, são naturalizadas historicamente. 2.2 Os tempos, suas manifestações e suas exclusões A história demonstra a relevância do quarto milênio a.C., momento em que as sociedades começaram a se organizar e passaram a ser reconhecidas como civilizações, com seus métodos de domínio relacionados à terra e ao sexo. Nesse período, a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sistema chamado de patriarcal, com o domínio de maridos e pais. As civilizações, de uma forma geral, aprofundaram o patriarcado, pois uniram aspectos culturais e institucionais amplos, perpassando suas particularidades e criando padrões de estrutura para avida humana, que combinam as crenças e instituições mais amplas de cada civilização em particular (STEARNS, 2015). O deslocamento da caça e da coleta para a agricultura pôs fim, gradualmente, a um sistema de sociedade com uma considerável igualdade entre homes e mulheres, pois, por exemplo, na cultura de caça e coleta, as taxas de natalidade eram relativamente baixas e aumentaram a partir do momento em que os suprimentos de alimentos se tornaram mais seguros, em parte porque havia mais condições e possibilidades de aproveitar o trabalho das crianças para aumento da produção e dos excedentes (STEARNS, 2015). O desenvolvimento da agricultura, já no período neolítico (8.000 a.C.), impulsionou o intercâmbio de mulheres, não só como uma maneira de evitar guerras incessantes mediante a consolidação de alianças matrimoniais, mas também porque as sociedades com mais mulheres poderiam produzir mais crianças, já que uma das diferenças primordiais entre as sociedades coletoras e agrícolas foi o emprego da mão de obra infantil (LERNER, 1990). 32 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE A fixação de grupos em determinados espaços e o estabelecimento de moradias mais estáveis mudou radicalmente a estrutura da vida humana nessas regiões. A partir da geração de excedentes de produção, as pessoas passaram a realizar outras atividades, como o artesanato, a religião e o governo, em decorrência do tempo disponível (STEARNS, 2015). Houve uma drástica mudança nas relações familiares, principalmente em relação ao cuidado da mãe com a criança, com a impossibilidade dela ser criada por outra pessoa. A função de reprodução imposta à mulher ocasionou um aumento nos índices de mortalidade infantil, uma vez que as mulheres estavam condicionadas a ter muitas gestações e a ser responsáveis pela sobrevivência dos filhos (LERNER, 1990). Cada civilização desenvolveu características próprias, determinadas pelos seus interesses e alcances naturais, pela sua localização e pelo seu tempo histórico, e pelas suas preocupações, reconhecidas através de suas religiões, produções científicas e seu modo de governo. As alterações nas relações de poder entre homens e mulheres são consequências e reflexos de importantes mudanças econômicas, tecnológicas e militares, pois o período de formação do patriarcado não ocorreu de repente, mas foi um processo que se desenvolveu e se aprofundou no transcurso de quase 2.500 anos, desde aproximadamente 3.100 a 600 a.C. (do quarto ao segundo milênio) (STEARNS, 2015). A necessidade dessas civilizações se identificarem umas com as outras está relacionada com a abrangência do comércio interno, consequência dos excedentes de produção da agricultura, que proporcionou uma integração entre os povos e a construção de unidade, mantendo populações que até então eram diferentes, juntas. As classes altas, privilegiadas quanto ao acesso e conhecimento de outras línguas e culturas, fomentaram debates sobre o sistema filosófico, construindo tradições culturais e padronizando estruturas, delimitadas a partir do sexo, em diferentes graus e intensidades (STEARNS, 2015). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 33 O papel social dos sexos na criação das civilizações reflete a assimetria sexual que situa as causas de subordinação feminina. Biologicamente, o homem tem estrutura de caçador, o que o capacita para ser reconhecido como guerreiro protetor das mulheres vulneráveis, cujas habilidades eram restritas à função estrutural de reprodução, amor materno e dever de cuidado dos filhos (LERNER, 1990). Então, o tema do controle da sexualidade feminina e da procriação está inserido nas relações econômicas, restringindo o papel da mulher, que, ao perceber as diferenças e reconhecer suas opressões, manifesta-se por igualdade. Ocorre