Buscar

RENATO JANINE RIBEIRO - Um pensador da ética

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 5 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

1 
 
 
 
Um pensador da ética
1
 
Por Renato Janine Ribeiro
2
 
 
Num dia de dezembro de 1513, um homem escreve a 
um amigo. Está no campo, banido. Foi preso e torturado. Mas não 
se queixa. Conta que passa o dia com os camponeses, gritando, 
jogando. À noite, porém, troca de roupa. Veste os melhores trajes. 
Lê os autores antigos e, espanto!, dialoga com eles. Ouve suas 
opiniões, suas idéias. (Essa passagem é sempre citada, quando se 
quer explicar a Renascença). Quase no final, informa que gastou 
algumas semanas escrevendo um livrinho, De principatibus (Dos 
principados), "onde me aprofundo tanto quanto posso nas 
cogitações desse tema...". 
Gastou nisso umas poucas semanas, que definirão para 
a posteridade o seu nome – Nicolau Maquiavel ou, em italiano, 
Niccolò Machiavelli. A elas Maquiavel deverá a glória: seu nome 
gerará um adjetivo que todos conhecem. De uns trinta grandes 
filósofos, apenas dois – ele e Platão – chegaram a tanto. Mesmo 
quem nunca os leu tem noção do que é amor platônico ou ação 
maquiavélica. Não importa que nós, professores de filosofia, 
provemos que os adjetivos convêm mal aos dois filósofos. Eles 
pegaram. O renome de Maquiavel é maior que ele próprio. 
Mas é um mau renome, uma má fama, infâmia. O 
Príncipe foi lido, bem cedo, como um livro de conselhos aos 
governantes, para quem os fins justificariam os meios (essa frase, 
aliás, não é de Maquiavel). Ele defenderia o despotismo e a 
amoralidade dos príncipes. Há aqui, porém, um problema. 
Maquiavel escreveu O Príncipe de um jato só, enquanto se dedicou 
vários anos a outro projeto – os Discursos sobre a primeira década 
de Tito Lívio, um longo comentário ao historiador de Roma antiga. 
 
 
1
 Artigo publicado na revista Cult, em dezembro de 2004. 
2
 Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na USP e curador deste dossiê, é 
autor de A sociedade contra o social (Companhia das Letras), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo 
contra o seu tempo (Ed. UFMG) e de A universidade e a vida atual (Campus), entre outras obras. 
2 
 
Ora, os Discursos são uma obra republicana. E, se 
Maquiavel foi torturado a mando dos Médici, que acabavam de 
retomar Florença, isso se deveu a ter sido ele um dos líderes da 
República florentina. O Maquiavel mais extenso é republicano – e 
sobre ele temos um livro notável de Newton Bignotto, Maquiavel 
republicano (1991). Mas talvez o autor d’O Príncipe seja o 
Maquiavel mais intenso: essas semanas no campo emancipam a 
política da moral cristã. 
Daí, questões sérias. Rousseau, dois séculos e meio 
depois d’O Príncipe (isto é, a meio caminho entre Maquiavel e 
nós), sugere: tudo seria uma enorme paródia. Republicano da gema, 
nosso autor teria contado – como a sério – todo o mal que os reis 
fazem, para fazer-nos odiá-los. Há um enigma Maquiavel. Ainda 
maior, porque O Príncipe é talvez a obra filosófica que parece mais 
fácil de ler. Nenhuma dificuldade para entender cada linha ou 
página. Só para saber o que, afinal, ele quis dizer. 
Maquiavel começa distinguindo repúblicas e 
monarquias: falará delas. Dos reinos, uns são antigos e outros 
novos: só tratará dos novos. E, destes, uns foram conquistados por 
armas próprias e outros, com armas alheias e graças à fortuna (no 
sentido de sorte) – interessam-lhe estes. Como um novo 
governante, que não se beneficia da opinião favorável que a idade 
dá a um regime, pode conseguir ser aceito por seu povo? eis a 
questão. Isto é: como passar da força bruta ou da violência ao 
poder, que depende do consentimento dos dominados. 
E com isso Maquiavel é um dos raros pensadores da 
política a pensar, não só o exercício, mas a tomada, do poder – não 
a continuidade, mas a novidade. Não é fortuito que o marxista 
italiano Antonio Gramsci tenha escrito sobre ele: Maquiavel pode 
ser revolucionário. 
Todo governante procura "conservar o [seu] estado". 
Quer dizer seu estado de governante, a condição de quem manda. 
Mas daí brota outro sentido, que surge com Maquiavel: o Estado 
3 
 
