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Crise do sistema colonial A descoberta e a exploração das colônias européias na América relacionam-se, de um lado, com a formação do Estado Moderno, centralizado e absoluto, e, de outro, com o desenvolvimento de uma poderosa classe de mercadores e armadores que se associaram à Coroa nos empreendimentos marítimos e colonizadores. A empresa colonial refletiu essa aliança. A Coroa estava interessada na expansão dos seus domínios e no usufruto das rendas coloniais. Não contava, no entanto, com os recursos materiais e humanos para lançar-se a essa obra sozinha. Por isso, recorreu aos mercadores e aos banqueiros que, dessa forma, se associaram à colonização. Estes, por sua vez, necessitavam do apoio da Coroa para assegurar o controle dos mercados, condição essencial de acumulação do capital. O caráter restrito do mercado – tanto internacional quanto colonial – nos primeiros séculos depois da descoberta e os riscos do comércio transatlântico tornavam imperativa a criação de um regime de monopólios e privilégios que limitasse a concorrência e assegurasse os lucros tanto dos mercadores quanto da Coroa. Em conseqüência, os domínios de além-mar foram impedidos de comerciar livremente, obrigando-se a exportar seus produtos através da metrópole, de onde importavam as manufaturas cuja fabricação era proibida nas colônias. O sistema colonial montado segundo a lógica do capitalismo comercial e em razão dos interesses do Estado absolutista entrou em crise quando a expansão dos mercados, o desenvolvimento crescente do capital industrial e a crise do Estado absolutista tornaram inoperantes os mecanismos restritivos de comércio e de produção. O extraordinário aumento da produção proporcionado pela mecanização era pouco compatível com a persistência de mercados fechados e de áreas enclausuradas pelos monopólios e privilégios. Preconizava a adoção de um regime de livre-concorrência e afirmava a superioridade do trabalho livre sobre o escravo. Proscrito pela prática e pela teoria, o sistema que vigorava por três séculos estava prestes a ruir. Dois fatores retardariam o processo: os múltiplos interesses ligados à sua existência e a diferença de ritmo das transformações econômicas e sociais que ocorriam nas várias regiões da Europa e da América envolvidas no sistema colonial. A crise do sistema colonial coincidiu com a crise das formas absolutistas de governo. A crítica das instituições políticas e religiosas, as novas doutrinas sobre o contrato social, a crença na existência de direitos naturais do homem, as novas teses sobre as vantagens das formas representativas de governo, as idéias sobre a soberania da nação e a supremacia das leis, os princípios da igualdade de todos perante a lei, a valorização da liberdade em todas as suas manifestações – característicos do novo ideário burguês – faziam parte de um amplo movimento que contestava as formas tradicionais de poder e de organização social. Os fundamentos do sistema colonial tradicional estavam portanto abalados por vários tipos de pressão. No âmbito internacional, as bases da aliança burguesia comercial-Coroa, que havia dado origem ao sistema colonial tradicional, estavam minadas: de um lado, pela emergência de novos grupos burguese relacionados com o advento do capitalismo industrial e, de outro, pela perda da funcionalidade do Estado absolutista e pelo desenvolvimento de um instrumental crítico que procurava destruir suas bases teóricas. No âmbito das colônias, o aumento da população, o incremento da produção, a ampliação do mercado interno tinham tornado cada vez mais penosas as restrições impostas pela metrópole, tanto mais que cresciam as possibilidades de participação no mercado internacional. Não eram raros os conflitos entre produtores e comerciantes, entre comerciantes e burocratas ou entre os vários mercadores que disputavam entre si o usufruto dos monopólios e privilégios. Durante muito tempo, no entanto, os conflitos internos foram sentidos como conflitos de interesses entre os súditos de um mesmo reino. A Coroa aparecia sempre como a mediadora entre as partes. No decorrer do século XVIII esses conflitos ganharam nova dimensão. O Pacto Colonial passou a ser visto pelos colonos não mais como um contrato entre irmãos, mas como um contrato unilateral entre metrópole e colônia, no qual a primeira era a beneficiária: um