que tal reconhecimento é demorado, já que, como vimos, as representações femininas são constituídas pelo androcentrismo18, contestado pelas mulheres após o seu acesso à alfabetização, um dos desafiantes do protagonismo da história. As sociedades seguem a se modificar com os avanços culturais, principalmente pela industrialização, inerente a civilizações ocidentais ao final do século XIX. Os câmbios culturais permitiram que homens se libertassem de suas necessidades biológicas e que as mulheres acessassem uma possiblidade de igualdade formal; porém, as liberdades destinadas às mulheres só são compreendidas como aceitáveis porque ainda as mantêm destinadas ao mesmo serviço, principalmente pelo fundamento de sua estrutura biológica (LERNER, 1990). A mudança radical nas relações humanas ocorrida com o advento da agricultura e, principalmente, com o acesso aos excedentes de produção e câmbios culturais, permitiu que as civilizações se organizassem e se expandissem, mantendo domínios a partir de relações de poder 18 Tem-se androcentrismo quando um estudo, análise ou investigação tem como enfoque preponderante a perspectiva masculina, apresentando-a como central para a experiência humana de maneira que o estudo da população feminina, quando existente, se dá unicamente em relação às necessidades, experiências e preocupações dos homens. O androcentrismo pode se manifestar de duas formas, que são a misoginia e a ginopia. A misoginia consiste no repúdio ao feminino e ginopia na impossibilidade de ver o feminino ou na invisibilidade da experiência feminina. Estamos acostumados/as a ler e escutar explicações do humano que deixam as mulheres de fora, entretanto, nos sentimos incomodados/as quando se esquece do homem (FACIO, 1991). 34 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE entre sociedades e entre os sexos. A necessidade de garantir que esses excedentes e lucros ficassem sob o domínio masculino, para então se perpetuarem, criou novas formas e possibilidades de assegurar a propriedade privada nas mãos dos homens. Cabe observar a divergência histórica sobre as sociedades matriarcais, manifestada a partir de teorias que sustentam ou negam a universalidade da subordinação feminina. A existência ou não de um estágio de dominação feminina e de igualdade entre mulheres e homens, estão observadas pelas teorias marxista, estruturalista e materialista. É conveniente, então, que sejam apresentadas essas teorias. A teoria marxista trata de maneira mais específica quanto à mulher a obra A origem da família, da propriedade privada e do estado, de Engels, baseada em dados do trabalho de teóricos do século XIX19, que defendiam a existência de sociedades comunistas sem classes prévias antes da formação da propriedade privada; tais sociedades poderiam ser matriarcais ou não, mas o autor considera-as como igualitárias. Toda a divisão primitiva do trabalho descrita na teoria marxista está baseada na diferença entre os sexos, que condiciona a divisão em características biológicas e no alcance delas para medir força de produtividade. Essa divisão de trabalho perpetuou a ideia primitiva do determinismo biológico dos sexos20, estando os homens responsáveis por lutar na guerra, caçar e pescar, procurar alimentos e ferramentas necessárias para o trabalho, enquanto as mulheres estavam responsáveis por atender a casa, preparar os 19 Um dos doutrinadores utilizado por Engels foi J. J. Bachofen, jurista e antropólogo, cuja obra principal foi O direito materno, publicada em 1861, que tratou sobre o matriarcado, apresentando uma investigação sobre o caráter religioso e jurídico do matriarcado no mundo antigo. 20 “Em sociedades de tecnologia rudimentar, ser detentor de força física constitui, inegavelmente, uma vantagem. Em sociedades onde as máquinas desempenham funções mais brutas, que requerem força, a relativaincapacidade de levantar peso e realizar movimentos violentos não impede qualquer ser humano de ganhar seu sustento. Rigorosamente, portanto, a menor força física da mulher em relação ao homem não deveria ser motivo de discriminação. Todavia, recorre-se, com frequência, a este tipo de argumento, a fim de se justificarem as discriminações praticadas contra as mulheres. ” (SAFFIOTI, 1987, p. 12). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 35 alimentos e confeccionar as roupas. Engels entende que o surgimento da propriedade privada foi a derrota do sexo feminino21 e, portanto, somente as sociedades comunistas poderiam tratá-las como iguais. Entretanto, o modelo de divisão de trabalho de Engels é em certo ponto equivocado e profundamente criticado, pois já restou demonstrado que a definição do trabalho realizado por homens e mulheres difere de acordo com a cultura e o entorno ecológico em que vivem as pessoas. A teoria marxista22 entende que, nas sociedades tribais, o desenvolvimento da domesticação animal condicionou o comércio e as propriedades às mãos dos homens de diferentes famílias, mas não foi capaz de explicar o porquê. Não foi demonstrado e explicado como se deu o domínio masculino sobre os excedentes de produção e a conversão deles em propriedade privada, institucionalizada em uma família monogâmica e no desenvolvimento da domesticação animal (LERNER, 1990). Consequentemente, assegurar a propriedade privada requereu a constituição e institucionalização da família monogâmica23 e do controle da sexualidade feminina. Com a 21“A reversão do direito materno foi a grande derrota do sexo feminino. O homem passou a governar também na casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem, e um simples instrumento de reprodução. Essa condição humilhante para a mulher, tal qual como aparece, notadamente, entre os Gregos nos tempos heroicos, e mais ainda dos templos clássicos, foi gradualmente camuflada e dissimulada, e também, em certos lugares, revestida de forma mais amenas, mas não foi absolutamente suprimida” (ENGELS, 2012, p.42). 22 Para a teoria marxista, a ideologia da classe dominante é a ideologia dominante do conjunto da sociedade. Constata-se que a classe dominante é, entre outras coisas, identificada pela capacidade de elaborar visões sociais, da cultura e da história segundo seus próprios interesses. Lagarde se contrapõe ao entendimento de Marx e Engels, afirmando que as teorias dominantes incorporam, além dos interesses classistas, outros, que se expressam em grupos determinados, cujo domínio é essencialmente advindo da divisão de classes. A autora entende que as ideologias são determinadas como dominantes porque expressam as concepções e as normas e porque contribuem para a criação de necessidades surgidas aos grupos dominados (LAGARDE, 2005). 23 “A monogamia não foi, de forma alguma, fruto do amor sexual individual, com a qual nada tinha que ver já os casamentos permaneciam, antes como depois, feitos de conveniências. Ela foi a primeira forma de família fundada sob condições não naturais, mas econômicas, a saber, o triunfo da propriedade individual sobre o comunismo espontâneo primitivo. Soberania do homem na família e procriação de filhos que só podiam ser dele e destinados a tornarem-se herdeiros da sua fortuna. ” (ENGELS, 2012, p. 50). 36 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE exigência de castidade pré-conjugal e o estabelecimento do um duplo padrão sexual dentro do matrimônio, os homens asseguraram a legitimidade de sua descendência e garantiram, assim, seus interesses de propriedade (LERNER, 1990). A família monogâmica se transforma em uma família patriarcal, perpetuando a inferioridade da mulher, cujo trabalho ficou confinado à esfera privada, excluindo-a da participação na produção social (ENGELS, 2012). A teoria marxista expressa que, a partir do momento que o homem toma el mando de la casa, a mulher é inferiorizada e reduzida à serventia, a uma escrava das luxúrias masculinas e a um mero instrumento de reprodução (LAGARDE, 2005). As atribuições do marxismo são reconhecidas como aportes da teoria feminista para o reconhecimento das mulheres sobre suas posições na sociedade e na história24, já que, mesmo que seus pressupostos não tenham sido comprovados, foram os que definiram as principais questões teóricas dos cem anos seguintes (LERNER, 1990). A teoria marxista denunciou a conexão entre as mudanças estruturais nas relações de parentesco e mudanças na divisão do trabalho, por um lado, e a posição que ocupam as mulheres, por outro; demonstrou uma conexão entre o estabelecimento da propriedade privada, o matrimônio monogâmico e a prostituição; e, ainda, a conexão entre o domínio econômico e político25 dos homens e seu controle sobre a sexualidade feminina. A definição do matrimônio monogâmico, para Engels, é a mesma da primeira sociedade estatal26, como a sujeição de um 24 O primeiro a afirmar que o desenvolvimento de uma sociedade se mede pela condição da mulher foi o socialista utópico Charles Fourier, encapado posteriormente por Marx e, sobretudo, por Engels. 