que o príncipe governa. E como o conservará? Não há receituário. 
Aqui está o erro de quem lê, n’O Príncipe, regras a aplicar. Pois o 
que ele destaca na política (ou aquilo a que seus leitores recentes se 
mostram mais atentos) é justamente o que exige argúcia e invenção! 
Diz ele que deseja escrever coisa que preste, útil; por 
isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, 
para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, 
planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que 
nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas 
ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de 
nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna. 
Uma forte convicção medieval era que o governante 
deveria seguir a moral cristã. Era essa a chave do bem governar. 
Mas Maquiavel mostra, usando a história e a experiência, que 
sempre venceu quem pensou mais no êxito do que na moral ou na 
salvação da alma. Nem por isso devemos ser cruéis de propósito: 
ele recomenda praticar o bem sempre que possível, o mal quando 
necessário. 
Só que o governante não tem garantia de sucesso. Este 
sempre é incerto. Um homem privado pode, se respeitar leis e 
regras, vencer na vida; vive no quadro de um sistema que premia e 
pune; mas um governante, que não tem rede a protegê-lo, não tem 
segurança disso. 
Lembremos o ex-presidente Fernando Henrique 
Cardoso. Ele falou muito na ética da responsabilidade, conceito que 
Max Weber cunhou para dar conta do que Maquiavel iniciara. 
Teríamos por um lado a ética de princípios ou valores, e por outro a 
que leva em conta os efeitos previsíveis da ação. O homem privado 
poderia dar-se ao luxo de seguir os princípios, em sua pureza. 
Já o homem público precisa pautar-se pela ética da 
responsabilidade, insistia FHC, citando Weber (teve a cautela de 
não citar Maquiavel). Esse foi um ponto de debate no governo 
passado, com parte da oposição atacando o presidente em nome de 
4 
 
um discurso moral. Subentendia-se que a ética da responsabilidade 
fosse uma ética com desconto, uma ética enfraquecida, até mesmo 
uma não-ética. Mas ela não é isso. 
Se o subtexto de FHC era Maquiavel, não era amoral. A 
melhor bibliografia atual repudia a imagem de um Maquiavel anti-
ético. Destaquemos o livro de Claude Lefort, comentado adiante, 
que precisaria ser traduzido. Ou o livro utilíssimo de Quentin 
Skinner, Maquiavel, infelizmente esgotado (Brasiliense), ou ainda 
duas passagens de seu Fundações do pensamento político moderno 
(Companhia das Letras). 
Dois brilhantes textos mais curtos valorizam a ética de 
Maquiavel. Isaiah Berlin, em "A originalidade de Maquiavel" (in 
Estudos sobre a humanidade, Companhia das Letras), diz que na 
obra dele não se opõem a ética e uma política sem ética – mas duas 
éticas. Uma é cristã, preza a salvação da alma. Outra – a do 
Príncipe – é pagã e valoriza a pólis, a cidade, este mundo. 
Mas o grande pequeno artigo é a "Nota sobre 
Maquiavel", de Merleau-Ponty (in Signos, Martins Fontes). Diz ele 
que uma bondade "incapaz de dureza" (a ética dos princípios) não é 
verdadeira, nem sequer para o indivíduo – e que O Príncipe encarna 
"algumas das condições de todo humanismo sério" e, mais que isso, 
"a regra de uma verdadeira moral". Esta exige levarmos em conta 
as conseqüências prováveis de nossos atos. De nada vale ficar nas 
boas intenções. Maquiavel terá lançado as bases da ética de nossos 
tempos. Merleau-Ponty assim efetua uma enorme reviravolta, que 
faz o filósofo maismal falado de todos – e cujo prenome gerou em 
inglês um apelido para o diabo, "Old Nick" – se tornar um possível 
grande pensador ético. 
Talvez isto signifique o seguinte: na Idade Média, o 
quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do 
súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava 
isso para fazer um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra 
que o príncipe não está mais submetido – nem protegido – por esse 
5 
 
quadro. É essa insegurança que lhe dá liberdade. Ninguém é livre 
sem ansiedade. Mas hoje temos um mundo em que também se 
desfizeram os quadros de referência que protegiam – e prendiam – 
os cidadãos. Não só o príncipe, mas todos nós. 
Se, na reflexão de FHC, a vida pública é diferente da 
vida privada, o que vemos hoje – e disso se aperceberam os 
comentadores recentes de Maquiavel – é que a vida privada tomou 
cores que eram da vida pública. O ex-presidente também errou, ao 
separá-las. Pois a vida privada igualmente se tornou insegura: 
casamentos, empregos e até profissões terminam. 
Essa insegurança é maior, mais duradoura e mais 
inquietante do que a gerada pelo temor do assalto: nenhuma polícia 
pode superá-la. Por isso, não é verdade que o homem privado possa 
ignorar a lição d’O Príncipe. Hoje é ele quem mais tem a aprender 
lendo esse poderoso livro. Porque cada um de nós está, em certa 
medida, na condição do príncipe de Maquiavel: com mais liberdade 
do que nunca antes, mas também mais inseguro.

Outros materiais