contrato que por isso mesmo precisava ser desfeito. Rompera-se, no âmbito do sistema, a comunhão de interesses entre o produtor colonial, o comerciante e a Coroa, garantida pelos monopólios e privilégios. A Coroa deu-se conta dos descaminhos do ouro, das sonegações fiscais, dos prejuízos que o contrabando acarretava para os cofres reais, da queda da arrecadação dos impostos, do frequente desrespeito aos dispositivos legais. Os colonos, por sua vez, rebelaram-se contra o funcionamento de algumas instituições e contra determinadas medidas da Coroa que pareciam lesivas aos seus interesses, como, por exemplo, as restrições à livre circulação entre as províncias, o limite imposto à importação de escravos, o aumento das taxas, a lentidão da justiça, a venalidade, a corrupção e os desmandos dos oficiais da Coroa, as discriminações contra os naturais da colônia.mAos olhos dos colonos os interesses da Coroa identificaram-se com os da metrópole e, por isso, o anticolonialismo era também, para eles, crítica ao poder indiscriminado dos reis, afirmação do princípio de soberania dos povos, do direito dos povos se desenvolverem livremente, segundo seu arbítrio. Foi por essa razão que as populações coloniais se mostraram receptivas a ideologias revolucionárias que se difundiam na Europa no século XVIII. No Brasil, Ilustração foi, antes de mais nada, anticolonialismo. Criticar a realeza, o poder absoluto dos reis, significava lutar pela emancipação dos laços coloniais. Nas duas últimas décadas do século XVIII, as tensões entre colonos e metrópole se concretizaram em alguns movimentos conspiratórios os quais evidenciam a influência das revoluções Francesa e Americana e das idéias ilustradas. Nos autos dos processos de Devassa as idéias revolucionárias eram definidas como “os abomináveis princípios franceses”. A Devassa ordenada pelo vice-rei, conde de Rezende (1794), resume alguns desses pecaminosos conceitos divulgados não só em casos particulares, mas também em lugares públicos por alguns indivíduos que, com discursos “escandalosos e sacrílegos”,investiam contra a religião e a autoridade, o poder divino dos reis, “conversavam coisas de França”. Toda uma geração, no entanto, fora educada nos princípios revolucionários que os homens da Ilustração se tinham incumbido de divulgar e a Revolução Francesa de pôr em prática. Estes permaneceriam fiéis àqueles princípios. Constituíam, no entanto, uma elite reduzida, se bem que ativa. A grande maioria da população permaneceria alheia às especulações teóricas, embora pudesse, eventualmente, ser mobilizada em nome dos “princípios franceses”, ou em nome da Pátria e da Liberdade, palavras que passaram a ter um efeito mágico junto às multidões. A elite educada nos princípios da Ilustração, embora pouco numerosa, teria um papel importante a desempenhar por ocasião da Independência e, mais tarde, quando se tratou de organizar a nação. A abertura dos portos em 1808 a entrada de estrangeiros em número crescente a partir dessa data, intensificando os contatos entre Europa e Brasil, facilitaram mais ainda a divulgação de idéias revolucionárias. Limites do liberalismo no Brasil Embora seja evidente a influência das idéias liberais européias nos movimentos ocorridos no país desde os fins do séculoXVIII, não se deve superestimar sua importância. Analisando-se os movimentos de 1789 (Inconfidência Mineira), 1798 (Conjura Baiana), 1817 (Revolução Pernambucana) percebe-se logo sua pobreza ideológica. A maioria da população inculta e atrasada não chegava a tomar conhecimento das novas doutrinas. Na Europa, o liberalismo era uma ideologia burguesa voltada contra as Instituições do Antigo Regime, os excessos do poder real, os privilégios da nobreza, os entraves do feudalismo ao desenvolvimento da economia. No Brasil, as idéias liberais teriam um significado mais restrito, não se apoiariam nas mesmas bases sociais, nem teriam exatamente a mesma função. Os princípios liberais não se forjaram, no Brasil, na luta da burguesia contra os privilégios da aristocracia e da realeza. Foram importados da Europa. Não existia no Brasil da época uma burguesia dinâmica e ativa que pudesse servir de suporte a essas idéias. Os adeptos das idéias liberais pertenciam às categorias rurais e sua clientela. As camadas senhoriais empenhadas em conquistar e garantir a liberdade de comércio e a autonomia administrativa e judiciária