25 “Não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia – sem falar de socialismo – se não chamamos as mulheres ao serviço cívico, na milícia, na vida política, se não a tirarmos da atmosfera brutal do lar e da cozinha” (MARX, ENGELS, LENIN, 1979, p.12). 26 “Vimos o quanto Bachofen tinha razão ao considerar o progresso constituído pela passagem do casamento por grupos ao casamento tribal como obra da mulher; somente a passagem do último a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 37 sexo ao outro, entendendo que a primeira oposição de classes que aparece na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no matrimônio monogâmico, reconhecendo-o como a primeira opressão de classes – a do sexo masculino sobre o feminino27. As afirmações de Engels sobre a relação entre os sexos e o antagonismo de classe fez com que os teóricos não compreendessem, realmente, as diferenças entre as relações de sexo e as relações de classe (LERNER, 1990). Cabe ressaltar que, paralelamente à teoria marxista, surge a psicanálise de Freud28, sendo que ambas dialogaram profundamente, e seus discursos continuam persistentes até hoje. A diferença entre as duas teorias, além de seus objetos de pesquisa, foi que o questionamento das categorias marxistas de gênero ocorreu no campo epistemológico29, enquanto que a psicanálise tratou da filogênese, no caso, do desenvolvimento do ser humano e não da busca da compreensão da natureza e da gênese, da origem, do ser social e da sociedade (ontogênese), da qual se ocupou Marx. monogamia pode ser posto em conta do homem; sua única razão na história foi tornar pior a situação das mulheres e facilitar a infidelidade dos homens” (ENGELS, 2012, p. 61 a 63). 27 Tanto Engels como Bachofen afirmam que o patriarcado surgiu ligado à passagem de uma vida sexual comunitária para a adoção de certas formas de associação sexual, primeiramente com a família sindiásmica (o homem pode ter outras ligações, mas a mulher não; ainda, o casamento pode ser dissolvido por divórcio), e depois com o casamento monogâmico. As duas últimas formas asseguram ao marido a posse sexual exclusiva da mulher. “[...] as suposições dos autores, segundo as quais o patriarcado tem origem unicamente, ou em grande parte, na adoção de certas formas de associação sexual são insustentáveis; outras modificações de ordem social, ideológica,tecnológica e econômica parecem mais plausíveis. Em contrapartida, a afirmação de Engels de as mulheres constituírem a primeira propriedade é verdadeira. Mas quando ele sustenta que as mulheres são reduzidas à condição de objeto pelo casamento, que dá ao homem a posse sexual exclusiva (posse não recíproca), isto pressupõe já condições patriarcais. ” (MILLETT, 1970, p.80). 28 “[...] a fundação da Psicanálise por Freud, no final do século XIX, que vai fazer a diferença dos sexos o motivo central da reflexão. Aqui, pode-se também observar oscilações complexas entre a afirmação de um e dos dois sexos, o horizonte do mais e do menos: a centralidade do falo força ambos os sexos à experiência de castração, mas de maneira mais difícil para as mulheres devido, por um lado, à sua primeira relação desejante da mãe que, em seguida, deve ser voltar para um homem, e, por outro lado, à falta de pênis traduzida como ‘inveja do pênis’. ” (HIRATA, 2015, p.61). 29 Compreende-se por epistemologia toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições vitais para a constituição do conhecimento válido. É por via deste conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional ou inteligível (SOUZA, 2013). 38 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Assim, o pensamento psicanalítico foi subversivo e conservador30, ao passo que ao marxista não se aplica o segundo termo (SAFFIOTI, 2015). Outra teoria acerca da subordinação das mulheres é a estruturalista, baseada na obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1973), que defende que os homens construíram a cultura a partir de um só componente histórico. Há o reconhecimento do tabu do incesto como um mecanismo universal humano, enraizado em qualquer organização social, sendo sua proibição compreendida não só como uma norma que proíbe o matrimônio com a mãe, a irmã e a filha, mas uma norma que obriga a dar a mãe, a irmã ou a filha a outros, como gratificações. Para