não estavam, no entanto, dispostas a renunciar ao latifúndio ou à propriedade escrava. A escravidão constituiria o limite do liberalismo no Brasil. A idéia de revolução esbarrava sempre no receio de uma revolta de escravos. O horror às multidões e o receio de um levante de negros levariam essas elites a repelir as formas mais democráticas de governo e a temer qualquer mobilização de massa, encarando com simpatia a ideia de conquistar a Independência com a ajuda do príncipe regente. Dentro dessas condições soariam falsos e vazios os manifestos em favor das fórmulas representativas de governo, os discursos afirmando a soberania do povo, pregando a igualdade e a liberdade como direitos inalienáveis e imprescritíveis do homem, quando, na realidade, se pretendia manter escravizada boa parte da população e alienada da vida política outra parte. Outra peculiaridade do liberalismo brasileiro nessa fase é sua conciliação com a Igreja e com a religião. Natureza e limites do nacionalismo Assim como o liberalismo, o nacionalismo, freqüentemente associado na Europa aos movimentos liberais, não teria condições de assumir seu significado pleno num país cuja economia baseava-se essencialmente na exportação, onde o mercado interno era extremamente limitado, as vias de comunicação escassas e, por isso mesmo, difíceis os contatos entre as várias regiões. A unidade territorial seria, no entanto, mantida depois da Independência, menos em virtude de um forte ideal nacionalista e mais pela necessidade de manter o território íntegro, a fim de assegurar a sobrevivência e a consolidação da Independência. O nacionalismo brasileiro manifestava-se sobretudo sob a forma de um antiportuguesismo generalizado. Não raro as hostilidades contra Portugal tomaram o aspecto de uma luta racial entre os “mestiços” e os “branquinhos do reino”. Aos olhos da população nativa mestiça, a Independência significava sobretudo a possibilidade de eliminar as restrições que afastavam as pessoas de cor das posições superiores, dos cargos administrativos, do acesso à Universidade de Coimbra e ao clero superior. Abolir as diferenças de cor branca, preta e parda, oferecer iguais oportunidades a todos sem nenhuma restrição era o principal ideal das massas mestiças que viam nos movimentos revolucionários a oportunidade de viverem em “igualdade e abundância”. Para estas, a Independência configurava-se como uma luta contra os brancos e seus privilégios. Bases sociais da revolução Sob o rótulo das idéias liberais ocultavam-se aspirações distintas, como distintos eram os grupos sociais que se associaram aos movimentos em prol da Independência. Embora as conspirações que antecederam a Independência tivessem envolvido principalmente representantes das camadas superiores da sociedade, elementos das populações urbanas mais desprivilegiadas aderiram com entusiasmo aos movimentos. No processo instaurado contra eles, alegaram em sua defesa que não podiam ter participado da conspiração pois desfrutavam a melhor situação econômica e social sendo “membros da primeira e maior nobreza de Pernambuco, educados na disciplina das diferentes classes e ordens da sociedade’’ Embora seja exagero concluir, como o fez Antônio Luiz de Brito Aragão de Vasconcelos, encarregado da defesa dos réus de 1817, que os representantes das categorias mais elevadas tinham sido obrigados a ceder à força irresistível da plebe, não há dúvida de que ele tinha razão quando afirmava que o povo aderira facilmente à revolução em que fosse necessário nenhum ato para persuadi-lo. O entusiasmo pela “maldita liberdade”, como rezavam os documentos da época que denunciavam a mobilização revolucionária, espalhara se entre as populações urbanas, compostas na sua maioria de pardos e pretos, empolgados pelas idéias de liberdade e igualdade que se propalavam simultaneamente. O comportamento dessas massas urbanas era visto com maior desgosto e apreensão por indivíduos das camadas superiores da sociedade que não se tinham deixado empolgar pelas idéias revolucionárias. As várias faces da revolução Para o povo composto de negros e mestiços a revolução da Independência configurava-se como uma luta contra os brancos e seus privilégios. Para os despossuídos, a revolução implicava a eliminação das barreiras de cor, na realização da igualdade econômica e social, na subversão da ordem. Para os representantes das categorias superiores da sociedade, fazendeiros ou comerciantes, a condição necessária da revolução, no entanto, era a manutenção da ordem e a garantia de seus privilégios. Para as elites que tiveram a iniciativa e o controle do movimento, liberalismo significava apenas liqüidação dos laços coloniais. Não pretendiam reformar a estrutura de produção nem a estrutura da sociedade. Por isso a escravidão seria mantida, assim como a economia de exportação. Por isso o movimento de independência seria menos antimonárquico do que anticolonial, menos nacionalista do que antimetropolitano. Por isso também a idéia de separação completa de Portugal só se configurou claramente quando se revelou impossível manter a dualidade das coroas e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade de comércio. Balanço dos movimentos revolucionários do século XVIII. Transferência da Corte A maioria da população permanecia ignorante do que se tramara, participando das conspirações apenas alguns grupos representativos da elite colonial, elementos de sua clientela e alguns grupos pertencentes às camadas urbanas descontentes com a administração portuguesa e seduzidos pelas idéias revolucionárias que a França exportara e às quais a Independência Norte- Americana conferira prestígio Até a transferência da Corte para o Brasil, o comércio internacional português realizava-se na sua maior parte com o Brasil. Portugal, além de consumidor, era o entreposto da distribuição de todo o comércio exterior da colônia. Ganhavam os navios portugueses com os fretes marítimos, as alfândegas com as importações dos produtos coloniais e a exportação das manufaturas estrangeiras para a colônia; ganhavam os comissários portugueses com o armazenamento e a revenda dos produtos. As rendas das alfândegas constituíam as rubricas principais das receitas. De outro modo, a renda dos capitais lusitanos investidos no comércio colonial oferecia ampla base de tributação. Todo esse esquema de lucro desmoronara com a abertura dos portos e os Tratados de Comércio com a Inglaterra, concedendo- lhe uma tarifa preferencial,mais favorável do que a outorgada a Portugal. Pressionado por vários interesses contraditórios, D. João não conseguia satisfazer a nenhum grupo e sua política agravava os ressentimentos de todos. Para os portugueses, no entanto, todos os males pareciam advir da permanência da Corte no Brasil e da autonomia concedida à colônia. Esperavam eles que a volta de D. João VI a Portugal acarretasse a anulação das regalias concedidas ao Brasil e o restabelecimento do Pacto Colonial rompido. Não contavam ele com a oposição da colônia e da Inglaterra, ela própria beneficiária da nova situação criada pela transferência da Corte para o Brasil. O ponto de vista português e brasileiro Assim, enquanto em Portugal acumulavam-se os descontentamentos, no Brasil, as contradições da política de D. João VI, anulando monopólios e privilégios antigos, favorecendo liberalização da economia ao mesmo tempo em que criava outros privilégios na tentativa de garantir os interesses dos súditos portugueses, não provocavam menores ressentimentos. O impulso dado à economia a partir da abertura dos portos tornara mais aparente o caráter obsoleto das instituições coloniais remanescentes que entravavam a livre expansão da economia. Aos olhos da população brasileira o monopólio dos cargos administrativos pelos portugueses parecia cada vez mais odioso. Tudo isso multiplicava os pontos de atrito e aumentava os motivos de insatisfação de um e de outro lados. Escandalizavam-se com os absurdos entraves à circulação e ao comércio e com a ineficiência da burocracia. Revolução do Porto Em 24 de agosto de 1820, a cidade do Porto se sublevava. Constituíram- se as Cortes exigindo a promulgação de uma Constituição nos moldes da Constituição espanhola. Reclamava-se, ainda, a volta de D. João VI a Portugal. D. João VI decidiu-se, enfim, muito a contragosto, a voltar a Portugal, onde sabia esperá-lo uma Assembléia hostil e reivindicadora. Partiu em 25 de abril, deixando como regente seu filho Pedro. Enquanto esses acontecimentos se sucediam no Rio de Janeiro e nas capitais das províncias, a população rural, composta na sua maioria de escravos e de agregados das fazendas, permanecia alheia ao que se passava. Um viajante francês que percorria São Paulo nessa época, Saint-Hilaire, estranhava que constituição do governo geral pela