a teoria, o intercâmbio de mulheres foi a primeira forma de comércio, que as converteu em mercadoria, considerando-as coisas antes de seres humanos (LERNER, 1990). Com relação ao entendimento do intercâmbio de mulheres como a primeira forma de comércio e em relação à teoria, a antropóloga e feminista Gayle Rubin31 apresenta as consequências e extensões desse sistema para o pleno exercício do direito das mulheres sobre si mesmas. As relações sociais do sistema familiar, segundo a antropóloga, decretam aos homens direitos sobre as mulheres da família, sem considerar os motivos que deram início a um intercâmbio de mulheres e não de crianças e sem lograr responder, também, o que levava as mulheres a estarem de acordo. 30 “Ao considerar as teorias de Freud sobre as mulheres, devemos atentar não só para as conclusões que tirou dos fatos que dispunha como também para as hipóteses sobre as quais se baseou. Para Freud, os sintomas das suas pacientes não traduziam uma insatisfação justificada perante a situação restritiva que lhes impunha a sociedade, mas uma tendência independente e universal do caráter feminino. Batizou esta tendência de ‘inveja ao pênis’, descobriu as origens na experiência de infância, e sobre ela fundou a psicologia da mulher, organizando o que considerava como os três corolários da psicologia feminina- passividade, masoquismo, narcisismo-, de forma que cada um destes aspectos dependia de ou estava em relação com a inveja do pênis.” (MILLETT, 1970, p. 177). 31 A antropóloga, em 1975, afirmou que o sistema sexo/gênero consiste numa gramática, segundo a qual a sexualidade biológica é transformada pela atividade humana, tornando disponíveis os mecanismos de satisfação das necessidades sexuais transformadoras. Sua principal obra é “Deviations: A Gayle Rubin Reader”, publicada em 2011. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 39 Assim, “a teoria estruturalista reconhece o sistema sexo/gênero como um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humanas. ” (RUBIN, 1993, p.3). Esses questionamentos provocaram uma mudança nas teorias feministas, que passaram a buscar desde as origens econômicas até os sistemas de símbolos e significados das sociedades conhecidas, identificando as mulheres como inferiores, como forma de intermédio entre seres. Cabe salientar que os estudiosos de gênero pós-modernos32 apresentaram críticas à Gayle Rubin, devido ao fato de que ela trabalhava com oposições como natureza e cultura e separação entre os sexos; contudo, a antropóloga e professora Sherry Ortner,33 em 1974, apresentou um breve ensaio que defende a universalidade da subordinação feminina, afirmando que em qualquer sociedade conhecida as mulheres estão identificadas como mais próximas da natureza do que da cultura, tendo sido convertidas em um símbolo de inferioridade. Ao lado de Ortner, feministas defendem a universalidade da subordinação feminina, se não nas condições sociais atuais, ao menos nos sistemas de significado da sociedade. Os que se opuseram a essa visão foram criticados por desconsiderarem processos históricos, momento em que se coloca em dúvida a aceitação implícita do feminismo estruturalista na dicotomia imutável entre homens e mulheres (LERNER, 1990). O aprofundamento do debate evidenciou que nem a ideia de que um único e específico feito seria a causa responsável de certo problema, nem a ideia de universalidade, vão responder corretamente a questão das causas de subordinação. As explicações 32 Ao contrário do sentido adotado por este trabalho para sexo e gênero, podemos citar, a nível de informação, os estudos de Judith Butler, a partir dos quais o sexo passa a ser visto como culturalmente construído e gênero como meio de discurso para a construção do sexo. 33 Uma de suas principais obras foi publicada em 1974, intitulada Is female to male as nature is to culture?. 