Junta Governativa em São Paulo não provocasse nenhuma reação de entusiasmo. A única coisa que os paulistas pareciam compreender era que o restabelecimento do sistema colonial lhes causaria dano, porque, se os portugueses fossem os únicos compradores de seu açúcar e café, não mais venderiam as mercadorias tão caro quanto o faziam desde que tinham podido comerciar livremente.38 As idéias liberais ou republicanas não pareciam comover as populações interioranas, em geral fiéis ao rei a quem consideravam ainda o árbitro supremo de suas existências e das de seus filhos. Isolada pelas dificuldades de comunicação e meios de transporte, a maioria da população parecia mal informada e indiferente aos acontecimentos. Na sua opinião, as agitações eram promovidas por estrangeiros e as revoluções nas províncias, obra de algumas famílias ricas e poderosas. Ao viajante francês parecia que a maioria dos brasileiros não tinha opinião formada sobre a dinâmica da dministração. Não divergiam entre si por motivos ideológicos, mas por rivalidades entre cidades, ódios de famílias, simpatias ou antipatias individuais ou “quejandos motivos mesquinhos quanto estes”. Ao arguto observador não escapava a razão profunda da indiferença das camadas inferiores da sociedade. A massa popular, dizia ele, a tudo ficava indiferente, parecendo perguntar como o burro da fábula: “não terei a vida toda de carregar aalabarda?” No interior do país, o que parecia valer era a atitude do chefe local e não as idéias políticas, em geral pouco conhecidas o mal assimiladas. A ignorância das populações do interior é retratada num fato ocorrido no Ceará, por ocasião do juramento das bases da Constituição portuguesa proclamada em 14 de abril de 1821. Chegada a notícia ao sertão, a palavra constituição provocou as mais variadas e contraditórias interpretações – isso numa região que participara, em 1817, da revolução realizada em nome das idéias liberais e constitucionalistas. Diziam uns ser a constituição uma inovação da forma de governo em prejuízo do rei, portanto uma impiedade, um atentado contra a religião, segundo as afinidades que estabeleciam entre Deus e o rei. Outros consideravam a Constituição um atentado à liberdade dos pobres, aos quais se pretendia escravizar. Outros, finalmente, a tomavam por uma entidade palpável a que atribuíam uma perversidade de horripilar. As populações rurais, imersas na ignorância, seguiam os potentados locais de cuja clientela fazia parte. No Crato, a Constituição não seria jurada porque o líder político local, capitão-mor José Pereira Filgueiras, não o permitiu, enquanto no Jardim, vila próxima, onde o vigário Antônio Manuel era favorável à Constituição, esta foi jurada sem a menor hesitação. Conflito entre portugueses e brasileiros O conflito de pontos de vista entre os liberais portugueses e os brasileiros não tardou a emergir. A série de medidas tomadas pelas Cortes tornou patente a nova orientação assumida em relação ao Brasil, revelando as intenções de restringir a autonomia administrativa da colônia, limitar a liberdade de comércio, restabelecer monopólios e privilégios que os portugueses haviam usufruído anteriormente à transferência da Corte portuguesa para o Brasil. As decisões tomadas pelas Cortes repercutiram no Brasil como uma declaração de guerra, provocando tumultos e manifestações de desagrado. Ficava patente que os deputados brasileiros, em número inferior ao dos representantes portugueses (75, dos quais apenas 50 compareceram, num total de 205), nada poderiam fazer em Lisboa em defesa dos interesses brasileiros. Os propósitos recolonizadores das Cortes tinham agravado a tensão entre colônia e metrópole, pondo em risco a solução de compromisso almejada pela maioria dos que compunham a classe dominante do Brasil. Estes encaravam inicialmente com simpatia a instituição de uma monarquia dual, desde que fosse resguardada a autonomia do Brasil. Essa era a opinião, por exemplo, de José Bonifácio, figura de proa no movimento de Independência, o qual encarava com suspeição as situações revolucionárias que envolviam mobilização das massas. Mas não era ele o único a se declarar inimigo da democracia e a confessar sua aversão pelas massas em geral. A aversão às formas populares de governo, a desconfiança em relação à massa ignara que compunha a maioria da população, o receio da revolta de escravos que a situação revolucionária poderia propiciar levariam esses homens a contemporizar, enquanto puderam, com a monarquia portuguesa. Finalmente, romperam com esta quando perceberam a inviabilidade dessa união. O príncipe regente lhes apareceu então como o instrumento ideal para a conquista e consolidação da autonomia desejada, sem que para isso fosse preciso mobilizar a população. O “Fico” e a Proclamação da Independência Tentava-se ainda manter aberta a possibilidade de se constituir uma monarquia dual com sede simultânea em Portugal e no Brasil, visando manter o Brasil como Reino Unido a Portugal. Ao mesmo tempo, procurava-se preservar a autonomia administrativa e comercial alcançada. Convergiram para o príncipe aspirações as mais contraditórias. Para os portugueses, ele representava a possibilidade de manter o Brasil unido a Portugal. Acreditavam eles que só a permanência do príncipe no Brasilpoderia evitar um movimento separatista. Os brasileiros que almejavam a preservação das regalias obtidas e pretendiam a criação de uma monarquia dual consideravam também essencial a permanência do príncipe. O mesmo pensavam os que almejavam a Independência definitiva e total, mas temiam as agitações do povo. Para estes, o príncipe representava a possibilidade de realizar a Independência sem alteração da ordem. A idéia de monarquia dual Durante algum tempo, ainda se alimentou a esperança de manter unidas as duas Coroas. Em 23 de maio de 1822, pouco menos de quatro meses antes da Independência formal, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro redigia uma solicitação para que fosse convocada uma Assembléia Geral das Províncias do Brasil, com o objetivo, entre outros, de deliberar sobre as justas condições com que o Brasil devia permanecer unido a Portugal. Monarquia dual, com dois congressos, regente e tribunais brasileiros foi a sugestão apresentada em 17 de junho de 1822 às Cortes portuguesas pela Comissão encarregada dos artigos adicionais à Constituição para o Brasil. Ainda às vésperas da Independência era essa a intenção dos conselheiros do príncipe, como revelam as Atas do Conselho. A intenção de manter unidos o Reino do Brasil e o de Portugal, respeitada a autonomia administrativa, cara a alguns brasileiros e portugueses, não encontraria, no entanto, possibilidades de se concretizar. O reconhecimento da autonomia da colônia significaria a perpetuação do regime de livre-comércio instituído em caráter provisório em 1808 e que as Cortes tinham como principal alvo abolir. Três partidos disputavam a liderança dos acontecimentos. Um partido predominantemente português, composto na maioria por comerciantes ansiosos por restabelecer antigos privilégios. O segundo partido compunha-se de brasileiros e portugueses recrutados entre as categorias dominantes.. Finalmente, o Partido Republicano,igualmente interessado na Independência, composto na sua maioria de elementos de tendências mais radicais e democratas,ligados a atividades urbanas. A liderança do príncipe permitiu a aglutinação dos grupos os mais diversos. A despeito de conflitos de ordem pessoal que freqüentemente se manifestavam em hostilização recíproca – como no caso de Ledo, perseguido por José Bonifácio e preso por sua ordem –, as divergências entre esses grupos não eram suficientemente fortes a ponto de impedir a união em torno do príncipe. Enquanto a adesão do Rio de Janeiro à causa do príncipe parecia inquestionável, as resistências apareciam em outros pontos do país, principalmente nas províncias do Norte, onde era grande a concentração de comerciantes portugueses ligados ao comércio de exportação e importação, e numeroso o efetivo das tropas portuguesas lá sediadas. Essas regiões hesitavam em aderir ao movimento ocorrido no Rio de Janeiro, preferindo conservar-se subordinadas às Cortes. D. Pedro decretou em junho de 1822 a convocação de uma Assembléia Constituinte. Não era ainda uma proclamação formalde Independência, pois o texto da convocação ressalvava a união com “a grande família portuguesa”, na realidade difícil, de ser mantida depois de todos os atos de desrespeito às ordens das Cortes. Ao que parece, José Bonifácio não mostrara grande entusiasmo pela convocação da Constituinte. Não confiava na capacidade deliberativa de uma assembléia democraticamente eleita. Aspirava a um governo de “sábios e honrados” e não acreditava que o voto não- qualificado desse bons