40 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE econômicas, realçadas a partir de considerações biológicas, passaram a ter que tratar com o poder dos sistemas de crenças, símbolos e construções mentais. A teoria materialista, portanto, tem sido considerada como uma teoria feminista na prática e nas intenções, e também como uma teoria representante da tradição histórica ao pensar sobre as mulheres, construída, portanto, a partir da aceitação de diferenças biológicas entre sexos e do reconhecimento de uma divisão de trabalho condicionada por essas diferenças. Uma das obras que impulsionou os debates feministas foi a de J.J. Bachofen, quando o antropólogo descreveu várias etapas da evolução da sociedade, desde a barbárie até o moderno patriarcado, afirmando que nas sociedades primitivas existiram culturas matriarcais. No entanto, as feministas norte-americanas desenvolveram a teoria materialista, dando origem a uma doutrina patriarcal redefinida quanto à esfera da mulher, que passou a relacionar as privações das mulheres com a imposição de fragilidade ao seu sexo, já que frequentemente os registros históricos colocam as mulheres como responsáveis por resgatar a sobrevivência da sociedade da destruição, da competitividade e das violências criadas por homens, possuidores de um poder absoluto, como portadoras de uma missão para sobrevivência humana. O acesso a uma educação igual e a participação na vida pública em igualdade com os homens foi, e ainda tem sido, um dos maiores obstáculos enfrentados pelas mulheres, que, mesmo após a instituição de novos modos de governo, mantiveram seus papéis de subordinação e de responsabilidade para com a educação dos filhos34, futuros condutores sociais (LERNER, 1990). Elizabeth34 “[...] o pai pode omitir-se em tudo, mas resguarda sua autoridade. Mesmo quando cabe à mulher total responsabilidade pela educação dos filhos, é ela mesma que, diante de uma traquinagem dele, ao invés de aplicar-lhe o castigo devido, omite-se, ameaçando-o com o famoso ‘contarei tudo a seu pai quando ele chegar’. A autoridade, assim, permanece nas mãos daquele que não educa. A responsabilidade cabe àquela que não detém autoridade. Desta forma, fica extremamente difícil, senão impossível, mostrar às crianças os limites de atuação, os limites do permissível. ” (SAFFIOTI, 1987, p.37). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 41 Stanton35, feminista e ativista estadunidense, desenvolveu o argumento considerado materialista-feminista quando afirmou que as mulheres tinham direito a igualdade porque eram cidadãs. Posteriormente, com base no mesmo fundamento, as feministas organizaram o movimento sufragista e passaram a questionar o trabalho da mulher, além de reivindicar participação social e política através do voto. As feministas materialistas afirmam que a busca pela existência de sociedades matriarcais foi essencial para afirmar a teoria e reivindicar igualdade. Nessa busca se identificou que as mulheres são vistas em muitas civilizações como deusas, afirmando a existência de poder feminino, de uma idolatria; contudo, esses entendimentos são constituídos de uma combinação de pesquisas em diversas áreas, consideradas duvidosas e ligadas por presunções. Os antropólogos modernos têm refutado evidências etnográficas que embasaram os argumentos de Bachofen e Engels para a existência de uma civilização matriarcal, reconstituindo as evidências e fundamentando a existência de uma sociedade matrilinear, que, em regra, tinha sua economia e relações parentais controladas pelo parente-homem. Nota-se que são diversas as concepções acerca da existência de sociedades matriarcais (SAFFIOTI, 2015), e o espaço destinado à pesquisa não permite um aprofundamento da construção dessas sociedades. Contudo, as interpretações históricas demonstram que nas sociedades caçadoras e coletoras, independente do status social e econômico, as mulheres eram subordinadas, em alguns aspectos, aos homens, já que em nenhuma sociedade conhecida as mulheres, coletivamente, tiveram o poder de tomar decisões sobre os homens ou de definir as normas sobre suas condutas sexuais ou variar matrimônios (LERNER, 1990). Assim, aqueles que definem o 35 Stanton, ativista feminista e abolicionista, dedicou-se aos direitos políticos das mulheres, abordando questões para além do sufrágio feminino. Suas principais obras são History of Woman Suffrage, publicada em 1881, e The Woman’s Bible, publicada em 1972. 