resultados. Prevalecera, no entanto, a proposta de José Bonifácio em favor de um sistema de eleição indireta, mais de acordo com a opinião da maioria. Concedia direito de voto a todo cidadão casado ou solteiro, de vinte anos, que não fosse filho-família. Ficavam excluídos os que recebessem salários ou soldadas com exceção dos caixeiros de casas de comércio, os criados da Casa Real (que não fossem de galão branco), os administradores das fazendas rurais e fábricas. Impedidos de votar ficavam também os religiosos regulares, os estrangeiros não naturalizados e os criminosos. Já havia algum tempo vinha o ministro percebendo que a fórmula de uma monarquia dual, carinhosamente acalentada, era impossível. Convencera-se, afinal, da sua inviabilidade e não era dado a hesitações. Diante das disposições agressivas das Cortes nada mais havia a fazer senão proclamar o rompimento definitivo com Portugal. Para D. Pedro havia apenas duas alternativas: ou obedecer às Cortes e voltar degradado a Portugal ou romper definitivamente com elas proclamando a Independência. O príncipe preferiu esta solução. Tomando conhecimento das novas, proclamou oficialmente em 7 de setembro, em São Paulo, a Independência do Brasil. A atitude decidida da Inglaterra inibiria qualquer tentativa da parte de Portugal de usar o esquema montado pela Santa Aliança para recuperar sua colônia. A elite no poder Realizada a Independência, a diferença entre grupos radicais e conservadores tornou-se mais evidente. José Bonifácio, no “Apostolado”, sociedade secreta que reunia figuras de projeção e relevo da sociedade, procurava pôr em prática o princípio que orientava o juramento que os unia: “Procurar a integridade, independência e felicidade do Brasil como Império Constitucional, opondo-se tanto ao despotismo que o altera quanto à anarquia que o dissolve”.Pouco tempo depois, no entanto, a loja era temporariamente fechada. O governo da nação ficava nas mãos de um grupo de elite: fazendeiros, comerciantes, pessoas que ocupavam altos postos na administração e no governo, muitos dos quais foram mais tarde titulados por serviços prestados por ocasião da Independência. Com a Independência, haviam atingido o objetivo fundamental a que se propunham: libertar o país das restrições impostas pelo Estatuto Colonial, assegurar a liberdade de comércio e garantir a autonomia administrativa. A organização do país independente refletiria os anseios desses grupos sociais que assumiram o poder no Primeiro Império. Ficaram excluídas do poder as camadas populares, uma vez que escravos e índios foram excluídos do conceito de cidadão, tendo-se adotado ainda um sistema de eleição indireta, recrutando-se os votantes segundo critérios censitários. Não cuidavam senão em diminuir o poder do rei, aumentando o próprio, não pensando de modo algum nas classes inferiores”. A Constituição afirmava a igualdade de todos perante a lei, bem como garantia a liberdade individual. A maioria da população, no entanto, permanecia escravizada, não se definindo em termos jurídicos como cidadãos. A lei garantia a segurança individual, mas por alguns poucos mil-réis podia-se mandar matar, impunemente, um desafeto. A independência da Justiça era, teoricamente, assegurada pela Constituição, mas tanto a justiça quanto a administração transformaram-se num instrumento dos grandes proprietários. Aboliram-se as torturas, mas nas senzalas continuava- se a usar os troncos, os anginhos, os açoites, as gargalheiras, e o senhor decidia da vida e da morte dos seus escravos. A emancipação política realizada pelas categorias dominantes interessadas em assegurar a preservação da ordem estabelecida, e cujo único objetivo era combater o Sistema Colonial no que ele representava de restrição à liberdade de comércio e de autonomia administrativa, não ultrapassaria os limites definidos por aqueles grupos. A ordem econômica tradicional seria preservada, a escravidão mantida. A nação independente continuaria na dependência de uma estrutura colonial de produção, passando do domínio português à tutela britânica.A fachada liberal construída pela elite europeizada ocultavaa miséria, a escravidão em que vivia a maioria dos habitantes do país. Conquistar a emancipação definitiva e real da nação, ampliar o significado dos princípios constitucionais foram tarefa relegada aos pósteros.
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