42 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE matriarcado como uma sociedade em que as mulheres dominam os homens, como o inverso do patriarcado36, sustentam seus argumentos em evidências extraídas da mitologia e da religião, e não de dados antropológicos e históricos. Dessa forma, a intepretação feminista de diversas áreas através da teoria materialista refuta, atualmente, uma série de definições a partir da releitura dos dados e nova interpretação das habilidades femininas como tão variadas quanto as dos homens e em igualdade de essencialidade para a sobrevivência humana. As descrições das interpretações feministas de Nancy Chodorow37 são apresentadas por Lerner (1990) e Pateman (1993), e evidenciaram discrepâncias sexuais universais na organização social dos gêneros, geradas pelo condicionamento das mulheres ao dever de cuidado dos filhos. Assim, cabe ressaltar que nada que aparece na história como eterno é mais que o produto de um trabalho de eternização, realizado por instituições como a família, a igreja e a escola. Portanto, uma história feminista deve apresentar outras visões que não a naturalista e essencialista. Sublinha-se que este trabalho baseia-se na teoria materialista-feminista, que compreende a subordinação da mulher como universal e que pretende a disseminação das diferenças e categorias entre homens e mulheres, a partir do questionamento da subordinação feminina e de todas as violências relacionadas a esse fenômeno patriarcal. Dessa forma, analisaremos o controle da sexualidade das mulheres e quais os motivos que ainda as mantêm em situação de inferioridade, buscando compreender os entrelaçamentos dos registros históricos e das atuais e perpetuadas opressões estruturais instituídas pelo patriarcado. 36 “Só se poderá seguir essa definição quando as mulheres possuírem poder sobre os homens e não poder ao lado deles, o que inclui a esfera pública e as relações om o exterior, bem como a tomada de decisões importantes por parte das mulheres no âmbito familiar e social. ” (LERNER, 1990, p.30). 37 Socióloga e psicanalista, é considerada uma das principais teóricas da psicanalítica feminista. Entre suas obras estão The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender, publicada em 1978, e considerada um dos dez livros mais influentes dos últimos 25 anos, de acordo com a revista de sociologia americana Contemporary Sociology. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 43 2.3 As estruturas de poder e as suas opressões As estruturas de poder não só dividem a sociedade em homens dominadores, de um lado, e mulheres subordinadas, de outro, mas também criam homens que dominam outros homens, bem como mulheres que dominam outras mulheres, o que permite o reconhecimento de que o patriarcado, articulado com as demais estruturas de poder (como o capitalismo e o racismo38), representa um sistema de relações sociais que mantém a subordinação da mulher. A supremacia masculina se faz presente em todas as classes sociais, desde as subalternas até as dominantes e, mesmo que uma mulher, em razão de sua classe, assuma posição social superior à de homens e outras mulheres de classes mais baixas, ela não será eximida de ser sujeitada ao julgamento do homem, seja 38 “Sexismo e racismo são irmãos gêmeos. Na gênese do escravismo constava um tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres. Eis por que o racismo, base do escravismo, independente das características físicas ou culturais do povo conquistado, nasceu no mesmo momento histórico em que nasceu o sexismo. Quando um povo conquistava outro, submetia-o a seus desejos e a suas necessidades. Os homens eram temidos, em virtude de representarem grande risco de revolta, já que dispõem, em média, de mais força física que as mulheres, sendo, ainda, treinados para enfrentar perigos. Assim, eram sumariamente eliminados, assassinados. As mulheres eram preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam forca de trabalho, eram reprodutoras de força de trabalho e prestavam (cediam) serviços sexuais aos homens do povo vitorioso. Constitui-se uma prova cabal de que o gênero não e tão somente social, dele participando também o corpo, quer como mão de obra, quer como objeto sexual, quer ainda como reprodutor de seres humanos, cujo destino, se fossem homens, seria participar ativamente da produção e, quando mulheres entrar na engrenagem das funções descritas. Convém lembrar que o patriarcado serve a interesses dos grupos/classes dominantes e que o sexismo não é meramente um preconceito, sendo também o poder de agir de acordo com ele. No que tange ao sexismo, o portador de preconceito está, pois, investido de poder, ou seja, habilitado pela sociedade a tratar legitimamente as pessoas sobre quem recai o preconceito de maneira como este as retrata. Em outras palavras, os preconceituosos – e este fenômeno não é individual, mas
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